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ano II • n. 4 • maio 2009


ISSN 1982-2766

Domínios da Imagem Revista do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História (LEDI) do Departamento de História e vinculada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina

DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, ANO II, N. 4,

MAIO

2009


Universidade Estadual de Londrina REITOR: Wilmar Sachetin Marçal VICE-REITOR: Cesar Antonio Caggiano Santos DIRETOR DO CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS: Ludoviko Carnascialli dos Santos CHEFE DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA: Cristiano Gustavo Biazzo Simon COORDENADOR DO MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL: José Miguel Arias Neto EDITOR RESPONSÁVEL: Ana Heloísa Molina – UEL COORDENADOR DO LEDI: Alberto Gawryszewski – UEL

CONSELHO CONSULTIVO Daniel Russo – Université de Borgnone • Eddy Stols – Katholieke Universiteit Leuven – Bélgica • Francisco Alambert – USP • Mauro Guilherme Pinheiro Koury – UFPB • Patrice Olsen – Illinois State University • Renato Lemos – UFRJ • Rodrigo Patto Sá Motta – UFMG • Terezinha Oliveira – UEM • Ulpiano Bezerra Menezes – USP

CONSELHO EDITORIAL E CIENTÍFICO Agbenyega Adedza – Illinois State University • Ana Cristina Teodoro da Silva – UEM • Ana Maria Mauad – UFF • Annateresa Fabris – USP • Annie Duprat – Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines • Áureo Busetto – Unesp • Cláudia Musa Fay – PUC / RS • Darío Acevedo Carmona – Universidad Nacional de Colombia • Luciene Lemkhul – UFU • Luiz Guilherme Sodré Teixeira – Fundação Casa de Rui Barbosa / RJ • Miriam Nogueira Seraphim – Unicamp • Miriam Paula Manini – UnB • Renata Senna Garraffone – UFPR • Solange Lima Ferraz – Museu Paulista • Vânia Carneiro Carvalho – Museu Paulista PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO: Kely Moreira Cesário IMAGEM DA CAPA: Eliseu Visconti (1866-1944). Galhos de pinheiro. Estudo para estamparia de tecido. Desenho a crayon e giz/ papel. 50x33cm. Coleção particular.

TIRAGEM: 500 exemplares Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Domínios da imagem / Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História. Programa de Pós-Graduação em História Social. Londrina, PR. Ano I – n. 1 – nov. 2007 Semestral ISSN 1982-2766 1. Imagem – Estudos – Periódicos. 2. Imagem – História Periódicos. I. Universidade Estadual de Londrina. II. Centro de Letras e Ciências Humanas. III. Programa de Pós-Graduação em História Social. CDU 2 Todos os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não cabendo qualquer responsabilidade legal sobre seu conteúdo à revista. Pede-se permuta • Pédese canje • On demande échange • We wask for exchange • Si richiedle lo scambio


Sumário

Telejornalismo de cineastas nos anos de chumbo: construções do popular no embate da “viola X guitarra” ............................................................................................................................. 7 Cássia Louro Palha

“Imagens fiéis da terra”: paisagem e regionalismo na recepção às obras de Frans Post pela cultura visual de Pernambuco, 1925-1937 ............................................................................... 19 Daniel de Souza Leão Vieira

Representações femininas nos retratos do século XIX .............................................................. 33 Gisele Ambrósio Gomes

Do Zócalo a Chapultepec: considerações sobre memória, política e narrativa arquitetônica monumental no caso mexicano ................................................................................................... 41 Hernán Ramírez

Presenças, anúncios e silêncios: registros fotográficos de um lugar chamado Gruppelli ....... 57 Margareth Acosta Vieira

A imagem feminina na revista Claudia: as representações do cotidiano familiar (19611985) .............................................................................................................................................. 69 Maria Paula Costa

Pedagogía, moral y cultura popular: la escuela argentina frente al cine en las primeras décadas del siglo XX ...................................................................................................................... 81 Myriam Southwell; María Silvia Serra

O estudo da simbologia do gorgoneion figurado nos escudos gregos através da cerâmica ática pintada. Séculos VI e V a.C. ................................................................................................. 93 Patrícia Boreggio do Valle Pontin

O ícone bizantino e a produção de sentido nos imigrantes ortodoxos ucranianos .............. 107 Paulo Augusto Tamanini

When Two Worlds Collide: representações do real e monstruosidades fantásticas no conjunto simbólico das capas de álbuns e singles da banda Iron Maiden ............................................ 115 Rodrigo Medina Zagni

Cinema e cineclubismo como processos de significação social ............................................ 137 Veruska Anacirema Santos da Silva

RESENHAS DIDI-HUBERMAN, Georges. La pintura encarnada ............................................................... 151 por Rafael Alves Pinto Junior


Imagem da capa

A imagem da capa desse número da Domínios da Imagem é de autoria de Eliseu Visconti (1866-1944), pintor de origem italiana, mas, radicado no Brasil em tenra infância. Aluno da Academia Imperial de Belas Artes e depois, Escola Nacional de Belas Artes, quando da Proclamação da República, Visconti foi bolsista, prêmio de viagem a Europa, por aquela instituição, concluindo seus estudos em ateliês europeus e na École Guérin, na qual de 1894 a 1898 seguiu o curso de desenho e arte decorativa de Eugéne Grasset, considerado um dos mais destacados nomes do art nouveau. Influenciado pelo impressionismo, Visconti amalgama diversas influências como o prérafaelismo e o detalhe do desenho, produzindo quadros de inestimável valor. Conhecido por executar o pano de boca do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, no início do século XX, Eliseu Visconti, deixa uma obra vasta e rica atendendo a várias áreas, desde a arte decorativa à pintura de alegorias, além de esquemas e esboços para a estamparia, litografia e design. A imagem reproduzida em nossa capa, Galhos de pinheiro, estudo para estamparia de tecido, em um desenho a crayon e giz/papel, com 50 x 33 cm, consta do catálogo de exposição Eliseu Visconti. Arte e Design, realizada em São Paulo, entre os dias 04 de outubro a 07 de dezembro de 2008. Em parceria com diversas instâncias estaduais, federais e privadas, a dita exposição foi realizada graças aos esforços do Projeto Eliseu Visconti, que busca organizar a obra desse pintor dispersa em várias coleções. Tal projeto possui um site (www.eliseuvisconti.com.br) indicado a todos que queiram conhecer melhor tal artista.


Apresentação

O número 4 da revista Domínios da Imagem é muito especial, pois é lançado junto com a realização do II Encontro Nacional dos Estudos da Imagem. Como na primeira vez, a proposta do evento está atrelada ao incentivo e desenvolvimento do conhecimento científico sobre os estudos da imagem no Brasil e, particularmente na região norte do Paraná, assim como no restante do Estado, fortalecendo os grupos de pesquisa já formados e estimulando a formação de outros. O Encontro deverá, novamente, apresentar êxito quanto ao seu caráter multidisciplinar, ao envolver pesquisadores das mais diversas áreas de conhecimento e instituições. O espaço da revista tem por objetivo difundir o diálogo intelectual entre pesquisadores que atuam em diferentes regiões do país e do exterior, e prioriza os domínios da imagem. Os artigos ora aqui apresentados, demonstram uma abrangência de fontes, indagações e investigações acerca das visualidades. Cássia Louro Palha analisa a participação de cineastas no telejornalismo brasileiro durante a década de 1970, tendo como exemplo o filme “Boa Esperança: a viola X a guitarra”, de João Batista Andrade, apresentado no Globo Repórter, em 1976. Em “Imagens fiéis da terra”, Daniel de Souza Leão Vieira, aborda a recepção e a utilização da obra de Frans Post pela cultura visual de Pernambuco, no período de 1925 a 1937. Gisele Ambrósio Gomes, a partir da análise de três pinturas a óleo, trata das representações femininas nos retratos do século XIX, que se encontram no acervo do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora. Hernán Ramírez discute a relação entre memória, política e imagem a partir do caso mexicano, tendo como base a narrativa arquitetônica monumental no percurso do Zócalo a Chapultepec. Margareth Acosta Vieira realiza um exercício de reconstrução da trajetória de um lugar chamado Grupelli, distrito da cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul. A partir de um conjunto de três registros fotográficos das primeiras décadas do século XX, busca perceber as transformações ocorridas nas edificações pertencentes ao local. Anúncios publicitários e as representações da imagem feminina em seu cotidiano familiar, publicadas na revista Claudia, no período de 1961 a 1985 são os objetos de estudo de Maria Paula Costa. Myriam Southwell e María Silvia Serra, com base em análises de entrevistas com inspetores de ensino fundamental, tratam das vinculações entre a escola e o consumo social do cinema, no período de 1920 a 1930, na Argentina. O estudo da simbologia do gorgoneion nos escudos gregos é o tema de Patrícia Boreggio do Valle Pontin que faz um levantamento sistemático dessas imagens para melhor compreender a disposição do homem grego diante da guerra. Paulo Augusto Tamanini elege o ícone bizantino para analisar a construção de sentidos junto aos imigrantes ortodoxos ucranianos estabelecidos em Santa Catarina.

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Capas de álbuns e singles da banda Iron Maiden são as fontes que Rodrigo Medina Zagni utiliza para identificar, no conjunto das representações simbólicas, emissores e receptores do fenômeno heavy metal. Já, Veruska Anacirema Santos da Silva enfoca o Clube de Cinema da Bahia para refletir as possibilidades de significação social estabelecidas nas práticas sociais do cinema. Na sessão resenha, Rafael Alves Pinto Junior nos apresenta o texto de Georges DidiHuberman acerca da pintura encarnada e as reflexões sobre história da arte deste crítico. Salientamos, para finalizar, que o presente número da revista conta com uma abrangente gama temática e abordagens temporais, indicando assim, as inúmeras possibilidades de trabalho com fontes visuais. Desejamos a todos uma boa leitura! Ana Heloisa Molina Isabel Bilhão

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TELEJORNALISMO DE CINEASTAS NOS ANOS DE CHUMBO: CONSTRUÇÕES DO POPULAR NO EMBATE DA “VIOLA X GUITARRA”

Telejornalismo de cineastas nos anos de chumbo: construções do popular no embate da “viola X guitarra”

Cássia Louro Palha Doutora em Comunicação Social e em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora Adjunta da Universidade Federal de São João del-Rei. Autora de “Identidade Nacional, Ensino de História e as diretrizes para as relações étnico-raciais”. Métis História e Cultura, Universidade de Caxias do Sul, 2002.

RESUMO O presente texto aborda o programa Globo Repórter no contexto da década de 1970, cuja singularidade de sua produção cultural apresentou-se como um nicho crítico frente ao jornalismo da Rede Globo naquele momento, a reboque de suas veiculações de um “popular” que não raro serviu de contraponto à cultura do progresso e da ordem estabelecidos pelo regime militar. Em particular é analisado o filme “Boa Esperança: a viola X a guitarra” (1976), de João Batista de Andrade. Com o mote do aniversário de uma cidade do interior do estado de São Paulo, o filme explora a discussão de “progresso” tão enfatizada como apelo seminal da proposta do “Brasil Grande” presente nas propagandas da AERP (Assessoria Especial de Relações Públicas). PALAVRAS-CHAVE: telejornalismo; popular massivo; Brasil contemporâneo.

ABSTRACT This paper analyzes Globo Reporter programme during the context of 1970s, when the singularity of its cultural production was presented as a critical reference on Globo’s journalism during that time from a “popular” construction that was many times used as a focus against culture of progress and order established by military government. Specifically, we analyze the film “Boa Esperança: a viola X a guitarra” (Good hope: the small guitar X the guitar”) (1976), by João Batista de Andrade. From the topic of the anniversary of a city of São Paulo state, the film shows the discussion about progress emphasized by the proposal of “Big Brazil” present on AERP´s (Special Advisory of Public Relations) advertisements. KEYWORDS: journalism on TV; mass media; contemporary Brazil.

Recebido em: 24/03/2008

Aprovado em: 25/04/2009

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CÁSSIA LOURO PALHA

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Introdução O logotipo do Globo Repórter foi visto pela primeira vez em abril de 1973, como desdobramento do projeto de uma série de 24 programas dirigidos por cineastas oriundos em sua maioria do Cinema Novo, sob a direção geral de Paulo Gil Soares, o Globo Shell Especial. Patrocinado pela empresa petrolífera Shell, o programa com veiculação mensal no horário das 23:00 horas mostrouse um sucesso de crítica e público, para pouco tempo depois dar forma ao Globo Repórter que, em menos de um ano após sua estréia, ganhou o espaço nobre das nove horas e o prêmio da Associação de Críticos de Arte do Estado de São Paulo, como o melhor programa jornalístico da televisão brasileira. Organizado em equipes pequenas e trabalhando de forma isolada do setor jornalístico da Globo – apesar da submissão, desde 1974, ao Departamento de Jornalismo da emissora, na figura de seu diretor, Armando Nogueira – o programa dividiu-se em três núcleos. Em São Paulo, formou-se a equipe de João Batista de Andrade e Fernando Pacheco Jordão enquanto, no Rio 1

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de Janeiro, Paulo Gil Soares reuniu nomes como Washington Novaes, Walter Lima Jr. e Eduardo Coutinho. Paralelamente, a produtora independente Blimp Filmes, responsável pelos primeiros programas da Globo Shell, vendeu um pacote de filmes para a emissora, permitindo a contratação de uma equipe fixa que também passou a fazer parte do programa, com um elenco formado dentre outros por, Maurice Capovilla, Sylvio Back, Leon Hirszman, Gregório Bacic e Hermano Penna. Pode-se dizer que no conjunto da análise das trajetórias individuais desses profissionais, existiram dois pólos integradores que nos permitem configurar a noção de um certo habitus 2 em comum entre eles : o cinema e a política. São sujeitos que, durante a década de 1950, presenciaram o panorama de um mundo marcado pela arrancada do desenvolvimento capitalista em meio ao início da Guerra Fria, no qual internamente discutia-se as contradições das discrepantes diferenças sociais da sociedade brasileira, com a produção intelectual repensando os parâmetros identitários da nação. Rompendo com o conceito tradicionalista de cultura,

Este artigo foi apresentado como comunicação no VI Congresso Nacional de História da Mídia, GT de História do Jornalismo, Niterói, UFF, 2008, sendo uma adaptação de parte das análises desenvolvidas na tese de doutoramento intitulada “O POVO E A TV: Construções do popular na história do Globo Repórter (1973-1985).Tese de Doutoramento,Programa de Pós-Graduação em Comunicação /UFF, Niterói, 2007. O conceito de habitus em Bourdieu oferece a instrumentalidade para a apreensão de uma tendência no comportamento, nos gostos e preferências de indivíduos e ou/grupos oriundos de uma mesma trajetória social, permitindo a análise de parte do princípio de disposições de suas práticas, que poderiam ser interpretadas de forma difusa. É necessário se destacar, contudo, que o habitus não é o reflexo de uma ordem social funcionando pela lógica reprodutivista, ao contrário, ele constitui-se pelas estratégias e práticas objetivas/ subjetivas nas quais e pelas quais os sujeitos reagem, inovam, adaptam-se e contribuem no fazer história. Sobre as críticas ao possível caráter reprodutivista do conceito de habitus e ao contraponto feito por Bourdieu, Cf. BOURDIEU, Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 9-49.

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quase sempre vinculado ao prisma folclórico – também presente nos anos 1950 – buscava-se redescobrir o Brasil. A identidade brasileira como mistura de brancos, negros e índios perdia assim seu tom de justificativa da ordem vigente para gerar seu próprio questionamento. No transcorrer desta década, como destaca Bernardet , houve um divisor de águas entre uma tradição de documentários de caráter mais informativo e pedagógico e uma nova geração que surgiu dos caminhos dos primeiros curta-metragens do Cinema Novo, influenciado sobremaneira pelo neo-realismo italiano3 e sua busca pela representação da realidade social como veículo estéticoideológico de resistência, no qual, tão importante quanto a abordagem da problemática social, era a busca de possibilidades para sua transformação através da produção cultural (BERNARDET, 1985). Muitos foram os profissionais que ingressaram no Globo Repórter no início da década de 1970 e que, neste momento, tiveram suas vidas ligadas à militância política através de produções culturais vinculadas aos CPC’s (Centros Populares de Cultura) e ao Partido Comunista Brasileiro. Eduardo Coutinho, João Batista de Andrade, Maurício Capovilla, Renato Tapajós, são alguns dos vários nomes que poderiam ser citados. O ingresso desses profissionais no programa, bem como de diversos atores e autores na televisão brasileira desse momento, tem sido abordado sob pontos de vista diferentes. Como destaca Ridenti, ora

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ele tem sido visto como “cooptação” por parte da indústria cultural, que na incorporação desses artistas buscou legitimar uma ideologia “nacional-popular de mercado”, ora como forma de elevar o nível de qualidade da emissora ou, ainda, como possibilidade de transmitir uma perspectiva crítica às massas, ajudando em uma possível conscientização ou transformação social, via socialização propiciada pela mídia (RIDENTI, 2000). Por parte da emissora, é preciso considerar que a entrada de profissionais legitimados tanto pelo prisma da experiência no mundo cultural e artístico, quanto em função de vínculos com movimentos sociais e partidários de esquerda, ofereciam um duplo respaldo: interessavam pelo que podiam inovar profissionalmente naquele contexto de reestruturação de sua programação e de seu público alvo (investimento nos chamados setores “A” e “B” de audiência) e também pelo capital político de que gozavam. Já para esses profissionais cujos filmes foram senão diretamente ligados, por certo influenciados em suas origens pelo Cinema Novo – lembrando que a premissa do Cinema Novo de um fazer artístico autônomo, livre de todo tipo de coerção mercadológica, institucional, política ou partidária construiu neste ponto sua cisão com o CPC – o ingresso em outros nichos, passou a significar um sopro de sobrevivência frente aos desdobramentos dos anos 1960 e a incipiência de um mercado capaz de abranger seu público alvo. Com o acirramento da repressão do regime militar o

Apesar do neo-realismo italiano não demarcar uma fronteira exata, pode-se dizer que seu impulso vem com o final da Segunda Grande Guerra e o processo de “libertação” italiana do jugo fascista. De forma mais geral, sua proposta baseava-se na representação “objetiva” da realidade como forma de comprometimento político frente as ideologias morais e totalitárias do regime de então.Com o objetivo de apresentar a realidade do “povo”, grande parte de suas produções passaram a filmar favelas, vilas de pescadores, homens simples do campo das cidades numa lógica maior de exposição dos problemas sociais. A esse respeito, cf. FABRIS, Maria Rosária. O neo-realismo cinematográfico italiano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996 e BERNARDET, Jean Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980.

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mercado afunila-se ainda mais e os projetos pulverizaram-se em iniciativas individuais enquanto o esvaziamento político encontrava passagem nas produções cinematográficas das pornochanchadas. O fôlego de parte desses cineastas é recobrado então exatamente no limiar dos anos 1970 com a moderna indústria cultural representada pela televisão e, um pouco mais tarde, a partir da reorganização, pelo próprio governo, da Embrafilme. Um processo que Ridenti chama de “rearranjo pragmático dos artistas de esquerda” com a ordem estabelecida daquele momento (RIDENTI, 2003, p. 155). O que, se por um lado, implicou numa certa ressignificação do sentido mais pragmático do “nacional-popular” até então entendido como projeto político transformador para a sociedade brasileira, por outro, em absoluto significou o abandono de uma certa militância política, ainda que de dentro da Rede Globo de Televisão. Nesse sentido, é necessário destacar que para o teórico do nacional-popular, Antônio Gramsci, o sentido do termo está ambiguamente ligado ao exercício político entre intelectual e “massas” e à expressão de um movimento maior do intelectual de se colocar “no lugar do povo”. Além disso, Gramsci concebe a mídia (em seu tempo, basicamente fundada na imprensa) como uma moderna arena de conflitos onde, para além do poder hegemônico daqueles que controlam sua produção, comportaria elementos de questionamento e subversão capazes de projetar novas formas culturais (GRAMSCI, 1978 e 1979)4. Dentro desta perspectiva, são inegáveis as brechas de

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realização/construção de um certo “popular”, ainda que condicionado pelas lógicas de massificação do mercado, pelo posicionamento político da emissora e do próprio regime militar. Evidentemente que, para além da concepção socialista da década anterior, trata-se agora de um “povo público”, medido e controlado pelas pesquisas de opinião. Em outras palavras, a transformação dessas produções culturais em mercadorias massivas pela TV, não impediu seus realizadores, cada qual a sua maneira, de fomentar uma expressividade crítica de formação para esse mesmo público. São nessas fissuras que cresce a construção de um popular massivo voltado para a crítica de várias de suas mazelas sociais e, em última análise, como crítica à sua própria marginalização dentro do sistema. Ou ainda, segundo Gramsci, para o “sentir popular” 5, que na forma cultural de reportagens e documentários, não raramente, foram levados ao ar. O documentário Boa Esperança: viola X a guitarra é um exemplo. João Batista de Andrade: a militância e o popular De classe média baixa, mineiro, natural de Ituiutaba, João Batista de Andrade encontra na grande capital paulista dos anos 1950 a possibilidade de dar continuidade aos seus estudos: era um “migrante em São Paulo”. Sua relação com a militância política iniciase na Faculdade de Filosofia da Escola Politécnica de São Paulo com a criação do Grupo Kuatro de Teatro, que teve na maioria dos seus integrantes uma vinculação política

Sobre literatura nacional-popular e o papel dos jornais em Gramsci, cf. respectivamente: GRAMSCI, 1978 e 1979. Para o teórico, o elemento popular antes de tudo “sente” e a passagem do sentir para a “compreensão” e o “saber” depende de uma tomada de posição do intelectual, cujo erro consiste em “acreditar que se possa saber sem compreender e principalmente sem sentir e estar apaixonado”. GRAMSCI, 1995, p. 139.

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estreita com organizações populares e partidos clandestinos. Para além de suas produções cinematográficas (A Eterna Esperança e Paulicéia Fantástica, ambos dirigidos ao lado de Bernadet e Gamal) Batista traçou, nesse momento, caminhos expressivos também no espaço jornalístico, especialmente junto ao combativo programa a Hora da Notícia, da TV Cultura de São Paulo, ao lado de Fernando Pacheco Jordão e Wladimir Herzog, este, morto anos depois pelos militares. A trajetória de seu posicionamento político em seus laços com o Partido Comunista Brasileiro pode ser encontrada em seu livro auto-biográfico Alguma solidão e muitas histórias. Obrigado, às vésperas do vestibular, a freqüentar o quartel do CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva), destinado aos estudantes universitários, Andrade lembra que atraía a repressão dos oficiais, “talvez pelo incômodo facilmente identificável em meus gestos, olhares e palavras.[...]”. Uma rebeldia que lhe rendeu o apelido de melancia: “melancia todos sabiam, era o cidadão verdeamarelo por fora e vermelho por dentro, um comunista disfarçado de nacionalista” (ANDRADE, 2004). Em nossa entrevista, João Batista de Andrade rememorou da seguinte forma seus caminhos políticos em sintonia fina com o cinema nacional: [...] Então a cidade (São Paulo) foi um desafio imenso. Essa inquietação foi tanto para a cultura quanto para a política. Eu fui dirigente estudantil e aí o golpe de 64 me pegou no último ano de engenharia e eu tive que abandonar a escola. Não terminei a escola porque eu era diretor da União Estadual dos Estudantes. Mas já na universidade nós tínhamos um grupo literário e um grupo de cinema, o Grupo Kuatro.[...] Eu me preparei na juventude quando eu fiz universidade para

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viver num país socialista, esta é a verdade. E aí veio a ditadura. Eu tenho uma verdadeira ojeriza à ditadura e a tudo o que ela fez tanto pra sociedade de uma forma geral quanto para a minha vida pessoal [...]. E o cinema entrou para a minha vida dessa maneira, com essa carga pessoal, política e também com perdas. O que faz com que na carreira eu tenha uma dualidade muito grande entre a lucidez, a racionalidade mas também uma loucura pessoal de revolta contra a ditadura militar, que era o meu alvo preferido. Sempre foi. 6

O cineasta afirma que sua entrada na televisão brasileira – e especialmente no Globo Repórter – não impediram que sua obra cinematográfica continuasse atada aos seus princípios políticos. Enfatizando as brechas de trabalho angariadas frente à censura seja do regime, seja da própria emissora, ele comenta sobre seu período de trabalho dentro na emissora: “foi um exercício mesmo como documentarista. Era uma militância de cineasta. Tanto que eu filmei sobre greves, a situação precária dos migrantes nas grandes cidades, filmei sobre menores abandonados [...]”. O documentário Boa Esperança representa um dentre os muitos filmes realizados dentro do Globo Repórter na década de 1970, onde vários cineastas pensaram o país pela sua perspectiva crítica e contraditória focada não apenas no homem oprimido de forma mais genérica, mas especialmente no homem do interior. Ridenti, ao analisar a entrada de artistas de esquerda na moderna indústria cultural, afirma esta tendência como um resgate do “encantamento da vida, uma comunidade inspirada no homem do povo, cuja essência estaria no espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar nas cidades” (RIDENTI,

Entrevista feita em São Paulo, em 03/04/2007.

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2000, p. 25). Maurício Capovilla é quem de certa forma inaugura essa tendência a partir do núcleo da Blimp Filmes com os filmes Do sertão ao beco da Lapa (1972) e O último dia de Lampião (1973). O primeiro é baseado numa carta de Guimarães Rosa ao amigo Paulo Dantas, que traz um mapa das fazendas onde o escritor viveu sua infância, perto de Cordisburgo, estado de Minas Gerais. O cineasta percorre então sítios e fazendas e descobre que o mapa era, na verdade, uma invenção do escritor, ou ainda, a “projeção de sua alma”. Uma narrativa onde o espectador encontra-se com o mundo rural, com seus homens e suas histórias. Já no filme sobre Lampião, com atuações de atores e de ex-cangaceiros além de outras personagens que estiveram no acontecimento original, têm-se ricas reconstituições costuradas por depoimentos históricos, fundindo ficção e realidade a partir do impacto da construção de um mito nordestino que é morto frente às câmeras. Hermano Penna é outro importante nome deste núcleo com Folia do Divino (1974) , A mulher no Cangaço (1976) e O raso da Catarina (1977). O filme Folias do Divino, por exemplo, ao percorrer os quatro cantos do país acompanhando essa manifestação popular que mistura festa e fé, sagrado e profano, traz a tona um caldeirão cultural apresentando o que tanto para o senso comum quanto para a academia representa parte do “lado positivo” de nossa brasilidade. A Era do Divino é construída como um lugar onde, como diria Bakthin, “o povo se torna imortal” (BAKTHIN, 1987, p. 223). Já com Eduardo Coutinho, têm-se filmes não menos expressivos como Sete dias em Ouricuri (1976), O pistoleiro de Serra Talhada

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(1977) e Exu, uma tragédia sertaneja (1979). Sete dias em Ouricuri, em especial, é um documentário recorrentemente citado como ícone de uma filmografia na qual o homem rural é retratado a partir de seu tempo de estar e de se manifestar no mundo. A filmografia de João Batista de Andrade é especialmente cara na perspectiva mais politizada desse interior brasileiro no que diz respeito à questão agrária propriamente dita, incluindo seus muitos migrantes e bóias-frias. Podem ser citados além de Boa Esperança: viola X Guitarra (1976) e Bóias-frias (1975) – que de maneiras diversas abordam a realidade dos trabalhadores que desenraizados da terra, passam a residir nas cidades vagando a procura de trabalho ou servindo ainda às mesmas fazendas de antes como “volantes” através do recrutamento diário, sem direitos e vínculos trabalhistas – o documentário Caso Norte (1978). Este, sobre o assassinato de um migrante nordestino num bairro de periferia da grande São Paulo, onde o cineasta ousa na crítica ao social e na violência do aparato policial. O migrante ao ser na maioria das vezes forçado a abandonar o campo, não passa a habitar a São Paulo dos cartões postais e da promessa de modernização vendida pelo regime, mas a periferia que demarca como lugar social, o espaço ocupado pelos excluídos desse mesmo sistema. Boa Esperança: A Viola X Guitarra (1976)7 Boa Esperança, uma cidade do interior do estado de São Paulo é o mote utilizado por João Batista de Andrade para discutir a questão do progresso. De apelo seminal da proposta do “Brasil Grande” presente nas propagandas da AERP (Assessoria Especial

Boa Esperança: viola X guitarra, Globo Repórter, 33´, 24/09/76, CEDOC/Globo – Fita B 31.

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de Relações Públicas), a noção de progresso é senão questionada, de certo complexificada no documentário que mostra, em ricas passagens, a história de uma cidade dividida entre o rural e o urbano, entre as tradições e a modernidade, entre o encontro pela oralidade e pelos meios massivos, entre a natureza e a tecnologia, entre o trabalho e o capital. Todos metaforicamente resumidos numa disputa entre a viola e a guitarra. Andrade resumiume da seguinte forma como chegou a Boa Esperança: Boa Esperança na verdade foi o seguinte: me deu a idéia de fazer um filme sobre o interior do Brasil. Na verdade eu queria fazer um filme sobre a idéia de progresso. Comecei a procurar alguma cidade que fazia aniversário, aí naquele mês tinha a cidade de Boa Esperança. Eu não conhecia nada de Boa Esperança. Fui para lá sem conhecer nada, como eu gosto de fazer, eu não gosto de pesquisa. [...]

O propósito de filmar personagens de uma cidade até então desconhecida, do interior do estado mais industrializado do país e com certeza o mais representativo simbolicamente do sentido de “progresso” defendido pelo regime, em plena comemoração cívica por seu aniversário, compõe de forma singular o embate narrativo pretendido por Andrade. A locução sobre a cidade e o sentido do programa ganham a força de legitimação da marca jornalística da emissora na voz de Chapellin. As intervenções do cineasta com perguntas em off são também expressivas

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em todo o filme. Apesar do foco de todo o documentário ser baseado nas personagens, o microfone portátil em inúmeras cenas dá igualmente um tom de reportagem mais diretiva à narrativa. A locução se faz em meio a imagens sucessivas do cotidiano, com populares conversando em suas casas e nas esquinas, em churrascos e festas, em bares e nos ambientes de trabalho, charretes chegando, crianças brincando em cima de árvores, cachorros, carros à miúde passando por ruas largas e tranqüilas. No todo, a narrativa imagética com seus enquadramentos de câmera e a luminosidade de suas cenas dá ênfase às personagens a partir da predominância de planos americanos característicos da linguagem televisiva 8. Os movimentos da objetiva também surpreendem, funcionando por vezes como o olhar do próprio espectador, num exercício escrutinador de objetos e lugares. A narrativa sonora se divide entre sons do ambiente natural das personagens e silêncios marcados por reflexão, entre uma trilha com música popular e rock ( nos momentos dos bailes locais) por um lado e, de outro, modas caipiras, caracterizando a polaridade do “novo” com o “velho”, “da guitarra com a viola”. No decorrer do filme, porém, acaba prevalecendo essa última, não deixando dúvidas sobre o lado interiorano de Boa Esperança. São exatamente suas características interioranas, o foco das primeiras sequências, que destacam as qualidades de uma vida sem crimes, sem poluição, sem trânsito, sem o

A linguagem do documentário como extensão do gênero jornalístico de televisão é ainda pouco estudada. Cf. RENOV, M (org) Theorizing Documentary. Nova York: Routledge, 1993. A própria denominação documentário tem sido suficiente, ao longo dos anos, para suscitar discussões intermináveis. Etimologicamente evocando o sentido de “documento” do real, este gênero ainda carrega o estigma de uma suposta apreensão objetiva da realidade pelas câmeras, colocando-o em constante contraponto com o filme de ficção. Para além das discussões acadêmicas, percebe-se que mesmo seus precursores, o norte americano Robert Flaherty e o escocês John Grierson, ainda na primeira metade do século XX, nunca tiveram em seus trabalhos a ilusão de uma abordagem objetiva do real, apesar do caráter científico, informativo e mesmo pedagógico que o definiu em suas primeiras décadas.

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estresse dos grandes centros, no que a pergunta do locutor aponta para a intriga propriamente dita do documentário: “Por que a cidade quer o progresso? Quem responde são os personagens deste filme. É o povo de Boa Esperança!” E numa nova seqüência, com enquadramentos fechados nas personagens que passam a dar o ritmo dos planos que acompanham a narrativa verbal: O que pensa do progresso Domingos Dorsa, o lixeiro da cidade? E Luiz Bispo, o dono da padaria? E o barbeiro Augusto Furlan? Mauro Eduardo, o gerente do banco? D. Zulmira, dama da sociedade local? Hélio Alcaraça, o empreiteiro de bóias-frias? D.Idalina Pires, bóia-fria ?...

Apresentadas algumas das personagens que o diretor seleciona para o documentário, tem início uma narrativa que ajuda a desconstruir uma concepção de progresso como destino de uma identidade atávica da nação – ao modelo positivista da propaganda militar – para colocá-la em xeque, problematizando-a em sua complexidade e contradição no plano do cotidiano popular. A todo o momento, a intriga criada no filme parece perguntar ao espectador: progresso por quem e para quem? Da hibridez de rostos feitos de histórias distintas, a ênfase maior é dada à vida dos aproximados 2.000 bóias-frias que habitam a cidade de 3.200 pessoas. Eles surgem na tela antecedidos por depoimentos de jovens e trabalhadores autônomos que retratam a falta de perspectivas na pequena cidade, que não oferece alternativas para a continuidade dos estudos e para o ingresso num mercado de trabalho mais amplo, como na promessa oferecida pela grande capital do estado. A dicotomia campo X metrópole perpassa a construção de um consenso, no qual, como caracteriza Novais, a vida nos grandes centros

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além de atrair e fixar por oferecer as melhores oportunidades, acenando para um progresso individual, “é ainda considerada uma forma superior de existência” enquanto a “vida no campo, ao contrário, repele e expulsa” (NOVAIS, 1988, p. 574). Os depoimentos, contudo, não caminham de forma unívoca para uma visão idealizada do Brasil do progresso. Uma das personagens entrevistadas, um técnico de TV, afirma em close frontal: “Eu estava melhor numa cidade grande por causa do campo de serviço. Mas acontece que eu sou pobre e na cidade grande eu vou ter que pagar aluguel caro. E aqui eu ainda tenho condição de construir a minha casa.” A constatação da pobreza como um lugar social de difícil mudança e para além mesmo do acesso ao sonho da casa própria (então, mais possível no interior) ajuda a interpelar junto ao espectador o amplo espaço de exclusão que sempre acompanhou a geografia da modernidade brasileira. Uma modernidade que ao chegar ao campo, reforçando o monopólio da terra, substituiu o morador e o colono pelo proletário rural ou ainda pelo chamado “bóia-fria”, tão ricamente representado na filmografia de Andrade. Após uma breve seqüência com os sons e as imagens destacando o interior de uma casa de bóias-frias preparando a comida (que será servida fria, dando sentido ao nome) em frente ao fogão de lenha durante a madrugada, Chapellin argumenta: “São raros e rendem pouco os pequenos trabalhos autônomos como os de eletricista, pedreiro, sapateiro. Para a maioria, o que resta é a lavoura e como as fazendas não dão mais casa e comida, resta ser bóia-fria.” As imagens dos trabalhadores descendo do caminhão (paude-arara) com o dia começando a clarear ao fundo, constroem a identificação com a dura

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rotina de exploração, calculada em números pela narrativa verbal: “Assim é a vida do bóiafria... Cinqüenta cruzeiros para os homens, 35 para as mulheres e vinte para as crianças maiores que já podem trabalhar. O que faz Boa Esperança crescer, é a presença dessa mão-de-obra rural” (grifo meu). A importância da afirmação feita na locução, dando a essa mão-de-obra o lugar do desenvolvimento da cidade, passa ao longo da narrativa a ir de encontro a outros pontos de vista importantes que complexificam a intriga. Voltarei a essa questão um pouco mais adiante, para não quebrar ao leitor a trama de seleção feita no filme nas duas seqüências seguintes. Elas se referem a dois lugares de fala distintos representados por duas mulheres importantes para a cidade. A primeira a ser apresentada é Dona Zulmira, responsável pela creche municipal. A câmera dá início à narrativa percorrendo os inúmeros berços disponíveis ao som do choro insistente de crianças, onde indiretamente é respondida a pergunta que fica no ar na seqüência anterior que fala das crianças bóias-frias que já podem pegar na enxada. Aquelas que ainda não podem estão ali, sendo mostradas aos cuidados de Dona Zulmira que, em plano americano, numa postura altiva e com voz firme, desfila seu “capital social” diante das câmeras: “Eu sou vereadora, presidente da comissão de finanças, sou presidente aqui da Casa da Criança, sou gerente da Telesp e concessionária da Liquigaz”. A locução de Chapellin então esclarece: “A Casa da Criança é mantida com verbas do Estado e com doações da sociedade local”, no que Dona Zulmira prossegue: A cidade precisa muito de mim e principalmente a classe da plebe, porque eu ajudo no conforto dessas crianças. Nós fazemos de tudo contra o desemprego. As

crianças entram aqui pela manhã, às cinco e meia, para que as mães possam ir ao trabalho. Se nós não recebemos as crianças aqui, elas não tinham como ganhar o sustento. Porque a pobreza aqui em Boa Esperança, diminui muito. Mas depois que eu estou aqui desde 68, a situação financeira desse povo da plebe melhorou muito.

Na seqüência seguinte é então apresentada em plano americano com Dona Antônia de Paula, uma mulher do povo que durante quarenta anos exerce o ofício de parteira junto à comunidade mais pobre da cidade: “Eu sou parteira, vó dessa criançada há quarenta anos e não aprendi com ninguém, isso é um dom. Também não sei ler e escrever muito mal, só meu nome [...] Nunca morreu uma criança na minha mão. Meu nome é D.Antônia de Paula”. Assim, logo após o discurso dos títulos e cargos da dama da sociedade, têm-se a simplicidade da autoreferenciação da parteira; no lugar do apelo a uma “plebe” em melhores condições financeiras graças ao personalismo do poder local, as imagens mostram crianças pobres e mal nutridas andando descalças junto ao esgoto e ao lixo. Enquanto o depoimento enfatiza o “dom” da profissão, a câmera vasculha um dos cômodos do bairro pobre. Esse embate de mundos opostos proposto no filme não apenas polariza lugares sociais distintos no que pode parecer uma dicotomia simplista, mas convida o espectador a entrar num Brasil mais complexo no qual valores, práticas e costumes marcados entre a tradição e a modernidade também passam a desenhar um novo país. É nessa direção que após a exibição de seqüências cuja narrativa ricamente descreve ao som de música caipira os hábitos de diversão de fazendeiros e da meninada da cidade, que conta entre risos as molecagens feitas no quintal do vizinho, a câmera passa lentamente pelas portas de duas casas

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geminadas com dois senhores de idade sentados em cadeiras colocadas na calçada. A identificação com a cena de solidão dos dois dá lugar à entrada em uma das residências, onde a câmera perscrutadora – metaforizando os olhos do espectador – passa a observar o ambiente e seus objetos. A locução esclarece: “[...] mas ao mesmo tempo velhos costumes vão desaparecendo. Quando a noite vai chegando, pouca gente põe as cadeiras na calçada para a conversa fiada de passar o tempo, como antigamente. O papo, deu lugar ao diálogo das novelas.” E é com som de fundo de uma televisão ligada, localizada no centro da sala onde a família reunida se encontra, que a narrativa imagética evidencia o enfeite de uma casa de João-deBarro ao lado de eletrodomésticos e do quadro do Sagrado Coração de Jesus. Assim, tanto a narrativa imagética quanto a locução, informam as mudanças no espaço de sociabilidade do homem popular, que aos poucos modifica suas formas de entrar em contato com o mundo e de reconstruir sua própria história. A calçada, antes uma extensão da sala de visitas da própria casa no qual a oralidade prevalecia, passa a ser cada vez mais espaço do impessoal, enquanto o privado é invadido pelo público que vem da modernidade da televisão, de suas notícias e de suas telenovelas. Uma convivência entre o velho e o novo que durante a narrativa é várias vezes ressignificada pelas personagens. Como na seqüência que aborda a entrada para uma sessão de cinema com as moças solteiras dizendo preferir os rapazes de fora, que usam brilhantina, possuem motos, são estudados e modernos. Ou ainda nos bailes semanais com os rapazes locais pedindo música caipira, no contraponto das moças gritando pelo rock. A noção de progresso como o lugar da prosperidade inevitável a ser seguida pela 16

comunidade é ainda referendada pela seqüência do Lyons Clube da cidade. O enquadramento de câmera no escudo do clube abre aos poucos seu zoom mostrando em plano de conjunto o que a locução chama de “forças vivas da cidade”: o prefeito, os presidentes da ARENA e do MDB, os vereadores e comerciantes. Ao som do canto do Hino da Bandeira o quadro cívico é montado. As personagens mais destacadas na seqüência são o gerente do banco recéminaugurado – e que não por acaso é também o presidente do clube – além de D.Zulmira, a vereadora e presidente da Casa da Criança, já conhecida do espectador, que é condecorada na ocasião da filmagem. A narrativa, porém, tensiona essa perspectiva de progresso em dois outros momentos que antecedem o final do filme. São momentos que ilustram e ao mesmo tempo posicionam o espaço político do cineasta e de sua crítica ao país daquele momento. Em nossa entrevista, ao construir sua memória sobre o filme, ele explicita que essa noção de progresso colocada em xeque representa de certa forma “a modernização que alguns teóricos dizem que é a modernização conservadora. Você moderniza tecnologicamente. As classes superiores assumem essa modernização, mas o resto da sociedade fica fora dela.” É a partir dessa perspectiva que o cineasta exerce em toda a orquestração das seqüências do filme, o que Bakthin chama de “regência da polifonia”. Em outras palavras, a tradução de “todos os momentos da interdependência dessas consciências para a linguagem das relações sociais e das relações vitais entre os indivíduos, onde é sustentado o enredo no sentido amplo do termo” (BEZERRA, 2007, p.195). Vamos então a alguns outros exemplos. Primeiramente, o mundo da política na cidade ganha espaço através de uma

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narrativa imagética que contempla o jeito interiorano de se fazer política. Com planos enfocando o bate-papo dos “caciques” regionais nas esquinas e bancos da praça, a locução esclarece: “ARENA e PMDB não representam na política da cidade, divergências ideológicas apenas configuram interesses dirigentes de famílias poderosas distintas.” A sequência prossegue ilustrando pelo particular a realidade enraizada dos tradicionais artifícios oligárquicos da política nacional. A locução enfatiza que o prefeito, que já pertenceu a ambos partidos, tem como meta o progresso “a qualquer custo”. Para isso, a necessidade de se aliar ao governo e fazer obras para receber as indústrias. Enquanto a narrativa imagética desfila planos de máquinas abrindo ruas, a locução interpela ao espectador: “Abrir novas ruas, construir estradas, melhorar a cidade, isso vai trazer desenvolvimento? Os jovens vão achar trabalho na cidade? A população vai crescer? O prefeito acha que sim.” O depoimento otimista do prefeito surge então quase como que inocente perto do lugar de fala das enfáticas perguntas de Chapellin. Essa tensão construída abre então a condição para a narrativa explorar a crítica ao grande capital como um contraponto ao todo da intriga e de sua noção de progresso. Nesse segundo momento é relatada a exploração madeireira na região pertencente à cidade, que durante décadas ajudou a destruir uma das maiores reservas florestais do estado de São Paulo. A continuidade dessa história tem novamente na locução de Chapellin o peso censor: O ex-prefeito, Dito Braga, hoje fiscal da Coletoria, é velho defensor desse modelo de progresso. Por sua iniciativa, um grupo de São Paulo instalou em 1957 uma fábrica de fécula de mandioca. A fábrica fechou há dois anos sem ter oferecido trabalho à mão-

de-obra local. Mas, Dito Braga continua acreditando que o progresso só vai chegar a Boa Esperança, se vier de fora (grifo meu)

As palavras de Chapellin são acompanhadas por imagens dos passos do ex-prefeito que apresenta ao espectador o velho galpão onde a indústria de fécula tinha suas instalações, explicando: “o que está nos causando uma grande satisfação e esperança é a aquisição de propriedades agrícolas por parte de industriais oriundos de São Paulo porque é lá que está o capital ” (grifo meu). Neste exato instante do depoimento, não mais a locução de Chapellin, mas a narrativa sonora e imagética assumem o lugar do poder de significação. É aberto um longo plano com imagens do galpão da indústria vazio. Como som, apenas o soar de um ferro sendo batido no compasso de um relógio. Aos poucos esse som dá lugar ao silêncio enquanto o jogo de zoom abre o enquadramento da imagem ao extremo. Entre o silêncio e a imagem parada por segundos – mudando a dinâmica do tempo de contar – novamente a interpelação ao público: progresso para quem? O filme tem seu fim com duas seqüências explorando o civismo e a festa. É o momento da condecoração das “figuras ilustres” que sobem ao palanque no dia do aniversário de 78 anos da cidade. Enquanto os discursos dos notáveis referendam o progresso da comunidade e do país, o povo sem fala aparece na narrativa imagética apenas aplaudindo e festejando. Com “roupa de domingo”, ele ganha a forma do coletivo preenchendo as ruas com bandeirolas e compondo o desfile das escolas e agremiações para a grande homenagem à cidade organizada pelo Lyons Clube. Encerrando a seqüência da mesma festa, já ao anoitecer, as câmeras acompanham o desafio da viola

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contra a guitarra. Em nossa entrevista, Andrade me disse com entusiasmo: “Quando eu soube daquilo eu fiquei fascinado e voltei lá só pra filmar o show no fim de semana, a disputa entre a guitarra e a viola.” No compasso das imagens do palanque e da multidão reunida, Chapellin explica o sentido da festa e indiretamente, a metáfora presente no próprio filme: Nataleiro, comanda o desafio que é o momento de centenas de cidades brasileiras como esta vivem hoje: o conflito entre o velho e o novo, a tradição e a vida moderna. A vidinha pacata e sua falta de perspectiva ou o progresso e suas conseqüências? A viola ou a guitarra?

Nesse momento os gritos de moças e de rapazes interrompem e ao mesmo tempo completam o sentido da narrativa verbal. Elas entusiasmadamente gritam: Guitarra! Guitarra! E eles também em grupo, com punhos levantados gritam: Viola! Viola! A câmera então se afasta dos grupos e do palanque lentamente, perdendo em luminosidade o foco da imagem e construindo a idéia de encerramento. Ao fundo, ainda se ouvem os gritos dos jovens. O conflito do “progresso” continuaria ... Referências bibliográficas ANDRADE, João Batista. Alguma solidão e muitas histórias: a trajetória de um cineasta brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004.

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BAKTHIN, Mikhail, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo, Hucitec, 1987. BERNARDET, Jean Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980. ______. Cineastas e imagens do povo. São Paulo:Brasiliense, 1985. BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (org). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2007. BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. FABRIS, Maria Rosária. O neo-realismo cinematográfico italiano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. GRAMSCI, A. Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. ______. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. ______. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. NOVAIS, Fernando. (Direção) História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. RENOV, Michael (org). Theorizing Documentary. Nova York: Routledge, 1993. RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da tv. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000. ______. Cultura política: os anos 1960-1970 e sua herança. In: FERREIRA, J & DELGADO, L. (org). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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“IMAGENS FIÉIS DA TERRA”: PAISAGEM E REGIONALISMO NA RECEPÇÃO ÀS OBRAS DE FRANS POST PELA CULTURA VISUAL...

“Imagens fiéis da terra”: paisagem e regionalismo na recepção às obras de Frans Post pela cultura visual de Pernambuco, 1925-1937 Daniel de Souza Leão Vieira Doutorando pela Leiden University. Pesquisador visitante no Pallas Institute for History of Art and Literary Studies. Autor de, entre outros artigos “Paisagem e Imaginário: contribuições teóricas para uma história cultural do olhar”. Fênix, v. 3, n. 3, 2006.

RESUMO Esta é uma investigação sobre como a recepção às pinturas de paisagens de Frans Post se relacionou à criação de imagens espaciais e seu uso pelo pensamento social com o fim de construir as identidades no Brasil. Considerando a emergência do conceito de “Nordeste” e as mudanças na concepção de “paisagem” pela cultura visual de Pernambuco, este trabalho levanta a hipótese de que as imagens de Post foram interpretadas enquanto imagens territoriais do Nordeste açucareiro. Evocando imagens holandesas do século XVII, as elites pernambucanas lutavam simbolicamente para redefinir a geografia nacional e o próprio lugar de Pernambuco nesse novo quadro. PALAVRAS-CHAVE: história cultural; paisagem; Frans Post.

ABSTRACT This is an investigation about the reception the paintings of landscapes of Frans Post was related to the creation of space imagery and its use by social thought in order to construct the identities of Brazil. Considering the emergence of the “Northeast” and changes in the conception of “landscape” by the visual culture of Pernambuco, this work raises the hypothesis that the images of Post images were interpreted as territorial Northeastern sugar. Evoking images of the seventeenth century Dutch, the Pernambuco elites symbolically struggling to redefine the geography national of Pernambuco and its place in this new framework. KEYWORDS: cultural history; landscape; Frans Post.

Recebido em: 25/03/2008

Aprovado em: 25/04/2009

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DANIEL DE SOUZA LEÃO V IEIRA

“Imagens fiéis da terra”: paisagem e regionalismo na recepção às obras de Frans Post pela cultura visual de Pernambuco, 1925-1937

Introdução Este trabalho é uma investigação sobre como, em Pernambuco dos anos 1920 e 1930, a recepção às pinturas de paisagens de Frans Post (produzidas no século XVII holandês) se relacionou ao processo de criação de imagens espaciais e seu uso pelo pensamento social com o fim de construir as identidades no Brasil. Primeiramente, e apesar da abrangência nacional do tema, a cultura visual que possibilitou a recepção de Frans Post era baseada num espaço midiático ainda definido em termos locais (NASCIMENTO, 19621982; BARROS, 1985; e REZENDE, 1997). Neste sentido, pensar o Brasil a partir da recepção dessas imagens, é fazê-lo, sobretudo, a partir do âmbito pernambucano. Ou pelo menos assim o fizeram as elites locias, pois o recorte geográfico deduzido pelas localidades presentes nas pinturas de Frans Post (o Brasil holandês, de 1630 a 1654) coincidia com a porção atlântica da região do território brasileiro que era inventada, nos anos 1920 e 1930, enquanto Nordeste. No entanto, para que isso se desse, foi necessário fundir uma conceituação da imagem paisagística a uma noção da realidade empírica tal como enunciada pelo saber geográfico. Assim, num segundo momento, tratou-se de investigar as transformações do conceito de paisagem no interior da cultura visual de Pernambuco, de 1925 a 1937. Profundamente alicerçada na

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reprodução de imagens em jornais e revistas, essa cultura visual viu a emergência de um novo conceito de paisagem que operou em duas instâncias distintas, porém intimamente relacionadas: 1) a produção e recepção de imagens da terra; e 2) a relação desse repertório imagético e imaginário com um campo socializado de percepção do meio ambiente (VIEIRA, 2003). Esse contato com imagens que representam o Brasil através dos códigos de pintura de paisagem na Holanda do século XVII exigiu do público brasileiro do início do século XX um esforço no sentido de ressignificá-las. Esse hiato temporal constituía uma distância entre sujeitos históricos e objetos culturais diferentes. Ao sobrepor outros significados às imagens de Frans Post, essa elite terminou por constituir objetos culturais híbridos. Este trabalho levanta a hipótese de que a recepção às imagens de Frans Post se deu em meio à emergência de um discurso regionalista que inventou o “Nordeste” enquanto região brasileira. Nesse sentido, as pinturas de paisagens feitas por Frans Post puderam ser interpretadas pelas elites pernambucanas com o fim de constituí-las enquanto imagens territoriais (SNYDER, 1994), ou imagens espaciais (LIMA, 1999; e MAIA, 2008), do Nordeste tropical e açucareiro. Ao construir um regime de visibilidade do território a partir do conceito de “região”, esse novo regionalismo, do século XX, se constituía

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numa emergência imagético-discursiva com o objetivo de chamar a atenção para uma porção do país que, apesar das dificuldades econômicas decorrentes da crise açucareira, era ainda política e culturalmente importante (PANDOLFI, 1980; ALBUQUERQUE, 1999). Evocando as imagens holandesas do século XVII de Frans Post, através de uma interpretação “realista”, tomando-as como testemunhas da formação da cultura brasileira enquanto paisagens tropicais, as elites pernambucanas estavam lutando simbolicamente para redefinir a geografia nacional e o próprio lugar de Pernambuco nesse novo quadro. Identidade nacional e tensões regionais em Pernambuco, 1925-1937: A invenção do Nordeste se deu em meio aos embates pela construção das identidades modernas, embora seja fruto de um movimento considerado reacionário, cuja intenção era conservar, ou reabilitar, um grupo social tradicional que perdia espaço nas relações de poder para as elites do CentroSul brasileiro (ALBUQUERQUE, 1999, p. 40). Estas identificaram-se com os signos de modernização e passaram a impor seu “regionalismo” como projeto cultural nacional (Idem. p. 45). É no interior desse processo de constituição das elites regionais do Centro-Sul em nacionais que se forja a imagem dos outros estados do antigo “Norte” como o Outro atrasado: terra de secas, fome e fanatismo (Idem, p. 57-62). A contraparte “local” do discurso regionalista que inventou o “Nordeste” surgiu, no entanto, como reação das elites pernambucanas ao processo de construção de identidades nacionais através de um projeto do Centro-Sul. E se o regionalismo foi,

nos anos 1920, o palco de embate entre o discurso do progresso e o da tradição, nos anos 1930, o foi como criação de um espaço simbólico para reafirmar as elites açucareiras. E Gilberto Freyre foi o grande nome que embasou essa fundamentação sociológica do Nordeste (ALBUQUERQUE, 1999, p. 74106). Intelectual profundamente influenciado pelo culturalismo de Franz Boas (CHACON, 1993; e VIEIRA, 2002), Freyre terminou por eleger o regional como o elemento central que permitia lançar um olhar sobre o país. Tomando-o como vernáculo, ele não só fundamentou o discurso do Nordeste, mas também reinventou o Brasil através daquele. Práticas, tradições, valores, antes dispersos na miríade de expressões culturais foram costurados na trama de seu texto e na teia das relações de poder em que ela se inseria: a elite canavieira. (ALBUQUERQUE, 1999, p. 71-72). Entretanto, a obra de Freyre não foi mecanicamente causada por interesses de uma classe conservadora. Tratava-se da construção de um espaço de dizibilidade e visibilidade através do qual os dilemas da modernidade eram pensados. Se, por um lado, “o Nordeste nasce da construção de uma totalidade político-cultural como reação à sensação de perda de espaços econômicos e políticos”; por outro, o regionalismo de Freyre não era “mera justificativa ideológica de um lugar social ameaçado, e sim uma nova forma de ver, de conhecer e de dizer a realidade, só possível com a emergência da nação” (Idem, p. 67 e p. 86). Se a atividade intelectual de Freyre (os artigos que escreveu no Diario de Pernambuco logo que chegou de viagem aos Estados Unidos, em 1924; a publicação do Livro do Nordeste, em 1925; e mesmo a realização do Primeiro Congresso Regionalista do Nordeste, em 1926) foi um esforço para

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lidar com as perplexidades do momento histórico, o foi como forma de constituir um espaço de discussão sobre as necessidades de modernização ao mesmo tempo em que refletiam a importância das tradições culturais sendo então inventadas como “regionais”. Essa ambigüidade entre o moderno e o tradicional não se reduzia a, mas estava intimamente relacionada à crise açucareira e às tensões entre o “local” e o “nacional” em Pernambuco (BARROS, 1985). O regionalismo surgiu durante o governo estadual de Sérgio Loreto, de 1922 a 1926, que foi uma espécie de “acordo de cavalheiros” entre liberais e conservadores; entre os defensores e os críticos de uma política mais afinada com o “café com leite” de São Paulo e Minas Gerais. Daí seu governo ter se caracterizado, de um lado, por investir em obras públicas, mas também de dar apoio formal aos eventos regionalistas, numa política de contemporização e conciliação com os diversos interesses em jogo. No entanto, ao final de seu mandato, Sérgio Loreto fora acusado de mascarar um continuísmo sem, contudo, efetivamente promover uma solução à crise econômica do estado (BORBA, 1926). Somente com o advento da Revolução de 1930 é que houve uma mudança na balança política de Pernambuco, permitindo que a discussão regionalista ganhasse mais espaço. Carlos de Lima Cavalcanti conseguiu aglutinar em torno de si tanto certos setores progressistas da lavoura canavieira quanto um incipiente operariado urbano na mesma medida em que dava apoio, no plano nacional, ao governo central de Getúlio Vargas. Lima Cavalcanti queria com isso desmontar o velho esquema oligárquico do “café com leite”, fortalecendo a união de forma que essa pudesse intervir na economia pernambucana com o fito de debelar a crise 22

açucareira (PANDOLFI, 1999, p. 341-344; CAMARGO, 1982, p. 7-46). Lima Cavalcanti terminou por ser um dos articuladores da construção de um bloco político, unido, formado pelos estados do Norte e do Nordeste, que se tornou peça importante para Getúlio Vargas usar de forma a contrabalançar as forças políticas e neutralizar a importância de São Paulo e Minas Gerais no cenário nacional. Entretanto, à medida que o rumo da “revolução” ia sendo definido, entre a constitucionalização e o autoritarismo, a bancada pernambucana na Assembléia Constituinte enfrentava dificuldades em “negociar” o lugar de Pernambuco nesse novo arranjo nacional (PANDOLFI, 1980, p. 391-394). Em 1933 e 1934, Lima Cavalcanti procurou contemporizar os interesses da bancada de seus conterrâneos, de um lado, e os do governo central, do outro. Para isso, ele teve que buscar apoio entre lideranças de outros estados da união, de forma a poder assegurar um mínimo de apoio nacional para a pauta dos deputados pernambucanos. A manobra surtiu efeito e, ao fim, chegou-se a certo consenso na Assembléia. Mas isso às custas da acentuação das divergências entre os grupos sócio-políticos em Pernambuco, inclusive no setor canavieiro (Idem, p. 411-420). Ausente do estado quando ocorreu a Intentona Comunista, em 1935, no Rio de Janeiro, Recife e Natal, ele foi acusado de ser conivente por omissão. Ao perceber o perigo de sua posição, Lima Cavalcanti tratou de fortalecer sua posição de liderança estadual e regional como forma de oposição ao governo central para se manter no poder. E a forma que ele encontrou para unificar sua base estadual foi evocar o passado nassoviano de governo realizador e de administração

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competente. Ele mobilizou instituições em Pernambuco a fim de celebrar, em janeiro de 1937, os trezentos anos da chegada de Maurício de Nassau ao Recife (MADI, 2002). A proposta incluía a publicação de uma monografia sobre o pintor Frans Post (Idem, p. 89-90). A idéia era sedutora, pela importância e presença do tema no imaginário da sociedade pernambucana, e brasileira em geral. Mas foi justo por essa importância, nas suas implicações de memórias políticas, que a manobra última de Lima Cavalcanti não obteve sucesso. Interventor e, a partir de 1935, governador eleito, Lima Cavalcanti quis aglutinar os vários setores sociais e intelectuais de Pernambuco evocando o sentimento do nativismo pernambucano (MELLO, 1997), que gravitava entre o “mito da Restauração Pernambucana”, de um lado, através do qual se valorava os naturais da terra pela expulsão dos holandeses “à custa de nosso sangue e fazenda”; e, do outro, a “nostalgia nassoviana”, com sua evocação de um passado de ouro em Pernambuco, em que sua posição política central se alimentava de imagens de realizações urbanísticas, científicas e artísticas (Idem, p. 357). Desde 1870 o problema do separatismo pernambucano não era mais uma ameaça à constituição e manutenção de um território único no país (Idem, p. 366), mas esse imaginário, de Pernambuco como separatista, podia ser usado como justificativa para coerção do governo central no estado e isso não passou despercebido durante os tensos e decisivos anos de 1936 e 1937. Após a Intentona Comunista, o governo central decretara estado de sítio (MADI, 2002). Não interessava se, a esta altura, a memória do Brasil holandês representava em Pernambuco já outra bandeira: a da “tentativa

de ascenso político” (PANDOLFI, 1980). Sobretudo porque essa bandeira, associada ao imaginário sobre os holandeses, tinha nítidas conotações (o ideário liberal, a religião protestante e a diferença étnica) que faziam com que essa evocação nassoviana se refratasse contra a emergência de uma identidade brasileira que se construía baseada no estado centralizado e interventor, na idéia de democracia racial entre as três matrizes do povo brasileiro e na religião católica. Basta ver as reproduções de textos de jornais e revistas dos anos 1930 para se ter uma idéia do combate a um imaginário do progresso colado à imagem da experiência histórica do Brasil holandês. Era comum nos textos a figura do holandês ser caracterizado como exógeno e invasor para reforçar a crítica ao discurso anti-lusitano (FREYRE, 1985, p. 9-10; MADI, 2002). Portanto, nem mesmo em Pernambuco a evocação nassoviana conseguiu unificar, em torno da figura de Lima Cavalcanti, a elite oligárquica, a açucarocracia da terminologia de Evaldo Cabral de Mello (MELLO, 1997, p. 409). Assim, em 1937, ano emblemático para a história do rearranjo da posição de Pernambuco no mapa do Brasil do Estado Novo, Lima Cavalcanti era destituído do governo estadual; Gilberto Freyre publicava Nordeste; e Frans Post tornava-se mais conhecido do público pernambucano, graças à monografia de Joaquim de SousaLeão Filho. De dentro desses novos quadros políticos, no plano regional, o estado da Bahia, mais homogeneamente oligárquico, ganhou mais importância, tomando o lugar de liderança regional, momentaneamente ocupado por Pernambuco (PANDOLFI, 1980). Foi nesse clima de rivalidade nordestina que a revista Fronteiras publicou, em 1938,

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o artigo Terceiro Centenário da Retirada de Maurício de Nassau. Nele, o autor escreveu: [...] enquanto na Liberal Democracia, o Sr. Carlos de Lima pretendia festejar o terceiro centenário da chegada de Maurício de Nassau em Pernambuco, o Estado-Novo, na Bahia, comemorou a 28 de maio próximo [sic.] o terceiro centenário da retirada de Nassau. O Estado-Novo, anti-liberal, tem consciência das datas em que se forjou o Nacionalismo Brasileiro (MADI, 2002, p. 118).

Assim entende-se, por fim, o esforço de Sousa-Leão, logo ainda no começo de seu texto sobre Frans Post (SOUSA-LEÃO, 1937, p. 11-12), em conseguir se não separar as imagens desse da figura histórica de Maurício de Nassau, ao menos diminuir essa relação. Daí porque o autor, ao começar seu texto com o chavão de inserir a produção de Post na esclarecida administração de Nassau, mencionou também a missão artística de D. João VI, quando esse, fugindo da invasão napoleônica em Portugal, transferiu a corte para o Rio de Janeiro. Isso evitava mostrar Nassau como exemplo único de “administrador esclarecido”. Nada mais evocativo na memória política brasileira a fim de cumprir com uma dupla exigência para com seu texto sobre Frans Post: minimizar a figura de Nassau e reabilitar o português católico, profundamente denegrido pelo antilusitanismo do discurso liberal do progresso. O mesmo malabarismo textual, de respeitar os pais fundadores lusitanos, aparece no artigo de Estevão Pinto, quando este coloca Maurício de Nassau num honroso segundo lugar, atrás apenas de Duarte Coelho, primeiro donatário de Pernambuco (PINTO, 1936, p. 56). Sousa-Leão, ao se referir à missão artísticocientífica de Nassau no Brasil, comparou-a a outra similar, levada a cabo por Napoleão no

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Egito. Trata-se aqui de referência a uma imagem, evocada durante debate pró- e contra- Nassau nos jornais e revistas pernambucanos dos anos 1930, que denegria a figura de Nassau ao compará-lo com os piratas invasores, como Villegagnon, Lancaster ou mesmo os Filipes espanhóis (SOUSA-LEÃO, 1937, p. 12; MADI, 2002, p. 104-105). E, finalmente, o autor tratou de separar os interesses artístico-científicos de Nassau dos econômicos da WIC – West Indische Compagnie. Leia-se: Como o espírito que, afinal, predominou no Conselho das Índias Ocidentais, fosse o do mercantilismo estreito que não compreendia a formação de um império colonial de larga visão civilizadora, viu-se Nassau tolhido na sua ação, a ponto de abandonar a empresa encetada com tanto entusiasmo. Com a sua partida estavam contados os dias do domínio holandês. A curteza [sic.] de vistas do Conselho dos XIX, que suspeitava formasse o Conde planos de independência, selou o destino da próspera colônia, cedo revoltada contra o jugo opressor dos seus sucessores, qualificados por Handelmann de plebeus. Redundou em fiasco a grande empresa colonizadora, tentada no Brasil pelos pertinazes holandeses.” (SOUSA-LEÃO, 1937, p. 12).

Portanto, após toda uma operação discursiva de subtrair a exclusividade da ação de Nassau, ao sobre ele sobrepor o vulto de D. João VI, de distingui-lo dos holandeses “ávidos por lucro” e, ainda assim, de considerar a missão artístico-científica dele como pilhagem, o leitor pernambucano, e brasileiro em geral, estava pronto para travar contato com a obra de Frans Post sem que ficasse inseguro de seus próprios pressupostos nacionalistas, baseados na religião católica, na política antiliberal e na teoria raciológica da miscigenação.

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Paisagem e cultura visual em Pernambuco, 1925-1937 Uma vez apreendido o contexto histórico da recepção de Frans Post, em meio à emergência do discurso regionalista que inventou o Nordeste, coube então investigar que estratégias imagéticas ocorreram, no interior da cultura visual de Pernambuco dos anos 1920 e 1930, possibilitando que a elite pernambucana operasse essa ressignificação, retirando as molduras da produção histórica holandesa do século XVII. Nos jornais e nas revistas de 1920 e 1930, de fundamental importância para o Recife de então (BARROS, 1985, p. 180), a imagem da cidade não era nenhuma novidade para a sociedade, uma vez que a cidade já tinha sido alvo da pintura, da gravura e da própria fotografia. A novidade estava agora nos novos meios de reprodutibilidade técnica que os jornais e as revistas puseram a serviço para difundir a imagem de uma forma nunca antes pensada. A crença na suposta objetividade da fotografia deixava entrever, porém, os usos desse veículo, bem como sua relação com o público leitor. Um conceito chave nesse processo foi o de paisagem. No interior dessa cultura visual, as transformações desse conceito ocorreram em duas instâncias distintas, porém relacionadas: tanto a produção e recepção de imagens quanto a relação desse repertório imagético com um campo socializado de percepção do meio ambiente. A produção e circulação de imagens fotográficas transformou tanto os pressupostos estéticos de apreciação das artes figurativas, quanto a forma de apreender e perceber o ambiente, sobretudo a cidade, lugar de difusão dessas novas imagens e experiências da modernidade (VIEIRA, 2003, p. 57-95). A emergência de um novo uso do termo “paisagem”, na relação direta com a

produção, circulação e recepção de imagens fotográficas, possibilitou uma nova experiência do ambiente urbano. E depois, da própria noção de ambiente e realidade. Nesse processo, a transformação do conceito de paisagem, oriundo de um léxico ligado ao pitoresco, fundiu um certo olhar, estetizante, a uma noção da imagem como cópia da realidade, possibilitada pela característica metonímica da fotografia. Assim, o conceito de paisagem gravitou numa ambigüidade que foi do uso do termo como signo ao de próprio mundo-objeto. De imagem pictórica, o termo “paisagem” passou a significar o próprio ambiente.

A imagem acima brinca com o que a fotografia passou a poder fazer com os temas pictóricos. À imagem de fundo, um “aspecto” (tema oriundo das imagens panorâmicas de pintura) do Cais de Santa Rita, no Recife, está sobreposto um “flagrante” urbano: um banhista saltando (Revista da Cidade, Ano 1, no 09, 24.07.1926. Acervo FUNDAJ). Ora, o flagrante é justo uma imagem possibilitada pela emergência de uma categoria perceptiva e cognitiva que é o instante. E sua fixação em imagem foi possibilitada pelo advento da câmera fotográfica automática. Daí porque o “flagrante” podia ter como sinônimo o “instantâneo” (CHARNEY e SCHWARTZ, 2001). Esse tipo de hibridismo que foi a

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mistura de uma nova possibilidade técnica do aparato fotográfico com os temas e os repertórios herdados da pintura terminou por fundir o que era tido como da ordem do espírito com o que era da ordem da máquina.

Daí que um segundo tipo de imagem, como esta “vista aérea” (Revista de Pernambuco, Ano 2, no 09, março 1925), foi interpretado não como uma representação do mundo-objeto, através dos códigos da imagem paisagística, mas como a própria paisagem, que, sendo naturalizada em “realidade” empírica e considerada a priori como espaço, tivesse sido registrada (ou copiada) pelo fotógrafo. Nos anos 1930, apesar de uma maior inconstância periódica das publicações, o material visual sobre a cidade se encontra mais estruturado do que nas revistas dos anos 1920. Desde o estabelecimento de fórmulas para os enquadramentos a uma melhor diferenciação dos temas fotográficos (tanto no olhar quanto no tratamento ao objeto, ou seja, tanto na apresentação da imagem enquanto vista, panorama ou foto aérea, quanto na distinção entre a cidade vista em unidades urbanísticas ou em parte de seu todo). Isso demonstra uma crescente conscientização dos processos de produção, usos e recepção da imagem, a julgar pela apresentação dos temas visuais e suas

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correlações com o texto, inclusive em sua acepção de discurso de propaganda política sobre a cidade. Publicações como o Album de Pernambuco, a Revista do Porto do Recife, o Guia da Cidade do Recife, o Annuario de Pernambuco, ligadas à gestão de Lima Cavalcanti, e revistas como Pernambuco ou Mauricéa, ligadas a grupos sociais independentes, trazem uma especificação maior no que tange à terminologia e à tipologia de imagens urbanas na própria relação entre as imagens e as legendas. Tratava-se de um crescente profissionalismo na produção tanto de imagens quanto de texto, bem como de um uso mais pensado e estruturado daquelas para fins políticos. Nessa imagem abaixo, vê-se a correlação entre esses três aspectos imagéticos da cidade: o espaço urbano, a cidade em obras e o prefeito, autor dos melhoramentos (Album de Pernambuco, 1933, p. 158).

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A publicação do Guia da Cidade do Recife, por exemplo, traz algumas pranchas com desenhos aquarelados, autoria de Murilo La Greca, que se contrapõem (quanto ao tipo mas não ao tema) às fotografias da cidade. Estas, apesar de profissionalmente criadas como estetizações da realidade, são, no entanto, apresentadas como a própria realidade visual da cidade. Elas vêm intercaladas entre os textos. São também a matéria de que é feita a cidade, tomada como realidade. Enquanto as pranchas contendo aquarelas são já a liberdade que o artista plástico tem para, extrapolando esse “realismo”, se aventurar na (re)criação estética, rumo ao “pinturesco”. No entanto, tanto as poucas gravuras do século XIX quanto as do Recife holandês do século XVII (inclusive as tiradas do livro de Barlaeus, feitas a partir de desenhos de Frans Post) foram apresentadas não como congêneres das imagens “artísticas” de La Greca, mas como equivalentes às imagens “realistas” do foto-jornalismo. Isso sugeria ao leitor uma certa homogeneização no ato de significar os diferentes tipos de imagens, desfazendo a relação de necessidade presente entre suporte, linguagem visual e referência para com o mundo-objeto. Tanto é que, na última página do Guia da Cidade do Recife, a gravura do século XVII “T’Recif de Pernambuco” foi apresentada ao público através de uma legenda que dizia: “O Recife em 1635”. Daí que, décadas depois, ao sistematizar e inventariar a produção jornalística em Pernambuco, falando do Annuario do Nordeste para 1937, Luiz do Nascimento afirmou que [...] abriu a matéria redacional longo estudo histórico intitulado João Maurício de Nassau, sem assinatura, focalizando todo o período da guerra holandesa em Pernambuco,

ilustrado com numerosas fotografias do Recife daquele período (NASCIMENTO, 1962-1982, v.9, p. 191).

Ora, se um especialista do jornalismo se permitiu um equívoco como este (o de nomear imagens do Brasil holandês no século XVII como fotografias, o que constituía um anacronismo, já que a fotografia seria inventada pelo menos 200 anos depois dos episódias referidos), era de se esperar menos ainda do público consumidor dessas imagens nas revistas e jornais de Pernambuco dos anos 1920 e 1930. Mais ainda, numa cultura visual marcada pela emergência do uso de imagens territoriais com fins de propaganda política, as imagens de Frans Post foram relacionadas às obras do próprio Maurício de Nassau. Falando dessas obras, a colaboradora da revista Pernambuco escreveu: A edificação da cidade pernambucana dividida em três bairros ligados por pontes, foi confiada à direção estética dos Post que abriram avenidas imensas e ruas formosas, levantaram pontes e diques, traçaram parques soberbos e jardins elegantes (SILVA, 1937, s/p).

O texto parece se referir, dada a semelhança dos termos usados então, às obras de melhoramentos urbanos dos anos 1930. O efeito bem que poderia ser o de tomar Pieter Post como um engenheiro, Frans Post como um fotógrafo e Nassau como o próprio Lima Cavalcanti. Veja-se abaixo o uso de uma gravura, a partir de desenho de Frans Post e encontrada no livro de Gaspar Barlaeus, e que constrói uma relação de identificação da imagem com a crucial questão econômica e política do tema do açúcar em Pernambuco dos anos 1930 (Porto do Recife, 1933, p. 59; e BARLAÉUS, 1980).

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Essa identificação de Mauríco de Nassau e de Lima Cavalcanti como governantes progressistas era, aliás, tão óbvia que foi pateticamente parodiada pela oposição veemente da revista Fronteiras (LUBAMBO, 1936, p. 1-3). Essas transformações no interior da cultura visual do período têm relação com a emergência, nos textos de Gilberto Freyre e de seus contemporâneos (fossem progressistas, regionalistas ou tradicionalistas), de uma nova forma discursiva por detrás do uso tanto do termo “paisagem” quanto das imagens espaciais enquanto ilustrações que pressupõem a idéia de uma reprodução verossímil da realidade confundida com o próprio mundo-objeto. Em um artigo publicado na revista Fronteiras, por exemplo, encontra-se mesmo uma nota de fim de texto, citando Pierre Deffonteines, a fim de esclarecer o que geograficamente devia entender-se por “paisagem” (LUBAMBO, 1936, p.7-8). Da geração de Euclides da Cunha para a de Freyre, o pensamento social brasileiro assinalou uma tripla mudança importante para o objeto desta investigação: 1) para explicar a categoria “homem”, foi-se do conceito de “raça” para o de “cultura”, como se tem observado (ORTIZ, 1986; ALBUQUERQUE, 1997); 2) para

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compreender a categoria “terra”, de uma geração a outra, viu-se a substituição do conceito de “meio” por um de “paisagem”; e 3) a própria relação entre essas duas categorias, referentes a “homem” e a “terra” mudou, pois se o “meio” era um determinante da “raça”, a “paisagem” passou a ser concebida como resultado da “cultura”. Esse novo conceito de paisagem, em relação a Frans Post, está implícito tanto na interpretação mimética de Freyre quanto na crítica estética de Joaquim de Sousa-Leão ao pintor. Em “A pintura no Nordeste”, Freyre diz: Só os hóspedes da terra procuraram fixar a ingênua beleza da indústria animadora da nossa paisagem. Frans Post, principalmente. Dele nos restam desenhos e pinturas deliciosas, fixando aspectos e flagrantes da vida de engenho no Nordeste. Era então a indústria o doce esforço que hoje parece de brinquedo, dos engenhos movidos à mão ou a [sic.] roda d’água ou a giro de animais. E aos desenhos de Frans Post, animam figuras de negros trabalhando no meio daquelas rudes fábricas de aquedutos de pau ou tangendo os carros de boi cheios de cana madura. A técnica da produção do açúcar oferece elementos para uma pintura tão nossa que é verdadeiramente espantoso o sempre lhe terem sido indiferentes os pintores da terra. (FREYRE, 1979. p. 126-127).

Percebe-se, logo de início, a forma como a imagem em Post é observada pelo autor: os temas são apresentados como “flagrantes” fixados. Ora, o conceito por detrás de tal termo sugeria uma apreciação instantânea e verossímil do mundo-objeto que só foi possível graças à dupla operação de tomar o fotografado como cópia do real e de tornar o olhar fotográfico em modelo óptico explicativo da própria faculdade humana de ver e olhar o mundo-objeto.

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Dessa forma, o mundo-objeto já selecionado, editado e significado na imagem de Frans Post perde justamente todo esse caráter seletivo e manipulado na interpretação freyriana. A interpretação “mimética” de Freyre, por um lado, retirou as molduras históricas da imagem de Post, enquanto por outro, escondeu a trama de sua própria operação imaginária. É exatamente esse o uso que Freyre fez da imagem de Post quando reproduziu, em seu artigo, um detalhe de um desenho gravado no livro de Gaspar Barlaéus. O impresso sobre o Forte Príncipe Guilherme foi recortado. Dos vários temas, tratados em diferentes elementos composicionais e distribuídos de forma a permitir uma interpretação “ekphrástica” da imagem, tão à moda da cultura visual da Holanda no século XVII (GOEDDE, 1989), apenas um foi eleito: justo o das figuras humanas. A imagem veio acompanhada de legenda, onde se lê, com erro de periodização histórica: “Desenho do holandês F. Post no livro de Gaspar Barlaeus, fixando cena brasileira de século décimo sexto: o modo de viajar pelo interior” (FREYRE, 1979, p. 126; BARLAÉUS, 1980).

Essa operação editorial, imagem + legenda, típica dos jornais e revistas dos anos 1920 e 1930, era fundamental para que, resolvendo o problema “cívico e moral” de

não valorizar o invasor holandês, se pudesse apreciar aqueles “belos quadros”, “representando, em telas imensas, o esplendor da paisagem tropical.” (LUBAMBO, 1936, p. 9). Enfim, retirando-se as molduras da produção holandesa e afastando, portanto, a referência da figura histórica de Maurício de Nassau, aquelas imagens puderam ser apresentadas com ênfase na visualização dos elementos que compunham a atividade açucareira: os negros trabalhando nos engenhos, os senhores a caminho das casas-grandes, o chão ocre do massapê, a topografia em morros arredondados, coroados de matas, tudo hiperbolizado pelas cores e adjetivos tais como encontrados em Nordeste, de Gilberto Freyre (FREYRE, 1985). É nesse sentido que Joaquim de Sousa-Leão sublinhou a linguagem visual e a escolha dos temas na obra de Frans Post. Leia-se: Com efeito, antes dele, a natureza virgem da América fora só representada pelos cartógrafos, nos seus decorativos portulanos da Renascença ou pelos gravadores das velhas relações de viagens, que se interessavam, de preferência, pelos indígenas e animais estranhos. Foi, pois, um domínio novo – o da paisagem –, que ele ia fixar, [...] [...] Se não é Post dos maiores, vem logo numa honrosa segunda linha, entre os grandes mestres holandeses do gênero – os primeiros a retratar a terra por si mesma, como modelo vivo, dando um quase sentido humano à paisagem, que atinge com eles, a preeminência de objeto de arte. Nos seus quadros podemos rever o Pernambuco daquelas eras remotas. Descortinamos, na tonalidade verde-azulada, que lhe é característica, a exuberância da vegetação, a variedade dos frutos e a fauna exótica. Ficou fixado de modo indelével o ambiente da colônia florescente. São índios e negros a equilibrarem fardos ao longo das estradas, seminus, dançando em grupos ou entregues à caça; senhores de engenho, de gibão e largos feltros, a cavalo, ou sinhás

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DANIEL DE SOUZA LEÃO V IEIRA donas transportadas em rede, sob a guarda de soldados, bacamarte às costas; panoramas extensos em que se discernem mocambos, capelinhas brancas e as voltas preguiçosas dos rios, por entre os tufos das capoeiras. É a visão, em suma, da cultura da cana na zona da Mata [sic.], a da sua inconfundível paisagem agrária, quando essa lavoura constituía a base econômica da colônia e Pernambuco era o grande fornecedor de açúcar ao mundo – região da terra macia e farta do massapé, de arvoredo copado e de mangues espelhados. Embora executado, na sua maioria, longe do Brasil, são contudo imagens fiéis da terra, [...]. (SOUSA-LEÃO, 1937, p. 17-18)

Está implícito, na passagem acima, que a inventio do artista, a obra de seu espírito e mãos, está subordinada a essa leitura progressista da representação pictórica como evoluindo para a verossimilhança fotográfica. A genialidade de Post, de acordo com esse autor, reside no fato de fazer de sua observação “fiel” à natureza a própria demiurgia de sua obra. De dentro dessas categorias da crítica de arte, Sousa-Leão repetiu a dupla operação de Freyre e seus contemporâneos a respeito de Post: 1) tomar sua imagem como cópia do real (apenas deslocando a “fixação” desse real do aparato fotográfico para a genialidade do artista) e 2) destacar os temas na relação com “a terra” e “o homem” do Pernambuco açucareiro; o que no pensamento social de Freyre correspondia ao núcleo do que ele construía como um espaço: o Nordeste. Conclusão, ou as pinturas de Frans Post como imagens espaciais do Nordeste Essa operação imaginária transformou a obra de Post em objetos culturais híbridos: de imagens do século XVII holandês a imagens do século XX brasileiro. Retirou-se a referência “primeira”. Mas o verbo “retirar” não é

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suficiente para compreender exatamente esse processo. O que ocorreu foi a sobreposição de uma nova significação. O que se “retirou”, portanto, foi o foco, que se deslocou da “velha” para a “nova” significação. Isso ocorre porque a imagem significada é a resultante do encontro, ou interação, entre o sujeito histórico e o objeto cultural. No caso desta análise, como o sujeito é de uma outra historicidade, necessariamente, seu lugar é também outro. Tome-se o óleo sobre tela de 1640, Forte Frederik Hendrik, executado ainda ao tempo do governo de Maurício de Nassau no Brasil holandês, como exemplo. Em 1973, SousaLeão, num catalogue raisonné (que era já a terceira edição, ampliada, de seu texto de 1937, aqui analisado), sugeriu que as três figuras humanas no quadro Forte Frederik Hendrik fossem representativos das três raças fundadoras do povo brasileiro (SOUSA-LEÃO, 1973, p. 59). Ora, essa assertiva é bem condizente tanto com a idéia da “democracia racial” em Freyre, por um lado; quanto com o imaginário nativista da restauração pernambucana, por outro. O que deixa a sugestão de que Pernambuco, então, teria tido a primazia no processo formador da nacionalidade brasileira. No entanto, em 1640, Frans Post produzia essa imagem com outras preocupações. A mulher na tela não é uma ameríndia, mas uma mulata, miscigenada de europeu com africana, ou européia com africano. Assim informa uma análise da evolução estilística desse tipo humano, recorrente nas pinturas posteriores de Post. E, relacionando esse elemento ao sistema holandês do século XVII de representações do Outro, através de uma hierarquização étnica (BRIENEN, 2006), hoje se sabe que uma imagem como tal

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representou a terra do Brasil como dependente da Europa. O africano representado como inferior, pelo atributo do fumo e da quase ausência de indumentária, e o europeu superior em civilização, com direito, portanto, a exercer domínio na terra. Já a mulher, miscigenada, está entre o projeto civilizacional europeu e a repetição do fracasso do africano. Personificação de Pernambuco, ela é a ambigüidade da condição colonial. Isso por si só já seria uma significação que não cabia na interpretação seletiva dos sujeitos históricos em Pernambuco dos anos 1920 e 1930. Havia que inverter essa significação entre o cá e o lá nas imagens de Post, de forma a fazer daquelas três personagens não o Outro, mas o nós do povo brasileiro que se construía. Assim, invertia-se a perspectiva atlântica da mirada por sobre a imagem, terminando por transformar radicalmente o que se via nela. O elemento comum que possibilitou então essa hibridização reside no elogio visual que Frans Post fez à terra, na forma de destaque para a atividade canavieira. As pinturas e desenhos de paisagens brasileiras feitas por Frans Post, imagens da prosperidade colonial holandesa do século XVII, transmutaram-se (através da substituição de uma interpretação ekphrástica da cultura visual holandesa do século XVII por uma interpretação mimética da cultura visual pernambucana do início do século XX) em imagens espaciais que corroboravam a emergência de um discurso regionalista do Nordeste no seio da formação das identidades brasileiras. Para o século XVII, Pernambuco, centro do Brasil holandês, cujo território ia do Rio São Francisco a São Luís do Maranhão, era a capitania mais rica em produção de açúcar. Para o século XX que se iniciava, o

Pernambuco açucareiro era o centro articulador desse espaço identitário chamado Nordeste. As delimitações geográficas do primeiro coincidiam com as do segundo. E, nesse sentido, as paisagens com engenhos do Brasil holandês se tornaram portadoras de uma visibilidade que, reinventadas em sua condição de pintura por pressupostos “realistas” e fotográficos, transformou a terra em paisagem; tornou aquelas terras que fixaram o europeu nos trópicos brasileiros, através do fértil massapê, na paisagem do Nordeste. As paisagens de Frans Post, portanto, foram interpretadas como imagens espaciais que davam visibilidade à emergência imagético-discursiva do Nordeste. Se no plano das relações políticas do Estado Novo, Pernambuco sofrera uma derrota; no plano do simbólico, o embate sobrevivia. Ao dar visibilidade ao discurso do Nordeste, essas imagens reforçavam o mesmo; davam a ele, através da concepção da verossimilhança fotográfica, os meios para que esse pudesse ser apresentado como algo evidente, natural, real. Referências bibliográficas ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife/São Paulo: Massangana/Cortez, 1999. BARLAEUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil (1647). Tradução e notas de Cláudio Brandão. Recife: Fundação Cultura Cidade do Recife, 1980. BARROS, Souza. A década 20 em Pernambuco: Uma interpretação. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1985. BORBA, Manoel. Sérgio Loreto e seu governo em Pernambuco: história de um quatriênio calamitoso (1922-1926). Rio de Janeiro: Typographia dos Annaes, 1926.

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REPRESENTAÇÕES FEMININAS NOS RETRATOS DO SÉCULO XIX

Representações femininas nos retratos do século XIX

Gisele Ambrósio Gomes Mestranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Autora do artigo “Imprensa, política e gênero”. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 1, 2008.

RESUMO O presente artigo tem por objetivo geral analisar representações femininas nos retrados pintados a óleo da família Ferreira Lage do século XIX, que se encontram no acervo do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora. PALAVRAS-CHAVE: arte retratística; século XIX; Família Ferreira Lage.

ABSTRACT This article aims to examine overall female representation in the oil painted portraits of the Ferreira Lages family the nineteenth century that are in the collection of the Museum Mariano Procópio, in Juiz de Fora KEYWORDS: portrait; XIX century; Ferreira Lages family.

Recebido em: 16/02/2009

Aprovado em: 10/04/2009

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GISELE AMBRÓSIO GOMES

Representações femininas nos retratos do século XIX

Quando entramos no Museu Mariano Procópio deparamo- nos imediatamente com retratos pintados a óleo de três figuras femininas oitocentistas pertencentes à importante família Ferreira Lage, que se radicou em Juiz de Fora no século XIX. São elas: a Baronesa de Sant’Ana, Maria Amália e a adolescente Elisa respectivamente, mãe, esposa e filha do ilustre comendador Mariano Procópio Ferreira Lage. Esses retratos chamam a atenção por exibir mulheres representadas com uma profunda sobriedade e severidade, fazendo-nos intimidar por sua clara denotação de autoridade e orgulho. Essas representações chocam-se com as tão divulgadas imagens femininas encontradas nos retratos, nos nus artísticos e nas cenas de costume em estilo neoclássico, produzidos durante o século XIX: neles encontramos os contornos de mulheres belas, idealizadas, joviais e ternas (COSTA, 2002, p. 91-93, 107-108). A partir desse estranhamento percebemos que tais retratos “dizem” muito de sua época: da sociedade na qual foram produzidos; da complexidade da produção artística do período; do papel da mulher oitocentista; e de seus desejos de representações legadas para a posterioridade. No século XIX a arte retratística no Brasil adquiriu um papel de destaque na sociedade brasileira devido a dois fatores: às técnicas e às habilidades dos artistas europeus vinculados à Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro; e à constante preocupação da elite com a busca pela

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distinção social (COSTA, op. cit., p. 94). Distinção esta que englobava, além da imitação do estilo de vida das nações ditas civilizadas (consumo de artigos de luxo estrangeiros, participação em novos espaços de sociabilidades...), o âmbito das representações, ou seja, o jogo simbólico (MAUAD, 1997, p. 212 e 217). Nesse contexto, é preciso ter sempre em vista que o retrato, ao fixar a imagem de um indivíduo, traz em seus contornos a identidade do retratado em sua parcela física e subjetiva (BITTENCOURT, 2005, p. 10). Em outras palavras, tal identidade é formada pela fisionomia do retratado associada a uma linguagem visual que denuncia os seus valores e os referenciais do grupo social a qual pertence, a sua imagem ideal desejada para ser reconhecido e para figurar na memória das pessoas (COSTA, op. cit., p. 98). Sendo assim, essa identidade é composta através das interações estabelecidas entre o retratista, o cliente e o observador em seu contexto sóciocultural específico (BITTENCOURT, op. cit., p. 10). Logo, devemos entender o retrato pela sua dupla faceta: ele é, simultaneamente, “símbolo de poder” e produto das “relações de poder” (Idem, p. 12). Os retratos pintados à óleo foram os grandes fetiches da elite brasileira no oitocentos, situação que foi modificando-se em meados do século com a difusão da fotografia, que caiu no gosto tanto da família imperial quanto da aristocracia rural, popularizando-se no decorrer do tempo entre

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REPRESENTAÇÕES FEMININAS NOS RETRATOS DO SÉCULO XIX

o restante da população, inclusive dos libertos.1 As casas das famílias abastadas constituíram-se no cenário para a exposição dos retratos dos membros familiares: o pai , a mãe, os filhos, os avós..., todos indistintamente pertenciam ao reduto familiar e, portanto, cada um deles era merecedor da perpetuação de suas auto-imagens, espalhadas pelos cômodos das residências, estimulando uma espécie de veneração familiar (COSTA, op. cit., p. 96). Entre a nossa elite agrária, diferentemente do contexto europeu e o da corte brasileira, que privilegiaram os retratos em estilo neoclássico, predominaram os “retratos realistas”, influenciados pelo realismo holandês (COSTA, op. cit., p. 101).2 O gosto por esse estilo estava relacionado à maneira dos grandes proprietários da época em demonstrar distinção social (COSTA, op. cit., p. 108 e 110): em cada feição destacavamse os seus traços individuais, as “marcas do tempo”, que compunham o discurso visual no qual o indivíduo retratado era venerado por características como o poder, o esforço empreendedor, a prosperidade e a sobriedade (COSTA, op. cit., p. 100-101 e 106). Nossa atenção também é despertada em tal estilo retratístico pela similitude entre as representações femininas e masculinas. Essa característica está relacionada com o importante papel social exercido pela mulher no âmbito agrário do Brasil oitocentista. Em muitos casos percebemos que as mulheres, ao invés de serem incautas sinhazinhas, transformaram-se em verdadeiras matriarcas, cuja autoridade estendia-se da casa à senzala. 1 2

Portanto, almejavam ser alvo da mesma respeitabilidade e veneração de seus maridos (COSTA, op. cit., p. 100 e 104-105). Assim, ao lado dos patriarcas latifundiários, encontramos mulheres ativas que, no cotidiano, como foi o caso da região cafeeira de São Paulo, auxiliavam seus maridos na organização e administração de suas propriedades. Às esposas cabiam desde os cuidados com a casa e com os filhos até o comando dos escravos e a gerência da fazenda na ausência dos maridos, sobretudo em caso de falecimento (COSTA, op. cit., p. 100 e 104-105). No Recôncavo baiano do século XIX houve também exemplos de mulheres que cuidavam da família e dos negócios com incrível habilidade: eram as típicas “senhoras de engenho”. Por exemplo, temos o caso da esposa de Luis Paulino d’ Oliveira Pinto da França, a portuguesa Maria Bárbara, mulher cuja determinação permitiu-lhe administrar a produção e controlar os escravos do engenho de sua família, deixados sob seu comando em função da viagem de seu marido para Portugal durante três anos e após sua morte, em 1824. Interessante também era sua preocupação com a política: mantinha-se sempre a par dos acontecimentos a ela relacionados e censurava a atuação dos “radicais portugueses” e dos “extremistas brasileiros” (REIS, 2000, p. 58, 60 e 61). Em meio a esse contexto, os retratos pintados a óleo das citadas mulheres da família Ferreira Lage constituem-se em importantes fontes que permite-nos ampliar o nosso entendimento sobre o contexto sócio-

Sobre esse assunto Ver MAUAD, Ana Maria. Op. cit., p. 121-131 e BITTENCOURT, Renata. Op. cit., p. 185-208. Esse estilo realista de origem flamenga foi introduzido primeiramente no nordeste pelos artistas que acompanharam Maurício de Nassau nas primeiras décadas do século XVII em sua “missão colonizadora” nessa região brasileira. A sua difusão para o sudeste deu-se pelas influências dos pintores nordestinos na Corte, sobretudo com a sua vinculação à Academia Imperial de Belas Artes. De uma maneira geral, no realismo holandês desse período encontramos a ambientação em interiores marcados pela taciturnidade, pela intimidade e pela obscuridade; a reverência a figura humana pelas suas conquistas, importância e individualidade, ressaltando valores como o poder, a singeleza, a moderação e o labor. Ver COSTA, Cristina. Op. cit., p. 109 e 110.

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cultural e sobre as relações de gênero do Brasil oitocentista, particularmente da elite agrária da Zona da Mata. Essas mulheres, pela via do casamento (caso da Baronesa e de Maria Amália) e pelo nascimento (caso de Elisa), tiveram suas trajetórias de vida ligadas à conhecida família de Barbacena, os Ferreira Armond, de forte influência e prestígio nessa localidade (BASTOS, 1991, p. 183-184), sobretudo com o patriarca Marcelino José Ferreira Armond3 (1º Barão de Pitangui e tio-irmão de Mariano Procópio Ferreira Lage4), que estenderam sua atuação para Juiz de Fora com a presença desse último. Essa família tinha entre seus membros grandes fazendeiros, políticos e médicos, muitas vezes agraciados com títulos nobiliárquicos.5 Não menos importantes foram os membros femininos desta família mineira. Esse foi o caso de Maria José Sant’Ana (? – 1870), futura Baronesa de Sant’Ana e mãe de Mariano Procópio, casada em 15 de abril de 1820 com o capitão Mariano José Ferreira Armond.6 Conhecida entre os sobrinhos pelo apelido “Tia Maria Gorda”, ela é o exemplo cabal da mulher oitocentista das ilustres famílias proprietárias de terra, a aristocracia rural do Brasil no século XIX: concentrou suas forças no cuidado com a família e, na viuvez,

com a administração da Fazenda Fortaleza de Sant’Ana. Fazenda próspera (dedicada às culturas do café e cereais, e à pecuária), cuja produção obteve medalhas em exposições nacionais e estrangeiras.7 Maria Amália Coelho de Castro Ferreira Lage (1834 – 1914) também se destacou. A sua família pertencia a estirpe do português José Moreira Lima, figura proeminente da elite agrária da cidade de Lorena, localizada no Vale do Paraíba, rica região cafeicultora fluminense.8 Ela casou-se aos 16 anos, no Rio de Janeiro, com Mariano Procópio (18211872) em 14 de agosto de 1851. Desse matrimônio nasceram quatro filhos: Mariano que morreu após o parto; Elisa (18569-1871) que morreu prematuramente de tuberculose10 por volta dos 15 anos; Frederico (1862 – 1901) que se dedicou ao comércio; e Alfredo (1865 – 1944), personagem de destaque no âmbito cultural e social de Juiz de Fora cuja atuação engendrou o Museu Mariano Procópio (BASTOS, op. cit. 220-221). A sua vida foi dedicada aos cuidados com a família, à filantropia, à sua aptidão para a música11 e para a pintura. No seio da elite juiz-forana ela brilhou no solar de seu marido, um dos locais mais interessantes de nossa cidade da época que, a partir de 1861, tornou-se cenário de encontros sociais e

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Marcelino José foi um próspero fazendeiro que presidiu a Câmara Municipal de Barbacena nos anos de 1825, 1826 e de 1845 até 1848, e participou do Partido Liberal da época. Para maiores detalhes de sua biografia Ver BASTOS, Wilson de Lima. Op. cit., p. 183, 184,186-188. 4 Mariano Procópio, natural de Barbacena, além de bem sucedido fazendeiro, foi diretor da Estrada de Ferro D. Pedro II e das Docas da Alfândega e exerceu o cargo de deputado do Partido Conservador. Dedicou-se a diversas empreitadas, entre elas, a construção da estrada de rodagem União Indústria, da colônia de imigrantes em nossa cidade e a fundação da Escola Agrícola União Indústria. VER BASTOS, Wilson de Lima. op. cit., p. 16. 5 Idem, p. 183 e 184. 6 O capitão Mariano José Ferreira Armond durante sua vida foi um próspero fazendeiro, vereador da câmara municipal de Barbacena no ano de 1820, administrador do correio desta vila em 1823 e deputado provincial. Idem, p. 203. 7 Idem, p. 15, 207, 270 e 273. 8 Idem, p. 209. 9 A definição do ano de seu nascimento foi estabelecida por nós com base no cálculo de subtração entre o ano de seu falecimento (1871) com os seus 15 anos, aproximadamente, de vida. 10 Agradeço essa informação à museóloga Maria das Graças Almeida do Departamento de Acervo Técnico de Supervisão de Processamento e Controle de Acervo do Museu Mariano Procópio. 11 Esse interesse de Maria Amália pela música é personificado no Museu Mariano Procópio na existência de uma bela sala de música composta por um piano de cauda, cadeiras no estilo Napoleão III e bustos dos compositores Haydn, Mozart e Bethoven feitos pelo escultor Paschoal Fosca.

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artísticos freqüentados também por estrangeiros. A morte de seu marido em 1872 obrigou-a a gerenciar diretamente o patrimônio familiar e a educação dos seus dois filhos ainda vivos, Frederico e Alfredo, a qual foi completada na Europa, residência dessa pequena família por alguns anos antes de retornarem para Juiz de Fora (BASTOS, op. cit. 209-210). Após essas duas breves biografias12 de Maria José e Maria Amália percebemos que ambas foram mulheres fortes e atuantes em seu contexto. Elas não titubearam em unir a sua função de esposa-mãe (educação dos filhos, cuidados com a casa...) a sua atuação nos negócios da família, em função do falecimento de seus maridos, objetivando resguardar a patrimônio e a estrutura familiar. Em tal façanha, essas verdadeiras matriarcas obtiveram sucesso: por um lado, sob a gerência de Maria José, a grande Fazenda Fortaleza de Sant’Ana permaneceu um dos negócios mais prósperos da família; por outro lado, Maria Amália manteve os bens familiares propiciando aos seus filhos uma vida confortável e uma educação esmerada. Eis o legado de tais mulheres: força, autoridade, poder e honra. Motivo de veneração, esse legado é materializado em seus retratos, os quais passamos a analisar nas próximas linhas. O retrato da Baronesa de Sant’Ana exibe uma mulher em busto diante de um fundo preto, sem nenhum objeto em seu entorno. A sua postura é profundamente formal, denotando imponência e segurança. A parte mais luminosa do retrato é o seu rosto, cuja fisionomia austera é composta pelas suas marcas do tempo (rugas, linhas de

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expressão...) deixando em evidência a sua idade já avançada. O seu olhar autoritário e altivo direcionado para o observador é sustentado por seu semblante de seriedade intimidadora. A sobriedade exalada pelo retrato é completada pela sua indumentária em tom preto, suavizado apenas pela renda branca presa na gola de sua roupa e sob a qual se encontra um laçarote cinza-chumbo. A idéia de recato evocada pela sua indumentária – visto que ela apenas nos permite visualizar uma única parte de seu corpo, o rosto – é reafirmada pela presença da touca que esconde parte de seus cabelos impecavelmente penteados e atados para trás. Não se busca evidenciar ostentação material como podemos perceber a ausência de exibição de jóias, à exceção do singelo colar que completa sua composição.

Anônimo. “Baronesa de Sant’Ana”. Óleo sem tela, 65 cm x 54 cm, s/ data. Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora.

Infelizmente, por problemas internos no Museu Mariano Procópio, não foi possível descobrirmos informações pessoais de Elisa Ferreira Lage.

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GISELE AMBRÓSIO GOMES

PINTO, José Júlio de Souza. “Maria Amália Ferreira Lage”. Óleo sem tela, 46 cm x 38 cm, 1887. Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora.

Por sua vez, Maria Amália foi retratada pelo importante pintor José Júlio de Souza Pinto13 (1856 – 1939) de forma menos rude e austera sem, contudo, abandonar as idéias de altivez, recato, honra e sobriedade. Ela aparece sentada, focalizando-se apenas três quartos de seu corpo (da cabeça aos joelhos), em uma cadeira de madeira e recostada em uma almofada de cor azul escuro com franjas douradas. A sua indumentária é composta por um vestido de gala preto com uma discreta gola em “v” e com mangas três quartos. A

sofisticação do vestido concentra-se nas rendas e no cetim, igualmente pretos. Os seus braços apóiam-se sobre as pernas, nas quais também encontramos uma espécie de livro localizado entre suas mãos, cujo título Bethoven remete-nos a idéia de aí se encontrar composições de tal músico e também a alusão à ilustração e ao interesse sobre a arte da música de nossa retratada. Voltada para a direita, o seu rosto nos é apresentado de perfil, direcionando seu olhar para um ponto indefinido, mas que não impede de percebermos o semblante sério e compenetrado de uma mulher segura de si e de suas capacidades, além de inspirar no observador um grande sentimento de respeitabilidade. É muito interessante nesse retrato a ênfase dada à autoria de tal obra. O nome do artista, além de estar visível na assinatura deste localizada no canto inferior do retrato, encontra-se destacado em uma pequena placa dourada presa na borda inferior da moldura quadrangular que envolve o retrato. Tal indicação demonstra a importância para o indivíduo ser retratado por um artista renomado, elemento indispensável no jogo da distinção social.14 Significativo também é o retrato da filha de Maria Amália, Elisa Ferreira Lage. Esse retrato apresenta a imagem de uma adolescente em busto, entre 14 e 15 anos,15 diante um fundo escuro. Nada na

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O pintor José Júlio de Souza Pinto, natural do Açores, foi criado na cidade do Porto, localidade em que estabeleceu seus primeiros contatos com a pintura. Vinculou-se à Academia Portuense de Belas Artes aos 24 anos e, a partir da década de 1880, aprimorou seus estudos em Paris. Nas suas telas enalteceu o paisagismo campestre e à beira-mar e personagens simples em seu cotidiano. Informações Disponível em http://ww.pitoresco.com.br/portugal/sousa_pinto/sousapinto.htm . Acesso em 18/05/2006. 14 Sobre esse assunto VER COSTA, Cristina. Op. cit. p. 99 e AMARAL, Aracy A. Aspectos da comunicação visual na coleção de retratos. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.). Retratos quase inocentes. São Paulo: Nobel, 1983, p. 127. 15 Essa afirmativa é baseada na data da pequena foto esmaltada de Elisa feita pelo francês Lafon de Carmarsac em 1871 (nesse ano, dependendo do mês em que a foto foi realizada, ela teria quase 15 anos) que provavelmente serviu de base para o retrato pintado. Indício disso é a retratada aparecer na foto com a mesma indumentária, a mesma gargantilha e o mesmo penteado. Entretanto, se no retrato a óleo privilegia-se a sua figura em busto, na foto ela aparece sentada, com dois quartos do seu corpo à mostra (da cabeça à cintura) em pé atrás de um móvel (provavelmente uma cadeira) almofadado diante um fundo sem nenhum detalhe. O seu tronco levemente inclinado para frente é sustentado pelos seus braços displicentemente cruzados sobre tal móvel. Essa foto também se encontra exposta no hall do Museu Mariano Procópio.

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REPRESENTAÇÕES FEMININAS NOS RETRATOS DO SÉCULO XIX

composição denota jovialidade ou suavidade. O olhar firme direcionado para o observador é associado a um semblante sério e altivo. A sobriedade é reforçada pelo tom escuro de sua roupa, preto e cinza, e pelo discreto penteado no qual temos seus longos cabelos escuros presos para trás, caindo-lhe pelas costas. A gola em “v” de seu vestido deixa à mostra uma pequena porção de seu colo, ornado por uma gargantilha em tecido da qual pende um singelo crucifixo. Portanto, apesar da pouca idade da retratada, detectamos a mesma proposta estética e o mesmo desejo de projeção de imagem encontrados nos retratos de sua mãe e avó. Seria o prenúncio, pensamos nós, de uma vida que, se não tivesse sido interrompida prematuramente pela morte, deveria seguir os mesmos valores, comportamentos e atribuições da geração feminina anterior.

A partir desses apontamentos percebemos os retratos no contexto elitista brasileiro do século XIX como um importante instrumento para o jogo simbólico da distinção social da época. Neles encontramos a construção de auto-imagens masculinas e femininas que possuíam uma importante pretensão: consolidar uma imagem ideal – marcada pelo poder, pela autoridade, pela respeitabilidade e pela prosperidade – capaz de sustentar sua condição social privilegiada. Identidades foram forjadas em cada traço dos pincéis dos artistas e em cada olhar do observador. Essas são as questões que encontramos nos três retratos femininos aqui analisados. Cada uma delas – Maria José, Maria Amália e Elisa – permitiram ser representadas e vistas em imagens que denotam claramente a sua distinção enquanto membros de uma próspera elite agrária e a sua busca pelo reconhecimento como personagens importantes da dinâmica familiar. Distinção e reconhecimento afirmados pela via simbólica, ou seja, pelo estilo pictórico escolhido, pelas roupas, pelas tonalidades, pela pose, entre outros. Referências bibliográficas AMARAL, Aracy A. Aspectos da comunicação visual na coleção de retratos. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.). Retratos quase inocentes. São Paulo: Nobel, 1983. BASTOS, Wilson de Lima. Mariano Procópio Ferreira Lage: sua vida, sua obra, descendência, genealogia. Juiz de Fora: Edições Paraibuna, 1991.

Anônimo. “Elisa Ferreira Lage”. Óleo sem tela, 65 cm x 45 cm, século XIX. Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora.

BITTENCOURT, Renata. Modos de Negra e modos de Branca: o retrato “Baiana” e a imagem da mulher na arte do século XIX. Dissertação de Mestrado. Campinas, São Paulo: [s.n.], 2005.

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DO ZÓCALO A CHAPULTEPEC: CONSIDERAÇÕES SOBRE MEMÓRIA, POLÍTICA E NARRATIVA ARQUITETÔNICA MONUMENTAL...

Do Zócalo a Chapultepec: considerações sobre memória, política e narrativa arquitetônica monumental no caso mexicano Hernán Ramírez Pós-doutor pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Adjunto da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Autor, de entre outros livros, Corporaciones en el poder. Institutos económicos y acción política en Brasil y Argentina. IPÊS, Fiely Fundación Mediterranea. Buenos Aires: Lenguaje Claro Editora, 2007.

RESUMO Neste texto refletimos sobre a relação entre memória, política e imagem a partir do caso mexicano, procurando compreender como este conformou uma narrativa arquitetônica monumental fortemente mestiça, não apenas conjugando seu passado indígena, colonial e independente, mas também as múltiplas feridas internas, que ainda não foram fechadas em seu processo histórico, produzindo um discurso no qual estão presentes, de forma singular, diversos traços, às vezes sobrepostos, outras vezes dialogando, ou ainda em forma de ferrenhas disputas, não apenas pelo espaço, mas também, em essência, pela memória, seja no intuito de se apossar de um passado, próprio, alheio ou imaginado, como do futuro, moldando nas pedras ideais perpassados pelos interesses e avatares de seu tempo. PALAVRAS-CHAVE: México; memória; arquitetura monumental.

ABSTRACT This paper reflected on the relationship between memory, politics and image from the Mexican case, seeking to understand how this monumental architecture complied a narrative heavily mestiza, combining not only their past indigenous, colonial and independent, but also the multiple internal injuries, which still were not closed in its historical process, producing a speech in which they are present, so unique, different strokes, sometimes overlapping, sometimes talking, or in the form of ferocious disputes, not only for space but, in essence, the memory is in order to get hold of a past self, others or imagined, and the future, shaping the stones ideals permeated by the interests and avatars of your time. KEYWORDS: Mexico; memory, monumental architecture.

Recebido em: 09/06/2008

Aprovado em: 05/08/2008

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HERNÁN RAMÍREZ

Do Zócalo a Chapultepec: considerações sobre memória, política e narrativa arquitetônica monumental no caso mexicano

Desde sua origem, a história tem refletido a respeito da memória. Por esse motivo, estabelecer relações entre estas com a política e as imagens, mesmo que a partir de um caso nacional, é uma tarefa enorme e todo recorte que pretendamos estabelecer será necessariamente arbitrário e, sobretudo, limitado. A complexidade dessa abordagem é ainda mais desafiadora, dado que o México tem se caracterizado por ser um espaço de grandes contrastes. Albergou centros de altas culturas pré-colombianas, nas quais se destacam indubitavelmente maias e astecas, mas que contou também com uma quantidade enorme de povos que somaram seus elementos para formar uma cultura multiforme, foi ainda núcleo do vice-reino espanhol e centro ímpar para a mestiçagem 1, protagonizou duas grandes rebeliões de massas e sofreu a agressão imperialista que o mutilou fisicamente, causando feridas que ainda pulsam. Dessa forma, não é estranho que tais acontecimentos se reflitam na sua cultura e que, apesar do longo período transcorrido, estejam presentes no quotidiano, não apenas da cidade, mas também das pessoas que nela vivem. Com o intuito de adentrarmos nesse universo, de modo semelhante à intenção de Maximiliano, segundo imperador do México,

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de unir o Castillo de Chapultepec com o então Palacio Imperial, embora de modo inverso, tentaremos discorrer sobre os principais hitos da arquitetura mexicana que se localizam nesse pequeno, mas significativo, percurso, para compreendermos, desde a perspectiva de um historiador americanista, algumas das mensagens que os monumentos circundantes nos transmitem. Cabe advertir que mais do que uma minuciosa descrição de cada construção ali localizada, interessanos uma visão holística, a partir da qual abriremos espaço para análises mais concretas sobre determinados detalhes que encontram sentido em relação a esse todo. O epicentro da cidade de México foi construído sobre as ruínas da antiga Tenochitlán, onde se encontra um conglomerado de vestígios coloniais e ocultas construções astecas, tendo como ponto de partida a atual Plaza de la Constitución ou Zócalo, praça do mercado em árabe, circundado pelo Palacio Nacional, a Suprema Corte de Justicia, o Portal de Mercaderes, a zona arqueológica do Templo Mayor, principal teocalli asteca de Tenochtitlán, destruído em 1520 e redescoberto em 1978, o Museo e a Catedral Metropolitana. No oriente da praça, levanta-se o Palacio Nacional, sede do Poder Executivo Federal mexicano, construído num terreno de quatro

Preferimos usar o conceito de mestiçagem de Serge Gruzinski (2001) em lugar de híbrido, ao estilo de Nestor García Canclini (1997), já que este último, usado amplamente pela biologia, geralmente está associado a um cruzamento “anormal”, do qual, geralmente, resulta um produto estéril.

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hectares, que desde os tempos pré-hispânicos era o espaço no qual os governantes exerciam sua autoridade, o centro de gravidade da política, o local onde se materializava o poder. Como todas as construções analisadas, sofreu muitas alterações com o passar dos séculos, as quais também podem ser vistas como reflexos das transformações que a sociedade mexicana experimentou, entrelaçando, dessa maneira, suas narrativas históricas. No começo do século XVI, Moctezuma II Xocoyotzin ordenou a edificação de sua residência, as chamadas Casas Nuevas, no terreno que tempos depois seria ocupado pelo Palacio Virreinal. A construção era tão faustosa que Hernán Cortés se apropriou dela para erigir sua morada, talvez com o intuito de incorporar sua simbologia mítica e de poder, ato ratificado pela Real Cédula, em 1529. Cortés apropriou-se também das Casas Viejas, conhecidas como Palacio de Axayácatl, alugando-as para albergar a Real Audiencia e o vice-rei. Conscientes da importância guardada pelo espaço que fora ocupado pelo palácio de Moctezuma II e o perigo representado pela apropriação simbólica de Cortés, as autoridades espanholas tentaram adquirir a propriedade, mas transcorreriam 41 anos antes que o conseguissem fazer, em 1562. Em 1563 foi construído um edifício com a intenção de sediar o poder do vice-reino, recebendo contínuas melhoras até se converter numa fortaleza, com duas torres nas esquinas, resguardadas por artilharia e com troneiras para fuzilaria. No entanto, tais defesas seriam insuficientes para deter um motim de índios famintos, que reduziram o recinto a cinzas em 1692. Mais tarde, a construção foi reformada para albergar também os tribunais e a carceragem da Corte Real e o edifício original, de aspecto medieval, foi tomando seu porte

atual de construção barroca. Em 1821, ao ser consumada a Independência, o prédio foi rebatizado, adotando o nome de Palacio Nacional, e passou a acolher os três poderes do país, sendo que o legislativo e o judiciário emigrariam para outros recintos, dentro da mesma cidade. Na guerra entre México e Estados Unidos, pela anexação de Texas, o exército invasor, após bombardear, em 1847, o Castillo de Chapultepec, marchou em direção à praça principal da cidade, o Zócalo, e hasteou a bandeira de barras e estrelas neste edifício, como símbolo de seu triunfo. Durante o século XIX, o prédio passou por novas reformas, e, no Segundo Império, Maximiliano mudou temporariamente sua denominação para Palacio Imperial. Mas, em 1863, o monarca trocou sua residência para o Castillo de Chapultepec, deixando aquele como um recinto puramente administrativo e de protocolo. Ao terminar o conturbado reinado do nobre Habsburgo, o edifício voltou a se denominar Palacio Nacional e continuou sendo a sede do poder executivo e residência oficial do chefe de Estado, até que Porfírio Díaz transladou essa última função novamente a Chapultepec, em 1883. Apesar de tirar-lhe o caráter de residência oficial dos presidentes, Díaz praticaria um dos atos simbólicos mais importantes na sua era moderna, quando, em 1896, instalou a Campana de Dolores, num nicho acima da sacada presidencial. Um dos rasgos característicos da política daquele momento era o de sua profunda ligação com a religião. As duas esferas literalmente caminhavam de mãos dadas, uma outorgando poder e protegendo, inclusive militarmente, enquanto que a outra conferia legitimidade às autoridades e sistemas constituídos. Entretanto, muitas

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vezes, essa relação passava por períodos tempestuosos e, não raro, se quebrava. Assim foi no México independente. Hidalgo promoveu um levante ao som dos sinos da capela de Dolores, desfraldando o estandarte da Virgem de Guadalupe, que, por sinal, apresenta traços incontestavelmente indígenas. Mas, apesar da grande participação de membros do baixo clero, o percurso da Revolución colocaria a hierarquia católica contra o novo Estado, que pouco a pouco se afastaria da Igreja, sancionando-se na Constituição de 1917 sua separação, que o novo regime manteria, custando inclusive severos enfrentamentos armados. Dessa forma, vemos como a religião, um dos motores mais potentes da iconografia, rivalizaria com o da Nação desde o século XIX. A imbricação anterior entre o Estado e a Igreja se transformou numa virtual zona de conflito, mesmo que alguns contatos ainda se mantivessem. No plano imagético, podemos observar como tal processo se evidencia nas incrustações realizadas em vários edifícios. O Palácio Nacional ganharia o sino de Dolores, transportado para a sua frente com toda pompa, e dois anjos que o sustentam. Apesar desse último resgate cristão, tais seres, híbridos por natureza, já que de alguma forma são herdeiros de outras tradições, receberam apenas maxtlas de seus criadores, que com essas simples vestes indígenas acentuaram seus traços corporais americanos. Com essa bela sinédoque do processo de Independência, o edifício incorporou todo um novo sentido, uma vez que a extirpava, literal e simbolicamente, das mãos da Igreja. Essa incorporação também nos abre outras perspectivas analíticas, que procuraremos trilhar ao longo do texto, a temporalidade marcada nos edifícios remete a uma narrativa não linear, é multiforme, diacrônica e 44

sincrônica. Ora apresenta-se em estratos bem definidos de passado, pré-colombiano primeiro, colonial depois e nacional por último; ora burla essa lógica, permitindo que ela incruste ou remova, faça erupções ou submersões, fagocite ou expila elementos correspondentes a distintas épocas e lugares. Deixando o Palacio Presidencial nos dirigimos ao norte do Zócalo, onde se ergue a Catedral Metropolitana. O edifício mais antigo começou a ser construído em 1524, sobre um recinto cerimonial asteca, tática que servia para destruir e incorporar a simbologia religiosa da cultura a dominar (GRUZINSKI, 2001). Mas, como não era de envergadura adequada, em 1573, com um projeto de Claudio de Arciniega, começou a levantar-se um novo templo, que, aos poucos, foi absorvendo o predecessor, demolido em 1626, embora o processo de construção só viesse a ser concluído 218 anos depois, em 1791. O enorme tempo transcorrido possibilitou reunir vários estilos arquitetônicos, como o renascentista espanhol, o barroco, o neoclássico francês e, inclusive, o contemporâneo, alcançando, em alguns deles, maestria singular. Sua fachada receberia um relógio, símbolo da modernidade, estátuas do escultor Manuel de Tolsá, que representam a Fé, a Esperança e a Caridade, acima delas um mastro com a bandeira e embaixo um escudo, em metal dourado, onde o zopilote, como é denominada essa espécie de águia símbolo nacional, sobre um nopal, devora a serpente, figura que se repete por toda a parte, México afora. Também, durante um tempo, a Piedra del Sol foi adossada a umas das torres, desde seu descobrimento na lateral sul, em 1790 até 1885, quando foi transladada ao Museo Nacional, antes de ser instalada definitivamente no Museo de Antropología. Mas, o seu interior, a primeira vista, parece

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não ter feito grandes concessões. Das figuras ilustres do México independente, apenas Itúrbide está ali sepultado. Para os demais, as autoridades republicanas escolheram outras moradas onde descansar na eternidade. Rapidamente nos dirigimos por Tacuba à Alameda Central, não sem antes admirar o Palacio de Minería, obra magna do neoclassicismo latino-americano, o Museo Nacional de Arte e a estátua eqüestre de Carlos IV, assinada por Tolsá, o já citado autor das estátuas da Catedral Metropolitana, que se encontra em frente. Esse tradicional passeio, retratado por Diego Rivera no mural Sueño de una tarde dominical en la Alameda, de 1947, era originalmente um mercado asteca e, durante o domínio espanhol, praça de execução inquisitorial, até que Carlota, esposa de Maximiliano, a transformou num bem cuidado jardim, com requintadas fontes e adornos, vindos na maior parte da Europa. Na lateral oriental, ergue-se o Palacio de Bellas Artes, encomendado pelo presidente Porfirio Diaz, para comemorar o centenário do início da Independência mexicana. O edifício começou a ser construído em 1904 para substituir o demolido Teatro Nacional. O projeto foi executado pelo arquiteto italiano Adamo Boari, seguindo, no início, o estilo Art Nouveau e concluído em pleno auge do Art Déco, embora também conjugue, de forma eclética, motivos neoclássicos e pré-hispânicos. Devido a problemas técnicos, de afundamento de solo, econômicos, a saída de Boari do país e ainda à Revolución Mexicana, a construção foi suspensa e retomada várias vezes durante trinta anos até que, por fim, sob o comando do arquiteto Federico Mariscal, foi finalizado, em 1931, e inaugurado, em 1934. Construído em mármore branco na fachada e em diversos tons em seu interior, o

Palacio de Bellas Artes conta com obras dos grandes muralistas mexicanos, dentre os quais se destacam David Alfaro Siqueiros, Diego Rivera, Jose Clemente Orozco e Rufino Tamayo. Sua altura é de 52 metros até a espiral e de 42,5 m até o teto. O recinto alberga diversos cenários e salas para a prática e exposição de obras de arte, com destaque para a de espetáculos, cujo telão, encomendado à casa Tiffany de Nova York, exibe as imagens dos vulcões Popocatepetl e Iztazihuatl, em forma de um enorme quebracabeças; do teto pende um lustre de cristais, desenhado pelo húngaro Geza Marotti, que representa Apolo rodeado das musas. O exterior apresenta detalhes às vezes contraditórios, as quatro esculturas de Pégasus contrastam com o acobreado zopilote da cúpula, com os rostos dos guerreiros Águias e Jaguares, ataviados a caráter para a batalha, esculpidos nos claves, com as serpentes de fauces abertas, que emolduram os arcos, e ainda com os coiotes, macacos e outros animais autóctones, lapidados com visível reminiscência mesoamericana, que se alternam nas suas bases. Caminhando um pouco, encontramos o hemiciclo em homenagem a Benito Juárez, situado na lateral sul da Alameda Central. O monumento foi inaugurado em 1910, nos estertores do porfiriato, representando uma amostra da arquitetura européia. Sobre um projeto do arquiteto Guillermo Heredia foi levantado o corpo, em mármore de Carrara, com oito colunas de estilo dórico e detalhes em bronze, que, de certa forma, traduz o espírito dominante do fim dessa era. No centro, alça-se um conjunto escultórico, obra do italiano Lazzaroni, que culmina com a efígie sedente de Juárez, coroado pela Glória em presença da República. O pedestal é sustentado por dois

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leões e possui, no centro, uma águia em estilo europeu. O conjunto é flanqueado por duas colunas quadradas, contendo detalhes em bronze, tipo império, de cetros arrematados por águias sobre três coroas de louros entrelaçadas e, nas bases, esfinges aladas estilizadas. Difíceis de enxergar, estas últimas nos remetem a outra característica dos monumentos. Neles permite-se o encontro do natural e do fabuloso, podendo se estabelecer, como normal, um paralelo entre heróis e seres sobrenaturais das lendas antigas, neste caso dos Velho e Novo Mundo (HOBSBAWM, 1990, p. 23-25 e FREGA 1997, p. 128). Atribuir significados rituais e míticos às coisas e práticas sociais caracteriza um dos elementos essenciais da dimensão simbólica das imagens. Dessa maneira, entende-se a necessidade da existência do monumento ligado ao mito das origens ou ao mito fundador. A partir da imagem de seu presente, os homens inventam e dialogam com seu passado (SANSOT, 1989, p. 5 e QUERRIAN, 1989, p. 3), construindo, assim, sua memória coletiva. Deixando a Alameda, nos aproximamos do Monumento a la Revolución Mexicana ou Panteón Nacional, que hospeda os mortos mais ilustres do século passado, quase todos vinculados a esse evento, que mudou profundamente o México, obtendo ampla repercussão na América Latina. Sua construção também passou por muitas peripécias. Pensado originalmente para albergar o Palacio Legislativo, com desenho realizado, em 1897, pelo arquiteto francês Emile Bernard, sob forte inspiração do Capitólio de Washington, a obra se projetou em estilo clássico com forte

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influência renascentista. Em 1910, Porfírio Díaz colocou sua pedra fundamental. Seus decorados iam ser de ônix e mármore, alguns dos quais ficaram prontos rapidamente. Mas, o movimento revolucionário obrigou a deter o prosseguimento da obra um ano após seu início e várias esculturas foram enviadas para outras edificações. As dedicadas à Paz, Eloqüência, Juventude e Verdade, podem ser vistas agora no Palacio de Bellas Artes, perda que, de todas as maneiras, teria colaborado com a harmonia do conjunto, já que, com a reformulação, foram substituídas por outras mais acordes, assim como também foi despojada de sua águia, que coroaria a brilhante cúpula de cobre, hoje arrematando a pirâmide do Monumento a la Raza 2. Durante as duas décadas seguintes a estrutura esteve abandonada, até que o arquiteto Carlos Obregón Santacecilia teve a idéia de convertê-la em monumento e construir, em seu porão, o Museo de la Revolución. Para esse propósito, foi aproveitada a estrutura metálica principal, composta por uma cúpula dupla, sustentada por quatro enormes arcos de 26 metros de altura. A parte interior possui um anel que se fecha num mirador, cujo ascenso se consegue através de uma série de escadas que partem da base de uma das colunas. Finalmente, o esqueleto metálico foi recoberto com pedra de cantaria de Chiluca, sobre a qual o artista mexicano Oliverio Martínez realizou quatro grupos de esculturas, um em cada coluna, representando a Independência, as leis de Reforma, as leis operárias e as leis agrárias. Três desses conjuntos escultóricos são compostos por três figuras humanas e o restante de quatro, mas, apesar do número, as linhas geométricas lhe

Nos países hispânicos é comum denominar dia de La Raza o 12 de outubro de 1492, data do Descubrimiento de América.

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dão força e singeleza, pretendendo simbolizar a sociedade mexicana que forjou a Revolución, segundo a visão oficial, como forte, sensível e disposta a defender seus direitos e a conquistar o desenvolvimento social. Em 1936, outorgou-se ao monumento também a função de recinto funerário, para albergar vários heróis nacionais do século XX. Com essa finalidade, adaptaram-se criptas nas colunas, onde foram depositados os restos mortais de Venustiano Carranza, em 1942; de Francisco I. Madero, em 1960; de Plutarco Elías Calles, nove anos mais tarde; de Lázaro Cárdenas, único a permanecer no local desde seu falecimento, em 1970; e os de Pancho Villa, em 1976. Do alto dos seus 65 metros, seu caráter monumental se vê potencializado pelo despojamento de seu estilo, o que reforça o caráter que se queria conferir a esta última morada. Tudo verte austeridade. A pedra escolhida, as formas retas e curvas com poucas sinuosidades, as esculturas que se fundem quase que mimeticamente ao conjunto e os tipos das escassas inscrições, que preanunciam os monumentos contemporâneos desse tipo. No entanto, seu ar severo não consegue esconder alguns conflitos da história mexicana, que ainda se travam nesse cenário. Em vida, Pancho Villa, talvez, concordaria com várias posições levantadas durante a polêmica por seu translado. Isso é perceptível na quebra de assimetria que a sua instalação no local provocou e que o deixou numa situação pouco aprazível dentro da mesma coluna de Cárdenas, tendo que se espremer por uma porta mais estreita que as outras, para ingressar na sua própria tumba. O conflito também pode ser claramente percebido nos silêncios do monumento, não o que honra os mortos, mas naquele que se expressa narrativamente. Admitindo a

exclusão de Adolfo de la Huerta, pelo provisório de seu mandato, rapidamente percebemos a ausência de referências a Emiliano Zapata, em contradição com o conjunto escultórico representando as leis agrárias, e a Álvaro Obregón. Nas imediações, o líder camponês possui apenas uma singela herma atrás das grades da Procuradoría Agrária, repousando seu corpo ainda no Panteón Municipal de Cuautla, e o caudilho sonorense descansa no seu torrão natal, talvez para expiar suas culpas por ter deposto Carranza, presidente revolucionário constituído, e por ter forçado sua própria reeleição, após o mandato de Calles, o que posteriormente se transformaria num vigoroso tabu da política mexicana. O fato da morte de Pancho Villa ter acontecido durante seu mandato deve ter pesado menos, já que, em situação parecida, Carranza colocou a prêmio a cabeça de Zapata, que morreu numa emboscada durante seu governo, fato que, no entanto, não impediu seu ingresso no Panteón. Abandonando esse pesado ambiente, nos dirigimos ao Paseo de la Reforma. Originalmente, Maximiliano decidiu fazer um corredor entre o Castillo de Chapultepec e o Palacio Imperial, aproveitando o Paseo de Bucareli, também conhecido como Paseo Nuevo. Luis Bolland projetou um aristocrático trajeto de pouco mais de três quilômetros, inspirado nos Champs Elysées, batizado inicialmente de Paseo de la Emperatriz, que, após a deposição do herdeiro Habsburgo, recebeu outros nomes até que, em 1872, se lhe outorgou o atual, de Reforma, em alusão às leis que deram origem à constituição de 1873. Durante esses anos, além de nomenclatura, também mudou profundamente de fisionomia, incorporando importantes monumentos, múltiplas estátuas, outros adornos e modernos edifícios, que o

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converteram na coluna vertebral do patriotismo mexicano, gerando, inclusive, uma vastíssima bibliografia3. Antes de ingressar completamente no boulevard, uma estátua metálica de grandes e modernas proporções nos recebe, mas tardamos em compreender que se trata de um brioso cavalo, que substituiu aquela estátua eqüestre de Carlos IV, agora em frente ao Museo de Bellas Artes. Mais complicado é entender o perambular, às vezes exaltado, do Caballito, como é denominada popularmente a obra inspiradora de Tolsá, pelo atual Distrito Federal. O marquês de Branciforte, ao assumir o cargo de vice-rei da Nueva España, tinha deixado uma péssima reputação na Mãe Pátria, especialmente com o Rei, que o repreendeu pelas suas ações turbas com o fisco. Na tentativa de limpar seu nome ante o monarca espanhol, em 1794, mandou erigir em sua homenagem uma nova estátua em bronze, que substituiria outra de madeira, já desaparecida, na Plaza Mayor, onde permaneceu até entrado o período independente. A figura de um representante da dominação colonial encravada no centro do México não agradava muito às autoridades da nova República, que pensando construir um monumento tributário aos heróis da independência e temendo pela segurança da estátua de Carlos IV, sobre a qual havia, inclusive, sido colocado um enorme globo azul para protegê-la, decidiram por sua realocação no Paseo Burareli, como mencionamos, antepassado do Reforma, em 1852. Mas, passou um século, vários presidentes e um imperador até que foi alocada no seu emprazamento atual, frente o museu, em 1979 (SALAZAR HÍJAR e HARO, 1999). 3

Além do pitoresco, as aventuras do Caballito podem nos levar a questionar os resultados das intenções metonímicas dos monumentos. Neste caso, o objeto transfigurou seu signo, a ponto de descavalgar, no sentido figurado e real, seu já inexpressivo e incômodo ginete, saindo do campo do político, para finalmente achar seu sentido de preservação nos valores estéticos. Continuando ao norte, a glorieta seguinte é a de Cristóbal Colón, monumento inaugurado em 1877, que conta com 15 metros de altura. A estátua, do escultor francês Enrique Carlos Cordier, mostra o Descobridor com uma mão para o alto, com o dedo em riste, e a outra levantando um véu que descobre o mundo. Custodiam o pedestal de caliça vermelha, as estátuas sedentes dos freis Diego de Deza, que se encontra folhando as páginas da Bíblia, Juan Pérez de Marchena, estudando uma carta geográfica e medindo com um compasso a distância entre a Espanha e o Novo Mundo, Bartolomé de las Casas, preparando-se para escrever em defesa dos índios, e Pedro de Gante, abraçando a cruz. Além de ser a única referência ao passado colonial no trajeto, o monumento está fortemente vinculado com a fé católica, que também seria relegada nas construções posteriores. A próxima parada corresponde à estátua de Cuauhtémoc, último tlatoani asteca, obra do escultor Miguel Noreña e projeto do engenheiro Francisco Jiménez, vencedores de um concurso durante o porfiriato. A construção se iniciou em 1877 e foi inaugurada, pelo próprio Díaz, em 1887. Os jaguares que rodeiam a base do monumento, guardando as escadarias, foram obra de Epitacio Calvos, os quatro troféus que

Entre elas, encontramos as obras de Francisco Sosa (1900), María del Carmen Ruíz Castañeda (1974), Víctor Jiménez (1994), Ignacio Ulloa del Río (1997) e Carlos Martínez Assad (2008).

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adornam os costados, de Luis Paredes, e o baixo relevo que ilustra o suplício do governante mexica, do escultor Gabriel Guerra. Mas, esse não era o único monumento a um índio no Reforma, outras duas colossais estátuas de Itzcóatl e Ahuízotl, quarto e oitavo tlatoanis respectivamente, que, como sentinelas, vigiavam seu ingresso até 1901, quando foram transladados ao Paseo de la Viga, local que ficou conhecido como Indios Verdes, pela tonalidade adquirida pelo bronze com o passar do tempo. Transpondo à Glorieta de La Palma, que inexplicavelmente resistiu às diversas tentativas de substituir sua verde folhagem por mármores e bronzes, chegamos à coluna da Independência, um dos grandes símbolos nacionais mexicanos. Localizado na principal glorieta do Paseo, praticamente no centro do que foi seu traçado original, parte de uma idéia bastante antiga. O general Santa Anna tinha começado no Zócalo uma obra com projeto similar e Maximiliano, recém chegado, em 1864, encarregou a Ramón Rodríguez Arangoity de remodelar integralmente a praça e continuar sua construção, apenas substituindo a figura alada por uma águia imperial, arrebentando uma corrente e alçando vôo, planos que foram interrompidos com a sua deposição. Porfírio Díaz, preparando-se para o centenário, encomendou, em 1901, um monumento para o novo local. O arquiteto Antonio Rivas Mercado foi o autor do projeto, enquanto o engenheiro Roberto Gayol realizou e dirigiu a obra e o artista italiano Enrique Alciati se encarregou dos grupos escultóricos. De difícil cimentação, como quase toda obra no México, passou por vários acidentes, até ficar pronta em 1910. Organizada como um arquipélago vertical, na base tem um

grupo escultórico formado com as estátuas, em mármore de Carrara, de Hidalgo, Morelos, Guerrero, Mina e Bravo. Duas figuras femininas acompanham Hidalgo, representando, a sua direita, a História e, a sua esquerda, a Pátria, que lhe oferece louros. Em cada esquina se encontram estatuas sedentes que representam a Lei, a Paz, a Justiça e a Guerra. Por fim, um enorme leão conduzido por um menino, simboliza a força na guerra e a doçura na paz. A coluna tritóstila, herança barroca, de 36 metros de altura, está estruturada em aço e recoberta com peças lavradas em canteira de Chiluca, decoradas com palmas, grinaldas e dois anéis que levam inscritos os oito nomes dos heróis da Independência: Iturbide, Aldama, Allende, López Rayón, Galeana, Matamoros, Victoria e Mier y Terán. No seu capitel, alojam-se, em cada um dos cantos, quatro águias, com asas estendidas, como as do escudo mexicano daquele momento. A escultura que arremata e eleva o conjunto a 45 metros de altura, conhecida como Ángel de la Independência, representa a Vitória Alada e é obra de Alciati, feita em bronze e recoberta de ouro, numa das mãos segura uma coroa de louros e, na outra, uma corrente com seus elos partidos. No interior do mausoléu, estão depositados desde 1925 os restos mortuários de Hidalgo, Morelos, Guerrero, doña Leona Vicario, Aldama, Jiménez, Mina, Quintana Roo e Matamoros, que foram transladados da Catedral Metropolitana, onde tinham sido depositado em 1823, dois anos após consumada a Independência. Embora, em essência, os monumentos sejam colossais hipérboles de feitos históricos, a preocupação pela narrativa histórica baseada num método é mais do que evidente, não apenas pela estátua da História presente no conjunto, mas também por outros indícios

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observados nesse trajeto, como o da escultura da Verdade, inicialmente destinada para o edifício do Palacio Legislativo e que hoje alegra o de Bellas Artes. Essa preocupação não se restringia ao estético, e durante o porfiriato se praticou um verdadeiro culto ao positivismo, tendo Justo Sierra, secretário de Educación Pública, cargo equivalente ao de ministro, legando uma obra histórica monumental. Apesar da existência de espaço para a livre inspiração, uma parte das imagens contidas nesses monumentos pode ser interpretada como provas do real, pois os tropos poéticos dos autores encontram certos limites e a memória pode criticar impiedosamente a grosseira infidelidade, que modifique, deturpe ou aumente exageradamente o sucedido. De todos os modos, interessa notar que essa narrativa não se restringe meramente ao fator cronológico e nos dá a sensação de processo, idéia tão cara à história contemporânea. As bases do monumento mergulham a 25 metros de profundidade, e também no vasto passado, o corpo principal protege os restos mortais dos rebeldes de 1810 assim como de vários próceres da Independência e a estátua da Vitória, em suave vôo, nos conduz ao dourado futuro. Conjugando, dessa forma, os três tempos verbais, a obra nos remete também ao sentido primitivo da palavra, não apenas a História como uma mera operação cognitiva, um modo de produção de conhecimento, mas como “Mestra da Vida”. Desse ângulo, podemos compreender as razões de aparentes contradições. Se bem que não se tenha faltado com a verdade, já que seu nome aparece corretamente elencado nos anéis que abraçam a coluna. Iturbide, proclamador formal da efetiva 50

Independência, ainda descansa junto ao seu trono na Catedral Metropolitana. Seu ato oportunista não apagou o fato de ter sido um dos comandantes do Ejército Trigarante, que ceifou a vida dos primeiros revolucionários, estagnado o real rompimento com a Espanha, durante uma década, e de seu efêmero Império. Por outro lado, chama atenção a predileção por esses depósitos abarrotados com restos mortais e as pompas exibidas nos traslados. Os duelos mais que os triunfos impõem deveres, requerendo um esforço em comum para o porvir, através de um programa que una os cidadãos e os contemple em conjunto (RENAN, 2000, pp. 38-39, 42 e 65). A Vitória e a Derrota podem ser faces da mesma moeda, razão pela qual se permite, vez ou outra, quebrar o sono eterno desse sagrado sepulcro em buliçosos festejos esportivos, que o escolhem como epicentro, fazendo palpáveis as metáforas comuns que comparam as nações com as equipes (MILLER, 1997, pp. 33-34). A invocação nacional é resultado de uma proposição ética e política. Os mitos que em seu nome se gestam, proporcionam a reafirmação de que a comunidade, da qual cada um faz parte, está solidamente embasada na história, encarnando uma continuidade real entre gerações, e cumprem um papel moralizador, desfilando diante de nós as virtudes de nossos antepassados que nos encorajam a viver de acordo com elas (MILLER, 1997, pp. 26-27 e 55). Mais adiante em nosso roteiro, a fonte da Estrella Flechadora del Norte preanuncia o Bosque de Chapultepec. Sua construção data de 1946, durante o mandato do presidente Manuel Ávila Camacho, sendo seu diretor o arquiteto Vicente Mendiola e o autor da escultura Juan Fernando Olaguíbel, que usou como modelo uma donzela local.

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Apesar de sua denominação primogênita, o vulgo popular a rebatizou, devido à semelhança, como Diana Cazadora, demonstrando com isso, uma vez mais, como as figuras européias e indígenas se entrelaçam (GRUZINSKI, 2001). Vemos, assim, como a passagem do real para o signo e a retroversão deste para aquele requer o domínio de determinados códigos. Um objeto ou texto pode ser lido através de outro, pois há ali uma trama de referências que não são atemporais. Os conceitos, à medida que são relacionados a objetos, possuem um campo, determinado somente depois da relação do objeto com a nossa faculdade de conhecer em geral. Assim, os objetos só ganham título, nome, quando os conceitos com eles se relacionam. Desse modo, a troca de Flechadora por Diana e Victória por Ángel pode evidenciar algum tipo de sincretismo ou simplesmente o uso de referenciais distintos aos dos autores. Essa relação com a temporalidade se evidência também em algumas vicissitudes da estátua. Além da troca de nomes, teve que, após a iniciativa da Liga de la Decencia, encabeçada pela esposa do Presidente, vestir saias, para esconder sua nudez, ficando assim ataviada do período de 1944 até os estertores de 1967. Além disso, no ano de1992, recebeu uma máscara anti-gás, numa ação promovida por Greenpeace. A memória, como os monumentos, está submetida à dinâmica social, reestruturando-se constantemente, e engajando-se nas lutas sociais, políticas e ideológicas que se travam no seu presente histórico. Nosso mergulho na natureza se aprofunda e a Fuente del Salto del Agua, que rematava os arcos do aqueduto e registra as severas impressões da instabilidade do solo nessa região, nos dá as boas-vindas ao Bosque de Chapultepec. Esse topônimo procede do

idioma náhuatl, de chapul (in), que significa gafanhoto, e tepe (tl), morro ou montanha, quer dizer, morro do gafanhoto. O local tem uma formação geológica muito antiga, de origem vulcânica, que serviu de assentamento a numerosos povos desde os teotihuacanos até os mexicas, que segundo sua história da peregrinação, após driblar numerosos episódios bélicos contra os senhores de Azcapotzalco, conseguiram fundar a cidade de Tenochtitlan, no ano de 1325. No local, os governantes astecas viviam e tomavam banhos rituais. Durante o reinado de Moctezuma I Ilhuicamina, entre 1440 e 1469, se mandou construir o aqueduto para conduzir água desde Chapultepec até Tenochtitlan. O responsável pela gigantesca obra hidráulica foi Nezahualcóyotl, senhor de Texcoco, que, por não cobrar pelo seu trabalho, obteve como prêmio a permissão de habitar o local. As crônicas nos informam que a ele se devem o plantio e o cuidado das árvores mais antigas e assim o sítio se transformou num lugar sagrado, onde reinavam Tláloc e Chalchiuhtlicue, deuses da água da chuva e da que corre pelos rios, respectivamente. Com a chegada de Hernán Cortés ao México se determinou o corte das árvores perto dos mananciais, para que não contaminassem com suas folhas as águas das represas de Chapultepec, começando o bosque a perder porções de sua espessa folhagem, no entanto, continuaria sendo apreciado como um lugar de descanso e lazer durante o período colonial. Na entrada desse lugar mágico, a fauna exótica, presente em outros monumentos, perde a disputa com a local e vários pumas custodiam a ponte sobre o Reforma, que dá passagem ao Altar de la Pátria, também conhecido como Monumento a los Niños Héroes, na primeira seção do Bosque. Realizado por Ernesto Tamariz, em 1906, o

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conjunto homenageia os cadetes do Colegio Militar que deram sua vida para defender o Castillo de Chapultepec da invasão norteamericana, no dia 13 de setembro de 1847, quando duzentos deles e mais de seiscentos soldados do Batallón de San Blas infrutiferamente resguardaram a praça do ataque de oito mil combatentes inimigos, que avançavam sobre a cidade de México. Após o enfrentamento, pelo menos seis cadetes pereceram e 37 foram feitos prisioneiros de guerra. Dado que as idades dos que morreram em combate oscilavam entre os treze e vinte anos, são lembrados como Niños Héroes. A versão mais difundida atribui a Escutia o feito de ter-se lançado desde um dos torreões, que coroam o alcáçar, enrolado na bandeira do México, quando era inútil toda defesa, embora outras imputem o feito a Montes de Oca, que, segundo essa versão, teria pulado de uma janela. A valorosa entrega teria lhes garantido homenagem em conjunto ou individual, sendo fonte de inspiração comum para denominar ruas, praças e escolas país afora, assim como uma moeda leva suas efígies em seu anverso e uma estrofe do hino nacional os lembra desta maneira: “Para ti las guirnaldas de oliva, un recuerdo para ellos de gloria; un laurel para ti de victoria, un sepulcro para ellos de honor”. Em estilo Art Nouveau, perceptível nas chamas que coroam as colunas em mármore branco que molduram o monumento, irrompe no centro uma Pátria de tranças, visivelmente mestiça, que é defendida por um dos Niños Héroes, a quem oferece seu peito, e segura em seus braços outro de seus filhos diletos que, já sem vida, se aferra à bandeira mexicana, contemplados no alto por águias de traços mexicanos que se mostram desafiantes e prontas para alçar vôo. Essa bela alegoria, quase que uma Pietá à 52

mexicana, nos evoca outras relações. Se bem que Marianne tenha vencido Maria na batalha por representar iconograficamente a nação francesa durante a República, de algum modo elas se confundem naqueles que não dominam esses códigos e somam, mais do que subtraem, seus atributos, condensados na figura da mãe que protege seus filhos do cruel invasor. Igualmente, as alusões indígenas e locais impressas na obra, assim como a data e época histórica na qual foi construída, convidam à formulação de algumas considerações, pois, em contraste com esse monumento, o hemiciclo erguido em tributo a Juárez, anteriormente descrito, foi criado pouco depois, em 1910, com figuras de simbologia e traços tipicamente européias, com a exceção do busto do homenageado. Dessa forma, a quebra de padrões estéticos do Velho Mundo não está presente apenas antes da Revolución, senão que demonstra tamanha força até mesmo para se cristalizar num monumento oficial de primeira magnitude, no qual, seguramente, se digladiaram diversos interesses. De todos os modos, também observamos que as alusões ao passado indígena e ao americano, durante o porfiriato estão presentes com força durante os primeiros anos de seu extenso governo, diluindo-se com o passar do tempo, até desaparecer por completo no hemiciclo em homenagem a Juárez, nos seus estertores. Talvez, as necessidades de legitimação, após o reinado de um nobre europeu, fizessem aflorar um espírito que não era de fato tão genuíno. Apesar das estátuas em homenagem a Cuaucthémoc e a outros dois tlatoanis astecas, e de alguns detalhes, especialmente nos exteriores dos edifícios, que lembram o mundo americano, os autores esqueceram de inscrever o povo, e, fundamentalmente, o

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povo índio, nos monumentos principais, que, quando neles ingressa, parece fazê-lo sorrateiramente, como exemplificamos com o caso de Pancho Villa. Retornando ao Bosque, um pouco mais acima, na base do morro, em 1785, foi iniciada a construção do Castillo sobre os alicerces do que fora a residência de Moctezuma II, palácio que deu albergue a numerosos vice-reis e distintos visitantes durante mais de duas centúrias. No entanto, a explosão da casa da pólvora em meados do século XVIII, causando sérios destroços ao edifício, levou às autoridades a tomar a decisão de erguer um novo prédio morro acima, justo num lugar que era ocupado por uma antiga ermita dedicada ao arcanjo São Miguel. Após diversos avatares, as obras foram suspensas em 1792 e, ao ano seguinte, o naturalista alemão Alexander von Humboldt condenava o despojo praticado pelas autoridades. Finalmente o Ayuntamiento da cidade de México o adquiriu em 1806. Durante o processo de Independência, entre 1810 e 1821, o prédio ficou abandonado e assim continuou até 1833, ano em que se tornou sede do Colegio Militar. A partir daquela época ganhou o apelido de Castillo, embora as torres tenham sido erguidas apenas em 1844. Mas, as boas novas trazidas pela década acabariam logo, já que durante os dias 12 e 13 de setembro de 1847, a construção foi bombardeada pelo exército estadunidense, causando-lhe sérios destroços e provocando a morte dos cadetes que lembramos alguns parágrafos acima. No Segundo Imperio, Maximiliano e Carlota decidiram estabelecer ali sua residência e, com esse propósito, convocaram vários arquitetos austríacos, franceses, belgas e mexicanos, entre os quais se destacam Julius

Hofmann, E. Suban, Carl Kaiser, Carlos Schaffer, Eleuterio Méndez, Ramón Rodríguez Arangoity e Wilhelm Knechtel, ficando este último encarregado do jardim suspenso. Após a queda do monarca, em 1867, o prédio ficou novamente abandonado até 1872. Em 1876 ganhou vida novamente, pois naquele ano decretou-se que ali se alojaria o Observatorio Astronómico, Meteorológico y Magnético, inaugurado dois anos mais tarde, e que efetivamente funcionou em 1883, momento no qual se ordenou seu translado ao ex arcebispado em Tacubaya, para que o edifício fosse então adaptado como residência presidencial, função que desempenharia até o momento em que o general Lázaro Cárdenas decidiu transferi-la para Los Pinos, convertendo o prédio no Museo de Historia Nacional, que, conjuntamente com o Museo Nacional de Antropología e outros menores que os circundam, se tornaria o coração patrimonial mexicano. Os ires e vires da história não deixariam apenas feridas no Castillo, seus sucessivos propósitos e ocupantes nos legariam um belo conjunto que, apesar de eclético, entre outras coisas, inspirou belos relatos, como o de Paola Kollonitz, dama de honra de Carlota. Se o carvalho, a nogueira, a verde malaquita, os vitrais parisienses, os gobelinos, os cristais, as porcelanas e a prataria, das mais diversas procedências, dominam nos interiores russos e franceses, ao estilo III Império; no exterior, um imponente agave azul reina majestoso no jardim, onde encontra a companhia de graciosos chapulines, que esguicham água ou nos olham dos vitrais das janelas ao transitar pela Escalera de los Leones. Também ali fora, algumas das figuras humanas que o habitam exalam americaneidade. Achamos, por exemplo, um conjunto de quatro másculos corpos, apenas cobertos por maxtlas, que

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flanqueam uma mulher custodiada por um enorme zopilote e vários rostos femininos, também adustos, esculpidos nos chafarizes, que estão emoldurados por cuidadas tranças e enormes brincos, nos quais se destaca um gracioso par de espigas de milho, com o qual a espiral até seu cume nos convida a pensar mais uma vez sobre as obras contidas no trajeto. Contemplando o México desde o alto e fazendo um racconto do longo percurso ainda notamos outros silêncios, temos enormes dificuldades em achar referências, dentro desse eixo, a figuras medulares, mas controversas, da história mexicana. Além das mencionadas anteriormente, Moctezuma II e Cortés também foram penalizados. Do primeiro quase não temos registros visuais e o corpo do Conquistador descansa desapercebido na sua nona sepultura no Templo del Hospital de Jesús. De todos os modos, o saldo parece alentador para iniciar uma tentativa de compreensão. Modernas interpretações têm tentado mostrar como no século passado a memória se separa da história (NORA, 1993, p. 7-9). No entanto, os apontamentos realizados nos permitem considerar prematura uma conclusão semelhante, por mais provisória que ela seja, devido ao escasso conhecimento do complexo processo de rememorar que ainda possuímos. A memória, enquanto produto social, é um conjunto de elementos necessários para a formação, manutenção e modificação das identidades individuais e coletivas. Como comportamento narrativo tem em seu cerne a função de comunicar a outras pessoas informações e impressões ocorridas no passado, as quais já não estão no presente em sua forma original (LE GOFF, 2003, p. 420).

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Uma análise hermenêutica de determinados espaços, e em especial dos monumentos, nos oferece vários indícios acerca da forma como ela se desenvolve. Vimos como a experiência está vinculada à categoria de passado, composta por múltiplos estratos de tempos anteriores para formar um todo, em contínua mutação, onde não existe uma cronologia facilmente mensurável. Isso lhe dá uma força fabulosa, já que a experiência de cada um também se constrói através da experiência alheia, que, transmitida por gerações e instituições, torna-se comum a todos, podendo conceber a própria História como conhecimento de experiências vividas por outros (SCHÜTZ, 1974 e KOSELLECK, 2006). As grandes obras também têm, sem dúvida alguma, um enorme poder sintético, agregam objetos que interpretamos como signos, conseguindo imprimir um sentido em grande escala. Mas, podem ainda ter uma força analítica tremenda, esmiuçadas em linguagens, escalas, perspectivas, linhas, ângulos, movimentos, modelos, formas, materiais, cores, luzes, sombras, texturas, símbolos, em fim, detalhes. Podem ser vistas assim como uma dialética entre processos de composição e decomposição, não apenas como um contêiner plástico e simbólico. Também os mitos nacionais são estruturas narrativas que não apenas contam e explicam, revelam e contêm outros sentidos além do que é dito. Expressam os conflitos, ambições e desejos da espécie humana, razão pela qual, além de tornar claro o inextricável, as narrativas têm que dialogar, competir, confrontar, lutar e, algumas vezes, reduzir a dissonância de uma diversidade de textos para que sejam compreensíveis e não desafinem em demasia (RICŒR, 1998) na intenção de conformar um novo mythos.

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Os monumentos nos proporcionam metáforas visíveis, atrás das quais podem se esconder outras, que para percebê-las e decifrá-las necessitaremos do domínio de um código (MONS, 1992). A metáfora espacial apela a um registro da percepção e concepção do mundo, evoca valores morais e ideológicos e porta significados que têm a capacidade de mobilizar e o poder de provocar uma reação, uma resposta. Interpela a um sujeito que não é neutro, que constrói essa imagem com a ajuda de sua experiência e de sua memória. Sua imagem não depende de uma concepção global a priori, é parcial, construída a partir de seqüências topográficas ou temporais diferentes e de uma amplitude desigual segundo os grupos, razão pela qual a relação entre os signos e aquilo que eles representam não é unívoca, e, assim, os lugares podem estar carregados de múltiplos valores, em, alguns momentos, contraditórios (DE PORTZAMPARC, 1986, p. 22 e MARIN, 1993). Em diferentes níveis, as imagens mobilizam a memória, o passado, e nos oferecem um futuro, declinando-os a sua maneira. O diálogo dos indivíduos com o seu passado, ancorado na memória (QUERRIAN, 1989, p. 3), é forjado pelos homens num tempo e num espaço, fortemente penetrado pelas transformações econômico-sociais, que deixam suas marcas e sinais que narram uma história não verbal, cheia de máscaras, valores, usos, hábitos, crenças e desejos que se misturam no cotidiano (FERRARA, 1993, p. 202). Por isso, além de ser um resultado do conflito entre o homem e a geografia, que no caso mexicano pode ter um cruel sentido que extrapola o metafórico, o espaço cultural também é fruto da luta que se trava entre os próprios seres humanos. Se é certo que nem todos os indivíduos ou grupos possuem a

mesma capacidade de negociação, o poder oficial de um determinado tempo não é produtor nem detentor ad æternum do passado. De acordo com essa óptica, a nação não é uma categoria histórica ossificada desde tempos imemoriais, esse conceito remete a uma entidade sujeita a um contínuo processo de transformação num momento dado da humanidade, no qual os grupos dominantes possuem a capacidade de incentivar e prescrever, por certo tempo, a rememoração, atendendo às demandas de seu funcionamento social, mas, para desespero das elites, os subalternos amiúde se insurgem contra o instituído. O povo não é sujeito inerte e manifesta uma enorme capacidade de resistência, podendo transfigurar ou impor seus próprios silêncios, reduzindo aos escombros um sólido edifício e apeando, se necessário, um rei de seu magnífico corcel. Referências bibliográficas Altares de la Patria. México: DDF, Dirección General de Acción Social, 1956. DE PORTZAMPARC, Christian. L´arquitectur est déssence mythique. In: DIVORNE, Françoise, org. Ville, forme symbolique, pouvoir, projets. Liège: Mardaga, 1986. Enciclopedia de México. México: Enciclopedia de México, 1977. FERRARA. Lucrecia D´Alessio. As máscaras da cidade. In: O olhar periférico. São Paulo: EDUSP/ FAPESP, 1993. FREGA, Ana. La Construcción Monumental de un Héroe. In: Humanas, Porto Alegre, vol. 18, nº 1/2, pp. 121-149, janeiro/dezembro de 1995 (publicado em 1997). GARCIA CANCLINI, Néstor. Culturas Híbridas – estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 1997. GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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PRESENÇAS, ANÚNCIOS E SILÊNCIOS: REGISTROS FOTOGRÁFICOS DE UM LUGAR CHAMADO GRUPPELLI

Presenças, anúncios e silêncios: registros fotográficos de um lugar chamado Gruppelli

Margareth Acosta Vieira Mestranda em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Professora da Universidade Federal de Pelotas. Autora do artigo “Retratos emoldurados, lembranças expostas: monumentos da paisagem doméstica”. Travessias, v. 1, 2007.

RESUMO Esta escrita é um exercício de reconstrução da trajetória de um lugar chamado Gruppelli, situado no 7º Distrito de Pelotas – RS. Através de um conjunto de três registros fotográficos das primeiras décadas do século XX, foi possível perceber as transformações ocorridas em dois prédios da família Gruppelli nesse período. A presença ou a ausência de elementos em cena conduziram à identificação dessas mudanças. Trata-se de uma leitura que, partindo do presente, e valendo-se das idéias de Philippe Dubois (2007), procurou identificar tanto um tempo histórico, conforme proposto por Philippe Ariès (1989), como as mudanças e permanências nesse lugar, que segundo Marc Augé (1994), se caracteriza por antropológico. Imagens essas que, ao serem esquadrinhadas, revelaram a própria expressão do lugar nesse contexto colonial. PALAVRAS-CHAVE: fotografia; memória; lugar.

ABSTRACT This writing is an exercise in reconstructing the history of a place called Gruppelli, located in the 7th District of Pelotas – RS. Through a series of photographic records of the first three decades of the twentieth century, it was possible to notice the changes in two buildings of Gruppelli’s family that time. The presence or absence of evidence on the scene led to identification of these changes. This is a reading that from the present, and drawing up the ideas of Philippe Dubois (2007), sought to identify both a historical time, as proposed by Philippe Ariès (1989) as the changes and stay in place, which according Marc Augé (1994), is characterized by anthropological. These images, when searched, revealed the very expression of the place on this colonial context. KEYWORDS: photography; memory; place.

Recebido em: 09/03/2009

Aprovado em: 10/04/2009

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MARGARETH ACOSTA VIEIRA

Presenças, anúncios e silêncios: registros fotográficos de um lugar chamado Gruppelli

Do presente ao passado A fotografia não fala, mas pode comunicar uma mensagem. Trata-se de uma mensagem expressiva, impregnada de subjetividade, impressa a luz e repleta de códigos visuais e simbólicos. Uma forma de representação que expõe, através de seus elementos visuais, dados ou informações capazes de proporcionar ao observador um conteúdo significativo. A compreensão dessa mensagem depende, evidentemente, do repertório do leitor: capacidade de percepção/ conhecimento do universo exposto. Trata-se, portanto, de um poder de comunicação relativizado pelo receptor mais que o próprio conteúdo impresso. Assim, quem olha uma fotografia antiga de uma pessoa íntima ou de um lugar conhecido é capaz de “ver” na imagem, índices que o tempo desfez ou alterou, além de perceber ausências que o tempo, além da imagem, não chegou a impor. Uma comparação, quase sempre inevitável, surgida entre presente (o ver) e passado (da imagem) que, resultando em uma espécie de contraponto, visa identificar as diferenças entre temporalidades e, ao mesmo tempo, traçar, de algum modo, o caminho inverso a partir dos dados presentes e/ou ausentes na imagem. Dados esses que acabam se impondo ao leitor/observador como possíveis

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rastros na reconstrução da trajetória da pessoa retratada ou do contexto envolvido. Essa forma de comunicação entre imagem fotográfica e leitor é decorrente de dois condicionantes: de um lado, a competência da fotografia de apresentar-se como referencial imagético de uma existência física, de outro, a capacidade do leitor de identificar e interpretar esse referencial exposto. Duas questões que para Philippe Dubois (2007, p.25) são significativas não apenas do fotográfico, mas de outros meios, assim enfatizadas Toda reflexão sobre um meio qualquer de expressão deve se colocar a questão fundamental da relação específica existente entre o referente externo e a mensagem produzida por esse meio. Dessa forma, a significação das mensagens-visuais na fotografia fica condicionada ao domínio dos códigos de leitura: ver, observar o que está impresso e ler, entender o que se apresenta. Um condicionamento que para Alan Sekulla, (apud, Dubois, 2007, p.42) faz com que “o dispositivo fotográfico” seja “de fato um dispositivo codificado culturalmente”. Investigar mudanças ou constatar a existência de permanências através de imagens é, certamente, uma busca de caráter histórico1, que permite abordar o passado a partir do presente e estabelecer os laços entre

Como a proposta da Nova História, concebida sob a influência das Ciências Sociais pelo grupo Annales, formado em 1929 na França.

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PRESENÇAS, ANÚNCIOS E SILÊNCIOS: REGISTROS FOTOGRÁFICOS DE UM LUGAR CHAMADO GRUPPELLI

o tempo passado (representado nas imagens) e o tempo real (oportunizado pela leitura). Tal como um diálogo entre temporalidades que segundo Ariès2 (1989, p.237), possibilita que o tempo histórico percebido venha a se constituir em uma explicação da diferença. Ou seja: “A história mostra-se então como a resposta a uma surpresa” e cabe ao leitor, em primeiro lugar, a possibilidade de se espantar, de tomar consciência “das anomalias tais como as percebe na sucessão dos fenômenos”. Para que esse tempo histórico venha a se constituir em resposta é necessário, antes de tudo, que algo, como uma fotografia, tenha provocado a busca. Em segundo lugar, a resposta será constituída de sentido apenas para aqueles que forem capazes de decifrála, ou seja: os leitores que têm acesso aos códigos formais e simbólicos existentes na mensagem. Em se tratando de fotografia, a identificação de um tempo histórico surge a partir da temporalidade exposta pela imagem fotográfica, que sempre é conduzida pelo próprio observador. O cenário fotográfico Um lugar que desde o início do século XX é referência de uma localidade, intermediando produtos e pessoas, ampliando serviços e atribuições, sendo palco de atividades e cenário para fotografias possui, certamente, uma história construída por presenças e anúncios, mas também intermediada por silêncios. Uma trajetória que a fotografia desse lugar chamado Gruppelli3 pode apontar. Arcádio Gruppelli, um imigrante italiano, ao adquirir, em 1905, terras na Colônia

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Municipal dava início, juntamente com a família, a uma série de empreendimentos agrícolas e comerciais que não apenas prosperaram como propiciaram a incorporação de atividades administrativas e de lazer que envolvia, desde os primeiros tempos, os moradores das proximidades. Um entrosamento com a comunidade que fez do armazém e restaurante para viajantes, inaugurados na década de 1920, um “ponto de encontro” de imigrantes italianos e alemães. Uma característica que ainda hoje se mantém. Trata-se, portanto, de um lugar que, de acordo com Marc Augé (1994, p.53), pode ser considerado como histórico ao contemplar tanto a conjugação de “identidade e relação” como a de “estabilidade mínima”. Uma estabilidade que, sendo mantida há décadas, não apenas admite a existência de registros imagéticos de diferentes períodos, como possibilita a formação de seqüências temporais onde, as singularidades se apresentam tanto como diferenciação para quem as observa como reafirmação identitária para os que habitam o lugar. Simultaneidade que Augé (1994, p.51) aponta como intrínseca ao lugar, e sendo definido como antropológico, por constituir “princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa”. Dos diversos empreendimentos desenvolvidos pela família Gruppelli ao longo do tempo resultaram algumas construções espalhadas pela propriedade. Desses prédios apenas dois foram conservados e mantêm atividades: 1) O prédio principal, composto pelo armazém, restaurante e residência da família; 2) O sobrado, originalmente

Philipe Ariès (1914-1984), historiador da Nouvelle Historie. O nome Gruppelli consta desde 1911, em mapas do município de Pelotas-RS, como um ponto de referência na zona rural.

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destinado para hospedaria e adega que, desde 1998, abriga um pequeno museu etnográfico. Dois prédios que por serem testemunhos do passado e partícipes de vivências da localidade surgem como cenário de múltiplos eventos documentados a partir da década de 1920, por fotógrafos amadores e profissionais. Este texto pode ser considerado como uma tentativa de compreensão dos elementos expostos pelas fotografias em que algum desses prédios, ou os dois, integram a composição. De outra forma, pode ser entendido como uma verificação da competência/contribuição dessas imagens na reconstrução da trajetória do lugar e do aprendizado do próprio leitor/pesquisador frente aos códigos de leitura inseridos no conjunto de realidades representadas imageticamente. Uma postura que, seguindo os passos de Dubois (2007, p.60), se propõe a compreender o fotográfico, como “uma verdadeira categoria de pensamento, absolutamente singular e que introduz a uma relação específica com os signos, o tempo, o espaço, o real, o sujeito, o ser e o fazer”. Uma

compreensão, portanto, que visa abranger do conjunto de dados a relação da fotografia tanto com sua situação referencial, o lugar, como a da recepção: “o gesto de olhar sobre o objeto: momento da retomada – da surpresa ou do equívoco” (DUBOIS, 2007, p.66). As imagens selecionadas se encontram ordenadas numa suposta cronologia baseada em: a) anotações existentes no verso das imagens; b) estimativas de inserção no tempo propostas pelo autor. Como sempre se observa uma fotografia antiga a partir do presente, tendo em mente a imagem atual do objeto enfocado, é a partir desse diálogo entre o que há e o que foi que a imagem é, usualmente, esquadrinhada. Trata-se, portanto, de uma eleição que tem por base o sentido pragmático da fotografia. Por isso apresento, primeiramente, o presente, para depois, retomarmos o passado. As figuras 1 e 2, a seguir, são exemplares da situação atual dos dois prédios da família Gruppelli mencionados anteriormente. São imagens que servem tanto como referência do estado de conservação como da forma de utilização dos prédios.

Figura 1. Prédio 1. Armazém e Restaurante Gruppelli, vista frontal, nov. 2007. Colônia Municipal, 7º Distrito, Pelotas – RS. Foto Margareth Vieira

Figura 2. Museu Gruppelli, vista frontal / lateral sul, abril 2008. Colônia Municipal, 7º Distrito, Pelotas – RS. Foto Margareth Vieira

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As imagens do Lugar A fotografia sendo um corte espaçotemporal mostra apenas o que se encontrava presente diante da câmara no instante do corte, não incluindo nada além. Mas, mesmo sendo como uma fatia congelada, de tempo e espaço, pode informar tanto sobre o que lá estava no instante captado como revelar o que não se fazia presente. Essa relação inclusão / exclusão ou dentro / fora do campo fotográfico decorre de um atributo “que faz com que toda fotografia se leia como portadora de uma “presença virtual”, como ligada consubstancialmente a algo que não está ali, sob nossos olhos, que foi afastado, mas que se assinala ali como excluído” (DUBOIS, 2007, p.179). Foto 3: O que mostra, o que revela Assim, ao observar a imagem de 1928 que apresenta uma visão integral da fachada oeste do prédio principal se constata o quê havia e como se apresentava a construção, o mobiliário, os objetos e os personagens. Todos esses signos impressos ao remeter ao que havia podem propiciar também, por presença ou ausência, algum tipo de revelação de “espaços suplementares, mais ou menos escondidos ou mostrados” (DUBOIS, 2007,

p.188) induzida pelo aprisionamento do ato fotográfico, ou seja, ao observarmos a imagem podemos identificar elementos secundários que ajudam a compor o cenário e foram pouco privilegiados pelo ângulo fotográfico. Este registro de 1928 permite constatar que o sobrado, distante 5 metros da fachada sul, ainda não havia sido construído. Isso é denunciado pela ausência de sombra projetada no chão da lateral sul, onde está a charrete. Esta constatação decorre por analogia com base na inclinação da sombra projetada no prédio principal pelo seu próprio beiral. Neste caso a incidência da luz solar no chão excluiu a possibilidade de um anteparo, disposto entre a fonte (sol) e o prédio principal, capaz de projetar sombra neste local. Essa luz, ao evidenciar na composição um formato ocupando uma porção no espaço representado, apontou, por eliminação, a possibilidade de existência de um prédio de dois andares contíguo ao espaço referencial. Esta interpretação da imagem, sugerida pela luz do passado é, sem dúvida, um leitura do presente sobre o passado, do tempo histórico que responde: Não, não havia em 1928 o sobrado, mas existiam outras construções nas proximidades: uma, ao fundo (lateral direita), outra, a leste (lateral esquerda), ambas demolidas.

Figura 3. Casa Comercial Gruppelli, (9cm x 14cm), 1928. Colônia Municipal, 7º Distrito. Acervo Museu Gruppelli.

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Foto 4: Uma apresentação, algumas sugestões: um evento político? A fotografia, ao figurar como índice de uma realidade atua também como testemunha da existência dessa realidade situada em determinado instante e lugar. Um tipo de prova que, conforme indica Dubois (2007, p.52), “atesta a existência (mas não o sentido) de uma realidade”. Trata-se de algo (o sentido) que por exigir interpretação e, conseqüentemente, dependência de recepção, tende a se alterar com a própria passagem do tempo. Assim o que poderia ser a evidência de uma realidade captada, para os contemporâneos de uma fotografia das primeiras décadas do século XX, pode se configurar, décadas depois, em meras suposições, que não deixam de ser: conseqüências diretas de constantes e progressivas mutações introdutórias de novos conteúdos que afetam a percepção da sociedade e de seus integrantes. A foto 4, diferentemente da anterior onde a presença humana é reduzida, apresenta uma expressiva reunião de pessoas, sendo a maioria do sexo masculino. As mulheres que

aparecem na fotografia, além de minoria estão concentradas em área distante do centro (lateral direita) ocupando uma posição, nitidamente, secundária na composição da cena. Esta imagem também se destaca não apenas pelas dimensões (27,5cm x 33cm) avantajadas e a forma de apresentação, em suporte rígido, debruado, como também pela assinatura do fotógrafo, em marca d’água, no canto inferior direito: L.Lanzetta. Considerando essas questões de ordem técnica / econômica, somadas ao conteúdo exposto, pode-se julgar que esta imagem foi produzida como documento visual de um relevante evento. Um julgamento que considerou também o que Mauad (1996, p.7-8) enfatiza sobre o controle dos meios técnicos de produção cultural que envolve tanto aquele que detém o meio quanto o grupo ao qual ele serve, caso seja um fotógrafo profissional. Nesse sentido, não seria exagero afirmar que o controle dos meios técnicos de produção cultural, até por volta da década de 50, foi privilégio da classe dominante ou frações desta.

Figura 4. Um evento, (27,5cm x 33cm),192_. Colônia Municipal, 7º Distrito. Foto L.Lanzetta. Acervo Rubens Bachini

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Esta fotografia mesmo sendo produzida para documentar um evento em que muitas pessoas se interessaram em participar (naquele dia, naquele local, daquela atividade) e se posicionaram, diante daquele fotógrafo profissional, conforme o seu status quo naquele contexto colonial, pouco pode informar sobre essa realidade registrada. Seria este evento um encontro de algum partido político? Uma comemoração de conquista em urna? Ou apenas alguma prática social marcadamente masculina em que as mulheres apenas acompanhavam, de longe, seus parceiros? Sobram perguntas que a fotografia, silenciosa, não pode responder, mas valendo-se de sua condição índice de uma realidade, pode revelar: a) que uma pequena multidão elegeu (ou permitiu), nas primeiras décadas do século XX, que a fachada do prédio da família Gruppelli constasse como cenário ou palco em documento visual de uma comemoração efetivada pela comunidade colonial. b) que a importância do evento requeria (ou justificava) a contratação de serviços (qualidade e status) de um fotógrafo profissional atuante na cidade de Pelotas, distante 50 km, aproximadamente. c) que esta comunidade colonial valorizava a fotografia como forma de registro e divulgação de suas atividades. d) que as condições econômicas e culturais dessa comunidade permitiam a execução de um registro fotográfico qualitativo que, pelo custo elevado, era privilégio das classes abastadas. Além dessas especulações e/ou constatações sobre o sentido de realidade proposto por essa fotografia ela, certamente, pode nos informar, sem maiores dificuldades, sobre as condições materiais da paisagem registrada. Um tipo de informação que pode

ser obtida, com maior nitidez, a partir de uma série ou “coleções referentes a locais específicos, formas arquitetônicas ou tipos físicos”, quando então se torna “possível determinar os conteúdos e lê-los com clareza.” (Leite, 1993, p.40) Assim, observando esta fotografia antiga, com o interesse orientado pelo cenário, se pode perceber que na mesma direção do prédio principal havia um prédio térreo, distante alguns metros, com uma cobertura plana, tipo zinco. Um prédio que devido a pouca altura e acabamento rústico deveria ser utilizado como galpão coberto ou depósito. Esta imagem opera, portanto, nos dias atuais, como um demonstrativo do que havia no local onde fora edificado o sobrado: uma construção simples que, provavelmente, em função de sua posição privilegiada (próximo a estrada) e do surgimento de empreendimentos comerciais rentáveis, fora excluído para dar espaço às novas atividades: hospedaria e adega. Neste caso é a presença de um elemento enquadrado pelo ângulo fotográfico, o galpão, que atesta sobre o uso deste solo rural como um suporte atrelado ao desenvolvimento sócio-econômico da família.

Foto 5: Homens, mulheres e crianças Cada fotografia antiga que chega até nós é resultante de algum tipo de seleção. O motivo pelo qual foram conservadas algumas fotografias e, não outras, revela tanto a importância dada por “eles na vida social cotidiana” como também pode “fornecer pistas importantes para o pesquisador entender a própria lógica interna e a trajetória de tais grupos” (SIMON, 1998, p.33). Pistas capazes de indicar sobre o que havia no passado (natureza, terreno, construções, objetos, fatos, etc.) e fora preservado como

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Figura 5. Casa Comercial Gruppelli, (14cm x 20cm), 193_. Colônia Municipal, 7º Distrito. Acervo Museu Gruppelli.

digno de integrar o patrimônio, material e imaterial, a ser transmitido. Uma seleção que, sendo cultural, conjuga “idéias, atitudes, linguagens, práticas, instituições e estruturas de poder“ e inclui, certamente, “toda uma gama de práticas culturais: formas, textos, cânones, arquitetura, mercadorias produzidas em massa, e assim por diante” (CARY e GROSSBERG, in: SILVA (org.), 1995, p. 14). Assim ao olharmos a quinta fotografia, provavelmente, da década de 1930, verificamos que o lugar é apresentado como um espaço de convívio social, animado por homens, mulheres e crianças, onde a presença do transporte motorizado também é destacada. Esta fotografia atesta que nesta época o Gruppelli era um lugar que já atuava como “ponto de encontro” de freqüentadores do armazém e restaurante, além de contar também com novos clientes: os veranistas, como eram chamados os que nos meses quentes, vinham da cidade e se instalavam na hospedaria localizada no segundo andar do sobrado, recém construído e batizado por Villa Silvana. 4

Esta imagem também informa que na construção deste novo prédio fora mantido o alinhamento do prédio principal, uma preocupação tipicamente urbana, em que as construções possuem, comumente, fachadas pautadas pela via pública. Uma organização que possivelmente tenha surgido, tanto em função da própria estrada existente como de expectativas articuladas pelo poder público municipal, que almejava com o desenvolvimento da Colônia Municipal transformar essa estrada em Avenida Quilombo. Tal qual constam nas referências das áreas limítrofes dos terrenos adquiridos em 1905 por Arcádio Gruppelli. Esta fotografia pode ter sido concebida como uma propaganda das novas instalações e das condições existentes no lugar, uma forma de atrair clientes, ou como uma lembrança afetiva do cotidiano entre parentes e amigos, ou ainda, por outros motivos. De qualquer forma, esta imagem que foi produzida por um fotógrafo profissional desconhecido, cujas marcas imprecisas no canto inferior direito não permitem identificá-lo4, serve como uma pista do que foi preservado desse passado e

Considerando a época e o formato elíptico da marca d’água, possivelmente, esta imagem tenha sido produzida pelo fotógrafo Bruno Pruski. Conforme consta em outras fotografias do acervo da família.

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transmitido a geração atual: o patrimônio material edificado e o modo de atuar sobre este patrimônio. Ou seja, o Gruppelli desde a década de 1930 tem mantido não apenas as suas formas arquitetônicas, mas o próprio modo de vida que envolve, no incessante vaivem do cotidiano, moradores, amigos, clientes e viajantes. Assim, olhando para o passado representado nesta imagem, a partir do hoje, constata-se que nesse lugar, objetos e modos de comportamento têm sido preservados e transmitidos há várias gerações. Uma decisão econômica, mas, sobretudo, cultural que faz com que este lugar chamado Gruppelli, permaneça, desde 1905, um lugar vivo: ponto de encontro de moradores e amigos. Essa fotografia demonstra, portanto, que, em início dos anos de 1930, o conjunto dos prédios interligados pelo vão aberto não apenas havia sido construído como já estava em franca atividade, tal qual se encontra nos dias atuais. O que a torna então, uma imagem reveladora tanto da longeva existência do conjunto como do seu modo peculiar de atuação social, econômica e cultural neste lugar. As três imagens do passado As três imagens anteriores, fotos 3, 4 e 5, podem ainda revelar além de algumas evidências outras constatações, conforme se pode perceber no Quadro 1, a seguir, em que os elementos observados, pessoas e objetos, foram agrupados de acordo com a sua posição e função em relação aos dois prédios expostos pelas fotos, permitindo assim, uma visão comparativa do conjunto analisado. A decomposição destas três fotografias aponta que:

– O prédio principal não apresenta, em nenhum dos três momentos, alterações significativas. – O prédio 2 de edificação térrea, com aspecto de prédio auxiliar, fora substituído pelo sobrado, onde pessoas freqüentavam o segundo piso (pessoas na janela). – Os prédios auxiliares, ao fundo e ao norte, não constam nas fotos 4 e 5. – O número de pessoas varia de muito pouco a uma pequena multidão. – Os anúncios, mesmo alterados em formato e localização, são constantes. – Os bancos, variando em quantidade, permanecem junto à fachada principal. – Os dois mastros constam em todas as fotografias – As bandeiras, ainda que não identificadas, freqüentam, solenemente, a fachada. – As árvores, variando de tipo, altura e posição, integram a paisagem do lugar. – A cerca de bambu aparece em dois momentos distintos. – Os meios de locomoção expostos indicam tanto o uso como a valoração. – Os elementos móveis apontam três direções: a) o tipo de produto comercializado; b) os objetos usados na ornamentação de um evento; c) a existência de fiação aérea como índice de transmissão de energia elétrica. Traçando um paralelo entre o que foi e o que há, pode-se afirmar que o Gruppelli tem mantido, ao longo do tempo, a sua característica essencial: um lugar em atividade constante conjugando, no mesmo espaço, comércio e residência, trabalho e lazer, parentes, amigos, vizinhos e gente de outros lugares. Um gama de condições que tem favorecido a sua permanência como referência na zona colonial.

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Foto 3

Prédio 1 (Principal)

Foto 4

Mancha na parede, (abaixo do telhado)

Prédio 2 Outros prédios Pessoas

1 – galpão (fundos) 1 – prédio auxiliar (norte) 1 mulher e 1 criança (centro), 1 criança no canto direito (pernas)

Foto 5

Pintura s/ manchas

Idem

Construção térrea Cobertura tipo zinco Superfície externa escura

Construção c/ 2 pisos Cobertura c/ telha de barro Pintura clara

Muitos homens, Algumas mulheres

Homens, crianças

Mulheres

e

Anúncios

1 - parede 2 - porta (armazém)

1 – parede

1 – parede 1 – porta (restaurante) 1 – parede (sobrado)

Bancos

3

1

1

Mastros

2

2

2

Bandeiras

2

2

Árvores

1 – frente (podada) 1 – atrás do prédio 1 – anterior ao prédio (sul)

1 – frente (em floração) 3 a 4 – atrás do prédio 1 1 – anterior ao prédio 1 (norte)

1 – frente (recém plantada) 1 – anterior ao prédio (norte) 2 – anterior a estrada

Cerca

De bambu - Lateral norte

Transporte

1 charrete

1 cavalo

1 cavalo 1 camionete

1 arado manual

1 carrinho de mão 2 fios com bandeirinhas Palmas decorativas (portas e janelas)

Fios, elétricos?

Mobiliário (produtos e decoração)

De bambu - Lateral norte

Quadro 1. As três imagens do passado Fonte: organizada pela autora com base nos componentes expostos pelo cenário fotográfico.

Considerações finais Esse texto buscou, através da observação sistemática dos elementos visuais expostos pela seqüência de três fotografias de um lugar, compreender uma gama de informações com o objetivo de traçar uma trajetória desse lugar formado, no presente, por um conjunto de dois prédios edificados em diferentes datas. Para tal valeu-se tanto da competência dessas

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fotografias como referenciais imagéticos de uma existência física, como de uma possível interpretação desse referencial exposto. Uma condição que, partindo do presente, procurou estabelecer alguns laços entre o que foi e o que há, identificando assim, um tempo histórico situado geograficamente, ou melhor, geométrico, tal qual Augé (1994, p.55) caracteriza um lugar antropológico, como o revelado pelas fotografias.

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PRESENÇAS, ANÚNCIOS E SILÊNCIOS: REGISTROS FOTOGRÁFICOS DE UM LUGAR CHAMADO GRUPPELLI com base em três formas espaciais simples, que podem ser aplicadas a dispositivos institucionais diferentes e que constituem, de certo modo, as formas elementares do espaço social. Em termos geométricos, tratase da linha, da intersecção das linhas e do ponto de intersecção.

Trata-se de três formas sócio-espaciais, definidas pelo próprio Augé (1994, p.55), que as três fotografias analisadas, de certa forma, apresentam: a) “itinerários, eixos ou caminhos que conduzem de um lugar a outro e foram traçados pelos homens”: nesse caso, a estrada, situada frente aos prédios e que, em função do ângulo de captura das imagens, pode ser identificada como um espaço físico, fora do campo fotográfico, onde os três fotógrafos se posicionaram para captar as suas imagens; b) “cruzamentos e praças onde os homens se cruzam, se encontram e se reúnem”: trata-se então, do espaço não edificado, situado entre o conjunto de prédios e a estrada que, como mostram as três imagens, sempre esteve reservado para atividades diversas; c) “centros mais ou menos monumentais, sejam eles religiosos ou políticos”: uma coordenada que, nesta situação, serve apenas como uma ratificação da forma de apropriação do espaço físico, anteriormente, reservado para esse fim, em distintas épocas, tal qual aparecem nas imagens 4 e 5. Desse modo se pode afirmar que as três imagens observadas no presente forneceram, cada uma a seu modo, alguma informação seja pela apresentação de um elemento em cena, ou pela ausência explicitada por algum componente imagético, ou ainda, pela presença quase imperceptível, de pequenos índices. Presenças, anúncios e silêncios que ao serem articulados pela leitura acabaram

revelando mais que as atividades praticadas ao longo desse tempo, a própria expressão do lugar junto a essa comunidade colonial nominada também Gruppelli. Referências bibliográficas DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Tradução Marina Appen-Zeller. 10ª edição, São Paulo: Papirus, 2007. ARIÈS, Philippe. O tempo da História. Tradução Roberto Leal Ferreira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. AUGÉ, Marc. Não-lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução Maria Lúcia Pereira. 3ª edição, Campinas, SP: Papirus, 1994. – (Coleção Travessia do Século). LEITE, Miriam Moreira. Retratos de Família. Leitura da fotografia histórica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993, (Texto e Arte, v.9) MAUAD, Ana Maria. Através da Imagem: Fotografia e História Interfaces. In: Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n °. 2, 1996, p.73-98. Disponível em < http://www.zoon.org.br/ biblioteca/textos.htm > acesso em 07-01-2007. SILVA, Tomaz Tadeu da (org). Alienígenas na sala de aula. Petrópolis (RJ): Vozes, 1999. SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von. Imagem e memória. In: SAMAIN, Etienne (org.). O Fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998.

Fotografias ANÔNIMO. Casa Comercial Gruppelli. Pelotas, 1928. 1 fot. (9cm x 14cm), P&B. ANÔNIMO. Casa Comercial Gruppelli. Pelotas, 193_. 1 fot. (14cm x 20cm), P&B. LANZETTA, L. Um evento, 192_. 1 fot. (27,5cm x 33cm), P&B. VIEIRA, Margareth. Armazém e Restaurante Gruppelli. Pelotas, 2007. 1 fot., color. ______. Museu Gruppelli. Pelotas, 2008. 1 fot., color.

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A IMAGEM FEMININA NA REVISTA CLAUDIA: AS REPRESENTAÇÕES DO COTIDIANO FAMILIAR (1961-1985)

A imagem feminina na revista Claudia: as representações do cotidiano familiar (1961-1985)

Maria Paula Costa Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis). Autora de “Amores Ilícitos. Mulheres nos Tribunais, em processos de crimes por sedução”. Jornal da Unesp, FCL/UNESP-Assis, fev. 1999.

RESUMO Pretendemos neste artigo discutir algumas imagens expostas nos anúncios da revista Claudia no período de 1961 a 1985 e explorar as representações que associam a mulher à vida familiar. Nestas três décadas podemos perceber imagens que se fortaleceram e outras que foram incorporadas, evidenciando as continuidades e transformações que ocorreram no universo feminino de Claudia. PALAVRAS-CHAVE: Revista Claudia; representação; família.

ABSTRACT We discuss in this article some pictures out in the Magazine Claudia in the period 1961 to 1985 and explore the representations involving the woman in family life. In three decades we can see images that are reinforced and others that have been incorporated, highlighting the continuities and transformations that occurred in the feminine universe of the Magazine Claudia. KEYWORDS: Claudia Magazine; representation; family.

Recebido em: 25/03/2009

Aprovado em: 25/04/2009

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MARIA PAULA COSTA

A imagem feminina na revista Claudia: as representações do cotidiano familiar (1961-1985)

Pretendemos neste artigo discutir algumas imagens expostas nos anúncios da Revista Claudia no período de 1961 a 1985 e explorar as representações que associam a mulher à vida familiar. Nestas três décadas podemos perceber imagens que se fortaleceram e outras que foram incorporadas, evidenciando as continuidades e transformações que ocorreram no universo feminino de Claudia. A Revista Claudia privilegiou a vida cotidiana feminina principalmente no âmbito familiar. No início dos anos 60, quando foi lançada, o perfil idealizado pelos editores seria a mulher casada, dona de casa, mãe e que teria no universo do lar o palco principal de suas experiências. O cotidiano familiar transformou-se em discurso nas páginas de Claudia, e várias representações em torno do feminino e do masculino foram construídas, pensadas, inventadas e reinventadas no decorrer do período pesquisado. As imagens veiculadas num periódico nacional e voltadas para o público feminino vendem representações de masculinos e femininos que foram construídas para o consumo de suas leitoras. Assim modelos de família, de comportamento e valores estão presentes nas páginas da Revista Claudia, seja por meio da publicidade, como nos artigos que a constitui. Os anúncios publicitários foram uma constante na história da Revista Claudia, chegando a compor quase a metade das páginas da revista. Além de fornecer o lucro

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necessário para a manutenção e existência dessa nas bancas, estes anúncios carregavam significados culturais que pretendemos trabalhar neste artigo. Os anúncios da Revista Claudia são na grande maioria compostos de imagem e texto, sendo assim tentaremos buscar na relação destes elementos um maior número de informações para a compreensão das representações construídas do universo feminino no âmbito da família, pois como afirmou Sabat: ... imagem e texto constituem-se em uma unidade narrativa que tem como objetivo proporcionar ao/a consumidor/a uma leitura correta a respeito daquele produto que está sendo anunciado. Na publicidade, normalmente, esta é a função do texto: informar sobre as qualidades e as vantagens de um produto ou serviço. (SABAT, 2003, p.151)

Nossa ênfase será dada aos anúncios que expõe as imagens do feminino no cotidiano familiar, uma vez que, a família foi um assunto sempre presente nas páginas de Claudia, pois a mulher-alvo da revista era a esposa e mãe. O modelo foi se modificando ao longo destes vinte e cinco anos em que pesquisamos, mas as alterações ainda mantiveram essas representações (esposa e mãe) e outras foram estabelecidas. Quando Claudia é lançada, em outubro de 1961, o casamento ainda representava para a sociedade brasileira o único caminho através do qual a mulher poderia ter um lar e

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A IMAGEM FEMININA NA REVISTA CLAUDIA: AS REPRESENTAÇÕES DO COTIDIANO FAMILIAR (1961-1985)

ser mãe. Embora os discursos sobre a mulher moderna estivessem fortemente vinculados ao periódico, cabe relativizar quais os significados de ser essa mulher moderna, pois a modernidade estava mais associada à idéia de consumo, ou seja, a mulher moderna deveria comprar produtos que facilitassem sua vida nos afazeres domésticos. Assim, no anúncio de fogão da Brastemp (Figura 1), evidencia como o ideal de modernidade é trabalhado. Vejamos:

Figura 1. Anúncio para divulgação de fogão Brastemp. Fonte: Revista Claudia, nov. 1961, nº2, quarta capa.

A mulher apresenta-se sentada numa cadeira, com cabelo bem arrumado, vestida aos moldes da época, mostrando claramente para o leitor sua aliança de casamento e no chão, em baixo da cadeira livros de culinária que dão a impressão de que foram abandonados. O texto ao lado dessa imagem nos indica que os novos aparelhos domésticos trariam mais tempo para a dona de casa

cuidar de outros deveres familiares e sociais, além do que a escolha por um fogão Brastemp lhe traria os atributos de eficiência e satisfação. É interessante pensar no que Baudrillard chamou de mística da solicitude. Os objetos são comprados não pela sua utilidade, mas destinam-se a servir. Para esse autor, nada se consome de modo puro e simples, isto é, nada se compra, possui e utiliza para determinado fim; revela-se como o calor da gratificação e do conforto pessoal que lhe confere todo o seu sentido, não se tratando simplesmente de satisfação, para Baudrillard os consumidores modernos bronzeiam-se ao sol da solicitude (BAUDRILLARD, 1970, p.169). É dessa forma que Claudia trabalha, pois os objetos, por mais úteis que possam ser, são apresentados como serviço pessoal e como gratificação. O anúncio de fogão Brastemp (Figura 1) fornece um dos papéis femininos na família nos anos 60, o de esposa e dona de casa que possuía seus deveres de administrar o lar e de manter um status social, sendo eficiente e estando sempre elegante, como se estivesse sempre pronta para sair. A casa tinha um sentido muito especial para a constituição da família: cabia à esposa organizar um lar feliz, oferecer uma vida tranqüila e um apoio constante ao seu marido, já ao homem cabia fornecer os recursos financeiros para a manutenção deste lar, e a sua esposa deveria saber administrar esses recursos, organizando e mantendo as tarefas em dia. Para completar a vida do casal, este deveria ter filhos, pois o casamento dava à mulher a condição da maternidade. No anúncio da maionese Hellmann’s (Figura 2) temos a imagem da família proposta pela Revista Claudia na década de 60. Vejamos:

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MARIA PAULA COSTA

Figura 2. Anúncio para divulgação da maionese Hellmann’s. Fonte: Revista Claudia, jul. 1966, nº58, p.134.

A imagem remete para a hora da refeição na qual a família se encontra reunida e feliz. A chegada do prato principal trazido pela mãe e feito com maionese Hellmann’s garante a alegria de todos, já que suas expressões indicam entusiasmo. A mãe se encontra bem vestida, de cabelo arrumado e feliz também, já que cumpriu a sua função. A figura masculina, do pai, ocupa a cabeceira da mesa, vestido de camisa e gravata, remetendo a idéia de trabalho. Ele acompanha a cena como observador assistindo a mulher colocar o prato a mesa. Em frente à figura paterna, temos o filho que possivelmente será educado para se tornar mais tarde um pai de família e ocupar a posição de mantenedor do lar. Já a filha do casal ocupa a lateral da mesa e observa mais de perto os detalhes do prato, assim como se mostra mais próxima da mãe. Ela também está posicionada em frente ao lugar que a mãe irá ocupar, ou seja, a simples distribuição dos sujeitos na mesa encontra-se carregada de significados que são construídos socialmente e estabelecem lugares sociais do feminino e do masculino na sociedade daquele momento, como afirma Gastaldo: O modo pelo qual os atores posam em

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relação uns aos outros, a posição relativa que ocupam na imagem, assim como o cenário onde a ação ocorre podem dizer muito sobre a “vida cotidiana” representada nos anúncios. A representação de um dado cenário como “espaço doméstico”, “local de trabalho”, “espaço público” ou “privado” fornece pista sobre o que seria uma percepção “ideal” de cada um desses ambientes no ponto de vista dos produtores dos anúncios. Uma vez que os anúncios publicitários são parte inextricável do sistema da mídia, essas representações de espaços sociais – e de relações de poder também – tendem a parecer “evidentes”, “naturais” e por esta via desempenham um papel na cultura contemporânea, um papel eminentemente conservador (GASTALDO, 2005, p.68).

O texto que acompanha a imagem do anúncio ressalta a idéia de sucesso que está implicitamente associada à utilização da maionese. Ao consumir tal produto a dona de casa garantiria o sucesso e a satisfação dos filhos e do marido, mantendo a harmonia familiar. Desta forma, os anúncios publicitários da Revista Claudia utilizam o masculino e o feminino evidenciando um ideal de família associado a um modelo de comportamento e de valores. Os produtos expostos no periódico incitam ao consumo e criam hábitos e identidades em suas leitoras.

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A IMAGEM FEMININA NA REVISTA CLAUDIA: AS REPRESENTAÇÕES DO COTIDIANO FAMILIAR (1961-1985)

Como afirma Sabat: Se ainda que inicialmente, lançarmos um olhar comparativo aos anúncios publicitários que nos são apresentados diariamente através da mídia, observamos que eles estão marcados por representações acerca das relações de gênero, apresentando sexualidades, modos de comportamento, tipo de corpos, diferentes estilos de vida. Estes são alguns dos elementos mais comumente encontrados nos anúncios publicitários. Neles o que vemos são representações de modelos legitimados socialmente que, ao mesmo tempo, podem conter novos modelos ainda em busca de legitimação (SABAT, 2003, p.154).

Em 70 a Revista Claudia continua abordando as questões familiares, do casal (relacionamento, sexo, papéis que deveriam ser desempenhados por ambos, como a maternidade e a paternidade), assuntos relacionados aos filhos (educação e cuidados) e assuntos domésticos (decoração da casa e economia). Desta forma, a publicidade seguiu caminho idêntico para a exposição de seus produtos. A vida conjugal esteve presente nas páginas de Claudia desde o início da revista, no entanto a ênfase em determinados assuntos aparece claramente em diferentes períodos. Podemos dizer que no início de 70 alguns artigos apontavam para uma crise na instituição do casamento e reforçava muitas vezes a idéia de que a vida sexual do casal era responsabilidade da mulher, assim

procurou mostrar para suas leitoras questões que só elas teriam condições de solucionar. Incitava as mulheres a ousarem mais, serem provocantes e atraírem seus maridos para que estes se sentissem motivados para a relação sexual; todos os problemas que o homem possuísse a mulher poderia solucionar, e assim as relações sexuais não ficariam monótonas. Vemos que não bastava mais para a mulher desempenhar sua função de esposa, dona de casa e mãe; deveria ser a amante ideal, estimulando os desejos de seu companheiro. Segundo Moraes & Sarti: ... a leitora de Claudia, que sempre ouviu dizer que sexo é sinônimo de casamento e reprodução biológica, se vê perplexa diante da crescente erotização do casamento. Ser dona de casa eficiente, mãe dedicada e esposa submissa não são mais garantias de sucesso frente ao marido e tampouco constituem os melhores meios para conserválo, preocupação primeira de toda mulher casada, segundo os cânones vigentes. As antigas fórmulas caducaram e agora a mulher precisa ter também um desempenho sexual exemplar. O sexo, portanto, foi introduzido como parte legítima do universo familiar (MORAES & SARTI, 1980, p.39).

A seguir temos um anúncio sobre tintura de cabelo (Figura 3), que indica como a esposa poderia agradar seu marido de acordo com o desejo deste. Se necessário, ela deveria mudar o seu visual em prol da fidelidade de seu companheiro. Vejamos:

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Figura 3. Anúncio para divulgação de Tintura para Cabelos Instant Color Fonte: Revista Claudia, dez. 1970, nº111, p.224 e 225.

Podemos perceber quatro imagens de mulheres com destaque para a cor dos cabelos. Uma ocupa a página inteira e se caracteriza por ser loira, com cabelos soltos e esvoaçados, indicando um ar de jovialidade, traço este que é reforçado com a utilização de pouca maquiagem simbolizando uma beleza natural. Do outro lado da página temos três imagens menores de mulheres; cada uma com tonalidades diferentes nos cabelos e na parte inferior da página, em tamanho menor a embalagem da tintura em cima de uma luva que acompanha o kit para a coloração, passando a idéia de que está nas mãos da “leitora” efetuar a mudança nos cabelos e agradar o gosto do marido. O título do anúncio em letras maiúsculas é: “A outra mulher na vida de seu marido”. O texto argumenta que é obrigação da esposa colocar “outra” na vida do marido, passando a idéia de que ficar a vida toda ao lado da

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mesma mulher pode desgastar o relacionamento. Isto fica implícito nos exemplos apontados pelo texto, “ficar escutando o dia todo o disco que você mais gosta” ou ver “meia dúzias de vêzes seguidas o filme que mais a emocionou” ou “Recomece a ler o maravilhoso livro que você terminou ontem”. No entanto mostra para a esposa que o papel da “outra” deve ser desempenhado por ela mesma, basta usar a tintura Instant Color – “Tudo que você precisa para ser outra mulher vem dentro da embalagem de Instant Color”. Tal anúncio explicita bem a representação ideal da esposa nesta década de 70, a mulher ainda era a maior responsável pela manutenção e êxito do casamento. Deveria cuidar da casa, do marido, estando bonita e pronta para realizar todos os desejos que seu companheiro pudesse ter, para que este não sentisse a necessidade de realizar fora de casa os seus desejos íntimos.

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A IMAGEM FEMININA NA REVISTA CLAUDIA: AS REPRESENTAÇÕES DO COTIDIANO FAMILIAR (1961-1985)

A década de 70 viveu muito fortemente a questão da erotização, sendo necessário para Claudia mostrar a sua leitora que esta deveria ousar no relacionamento para garantir a manutenção do seu casamento e não permitir que a presença de Outra mulher ameaçasse a harmonia do casal. Assim a mulher moderna, para Claudia, seria aquela que em nome da manutenção de seu casamento estaria disposta a exercer sua sexualidade ousando mais para tentar garantir que seu marido não buscasse fora de casa sua satisfação sexual. Outro aspecto presente na Revista Claudia na década de 70 foi a maternidade, marcando a discussão da escolha de querer ou não ser mãe, ao mesmo tempo em que se debatia a questão da liberação sexual e do trabalho feminino que a levaria à independência financeira e daria a ela outras opções além de ser mãe. No entanto, ao lado das reportagens que lhe concediam o direito de escolha, era vinculada a forte representação da mulher como mãe, ficando difícil para a leitora aceitar esse direito. Com tantos artigos sobre maternidade, não era de se estranhar o mesmo empenho ao se tratar dos filhos das leitoras. Eles continuavam fazendo parte das seções da Claudia, principalmente no que tange à educação e aos cuidados que a mãe deveria ter para que os filhos crescessem saudáveis. Neste aspecto a publicidade encontrou em Claudia mais uma aliada para expor as novidades da indústria, seja no que se refere à alimentação, seja nos brinquedos, reforçando a idéia de que cabia principalmente à mãe o papel de educadora dos seus filhos. Era ela que cuidava da alimentação, das roupas, dos horários, dos deveres da escola e de todas as necessidades que as crianças poderiam ter.

As representações de mãe e esposa são reproduzidas principalmente pela indústria de brinquedos, que criava bonecas e objetos para as meninas reforçando o papel que esta exerceria quando crescesse num processo de pedagogia das diferenças, pois às meninas restava aprender desde cedo a cuidar da sua filhinha, a fazer papinha, a costurar, entre outros afazeres, enquanto os meninos ficavam livres dessas funções, reconhecidas desde crianças como “coisas de meninas”. Assim temos um exemplo de anúncio da década de 70, o da boneca Mãezinha da Estrela (Figura 4). Vejamos:

Figura 4. Anúncio para divulgação da boneca Mãezinha da Estrela Fonte: Revista Claudia, jul. 1971, nº118, p.156.

O título do anúncio é: “Ter Mãezinha é brincar num paraíso” educando desde cedo a menina a naturalizar a maternidade como algo sublime, tranqüilo que faz parte certa do seu destino.

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Neste anúncio da boneca Mãezinha podemos perceber como deveria ser o ideal de mãe que seria construído desde a infância nas meninas. A boneca que envolve a filha nos braços e desempenha o papel de mãe possui cabelos presos com um laço de fita; é branca, de olhos azuis, a boca levemente com brilho e seus traços indicam delicadeza e beleza. Sua roupa revela o estilo comportada e seu olhar está voltado para sua filha. O bebê que se encontra no seu colo é loiro como a mãe e sua roupinha é um vestido em tom de rosa. O texto ao lado dialoga com a leitora persuadindo-a que a boneca mãezinha olha e cuida do filhinho (e o texto traz a palavra no masculino, embora fique explicito que o bebê nos braços da boneca é uma menina) com o mesmo amor que a leitora cuida dos filhos além de revelar que ao dar corda na boneca, ela canta uma suave canção de ninar, tarefa essa realizada pela mãe. Como afirmou Rael: Vamos aprendendo a ser sujeitos genereficados desde o momento em que nascemos e essa aprendizagem ocorre não somente nas instituições sociais formais como a família e a escola. Ela acontece também através da mídia, dos brinquedos, das músicas e dos desenhos animados que integram este universo infantil (2003, p.170).

Esse discurso aponta como algumas continuidades são construídas pela revista ao incentivar as mães a reproduzirem em suas filhas apenas uma das representações possíveis para exercerem sua feminilidade, a de mãe prendada, sabendo fazer sopinha, costurar, e trocar a fraldinha, fazer o nenê dormir e se orgulha dele, ou seja, o aprendizado de como ser mãe se inicia na infância. Os anúncios de brinquedos são na maioria voltados para as filhas das leitoras, já os brinquedos para os meninos são mais raros e 76

quando aparecem estão associados ao que se estabelecia no período de universo masculino (meios de transporte, bola, jogos, entre outros). Apesar de a Revista Claudia algumas vezes incentivar sua leitora a educar seus filhos de maneira igual, a publicidade e outros artigos da própria revista vinculam a diferença entre os sexos, estimulando certas habilidades para as meninas e outras para os meninos, ou seja, orientando a educá-los de forma distintas. Já na década de 80 a Revista Claudia manteve algumas discussões e intensificou outras que se mostraram fundamentais para pensar a família de classe média na sociedade brasileira. Percebemos uma modificação importante e já concretizada nessa época no que se refere à família. Muitas mulheres tinham uma profissão e acumulavam suas funções de esposa, dona de casa e mãe com a de profissional. Assim havia a necessidade de discutir vários aspectos dessa nova experiência. Esse novo quadro conjugal foi conseqüência não só da saída da mulher para o espaço público, mas também da vasta discussão sobre alguns tabus e preconceitos que marcavam a relação homem e mulher. Alguns conceitos foram repensados e apropriados, o que causou a modificação prática da vida cotidiana familiar. A escolha de ter ou não filhos, os medos e mitos sobre a maternidade, a educação dos filhos continuavam a fazer parte das páginas coloridas de Claudia, mas com algumas modificações significativas, como a divisão nas obrigações nos cuidados com os filhos para que a escola não substituísse a família. O que se torna evidente nestes cinco anos (1980 a 1985) é que os papéis começaram a se misturar, não havia lugares fixos e a

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A IMAGEM FEMININA NA REVISTA CLAUDIA: AS REPRESENTAÇÕES DO COTIDIANO FAMILIAR (1961-1985)

mobilidade fazia-se necessária. Esse processo não ocorreu de uma hora para outra e foi marcado por um jogo de poder e de negociação. Podemos perceber bem isto no anúncio de outubro de 1981 sobre seguro (Figura 5). Vejamos:

Figura 5. Anúncio para divulgação do Seguro Capemi Fonte: Revista Claudia, out. 1981, nº241, p.233.

No anúncio de seguro vemos que a imagem feminina remete a idéia de segurança, já a masculina está praticamente se escondendo atrás da mulher, ou seja, para ela assumir uma nova posição ele aparece em segundo plano, constrangido, diminuído. Em letras grandes podemos ver destacada a seguinte frase: “Isto era assunto pra homem”. O texto trabalha com a idéia de mudança, de novos tempos, sendo assim agora a mulher também deve ter a responsabilidade de proteger a família, pois isto não é mais exclusivo do sexo masculino. Inclusive destaque que é comum ver a mulher participando mais e se caso ela optar por esse seguro poderá despertar

a inveja do marido, pois o negócio segundo o anúncio é muito bom. Os conflitos amorosos, como o corpo, a sexualidade e os papéis que cada membro da família passou a desempenhar estiveram presentes no discurso da revista, que sentiu a necessidade de atualizar as discussões em torno de uma nova realidade familiar. No entanto isso não ocorreu de forma natural e sim marcada por tensões e conflitos, pois ao lado das representações da mulher emancipada e do discurso da divisão sexual do trabalho doméstico, temos ainda uma forte vinculação da casa como responsabilidade feminina, ou seja, ao optar pela vida profissional as mulheres acumularam mais um papel. No anúncio do produto de limpeza Vidrex (Figura 6) isto fica bem evidente, pois seu título é: “A imagem de sua casa está em suas mãos”. Vejamos:

A imagem mostra o produto envolvido por

Figura 6. Anúncio para divulgação do Limpador de Vidros – Vidrex Fonte: Revista Claudia, set. 1982, nº252, p.19.

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uma bonita mão feminina, com as unhas esmaltadas não indicando as mãos de uma mulher que fez serviços domésticos, assim remete a idéia de praticidade, idéia esta destacada no texto que acompanha a imagem. A publicidade presente nas páginas de Claudia explicita as contradições e tensões de seu discurso. No anúncio de Vidrex o texto vincula que a questão da organização da casa ainda é responsabilidade feminina – A imagem de sua casa está em suas mãos. A questão do tempo e da praticidade também estão apontadas – Basta espirrar neles um pouquinho de Vidrex, passar um pano seco e pronto. O reconhecimento dos outros vem logo em seguida – Todo mundo vai notar os vidros limpinhos... . E para terminar – Sua casa é reflexo de você. A casa, assim como em 1961 quando iniciou a publicação de Claudia, continua nas mesmas mãos, da dona de casa. Algumas coisas foram se modificando, pois essa mesma mão que é responsável por cuidar do lar, do marido e dos filhos também pode exercer uma atividade profissional e, portanto, necessita cuidar não somente da imagem da casa e da família, como da sua própria imagem. As relações familiares foram afetadas com a saída da mulher para o mercado de trabalho, a própria Revista Claudia resistiu em tratar do tema, já que a organização do tempo da leitora de Claudia ocorria apenas em torno da família. Aos poucos o tema do trabalho feminino tornou-se mais presente e a solução adotada foi de como colaborar com a mulher para que esta pudesse conciliar suas atividades do lar com uma profissão. Assim a representação da mulher como profissional foi construída lado a lado com as outras representações (dona de casa, esposa, mãe) e nos anos 80 revelou uma tensão na vida familiar e nos próprios sentimentos da mulher sobre sua escolha. A conciliação, agora 78

chamada de dupla jornada, gerou queixas e colocou em xeque o papel da mulher na sociedade e na família. Os anúncios são pensados nesse jogo de tensão e negociação presentes nesse momento. Enfim, procuramos trabalhar neste artigo alguns anúncios publicitários que estiveram presentes nas páginas da revista Claudia. Vale destacar que nossas interrogações partiram da nossa tese de doutorado, intitulada: Entre o sonho e o consumo: as representações femininas na Revista Claudia (1961-1985). Claudia é uma revista destinada ao público feminino e nosso objetivo consistiu em observar as transformações, rupturas e continuidades pelos quais passou tal periódico especificando os momentos importantes da história do Brasil na ótica não só dos valores culturais expressos nas páginas de Claudia, mas também articulálos com a grande onda modernizadora que modificou o cotidiano das pessoas. Neste processo de investigação percebemos que os anúncios publicitários seguiram o mesmo caminho proposto pela revista, trabalhando os diversos aspectos do corpo, da sexualidade, do trabalho, da família, da casa, revelando-se um corpus documental rico nas representações sociais dos sujeitos e nas relações do indivíduo com a sociedade, nas relações de gênero, na relação de consumo, e nas mudanças de valores no que tange aos comportamentos. Os anúncios presentes na Revista Claudia evidenciam-se, a impulsão da indústria ofertando cada vez mais benefícios e produtos que facilitariam a vida da mulher moderna. Sob o slogan da “utilidade” tudo poderia ser adquirido para otimizar o tempo da dona de casa, que recebia todo mês um catálogo de artigos e uma infinidade de adjetivos para convencê-la a comprar tais mercadorias, incitando, portanto, o sonho e o consumo de suas leitoras.

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A IMAGEM FEMININA NA REVISTA CLAUDIA: AS REPRESENTAÇÕES DO COTIDIANO FAMILIAR (1961-1985)

Portanto, tentamos analisar a imagem da mulher no cotidiano familiar, destacando as representações femininas veiculadas nos anúncios publicados na Revista Claudia. Referências bibliográficas BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1970. GASTALDO, Édison. A representação do espaço doméstico e papéis de gênero na publicidade. In: FUNCK, Susana Bornéo; WIDHOLZER, Nara (orgs.). Gênero em discursos da Mídia. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2005.

MORAES, Maria Quartim de. & SARTI, Cynthia. Aí a porca torce o rabo. In: BRUSCHINI, Maria Cristina A.; ROSEMBERG, Fúlvia. Vivência: História, sexualidade e imagens femininas. São Paulo: Brasiliense, 1980. SABAT, Ruty. Gênero e sexualidade para consumo. In: LOURO, Guacira Lopes; NECKEL, Jane Felipe; GOELINER, Silvana Vilodre (orgs.). Corpo, Gênero e Sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003. RAEL, Claudia Cordeiro. Gênero e sexualidade nos desenhos da Disney. In: LOURO, Guacira Lopes; NECKEL, Jane Felipe; GOELINER, Silvana Vilodre (orgs.). Corpo, Gênero e Sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003.

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PEDAGOGÍA, MORAL Y CULTURA POPULAR: LA ESCUELA ARGENTINA FRENTE AL CINE EN LAS PRIMERAS DÉCADAS DEL SIGLO XX

Pedagogía, moral y cultura popular: la escuela argentina frente al cine en las primeras décadas del siglo XX

Myriam Southwell Doutora pela University of Essex. Professora da Universidad Nacional de la Plata. Pesquisadora do CONICET, Argentina. Autora de, entre outros artigos, “’Con la democracia se come, se cura y se educa…’ Disputas en torno a la transición y las posibilidades de una educación democrática.” In: CAMOU, Antonio; TORTTI, Cristina; VIGUERA, Anibal (coords.) La Argentina democrática: los años y los libros. Buenos Aires: Prometeo, 2007.

María Silvia Serra Doutora en Ciencias Sociales pela FLACSO, Buenos Aires. Professora da Universidad Nacional de Rosario, Argentina. Autora de, entre outros artigos, Articulaciones entre cine y educación en la experiencia de la Escuela Serena de Rosario (1935-1950). Jornadas de la Sociedad Argentina de Historia de la Educación. Buenos Aires: octubre de 2004.

RESUMEN Este artículo presenta testimonios de Inspectores de enseñanza primaria y secundaria en los años de 1920 y 1930 en Argentina, para mostrar las vinculaciones que la escuela comenzó a desarrollar ante la expansión del consumo social del cine. Se puntualizan observaciones de cuestionamiento y sospecha sobre esa práctica, expuestos y desarrollados desde las posiciones más oficiales de la política educativa y también se incorporan algunas voces disidentes. PALABRAS CLAVE: pedagogía moral; disputas hegemónicas; cine y escuela.

ABSTRACT This article presents evidence of Inspectors of primary and secondary education in the years 1920 and 1930 in Argentina, to show the links that the school began to develop with the expansion of the social consumption of film. Observations are spelled questioning and suspicion on the practice, exposed and developed from the most formal education policy and also incorporate some dissenting voices. KEYWORDS: moral education; hegemonic disputes; film and school.

Recebido em: 06/03/2009

Aprovado em: 10/04/2009

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MYRIAM SOUTHWELL; MARÍA SILVIA SERRA

Pedagogía, moral y cultura popular: la escuela argentina frente al cine en las primeras décadas del siglo XX

Una revisión de las vinculaciones entre cine y el discurso pedagógico a lo largo del siglo XX arroja resultados múltiples, diversos y, en algunos casos, sorprendentes. Lejos de lo que podría suponerse desde los debates del presente, donde pareciera que la introducción de tecnología en el aula es asunto de apenas unas décadas, el cine ha tenido una presencia sistemática en las preocupaciones pedagógicas acerca de qué, cómo y cuándo mirar, y – junto con él – se desplegaron una serie de recomendaciones para regular su ingreso al aula1. Sin embargo, debemos distinguir entre el cinematógrafo como tecnología del mirar y el cine como expresión cultural en las preocupaciones del discurso pedagógico, así como sus variaciones a través del tiempo. Si atendemos a lo ocurrido en las primeras décadas del siglo, un primer acercamiento a descripciones históricas de la escuela parece destacar una falta de diálogo entre ambas expresiones culturales. En este artículo, nos interesa mostrar que la presencia e influencia masiva del cine en la educación argentina, sea en el ámbito político como en el de la educación sentimental, no permaneció ajena para el discurso pedagógico de la época. Aunque se ha sostenido que lo que sucedía por fuera de los muros de la escuela no contaba para aquellos preocupados por la educación escolar (SARLO, 1998), es posible que en este argumento no se atienda

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debidamente el amplio tratamiento que médicos, pedagogos e higienistas dieran a las influencias del cine en las almas de los niños, jóvenes y adultos. Lo que estaba fuera contaba, en el sentido que era necesario estudiarlo como fenómeno para poder impugnarlo, por no deseable, amenazante, en relación a los fines que lo animaban. En este trabajo presentaremos algunos modos en los que los actores del sistema educativo – tanto de nivel primario como secundario – indagaron, estudiaron y se posicionaron frente al cine como expresión cultural en las décadas de 1920 y 1930. Para ello hemos recortado fuentes relativas a los escritos de inspectores de escuela, entendiendo que en esa época ellos ocupaban un lugar intermedio entre la teorización pedagógica y la burocracia educativa. Asimismo, analizaremos artículos de la Revista El Monitor de la Educación Común (Revista oficial del Consejo Nacional de Educación de Argentina), una publicación de amplia cobertura en todo el país, que brindaba “la posición oficial” sobre los aspectos a desempeñar dentro de la escuela, pero que también tenía un posicionamiento muy imbuido en la reflexión pedagógica de la época. En este sentido, seguimos la recomendación de Denise Catani y Maria Helena Camara Barros (1997), en relación a que las revistas periódicas educativas son una fuente privilegiada para acceder al

Al respecto, véase Serra (2008).

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PEDAGOGÍA, MORAL Y CULTURA POPULAR: LA ESCUELA ARGENTINA FRENTE AL CINE EN LAS PRIMERAS DÉCADAS DEL SIGLO XX

movimiento de las concepciones pedagógicas, incluso antes que cristalicen en teorías definidas. Suelen darnos una guía práctica sobre el cotidiano escolar, más vinculado a humores y calores del debate, a coyunturas particulares, a grupos pequeños. Las autoras resaltan – citando a António Nóvoa – que permiten aprehender mejor la multiplicidad del campo educativo, las múltiples voces, discusiones y argumentaciones que emergen para responder a problemas y dilemas de la educación. El discurso pedagógico2 de la época va a ocuparse de la influencia del cinematógrafo, especialmente cuando se dirige al sujeto pedagógico por antonomasia: el niño.3 ¿Qué miran los niños fuera de la escuela? ¿Qué efectos produce esta práctica? ¿Cómo se combina con la educación escolar? ¿Cómo ubica la escuela frente a una sociedad que incorpora al cine como práctica cultural? Nos interesa, situarnos en los modos en que el discurso pedagógico consideraba el consumo del cine fuera de la escuela, en la vida cotidiana, y las influencias que ello tenía en las prácticas de entretenimiento. Queremos analizar en ese acercamiento, los modos en que la escuela estaba concibiendo al cine en los momentos en que empieza a ser una práctica extendida – aunque no diríamos aún masiva. Nos interesa destacar

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que, al otorgarle al cinematógrafo la capacidad de influenciar en la conducta de quien a él asiste, se vuelve un objeto de atención privilegiado. Por ello, maestros e inspectores se van a ocupar de señalar sus peligros y de plantear la necesidad de su regulación y control en el medio social. Sistema educativo, modelos culturales e intervenciones docentes La construcción de un determinado rol para la tarea de educar tiene, en nuestra región, una rica historia de debates y de propuestas. Algunas de esas propuestas alcanzaron mayor institucionalización que otras pero todas fueron construyendo una serie de funciones o componentes de un rol que siguen dando vida al presente. La expansión de la escolarización de masas requirió la formación de un cuerpo profesional que fuera absorbiendo formas de representación del Estado en una amplia gama de funciones, en competencia con otros actores sociales como las instituciones religiosas o las organizaciones familiares. Se trataba de crear una nueva red institucional local ya no internacional como la Iglesia , que ordenara y regulara los intercambios entre las personas en una forma nueva, con nuevos “apóstoles”. En ello, el desarrollo de una

Por discurso entendemos a una práctica significativa que trasciende la distinción entre lo lingüístico y lo extralinguístico. Ese concepto se vincula a la no estricta fijación entre significante y significado. En ese sentido, se puede entender que existen determinados significantes flotantes en la sociedad, y en ella se puede conceptualizar la lucha de distintos movimientos políticos por fijar parcialmente ciertos significantes con determinadas significaciones. Esta lucha por las fijaciones parciales compone la hegemonía. Por consiguiente, la configuración discursiva es esencialmente contingente, y no puede ser explicada por la estructura misma, sino por una fuerza que es parcialmente exterior a la estructura. Así, hegemonía es el resultado de una lucha en un terreno inestable, no centrado y abierto. Concebir discurso como una configuración significativa y abierta, hace posible entenderlo como condición de las prácticas hegemónicas (LACLAU, 1993). La totalidad estructurada resultante de la práctica articulatoria que establece una relación tal entre elementos que la identidad de éstos resulta modificada como consecuencia de dicha práctica. El discurso es entones el intento por dominar el campo de la discursividad (LACLAU y MOUFFE, 2004) y remite a la totalidad significativa productora de sentido que estructura la vida social y de la que los sujetos no son plenamente conscientes (SOUTHWELL, 2007). “La fundación del sistema educativo nacional se produjo vinculada con la polémica acerca del lugar del niño en el nuevo orden”. Esta afirmación de Carli puede resultar útil para enfatizar los modos en que discurso pedagógico y discursos sobre la infancia se entrelazan, imbrincándose de tal modo que cada uno encuentra sus límites y sus posibilidades en el otro. Véase CARLI, 2002, p. 59.

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posición moral, como resguardo y supervisión en nombre del Estado, tuvo un significativo lugar. Se institucionalizó, así, una de las piezas clave de la “maquinaria escolar”, la formación de docentes, bajo el imperio del control político del Estado y el control científico de la pedagogía (DIKER Y TERIGI, 1997). Los educadores de comienzos del siglo XX – formados mayoritariamente en las escuelas normales – pensaron que la escuela debía civilizar al mundo, formar sujetos nuevos – ”ciudadanos letrados” – desconociendo aquello que los sujetos traían como experiencia propia, previa y diferente del mundo escolar. En la organización de una carrera profesional para el magisterio, se buscó no dejar librado su rol a la buena voluntad de las/los individuos que se desempeñaran en ese rol sino que se apuntó a un riguroso proceso de formación para circunscribir su tarea en condiciones precisas. En ese marco, los futuros profesores aprenderían a ocupar “el lugar del que sabe, del que vigila, del que es capaz de contribuir a la producción de saberes en la institución escolar de una manera correcta”. Allí es donde surge la profesionalización de la docencia: la escuela deja de ser un asunto estrictamente eclesiástico para participar directamente del orden público (NARODOWSKI, 1994, p. 117). Uno de los aspectos sobre los que conviene detenerse es la relación con la cultura contemporánea que se estableció en aquel momento. Dado que se pensaba a la escuela como una institución renovadora y transformadora de la sociedad, resultaba “natural” que los límites entre el afuera y el adentro de la escuela estuvieran rígidamente marcados, y el adentro se percibiera como superior al afuera. Transponer la puerta de la escuela era entrar a “otro mundo”, un mundo donde el conocimiento y la racionalidad eran 84

la moneda corriente. El afuera sobre el que se recortaba la escuela fue planteado como una fuente de contaminación, una amenaza o un problema. La sospecha sobre lo contemporáneo, los saberes y sujetos que los enunciaban – como el tango, el fútbol, el cine, los diarios, la democracia –, fue un elemento que perduró por mucho tiempo. El oficio docente se definía por un dominio del saber letrado, lo que le otorgaba una autoridad legítima e inapelable para ponerse frente al aula, ser digno de imitar y supervisar la relación que los alumnos establecían con otras manifestaciones culturales. En ese despliegue de gobierno escolar, docentes, directivos e inspectores fueron componentes claves de la micropolítica escolar. La cuestión, entonces, por el grado de preparación de los docentes, por su situación laboral y por la, todavía, precaria acción estatal en ese territorio de la enseñanza, alcanzó su cauce privilegiado: la prescripción metodológica estrechamente unida a la supervisión moral. Si se lograba establecer y difundir con claridad y precisión cuáles eran las metodologías adecuadas, el progreso escolar parecía estar garantizado. Esto, además, se unía a la preocupación ligada a que ningún aspecto del ejercicio docente quedara fuera de control, para alcanzar una homogeneización cultural y moral puesta en manos de esos funcionarios civilizadores llamados maestros. Decía Leopoldo Lugones, Inspector de Enseñanza Secundaria, en 1910: “[la docencia] no es una profesión liberal ... [sino] una carrera esencialmente burocrática cuya demanda depende de las necesidades del Estado”. El cine, como parte de la cultura popular y masiva, no quedó afuera de estas preocupaciones y recomendaciones. Un pedagogo muy destacado y de mucha injerencia en las políticas educativas de las

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PEDAGOGÍA, MORAL Y CULTURA POPULAR: LA ESCUELA ARGENTINA FRENTE AL CINE EN LAS PRIMERAS DÉCADAS DEL SIGLO XX

primeras décadas del siglo XX y en el campo pedagógico universitario de las primeras décadas del siglo XX, Víctor Mercante 4, miraba de modo sospechoso su expansión a través de la proliferación de salas y proyectores a lo largo del territorio argentino. Constatando que la mayoría de los espectadores de cine eran jóvenes de entre 12 y 25 años de edad, se preguntaba horrorizado entre los años ‘20: “¿Quién abre un libro de Historia, de Química o de Física, a no ser un adulto, después de una visión de Los piratas del mar o Lidia Gilmore de la Paramount?” (MERCANTE, 1930). La mayoría de las películas eran, en aquella época, de cowboys y de amor, cuyos héroes eran, para Mercante, “grandísimos salteadores y besuqueadores”. Todo eso llevaba a que los jóvenes “sólo quieran gozar, gozar, gozar”; por eso, él sostenía que el cine era una escuela de perversión criminal y que había que organizar comités de censura en todas las ciudades para que sólo se exhibieran películas “moralmente edificantes”. Su propuesta fue la de establecer comités de censura en los pueblos y cerrar las escuelas a los nuevos lenguajes y estéticas. Mercante sintetizaba, al interior del discurso pedagógico hegemónico en la época, una visión moral de la cultura que buscaba influir más allá de la escuela. Sin embargo, existieron otras posiciones. Ernesto Nelson – Inspector de Enseñanza Media en las primeras dos décadas del siglo XX – fue un impulsor de las ideas de John Dewey, las que vinculó con el curriculum de la escuela media: introdujo el fútbol, el cine, la prensa y los viajes de estudio como formas educativas

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tan o más valiosas cuanto las disciplinas escolares. Así lo expresaba: ‘La cultura es un resultado natural del ejercicio de la curiosidad y del interés, siendo realmente milagroso el que no haya sucumbido a consecuencia de los refinamientos de una mal llamada educación, que parece empeñada en hacer odioso todo aprendizaje’ (NELSON, 1919, p. 518).

Asimismo, destacadas directoras y maestras como Olga Cossettini o Herminia Brumana abonaron un abordaje diferenciado de la escuela a los lenguajes y expresiones culturales de la época, no sólo al interior de las prácticas pedagógicas sino también en el modo en que concibieron los vínculos entre la identidad docente y la cultura de la época, donde el cine mantuvo una posición destacada (SERRA y otros, 2004). Ahora bien, estas discusiones no fueron privativas de los actores del ámbito escolar. El impacto producido por la invención y rápida expansión del cinematógrafo primero y de la industria cinematográfica después, ligada al entretenimiento, hizo que el cine se visualizara como un dispositivo cultural de importancia en la producción de identidades colectivas, tanto en términos políticos como de formación del gusto y de modulación de los sentimientos (MONSIVÁIS, 2000). Su dimensión formativa, más allá de la escuela, se ponía en juego hasta para disputar la centralidad de la cultura letrada que aquella posee. Cabe traer a colación, en este sentido, la atención que el destacado escritor Horacio Quiroga5 prestara al cine. Entre sus numerosos escritos, dos de ellos se destacan por abordar el papel del cine en la educación: “El cine en

Nos hemos explayado sobre este autor en SOUTHWELL, 2003. La obra literaria escrita de Horacio Quiroga forma parte del diseño curricular de la educación básica argentina desde hace muchas décadas.

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la escuela. Sus apologistas”, de 1920 y “El cine educativo. Patagonia”, de 1922, donde tomaba explícita postura sobre las ventajas del cine en relación a la cultura letrada, afirmando, en el primero: “En fin, se trata de un concurso siempre creciente de fuerzas para luchar por una tan evidente y sencilla cosa como es hacer ver al alumno lo que nos empeñamos, desde que el mundo es mundo, en imaginarlo por la lectura”, y en el segundo: “Cuando en vez de entontecer con libros a los alumnos, las escuelas enseñen con el material vivo del cine, habremos aprendido por fin, sin mayor pedagogía, que un chico de ojos bien abiertos tiene otra puerta de entrada para aprender que un frío libro, unos ojos miopes y una dispepsia” (QUIROGA, 2007, p. 67 y 260). ¿Quiénes van al cine? ¿A qué edad? ¿Cuánto? ¿Con quién? Tal como hemos señalado, es fundamentalmente la presencia de la infancia en el cine, la que abre el espectro de discusiones acerca de sus ventajas y peligros. Médicos, higienistas, juristas, pedagogos y maestros alimentan estos debates desde su estudio sistemático. En la medida en que el cinematógrafo como entretenimiento crece y se convierte en una práctica cotidiana, para los estudiosos de la infancia el tiempo que los niños pasan en él se constituye en toda una preocupación. El Monitor de la Educación presenta, en la primera mitad del siglo XX, con diversos trabajos realizados en el extranjero que citan

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encuestas, constataciones e investigaciones sobre este punto: qué proporción de niños hay entre el conjunto de los espectadores, si asisten solos o acompañados, cuántas veces asisten por semana, cuántas horas6. Más allá de los diversos resultados obtenidos, estas investigaciones coincidían en afirmar que los niños pasan mucho tiempo en el cine. En nuestro país, El Monitor de la Educación publica los resultados de dos encuestas, realizadas en 1925 y en 1932, que son el objeto de nuestra atención aquí. La primera de ellas se publica bajo el titulo “Encuesta Escolar sobre el cinematógrafo”.7 Realizada “con el propósito de conocer la opinión de alumnos y maestros sobre una serie de cuestiones de carácter social, educativo y psíquico, relacionados con la influencia que el cinematógrafo ejerce sobre nosotros” por el Inspector José Natale,8 se aplicó a niños de 2do a 6to grado de las escuelas de un distrito de la Capital. La encuesta presentaba el siguiente cuestionario: 1. ¿Usted asiste habitualmente al cinematógrafo? 2. ¿Usted va solo? 3. ¿Asiste a función entera? 4. Enumere algunas cintas vistas. 5. ¿Cuál de esas cintas le ha llamado más la atención? 6. Describa usted, sucintamente, lo que ha visto en alguna cinta cinematográfica. 7. ¿Usted alcanza a leer completamente todas las explicaciones que pasan por las cintas? 8. ¿Usted prefiere las filas delanteras? 9. ¿Sale usted impresionado?

En los Estados Unidos, una comisión investigadora del estado de Nueva York relevó que hay días que el 99% de los asistentes son niños “Los peligros morales del cine”, El Monitor de la Educación Nº 720, diciembre de 1932. NATALE, 1926, p. 63-97. José Natale era, además de inspector, autor de libros escolares para el aprendizaje de la lectura, habiendo publicado La Base. Libro primario infantil, en 1915; Madre: libro de lectura, en 1920; Padre mío: libro de lectura, en 1925; y Primavera: libro de lectura para segundo grado, en 1935.

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10. ¿Entiende usted con facilidad el desarrollo de las cintas? 11. ¿Atiende usted siempre atentamente? 12. ¿Sale usted molesto de la vista? 13. ¿Durante las representaciones oye usted bien el piano o la orquesta? 14. ¿Se cansa usted de oír música durante la representación? 15. ¿Refiere usted lo que haya visto en el cinematógrafo? 16. ¿Se interesan en su casa por el relato que Vd. hace? 17. ¿Busca usted después la novela, el libro de cuentos, las láminas, donde se describen, representan y dramatizan las vistas? 18. ¿Ha intentado usted constituir algún núcleo de niños con el objeto de representar las escenas cinematográficas? 19. ¿Gusta usted de las vistas emocionales, de las sentimentales, de las instructivas, de actualidad, de las fantásticas, de las risueñas o de caricaturas? 20. ¿Usted sueña después con lo que haya visto? 21. ¿Tiene usted presente muy a menudo algunos de los personajes de la cinta? 22. Exprésese usted con libertad sobre el cinematógrafo, su utilidad, sus perjuicios. 23. ¿Son absolutamente suyas estas respuestas? La encuesta fue tomada por maestros que contaron precisiones ajustadas sobre el modo de hacerlo. Fue contestada por 3.651 niños, el mismo día a la misma hora. Los maestros encuestadores realizaron una primera valoración de las respuestas, bajo expresas indicaciones, y elevaron los resultados el día 16 de mayo de 1925, a los que podían

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acompañar con los siguientes comentarios: 1) Objeciones sobre la encuesta 2) Objeciones sobre la manera de tomarla. 3) Sobre las respuestas de los alumnos. 4) Comentarios sobre la influencia del cinematógrafo. De las respuestas de los alumnos, cabe destacar que la mayoría de los niños no manifiesta concurrir habitualmente al cinematógrafo, y que el 40 % lo hacía sin acompañamiento adulto. La mayoría manifiesta comprender los argumentos de las películas, aunque tienen dificultades para retener nombres de películas o para leer los carteles. Por otro lado, un alto porcentaje de los niños comentaban las películas en sus casas y/o las representaban, un 33 % manifestaban soñar respecto de lo que habían visto y un 40% salir del cine con molestias en los ojos. Esta información permite situar el lugar que el cine tenía entre los niños y despejar apreciaciones alarmistas sobre cantidad de horas y otro tipo de riesgos.9 Por otro lado, enfatizaba las preocupaciones ligadas a la salud física y mental de los niños. Cabe destacar que el autor se detiene especialmente en el impacto del cinematógrafo en la sociedad en su conjunto, con comentarios del tipo del siguiente: Casi todos los niños (3.120 contra 531) cuentan en sus casas o en el círculo de sus relaciones lo que han visto en el cinematógrafo. ¿No es verdaderamente interesante conocer este dato? Este debe tenerse como un índice de la influencia extraordinaria que el cinematógrafo ejerce en la sociedad – no sólo para los que asisten a las representaciones cinematográficas, sino por la difusión que éstos realizan respecto de las ideas y sentimientos que recogen en estos espectáculos. (NATALE, 1926, p. 65)

En el citado texto de Mercante, se hacía alusión de modo alarmista a la presencia continua de un porcentaje mucho más alto de niños en el cinematógrafo, sin hacer referencia a la fuente de esa información.

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Es llamativo que, luego de comentar las respuestas de los alumnos, el autor transcribe las respuestas y comentarios de los cuarenta y cuatro maestros que tomaran la encuesta, uno a uno y con el nombre completo de quien diera cada respuesta. Estas respuestas constituyen en sí una importante información adicional a los resultados de la encuesta, ya que permite visualizar el lugar que el cine ocupaba en el imaginario del magisterio de la época. Los maestros no hacen objeciones al cuestionario ni al modo de tomarlo, por el contrario, en su mayoría aplauden la decisión de investigar de modo sistemático lo que sucede por fuera de la escuela con esta práctica. Al respecto, cabe destacar algunas de ellas, que sitúan al mismo maestro frente a la información obtenida por esta investigación: La encuesta que con tanto acierto realizara en nuestras escuelas el señor Inspector Natale es sumamente interesante y altamente educativa. Interesante y educativa para el maestro consciente de su delicada misión: dirigir y educar al niño, pues ello da a conocer los gustos, las costumbres, la moralidad del alumno y el cuidado de los padres por sus hijos. (p. 68)

Entre sus impresiones sobre el tema (punto 4 de los comentarios sugeridos), las respuestas comparten muchas perspectivas no sólo entre sí sino también con las posiciones más amplias: – la importancia del cinematógrafo como invento; – el reconocimiento de su especial influencia sobre los niños, por ser un medio de entretenimiento atractivo, además de accesible y barato; – la maleabilidad del alma infantil, la facilidad que el niño tiene de imitar, la falta

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de razón para distinguir lo bueno y lo malo, la alta capacidad imaginativa: – la fuerza que lo que se ve posee por sobre lo que se lee o escucha, la capacidad de las imágenes de imprimirse en la mente infantil; – la convicción de que, si no se emplea como factor de educación, es un medio desmoralizador, posee influencia maléfica, es escuela de inmoralidad y perversión, es vehículo de toda clase de embustes, es escuela de mal ejemplo, es promotor de perniciosas inclinaciones, enferma la imaginación con ideas absurdas, hace apoteosis del mal; – la afirmación de que los locales y salas de cine no reúnes las condiciones de ventilación, higiene y seguridad necesarias para los niños. – la necesidad de intervenir en las cintas que se proyectan, ya sea estableciendo salas de cinematógrafo especialmente infantiles, con películas especiales o días y/o funciones especiales para niños en las salas existentes, de modo que los niños no estén expuestos a películas perniciosas; o controlando el material que se proyecta y la edad de quienes asisten a cada función. El término que más recurrentemente se menciona en las respuestas de los maestros es el de influencia, dado que de algún modo u otro todos manifiestan su preocupación por el peso que tiene el cinematógrafo en la infancia, y al que el estado y el sistema educativo debe atender, evitando sus perjuicios. Unos años después, en 1932, El Monitor de la Educación publica los resultados de otra encuesta. Se trata del artículo “El cine y los niños”, que tiene por autora a María José Cumora. En esta oportunidad, la encuesta se realiza a alrededor de 4.000 niños de la

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Capital Federal, que se encontraban cursando desde 1er grado superior hasta 6to grado (de 6 a 14 años). Los niños contestaron en una hoja las siguientes preguntas escritas en el pizarrón: “¿Le gusta el cinematógrafo? ¿Cuántas veces va? ¿Qué cintas prefiere? En algunos casos se agregó ¿con quién va?, en reemplazo de la segunda pregunta, y en otros, se pidió los niños que describieran la cinta de su predilección”.10 Los resultados obtenidos se analizaron en dos grupos, el primero correspondiente a los alumnos de 6 a 10 años (1.800 respuestas) y el segundo a los de 11 a 14 años (1.750 respuestas). Las respuestas de cada grupo no difieren notablemente. En el primer grupo el 94 % manifiesta su agrado por el cine, el 44 % concurre mucho o muchísimo (una vez por semana o más), y sus preferencias más importantes se reparten entre el 38 % por películas cómicas, 26 % dramáticas y 20 % de cowboys. En el segundo grupo el 82 % manifiesta su agrado, el 50 % va al cine mucho o muchísimo, y la preferencias se ordenan alrededor del las películas dramáticas (37 %), cómicas (27 %) y de cowboys (9%). Lo que estos resultados constatan es la fuerte presencia en la cultura popular del cine como entretenimiento. Pero lo que nos interesa señalar es la preocupación que se abre para los educadores frente a esas prácticas: que el niño vaya al cine con frecuencia y que se deleite con vistas e historias que no poseen finalidad más que “pasatista” o de entretenimiento pone en peligro las prácticas sistemáticas que sí las poseen. Atendamos el siguiente comentario, con el que se remata el artículo que presenta esta última encuesta:

Para quienes nos sentimos maestras en cualquier parte donde haya un chico, es verdaderamente dolorosa la presencia del niño en cinematógrafos donde se exhiben películas con argumentos pasionales, de misterio o de crimen que excitan la imaginación y que le impresionan tan fuertemente que luego se ve asediado, perseguido por las visiones que desfilaron ante los ojos abiertos de asombro. ¿Saben los padres hasta qué extremos perduran y perturban las impresiones de la infancia? ¿Tienen conciencia de su enorme responsabilidad? Ojalá que las reflexiones que sugieran estos interrogantes sirvan para crear un ambiente de comprensión que nos estimule a continuar en esta campaña impuesta por nuestra condición de educadoras ya que no es posible admitir que el cinematógrafo siga destruyendo lo que con tanta consagración y fatiga construye la escuela.11

Notas para una conclusión Este artículo se propuso mostrar que la expansión del cine y su relación con la escuela argentina tuvo significativa presencia desde comienzos del siglo XX. Asimismo, hemos podido observar que el primer tipo de relación que la escuela desarrolló fue la de “capturar”, controlar y contrarrestar esa práctica popular. Asimismo, acentuaba el rol de ésta en relación con el control más allá de sus puertas. Por otro lado, quisiéramos poner de relieve que esta vinculación entre el cine y la escuela generó un significativo debate entre los educadores, actores del sistema educativo. Por un lado, existió una posición de fuerte cuestionamiento moralizador y de desarrollo de formas de “prevención” o sanción moral. Este ha sido el discurso pedagógico hegemónico, que fue explicitado y expandido a través de los mecanismos oficiales de la

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CUMORA, María Lucía: “El cine y los niños”. El Monitor de la Educación Nº 753, setiembre de 1935. El artículo está escrito en primera persona del singular, y la autora, maestra, manifiesta haber colaborado con una empresa de radiodifusión de la Capital para realizar la encuesta, por lo que ésta no habría sido iniciativa de actores del sistema educativo, como en la encuesta anterior. 11 Ibid, pág. 81.

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política educativa. Esa posición políticopedagógica involucró también una mirada descalificadora sobre cualquier otra expresión cultural por fuera del canon seleccionado para y por la escuela y, con ello, una descalificación de los individuos, tanto los alumnos como sus familias, que aún no habían sido “cultivados” por ese modelo que desarrolló formas muy eficaces y democratizadoras de inclusión social, al costo de dejar fuera de la escuela todo lo que estuviera al margen del modelo cultural y político que ella encarnaba. Sin embargo, hubo otras posiciones que disputaron también en ese campo discursivo, introduciendo otras perspectivas, cuestionamientos y propuestas que le fueron dando extensión y profundidad al debate abierto. Por un lado, hemos encontrado una mirada censuradora, de sospecha y que asigna poco valor a una expresión cultural nueva y por fuera del marco escolar. Por otro, se abren otras posiciones que le asignan importancia al cine junto con otros lenguajes que tanto proponen una viva incorporación en la dinámica escolar como también, confían en lo que favorece ese lenguaje por sí mismo, “sin mayor pedagogía” relegando a un segundo plano la acción prescriptiva escolar. En el libro El Declive de la Institución (2006), el sociólogo François Dubet enmarca la actuación docente – entre otros trabajos, que caracteriza como “trabajo sobre los otros”– en lo que denomina un “programa institucional” que alude a lo que se ha llamado el proyecto de la Modernidad. El programa institucional se funda sobre valores, principios, dogmas, mitos, creencias laicas o religiosas pero siempre sagradas, siempre situadas más allá de la evidencia de la tradición o de un mero principio de utilidad social. [...] invoca principios o valores que no se presentan como simples reflejos de la comunidad y sus costumbres, se construye

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sobre un principio universal y mas o menos ‘fuera del mundo’ (DUBET, 2006, p. 35).

Ese programa institucional tiene, como características centrales, considerar el trabajo sobre el otro como una mediación entre valores universales y los individuos particulares, entiende al trabajo de socialización como una vocación porque se encuentra fundado en valores, y cree que la socialización inculca normas que configuran al individuo y simultáneamente lo vuelven autónomo y libre (DUBET, 2006, p. 22). En el marco del programa institucional, la socialización no solo inscribe cultura en un individuo, también designa una manera peculiar de llevar a cabo ese trabajo sobre los otros. Algo que también es notable en las fuentes relevadas, es el encapsulamiento de la lógica escolar. Dubet dice Gracias a la República – esos valores que encarnaban – (los docentes) estaban fuera del control de las autoridades locales, pero a cambio debían dar muestra de una virtud sin fisuras en su vida cotidiana y esa forma de vida era percibida como afirmación moral (2006, p. 104).

Esto nos hace pensar que la escuela consagró perspectivas, prácticas y métodos que consolidaron un sentido para el “adentro escolar” que se naturalizaron allí pero que resultarían profundamente afectadas si entraran en interacción con otras lógicas e instituciones sociales, tales como el derecho, la renovación de la cultura, la expresión, etc. Este funcionamiento propio de la lógica escolar y sobre la rigidez de la separación entre el adentro y el afuera implicó una cristalización. Sólo quisiéramos puntualizar aquí, que esta cristalización de una

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determinada cultura escolar, que tenía sentido y se consolidaba y conservaba allí adentro, pareciera ponerse “de espaldas” o al menos “mirando por arriba del hombro” con actitud de sospecha sobre la sociedad de la que forma parte. Como parte de su acción, la escuela ha generado culturas nuevas: así lo hizo cuando creó un público lector, un público letrado, y ayudó a estructurar relaciones, identidades, sentimientos e incluso industrias como la del libro y el periódico masivos sobre esa base. En diversas ocasiones en estos siglos, los cambios tecnológicos, los nuevos lenguajes y lo que producían las vanguardias artísticas, culturales y políticas fueron vividos como amenazas ante las cuales la escuela debía construir paredes más altas. En un sentido similar, algunos educadores encabezaron fuertes discusiones acerca de qué podía considerarse cultura y qué quedaba relegado a lugares menores y despreciados y, por lo tanto, qué expresiones escritas, visuales o sonoras podían introducirse en la escuela y podían ser parte del trabajo escolar, y cuáles no. Así, hubo expresiones y lenguajes cuya incorporación dentro del canon de cultura legítima tuvo serias dificultades. De cualquier modo, aún con las objeciones presentadas, esos lenguajes fueron encontrando los modos de permear la cultura escolar más tradicional, imponiéndose por la demanda social de familias y alumnos, por la expansión de una práctica popular o por la presión del mercado.

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O ESTUDO DA SIMBOLOGIA DO GORGONEION FIGURADO NOS ESCUDOS GREGOS ATRAVÉS DA CERÂMICA ÁTICA PINTADA.

O estudo da simbologia do gorgoneion figurado nos escudos gregos através da cerâmica ática pintada. Séculos VI e V a.C.

Patrícia Boreggio do Valle Pontin Doutora em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. PósDoutoranda em Arqueologia Histórica pelo MAE-USP. Pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga LABECA- MAE-USP. Bolsista FAPESP. Autor de “Aspectos religiosos e rituais que cercavam o espaço bélico no mundo grego antigo”. História e-Historia, 2009.

RESUMO Este artigo tem por objetivo um estudo sobre a imagética do gorgoneion figurado nos escudos gregos através da cerâmica ática pintada, nos séculos VI e V a.C. Nossa intenção é a de realizar um levantamento sistemático dessas imagens figuradas nesses escudos, com a finalidade de melhor explicitar a natureza do escudo e de sua imagética, para melhor compreender a disposição do homem grego diante da guerra. PALAVRAS-CHAVE: escudo grego; Grécia antiga; iconografia; simbologia; gorgoneion.

ABSTRACT This article aims a systematic study of the emblems depicted on the Greek shields, especially gorgoneion. Our goal is to better understand the nature of this defensive equipment and the disposition of the ancient Greeks towards war. KEYWORDS: greek shield; ancient Greece; greek imagery; gorgoneion.

Recebido em: 03/02/2009

Aprovado em: 10/04/2009

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PATRÍCIA BOREGGIO DO VALLE PONTIN

O estudo da simbologia do gorgoneion figurado nos escudos gregos através da cerâmica ática pintada. Séculos VI e V a.C.

A imagética dos escudos nos vasos áticos Os princípios que governavam a escolha dos emblemas para os escudos entre os gregos nunca foram investigados com o devido cuidado que a importância do assunto e o material disponível exigem. Os guias e manuais da Antiguidade que consagram algum espaço para a discussão do assunto, o tratam de maneira sumária e insatisfatória, assim como os manuais mais recentes, que não fornecem nenhuma discussão completa sobre o assunto. Os escritores, no geral, apresentam a descrição de um pequeno número de emblemas, coletados, sobretudo, na literatura. Nenhum deles fez observações sobre a decoração dos escudos. Os escudos possuíam emblemas muito variados: de pássaros, de animais, de Górgonas. Nosso objetivo no presente trabalho é estudar, em particular, o emblema do gorgoneion figurado nos escudos. Percebese por um levantamento bibliográfico mais sistemático que os escudos foram muito descritos como objetos, e em sua função no contexto da guerra e da falange, porém, não existe nenhum estudo realizado sistematicamente pelos pesquisadores sobre a imagética dos escudos. O único levantamento cuidadoso de emblemas de escudos foi feito por Chase em um artigo de 1902, que passa em revista o testemunho literário, reunindo representações de duzentos e sessenta e oito motivos diferentes de

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emblemas de escudos, originalmente pintados nos vasos. Para proporcionar uma interpretação mais segura dessa imagética no contexto da sociedade grega, nossa proposta consiste em fazer um levantamento sistemático dos escudos e de suas imagens procurando inserilos em um contexto mais amplo da cultura material. Uma coleta cuidadosa dos vasos pintados e eventualmente de outros monumentos, que são de longe a mais importante fonte de informação sobre o assunto, e uma comparação e confrontação com a evidência literária, pode fornecer uma visão clara dos princípios subjacentes às escolhas dos emblemas dos escudos pelos gregos. Visto que os escudos eram construídos de materiais perecíveis são raríssimos os exemplares encontrados nas escavações, daí nossa necessidade neste trabalho de recorrer a outros testemunhos que conservem as representações de diferentes motivos de escudos. Nesse sentido, a cerâmica ática fornece uma abundante iconografia de guerra, à qual teremos acesso a partir de catálogos sistemáticos disponíveis em nossas instituições. Alguns desses catálogos são: os vários volumes do Corpus Vasorum Antiquorum (CVA), série que conta com perto de 250 repertórios de vasos da antigüidade clássica, distribuídos em coleções de toda parte do mundo e existe desde 1936, além do CVA Website. E, o Lexicon Iconographicum

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O ESTUDO DA SIMBOLOGIA DO GORGONEION FIGURADO NOS ESCUDOS GREGOS ATRAVÉS DA CERÂMICA ÁTICA PINTADA.

Mythologiae Classicae (LIMC), projeto que existe desde 1973 e tem como objetivo a publicação sistemática das representações figuradas mitológicas dos vasos gregos, etruscos e romanos, além de uma coleção muito rica dos vasos pintados da Antigüidade, coletados por John Beazley, que deu origem ao “Arquivo Beazley”, nossa fonte principal de pesquisa. Fizemos uma minuciosa e intensiva pesquisa nos catálogos sistemáticos citados acima de todas as representações de escudos e seus emblemas nos vasos áticos pintados nos séculos VI a.C. e V a.C. De um universo de milhares de vasos examinados, constituímos um repertório de 1956 vasos com cenas que incluem representação de escudos. Considerando tais aspectos, se acaso a confrontação das evidências arqueológicas com as literárias não nos permitirem ter a certeza do uso real dos emblemas dos escudos, pelo menos essas evidências podem nos ajudar a determinar os princípios que governaram a escolha desses emblemas pelos gregos. Nesse debate é que procuraremos colocar a contribuição do estudo iconográfico dos escudos para a sociedade grega. O escudo O escudo era uma peça defensiva da armadura que protegia o corpo do guerreiro, sendo a mais antiga das armas defensivas. Feito de madeira, de juncos trançados, de pele ou de metal, de forma circular, oval ou oblonga, era preso no pescoço do guerreiro ou levado em seu braço esquerdo para protegê-lo dos golpes do inimigo. Diversos tipos de escudo foram usados no curso da guerra grega, predominantemente pela infantaria.

O escudo, segundo os textos clássicos, era a peça do armamento que mais se dedicava aos deuses. De fato, em santuários como Olímpia e Delfos foram encontrados numerosos escudos, principalmente do período arcaico. Em Olímpia foram encontrados cerca de 280 escudos (JARVA, 1995, p. 111). Lonis (1979, pp. 158-160) atribui esta predileção pelo escudo a seu significado especial. Com efeito, o escudo, tinha um elevado valor simbólico e era decorado com motivos emblemáticos e apotropaicos. Desde épocas anteriores esta arma defensiva era altamente considerada, podendo falar-se inclusive de hoplolatria (REINACH, 1909-1910). Dentro do simbolismo do escudo devemos assinalar seu significado no âmbito funerário. O escudo é uma insígnia que honra ao defunto. E consagrar o próprio escudo depois da morte em combate era considerado uma honra para o defunto (GABALDÓN MARTÍNEZ, 2005, p.115). O escudo era a arma defensiva emblemática da tática hoplítica, a que protege a vida do companheiro imediato e a do próprio portador. O escudo não podia ser abandonado por uma questão de honra, mas também porque não era tão simples em um momento de perigo correr e desprender-se do escudo com emblema (HANSON, 1989, p. 27). Contudo, o fato de não abandonar o escudo no campo de batalha era um símbolo de coragem do guerreiro. Esse valor simbólico do escudo pode explicar sua consideração para ser uma das armas mais dedicadas às divindades. Os escudos, podiam ser ofertados como parte do botim, e dos despojos coletados no campo de batalha (GABALDÓN MARTÍNEZ, 2005, p. 117).

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25,00%

20,00%

15,00%

10,00%

5,00%

0,00%

discos serpente trípode

crescentes âncora, polvo cântaro

coruja cisne, clava cornucópia, cruz, esfinge

touro leão golfinho pássaro perna estrela grinalda cavalo

roda galo olho javali grifo, centauro banquinho ventoinha cervo

folha pantera coche de biga

crescentes âncora, polvo cântaro

mula, hoplitodromos cabra cavaleiro carneiro proa de navio caranguejo, falo, Ceto, lagarto, negro tocando trombeta, taça corvo, lebre, raposa, guerreiros, peixes A, abelha, ânfora, elmo, esquifo, garça, K, leopardo, lobo, penacho, porco, suástica, Tritão

gorgoneion, roseta Sátrio águia círculos trisquete cachorro Pégaso escorpião

roda galo olho javali grifo, centauro banquinho ventoinha cervo

aranha, bolinhas, camelo, discóbolo, escamas, escudo beócio, guerreiro e amazona, labirinto, linhas, M, odre de vinho, ondas, Quimera, sigma, tartaruga, tridente

Emblemas dos escudos (Fonte: PONTIN, 2006, p. 216-217)

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O ESTUDO DA SIMBOLOGIA DO GORGONEION FIGURADO NOS ESCUDOS GREGOS ATRAVÉS DA CERÂMICA ÁTICA PINTADA.

São muitas as fontes escritas que mencionam a oferenda de escudos capturados no lugar onde se desenvolveu o enfrentamento bélico. Em Olímpia, por exemplo, foram achados numerosos fragmentos de escudos de época arcaica, entre eles numerosas braçadeiras de bronze decoradas geralmente com motivos mitológicos (KUNZE, 1950). No santuário também foram recuperadas várias lâminas de bronze que deviam estar fixadas, como emblemas, no corpo de madeira dos escudos. Tal é o caso de uma Górgona alada armada (OSBORNE, 1996, p. 172, fig. 43). O escudo podia também ser dedicado, como oferenda pessoal, depois de cumprir sua vigência ou se estragasse (GABALDÓN MARTÍNEZ, 2005, p. 117). Finalmente, os escudos podiam ser encontrados nos santuários por outras razões não diretamente relacionadas com a esfera bélica. Assim, seguramente se guardavam os escudos das chamadas corridas de armados (hoplitodromoi), que consistiam em corridas a pé portando um escudo.

Fontes literárias e fontes arqueológicas Nos monumentos micênicos (por volta de 2000-1000 a.C.) encontramos numerosos vestígios de decoração sobre os escudos. O caso mais conhecido, citado por Chase (1902, p. 63) é a cena sobre a lâmina de uma espada, de um guerreiro na caçada de um leão. Entalhadas sobre o escudo do primeiro guerreiro que está avançando, encontramos duas, talvez três rosetas, incrustradas no metal escuro do qual o escudo é feito. Outra evidência da decoração dos escudos no período micênico, também segundo Chase (1902, p. 63) é um número de pequenos escudos de porcelana vitrificada, que devem ter servido de amuletos, e que são decorados com vários buracos pequenos. Em uma pintura no muro de Micenas, que representa a veneração a um tropaion (troféu), está entalhado sobre o escudo um desenho geométrico, de linhas verticais ligadas a linhas transversais oblíquas (CHASE, 1902, p. 64).

Escudo de lâmina de bronze de Olímpia, século VI a.C. Cabeça de Górgona, com patas de leão e rabo de peixe. (Fonte: OSBORNE, 1996, p. 172, fig. 43)

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Muitas das evidências dos monumentos micênicos, apesar de limitadas, são suficientes para atestar que o uso dos emblemas em escudos era comum aos gregos desde Época Micênica. Neste período podemos identificar três princípios distintos de decoração nos escudos: o ornamento geométrico, as protuberâncias e as rosetas. No período Micênico, como vimos, as fontes para nosso conhecimento são exclusivamente monumentais. Já no Período Homérico (1000-700 a.C.), nossa principal fonte de informação é naturalmente os poemas homéricos. Existem três passagens na Ilíada que descrevem a ornamentação dos escudos. São elas, a da égide de Atena, do escudo de Agamenão, e do escudo de Aquiles. A égide de Atena é descrita assim: “A égide ornada de franjas, então, sobre os ombros coloca, coisa espantosa de ver, pelo frio Terror circundada, pela Discórdia, a Violência e, também pelo Assalto horroroso, bem como pela cabeça da Górgona, monstro terrível, horripilante espetáculo, do Crônida Zeus maravilha” (Il., V, 739-743). A descrição do escudo de Agamenão: “Toma o escudo, depois, bem lavrado, que o corpo lhe cobre, forte e mui belo de ver, por dez orlas de bronze cercado e vinte umbigos de estanho muito alvo, dispostos a volta da superfície; era de aço cinzento a porção do meio. Como coroa se via a cabeça espantosa da Górgona de olhar terrível; a Fuga e o Terror ao seu lado se achavam” (Il., XI, 32-37). O escudo de Aquiles: “Grande e maciço, primeiro, fabrica o admirável escudo, com muito esmero, lançando-lhe a volta orla tríplice e clara, de imenso brilho. De prata, a seguir, fez o bálteo vistoso. Cinco camadas o escudo possuía, gravando na externa o hábil artífice muitas figuras de excelso traçado. Nela o ferreiro engenhoso insculpiu a ampla 98

terra e o mar vasto, o firmamento, o sol claro e incansável, a lua redonda e as numerosas estrelas, que servem ao céu de coroa” (Il., XVIII, 478-85). Encontramos nos monumentos paralelos às descrições homéricas. Brunn (BRUNN apud CHASE, 1902, p. 66) apontou numerosas analogias entre as esculturas de Níneve e as cenas sobre o escudo de Aquiles. Escavações em Chipre e Creta provam conclusivamente que foi do Leste, sobretudo da Fenícia, que a idéia de decoração em círculos concêntricos, o preenchimento de toda superfície do disco, foram introduzidos na Grécia. A prova disto é encontrada em um número de escudos votivos de bronze fino que foram descobertos em Chipre e Creta (cf. CHASE, 1902, pp. 6667). O caráter fenício destes escudos fica evidente nas figuras com as quais eles eram decorados (Milkarte, Astarte-Anaitis). É de Chipre também que vemos a aproximação de sua arte com os escudos de Atena e Agamenão. Conforme nos informa Chase (1902, p. 67), no templo de Golgoi, Cesnola, a estátua de Gerião, possui três escudos, um dos quais era decorado com três figuras. Perseu matando a Górgona na presença de Atena, e outro com quatro, um guerreiro e três figuras mutiladas maldosamente, o terceiro escudo contém um centauro e possivelmente outras figuras. No Período Homérico como no Período Micênico, podemos estabelecer o uso dos emblemas nos escudos e distinguir as mesmas classes que aparecem no Período Micênico. No período Histórico (de 700 a.C. em diante), Ésquilo, nos Sete contra Tebas, descreve os emblemas dos escudos dos diferentes heróis: Tideu (vv 374) possui sobre seu escudo um céu brilhante com lua e estrelas; Capaneu (vv 419) um portador de archote e uma inscrição em letras douradas;

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Eteócles (vv 452) um hoplita subindo uma escada no muro inimigo; Hipomedon (vv 478) Tifão; Hyperbios (vv 499) Zeus empunhando um raio; Partenopeu (vv 526) a Esfinge sobre um dos cadmeus; Anfiarau (vv 599) símbolos ambígüos; Polinice (vv 642) um guerreiro e uma divindade. Muitos desses emblemas presentes em Ésquilo são paralelos aos revelados pelos vasos pintados nos séculos VI a.C. e V a.C. As estrelas, por exemplo, são comuns nos emblemas dos escudos dos vasos de figuras vermelhas e negras, e a lua crescente também. O portador do archote pode ser comparado às figuras humanas sobre os escudos de um número de vasos de figuras vermelhas, inscrições sobre os escudos estão bem atestadas, a esfinge é usada como emblema em vários períodos, Tifão pode ser comparado aos centauros que aparecem com freqüência nos escudos, como de fato, constatamos em nosso levantamento. Eurípides em “As Fenícias”, também descreve os escudos dos heróis do ciclo tebano: Partenopeu (vv 1106) carrega como emblema uma pintura de Atalanta matando o javali: “Comandava-os com a insígnia de sua gente no centro do escudo, Partenopeu, filho da caçadora Atalanta, que abatia com o arco de longo alcance o javali da Etólia”. Hipomedon (vv 1114) “Avançava, trazendo no centro do escudo Panopte de múltiplos olhos”. Tideu (vv 1120) “Ornava-lhe o escudo um leão de juba hirsuda”. Capaneu (vv 1130) “Ostentava sobre o relevo de seu escudo de bronze um gigante nascido da terra, que leva nos ombros uma cidade inteira, arrancada com alavancas das bases, imagem do destino de nossa cidade”. Adrasto (vv 1135) “um emblema de cem víboras decorava seu escudo, sustentado pelo braço esquerdo, cabeças de hidra, orgulho argivo”. Polinice (vv 1124) “Como emblema, corriam no

escudo as éguas de Pótnias. Saltavam apavorantes. Giravam em círculos nos eixos, presas as argolas, de sorte que pareciam furiosas”. Aqui, novamente, como no caso das descrições de Ésquilo, encontramos muitas semelhanças com os vasos pintados e outros monumentos, embora aqui, como lá, o poeta tenha elaborado e adicionado novos elementos aos emblemas para facilitar os enredos. Assim, ainda que o javali seja um elemento muito comum nos vasos pintados, Atalanta e o javali não são encontrados nessa conexão. Serpentes, sozinhas ou em combinação com outros animais são freqüentemente encontrados. Cavalos estão entre os emblemas mais comuns, e freqüentemente eles são representados sobressaindo dos escudos, mas podemos deduzir que se tratasse de ficção poética e não de uso real, pois tal processo mecânico seria complexo. A Górgona sobre o escudo de Atena é mencionada duas vezes por Eurípides (Ion, 209 ff; Electra, 1254 ff), e o mesmo emblema é freqüentemente citado por Aristófanes (Acarnenses, 964 f., 1095, 1124, 1181; Lisístrata, 560). Eurípides (Meleager, fr. 534) coloca a águia no escudo de Telamão, Píndaro (Pítica, 8,65 ff) menciona como emblema de Alcmeão a serpente, ambos são muito comuns sobre os vasos e outros monumentos. Ao lado das descrições poéticas estão os relatos de Pausânias sobre a representação dos escudos em trabalhos de arte. Pausânias (V, 10,4) fala sobre a Górgona que viu sobre o escudo dourado no templo de Zeus em Olímpia. É interessante, que de acordo com Chase (1902, p. 74), muitos fragmentos do bloco de mármore que sustentava o escudo foram encontrados na escavação do sítio pelos alemães. Sobre o escudo de Menelau, na pintura de Polignoto em Delfos, ele fala sobre a serpente forjada sobre o escudo

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(PAUSÂNIAS, 10, 26,3). No grupo de guerreiros de bronze tirados dos lotes de Olímpia, Idomeneu perfura um escudo sobre o qual existia um galo (PAUSÂNIAS, V, 25,9). Finalmente, na lista de tributos de Asclépio em Atenas, temos a menção de três escudos decorados respectivamente com um cavaleiro, um hoplita, e Teseu com o Minotauro (C.I.A. II, 835, 68). Sobre os emblemas recolhidos nas evidências materiais, durante o período histórico, encontramos alguns exemplos muito interessantes. O escudo de Aristomenes, dedicado no santuário de Trofônio em Lebadeia, foi decorado com uma águia (PAUSÂNIAS, IV, 16,7), emblema que aparece frequentemente sobre os monumentos e vasos pintados, e provavelmente faça referência ao culto de Zeus. Os vasos pintados, conforme constatamos em nosso levantamento, atestam o uso dos emblemas do gorgoneion, do trisquele, do tridente, da clava, e da esfinge, entre outros. O gorgoneion como tipo iconográfico nos escudos A Górgona (em grego: Ãïñãþ, mais raramente Ãïñãþí) era um terrível monstro que amedrontava homens e deuses. Na mitologia, as Górgonas, designação coletiva de Esteno, Euríale e Medusa eram filhas de Fórcis e Ceto. Das três irmãs, apenas a Medusa, considerada a Górgona por excelência, era mortal. Habitavam no extremo Ocidente da terra, nas proximidades dos Infernos. Tinham aspecto monstruoso: cabeça enorme e cabeleira de serpentes, dentes longos e agudos, mãos de bronze e asas de ouro. Seus olhos eram faiscantes e quem ousasse fixá-los era petrificado. Os próprios imortais temiam-nas. Apenas 100

Posidão não temia a Górgona e, chegou a unirse a ela. Por ordem de Polidectes, tirano de Serifo, Perseu conseguiu matá-la. Elevou-se no ar graças às sandálias aladas de Hermes e, enquanto ela dormia, cortou-lhe a cabeça. Para não ser petrificado, utilizou-se de um escudo polido como espelho, fitando apenas a imagem do monstro. Do pescoço cortado, saíram Pégaso e Crisaor, que a Górgona havia gerado com Posidão. Atena colocou a cabeça monstruosa no centro de sua égide. Perseu recolheu o sangue saído do ferimento e que tinha propriedades mágicas: o da veia esquerda era um veneno infalível, e o da direita, um remédio capaz de ressuscitar os mortos. As serpentes que lhe rodeavam a cabeça tinham o dom de pôr em fuga o exército ao qual fossem apresentadas (DAREMBERG E SAGLIO, 1873-1917, t. 2, v. 2, p. 1615-1629). O modelo plástico da Górgona, sob a dupla forma de gorgoneion (a máscara pura e simples) e de personagem feminino de rosto gorgônico, está representado em uma série de escudos pintados nos vasos. Devido à crença no poder aterrorizante e paralisante do gorgoneion, os gregos costumavam representá-lo em escudos, couraças, portões e até mesmo muralhas; acreditava-se, também, que o gorgoneion era um símbolo protetor contra qualquer tipo de encantamento e, às vezes, era usado como amuleto. Segundo Vernant (1988, pp. 39-40), surgindo no início do século VII a.C., este modelo assistirá à constituição dos traços essenciais de seus tipos canônicos por volta do segundo quartel deste século. À parte as variantes que dele apresentam as suas diversas concepções, podemos, em primeira análise, distinguir duas características fundamentais da representação da Górgona. Primeiro, a facialidade. Contrariamente às

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convenções figurativas que regem o espaço pictórico grego na época arcaica, a Górgona é sempre representada de face, sem qualquer exceção, máscara pura e simples ou personagem integral, o rosto da Górgona invariavelmente encara de frente o espectador que a observa. Em segundo lugar, a “monstruosidade”. Quaisquer que sejam as modalidades de distorção empregadas, a figura sistematicamente joga com as interferências entre o humano e o bestial, associados e misturados de diversas maneiras. A cabeça, ampliada, arredondada, evoca uma face leonina, os olhos são arregalados, o olhar, fixo e penetrante; a cabeleira é tratada como uma juba animal ou guarnecida de serpentes, as orelhas são aumentadas, deformadas, às vezes semelhantes às do boi; o crânio pode apresentar chifres, a boca, aberta num ricto, estira-se a ponto de cortar toda a largura do rosto, revelando as fileiras de dentes, com caninos de fera ou presas de javali; a língua, projetada para a frente, salta para fora da boca, o queixo é peludo ou barbudo, a pele, por vezes sulcada por rugas profundas. Esta face apresenta-se menos como um rosto do que como uma careta. Nessa desfiguração dos traços que compõem a figura humana, ela exprime, mediante efeito de inquietante estranheza, uma monstruosidade que oscila entre dois pólos: o horror do que é terrificante, o risível do grotesco (DAREMBERG E SAGLIO, 18731917, t. 2, v. 2, pp. 1615-1629. Os textos oferecem outras indicações sobre os modos de ação, os terrenos de intervenção e as formas de manifestação do poder feito máscara da Górgona. Na Ilíada de Homero, a Górgona figura na égide de Atena (Il., V, 739-743), e no escudo de Agamenão (Il., XI, 32-37). Quando Heitor faz seus cavalos girarem em todos os sentidos, levando a morte à refrega, seus olhos têm o

olhar da Górgona “Por toda parte, os cavalos crinados de Heitor revolvia, com olhar igual ao da Górgona ou de Ares, o deus homicida” (Il., VIII, 348-349). Segundo Vernant (1988, p. 51), máscara e olho gorgônicos operam num contexto extremamente definido, se nos ativermos à Ilíada; estão integrados ao aparato, à mímica, à própria careta do guerreiro (homem ou deus) possuído de ménos, o furor guerreiro; de certa forma concentram esse poder de morte que se irradia da pessoa do combatente coberto por suas armas e prestes a manifestar no combate o extraordinário vigor, a fortaleza (alké) que o habita. O fulgor do olhar da Górgona age em conjunto com o brilho do bronze resplandecente cujo clarão sobe da armadura e do capacete até o céu, disseminando o pânico. Aberta, a boca do monstro evoca em seu esgar o formidável grito de guerra que Aquiles emite três vezes antes do combate, enquanto refulge a chama que Atena faz brotar de sua cabeça: “Ficam tomados de medo os Troianos no instante em que a aênea voz escutaram; os próprios cavalos de crinas tratadas retrocederam, que o dano iminente já então pressagiavam. Tremem de susto os aurigas preclaros, ao verem a chama inextinguível em torno à cabeça do claro Pelida; a de olhos glaucos, Atena, fazia que ardeste incessante. Por sobre o fosso três vezes gritou o Pelida divino; por vezes três os Troianos e os fidos aliados recuaram com tal balbúrdia, que doze guerreiros distintos morreram por suas lanças feridos ou sob seus carros” (Il., XVIII, 222-231). Para frisar, no entanto, os vínculos da máscara da Górgona com a mímica facial do combatente presa de frenesi guerreiro, em registro tanto visual quanto sonoro, insistiremos num detalhe significativo. Entre os elementos que revestem de terror o

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personagem do guerreiro, ao lado do grito formidável, do reluzir do bronze, das chamas que saltam de sua cabeça e de seus olhos, o texto da Ilíada inclui, no caso de Aquiles, uma observação que já chamava a atenção de Aristarco, segundo Vernant (1988, p. 52): o bater ou ranger de dentes (odóntõn kanakhé). Em O escudo de Héracles, evocando “as cabeças de terríveis serpentes” que disseminavam o terror (phobéeskon) nas tribos dos homens, Hesíodo retoma no verso 164 a expressão homérica: “O bater de seus dentes ressoava” (odóntõn kanakhé pélen); e no verso 235, referindo-se agora às serpentes das Górgonas, lançadas aos calcanhares de Perseu, escreve que esses monstros “dardejavam a língua, rangiam os dentes de furor (menei d’ekhásson odóntas), lançando olhares selvagens”. Resplandecente em suas armas, os olhos flamejando raios de fogo, quando Aquiles contrai o rosto em esgar, bate as mandíbulas, emite um grito de guerra desumano à maneira de Atena Porta-Égide (Cf. PÍNDARO, Olímpicas, 6,37), o herói furioso, possuído pelo ménos, apresenta um rosto em máscara de Górgona (VERNANT, 1988, p. 53). Clarão fulgurante das armas, brilho insuportável da cabeça e dos olhos, violento grito de guerra, ricto e bater de dentes, segundo Vernant (1988, p. 53), há ainda uma outra característica que aproxima a face monstruosa da Górgona do guerreiro possuído pelo ménos: o furor do morticínio. Para Halm-Tisserant (1986, pp. 250251), na mentalidade antiga, a coragem e o furor guerreiro eram assimilados como manifestações delirantes da possessão e por consequência ao mito da Górgona. É o olhar petrificante do monstro, confundido ao de Ares, que foi comparado no canto VIII, verso 349, “Heitor revolvia, com o olhar igual ao da Górgona ou de Ares, o deus homicida”. 102

Tanto na literatura como na iconografia o gorgoneion será estabelecido entre o combatente e o combate. A careta fascinante da Górgona reflete a embriaguez que provoca Ares e Dioniso. A referência à embriaguez do combate carrega a máscara de uma simbologia análoga àquela que era atribuída aos animais selvagens, como o leão, o lobo e o javali. Mas o emblema guerreiro por excelência é o gorgoneion, espelho de uma intervenção divina que é atribuído com predileção à Atena. Acreditamos que o gorgoneion foi escolhido como emblema de escudos com a finalidade de inspirar medo no inimigo, dando aos seus portadores um poder formidável, pois uma só mecha da cabeleira da Górgona apresentada a um exército invasor era o bastante para pô-lo em fuga. Este emblema aparece em apenas 3, 78% dos escudos de nosso levantamento, o que foi para nós uma surpresa, pois, na literatura é um emblema muito mencionado (cf. PONTIN, 2006, pp. 216-217, gráfico de emblemas dos escudos). Sendo sua maior freqüência de aparecimento em cenas míticas (em 63% do total das cenas, cf. PONTIN, 2006, p. 225; gráfico de freqüência do emblema gorgoneion nos diversos contextos), e tendo como sua principal portadora Atena (em 43% do total, cf. PONTIN, 2006, p. 225, gráfico de freqüência do emblema gorgoneion nos diversos contextos), esses dados talvez indiquem a influência da literatura na composição artística. Observamos por nosso levantamento que o gorgoneion fixado como tipo iconográfico de emblema no escudo de Atena aparece na metade do século VI a.C. (cf. PONTIN, 2006, p. 150, Catálogo de Exemplares, emblema: gorgoneion, todos os vasos relacionados ao emblema). Corroborando com nosso levantamento, o estudo de diferentes monumentos mostra

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70,00%

mítica

60,00%

50,00% combate 40,00% partida 30,00% Atena como portadora de escudos com emblema do Gorgoneion

20,00%

10,00%

0,00%

Freqüência do emblema Gorgoneion nos diversos contextos (Fonte: PONTIN, 2006, p. 225)

que o gorgoneion foi simultaneamente introduzido sobre o escudo e sobre a égide de Atena perto de 550 a.C. (HALM-TISSERANT, 1986, p. 276). Este fato coincide com a tirania de Pisístrato (560-528 a.C.) e de seus filhos (528-510 a.C.). Uma ligação particular une Pisístrato a Atena, reforçada pelo fato de que a deusa protege Héracles, o herói com o qual o tirano parece querer se identificar (BOARDMAN, 1972; 1978). Em outros termos, acreditamos que fixar esse tipo iconográfico de Atena se reverteria, em honra, em louvor a Atenas e ao seu tirano, seria um meio de propaganda. Durante o governo de Pisístrato Atenas cresceu rapidamente em poder e riqueza e foi quando surgiram muitos sinais visíveis deste crescimento e do espírito de comunidade, poder-se-ia dizer “nacionalismo”, que o acompanhavam, sobretudo em obras públicas e em grandes festivais religiosos (FINLEY, 1963, p. 39). Deste modo, introduzido por Atena, Pisístrato legitimaria sua tomada de poder. Este, segundo Halm-Tisserant (1986, p. 278) encomendou aos artistas que exaltassem a

natureza guerreira da divindade, reflexo de sua própria supremacia sobre Atenas. Diz-se que o tirano ateniense ordenou que os épicos homéricos fossem registrados por escrito pela primeira vez, acrescentando, por sua sugestão, as menções ao gorgoneion (Cantos V e XI) de maneira a conformar-se à imagem da deusa políade que a arte oficial tinha, com a entronização do tirano, remodelado. Conclusão Dentro do simbolismo do escudo podemos assinalar seu significado no âmbito funerário, o escudo era uma insígnia de honra ao defunto. Seu valor protetor dentro da falange, não era só individual mais também coletivo, isto devia outorgar ao escudo em especial, valor de proteção simbólico e tático. Dentro desse caráter protetor dos escudos podemos falar do simbolismo de suas imagens emblemáticas. Entende-se por emblema a representação de conceitos ou idéias através de símbolos ou figuras (SPIER, 1990). Ao estudarmos as

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imagens representadas nos escudos gregos, percebemos uma enorme variedade de figuras de significado emblemático. Nosso levantamento nos catálogos e na bibliografia permitiu a constatação de que os motivos mais freqüentes representados nos escudos são: os animais (aves, serpentes, animais ferozes), imagens da mitologia (Górgona, monstros) ou da religião, representações usualmente interpretadas como pertencentes à linhagem do proprietário ou às suas características pessoais e figuras relacionadas às cidades. Assim como as moedas gregas trazem figuras de significado emblemático e heráldico que segundo M. B. Florenzano (1995), revelam características específicas do Estado emissor, os escudos também o trazem. Os escudos, como as moedas, parecem ter sido suportes de imagens emblemáticas, imagens ‘resumidas’ de idéias mais complexas. A imagética monetária representava, com figuras simples, a autoridade emissora, o poder da pólis. Os emblemas nos escudos faziam a ligação entre o cidadão que os carregava e a guerra, entre a pólis e o exército. Em nosso estudo, nossa intenção foi de compreender a imagética dos escudos na Antigüidade grega analisando-a dentro de um conjunto mais amplo de objetos impregnados de funções mágicas e religiosas. Nesse sentido, acreditamos que as diversas imagens emblemáticas contidas nos escudos podiam fixar determinadas energias. Mas, que tipo de eficácia os gregos esperavam dessas imagens? Através de quais mecanismos poderia ser atribuída “eficácia” protetora às imagens? De acordo com Eliade (1954), esta crença de que a imagem tinha o poder de fixar determinadas energias, fundamentava-se na crença comum entre os povos pré-industriais 104

– e os gregos não eram uma exceção – de que certos objetos como as pedras, as plantas, os animais ou mesmo qualquer objeto fabricado pelo homem (os escudos, por exemplo), poderia ter – devido a circunstâncias particulares – um poder ou uma energia interna denominada comumente pelos antropólogos como maná. De acordo com a mesma crença, uma imagem pode substituir em alguma medida a “energia” de um objeto. Assim a representação de uma lança, de um raio, de uma espiga de trigo, de um animal, e, porque não, de uma divindade, estariam igualmente impregnadas de energia. Através da representação de um objeto ou de uma divindade, o homem procedia a uma recarga ritual de sua energia interna. Da mesma maneira que um sacrifício ou uma libação repetiam ritualisticamente um episódio mítico, renovando sua eficácia e força (ELIADE, 1954, pp. 31-35 apud FLORENZANO, 1995, p. 226). Existem inúmeros testemunhos seja de época arcaica, clássica ou helenística, que mostram como os gregos se valiam deste tipo de procedimento para afastar certos tipos de problemas. O exemplo mais elucidativo e nítido, que analisamos longamente em um apartado anterior, é o da cabeça da Górgona: Perseu carregava a cabeça maltratada de Medusa como uma prova de que ele a matara e ao mesmo tempo a fim de proteger-se e afugentar quem o perseguia. Mais tarde, ele a dá para Atena, sua protetora, que a coloca em sua égide, tornando-se o exemplo mítico que será repetido cada vez que o gorgoneion é colocado sobre um escudo, equipamento militar defensivo, por excelência (FLORENZANO, 1995, p. 227). Acreditamos que os gregos ao escolher os emblemas que iriam decorar seus escudos agiam segundo esse princípio básico da

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eficácia da imagem. Assim, no escudo, o emblema adquiria uma dupla função, a de identificar seu portador, e atribuir-lhe força e proteção. Deste modo, o escudo fixava e propiciava poderes extraordinários ao seu portador através de seu emblema. Portanto, os princípios da eficácia protetora da imagem e do “símile bane o símile” que podem ser aplicados na interpretação dos tipos monetários (FLORENZANO, 1995, p. 227), podem da mesma maneira ser aplicados nos escudos com suas imagens emblemáticas. Não esquecendo de seu caráter protetor dentro da falange, a função do escudo era proteger seu portador fisicamente, assim como protegê-lo de qualquer malefício (amuleto) e de acentuar sua potencialidade e sorte, trazendo-lhe benefícios (talismã) (FLORENZANO, 1995, p. 229). O amuleto é fabricado para repelir o que é prejudicial e o talismã para incitar o que é benéfico. O uso deste tipo de objeto, amuleto ou talismã, repousa na crença de que as qualidades de uma coisa pode ser transmitida a quem usa pelo contato (GASTER, 1987, pp. 243-246). Diante de todo levantamento que fizemos e de toda documentação que conseguimos coletar, entendemos que o emblema faz a ligação entre o cidadão, defensor da pólis, responsável pela preservação da ordem estabelecida e as virtudes que ele tem que ter para cumprir esta função, o ideal do guerreiro, a proteção que deve preservá-lo durante a guerra, a aprovação dos deuses para esta atividade. E o emblema leva a cada uma dessas coisas. É como se o corpo social, inteiro representado através do emblema do escudo reconhecesse a sua própria imagem. Portanto, ao considerarmos os escudos sob diferentes aspectos como seu valor como equipamento de proteção na guerra, seu valor econômico (era muito custoso), seu valor social (identificava e dava status ao hoplita),

seu caráter religioso (oferendas nos santuários, no campo de batalha e nos rituais de iniciação), seu poder apotropaico e mágico (emblemas fixando energias divinas e invocando proteção), podemos entender melhor seu caráter, sua natureza, contribuindo assim para melhor entendermos a sociedade grega. Referências bibliográficas ARISTÓFANES. Os Acarnenses. Trad. Maria de Fátima de Sousa Silva. Coimbra:. Inic., 1988. ______. Lisistrata. Mario da Gama Cury. São Paulo: Brasiliense, 1988. BOARDMAN, J. Herakles, Peisistratos and sons. RA 1972, 57-72; RA 1978, 227-234. CHASE, G. The Shield Devices of the Greeks in Art and Litterature. Harvard Studies in Classical Philology 13, 1902, 61-127. DAREMBERG, C. e SAGLIO, E. (eds.) Dictionnaire des antiquites grecques et romaines d’apres textes et les monuments. Paris : Hachette, 18731917, 5 vls. ELIADE, M. Tratado de Historia de las Religiones. Madri: Instituto de Estudios Políticos, 1954. (Ed. original, 1948). ÉSQUILO. Os Sete contra Tebas. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2003. EURÍPIDES As Fenícias. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2005. ______. Tragedias. Madri: Editorial Gredos, 1977. FLORENZANO, M. B. Anotações sobre a Representação de Monstros nas Moedas Gregas. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, 5, 1995, 223-234. GABALDÓN MARTÍNEZ, M. del M. Rituales de armas y de victoria: Lugares de culto y armamento en el mundo griego. Inglaterra: BAR International Series 1354, 2005. GASTER, T.H. s.v. Amulets and Talismans. The Encyclopaedia of Religion. Editor Geral, Mircea Eliade. N. York/ Londres, 1987, v. 1, p. 243-246. HALM-TISSERANT, M. Le Gorgonéion, Emblème D’Athena: Introduction du Motif sur le Bouclier et l’Égide. Rev. Arch., 1986, p. 244-78.

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O ÍCONE BIZANTINO E A PRODUÇÃO DE SENTIDO NOS IMIGRANTES ORTODOXOS UCRANIANOS

O ícone bizantino e a produção de sentido nos imigrantes ortodoxos ucranianos

Paulo Augusto Tamanini Mestrando em História – Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Autor de, entre outros, IERATIKON. A divina liturgia no rito bizantino. São José: Ecclesia, 2002.

RESUMO O presente artigo pretende analisar como a imagem iconográfica presente na Igreja Ortodoxa Ucraniana era percebida, sentida e usada na experiência cotidiana de famílias imigrantes ucranianas em Papanduva – SC, município localizado no norte catarinense. Observa-se que a Igreja Ortodoxa, presente na cidade desde 1931, se apresentava como instituição formadora e reguladora das formas do viver dentro da família, casas, vizinhanças que, de certa forma, estava relacionado com o poder da imagem e a imagem do poder desta instituição religiosa. Para as análises, busco observar relações que possibilitem reflexões acerca das categorias como identidade e imagem entrelaçadas à imigração, na qual é possível perceber construções culturais e religiosas. A análise do discurso, na perspectiva da construção de subjetividades, auxilia no entendimento de como o grupo de imigrantes tece para si a auto-imagem. PALAVRAS-CHAVE: Ícone bizantino; Igreja Ortodoxa; produção de sentido.

ABSTRACT This article examines how the iconographic image in Ukrainian Orthodox Church was seen and used in daily life of immigrant families Ukrainian in Papanduva – SC, city located in northern Santa Catarina, Brazil. The Orthodox Church is in the city since 1931 and it was the institution of training and regulatory forms of life within the family, homes, neighborhoods, and this was linked to the power of image and image of the power of this religious institution. For analysis, i reflect on categories of identity and image where you can understand cultural and religious buildings. The analysis of speech, in view of the construction of subjectivities, helps in the understanding of how the group of immigrants made for you the self-image. KEYWORDS: Byzantine icon; Orthodox Church; the production of sense.

Recebido em: 10/02/2009

Aprovado em: 10/04/2009

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O ícone bizantino e a produção de sentido nos imigrantes ortodoxos ucranianos

A iconografia bizantina, de acordo com a tradição cristã ortodoxa, desenvolveu-se primeiramente no Oriente. É dita como uma forma de arte que se tem usado no cristianismo desde a antigüidade e que se conservou na Igreja Ortodoxa, como expressão de sua fé. As paredes e as abóbadas dos templos, assim como as casas dos fiéis são portadores destas obras de arte que pretende anunciar, em linhas e em cores, a verdade revelada nos Evangelhos: a Encarnação do Filho de Deus para a Salvação da humanidade e do Cosmo inteiro (EL HAJ, 1971) Desta forma, entende-se que o ícone não é mera arte decorativa. Sua finalidade não é ornamentar um ambiente residencial, nem simplesmente o de embelezar um templo: é um meio de comunicação entre o imigrante e o seu sentir religioso. O ícone é uma unidade artística, espiritual e litúrgica que se identifica com uma fé e com uma Igreja e por isso o ícone é pintado conforme as normas iconográficas de tradição milenar, remontando a época apostólica (CLEMENT, 2003). A tradição ortodoxa incorporou a arte na sua vivência espiritual, na medida em que a Beleza é um dos nomes de Deus e onde há beleza há harmonia e Deus está presente. A Ortodoxia reconhece Deus como primeiro artista: “E Deus disse: haja luz. E houve luz. E viu Deus que era boa a luz” (Gênesis 1). Deus criou o mundo e viu que era bom! O Criador de todas as coisas fez sua obra e a contemplou, portanto a arte tem a função

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sagrada de nos transmitir uma verdade; desta decorre a beleza de uma obra. Nesse sentido, a arte sacra ocupa um lugar de primeira ordem como verdade teológica e transfigurada nas vivências. Portanto, o ícone pretende ser a imagem do Invisível. Quando se entra num templo ortodoxo imediatamente percebe-se inumeráveis ícones por toda a igreja. Bizâncio irradiou esta arte por todo o império Cristão e hoje se encontra em todas as Igrejas Ortodoxas espalhadas pelo mundo. A atualidade do ícone é surpreendente. Há um movimento de redescoberta das fontes da Cristandade e o Ocidente Cristão cada dia se extasia e surpreende com as riquezas dos ícones. Estes têm lugar e papel importantíssimo para a espiritualidade ortodoxa para podermos compreender o lugar ocupado pelo Ícone, já que não existe nada semelhante na tradição religiosa ocidental, seja na forma artística, seja no conteúdo espiritual. De fato, para o Ocidente Cristão, o ícone é desconhecido e incompreensível até que se percebe sua função e sentido. É isto que nos propomos aqui, uma aproximação e penetração no mundo do Ícone. A palavra ícone vem do grego EIKÓN, que significa imagem, palavra com amplas aplicações e que, no Ocidente, é extensiva às figuras tridimensionais que representam o Cristo ou os santos. O Oriente Cristão não produz estátuas por considerar as dimensões tridimensionais das formas um passo para antropomorfizar a representação e deslizar para a idolatria. Um Ícone, portanto, é

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simplesmente uma “imagem pintada sobre a madeira, com técnica muito especial e de acordo com cânones bem definidos quanto ao tema, composição, cor, harmonia que se pretende pintar”, assim define Pe. André Sperandio, monge ortodoxo. Para o imigrante ortodoxo é difícil definir o que é um ícone, porque para eles o ícone é uma experiência pessoal, a contemplação através da pintura. Portanto, só podemos defini-lo negativamente, ou seja, não é um retrato, não se pintam sentimentos ou emoções. Não se adora o ícone, não há risco de idolatrar a pintura, pois essa representa uma imagem – um protótipo, um modelo – na realidade, venera-se a pessoa representada, não o objeto em si. O ícone é uma presença misteriosa que não se define. O ícone não é um simples estilo artístico nem um modo histórico de arte, não está preso a um tempo específico. O município de Papanduva, Santa Catarina, foi criado em 11 de abril de 1954, antes fazia parte do município de Canoinhas. Em meados do século XVIII, passavam por estas terras, pela então conhecida “Estrada da Mata” ou “Estrada das Tropas”, hoje BR 116, os tropeiros vindos do Rio Grande do Sul, conduzindo suas tropas de muares com destino ao Estado de São Paulo para suprir o mercado de charque, couro e sal. Como neste local havia um ótimo pasto para alimento dos animais, um capim chamado “papuã”, estes se alojavam nestas áreas para alimentá-los e para o repouso de todos, para somente após alguns dias prosseguirem a viagem. Pela abundância do capim “papuã”, os tropeiros chamavam estas áreas de Papanduva, originando assim o nome da cidade. Por volta de 1828, colonos provenientes do Paraná, foram se instalando para cuidar da estalagem dos tropeiros e desenvolver a pecuária e, com o passar do tempo, a lavoura

de subsistência e principalmente, a extração de erva mate. Quando novas famílias chegaram a Papanduva foram agrupadas pelos estabelecidos, no espaço que lhes eram próprios, ou seja, na colônia de Iracema. Parecia ser necessário que esquadrinhassem territórios e lá se delimitasse um lugar específico para os estrangeiros. O imigrante é o centro por onde gravitam enorme bagagem simbólica. Quando o indivíduo chega a um lugar, com ele comparecem tantos outros elementos que formam sua ‘persona’ social. Por esta ‘persona’ é possível compreender seus costumes, maneiras de pensar, seus hábitos e como ele atribui significado às coisas que estão ao seu redor. O imigrante é um individuo composto pelo plural: é ele e sua cultura. Neste composto residem elementos que ele pode julgar passíveis de modificações ou não, e, pode até mesmo, reorganizá-los para que abra espaços para o aparecimento de outros. É uma luta travada entre aquilo que ele quer reafirmar como característico com o que é negociável, funcionando como moeda de troca. Neste jogo de negociatas, a religiosidade dos imigrantes era preservada. A imigração não pode ser vista apenas como mero deslocamento de pessoas, mas também como deslocamento da cultura e do simbólico que constroem identidade. “A identidade é relativa, está em constante reelaboração e não é uma só, senão múltipla construindo-se, na medida que se articula em diferentes espaços”(MONTEIRO, 2004, p.128). A identidade é “identificação, é processo que se dá na família, na religião, na aldeia”, pelo contato, pela interação (OLIVEIRA, 1976, p.4). O contato e a interação sugerem ou informam o similar e o dissimilar, o homogêneo e o heterogêneo que constroem diferenças, caracterizando o ‘que é’ daquilo ‘que não é’. O jogo dos contrastes

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revela identidades, pois segundo Kathrin Woodward identificar é, simultaneamente, construir diferenças (WOODWARD, 2000, p.39). A identidade é plasmada, é construída e é atribuída na relação, mas movida por interesses (CHARTIER, 1990, p.17), sejam eles políticos, religiosos e étnicos. Os interesses selecionam, mantém e reforçam identidades objetivando fins outros que se mascaram na suposta abnegação e desprendimento, residentes no simples fato de preservar. O grupo constrói imagens de si na relação com o diferente e esta construção está em plena transformação, pois o outro sofre de mutações constantes e se prolifera em demasia. Não há somente um outro. Diante de cada pessoa o outro se propaga tão velozmente quanto maior for o número de relacionamentos. Em determinados circunstâncias e tempos até mesmo aqueles que são tidos como similares, reaparecem diante dos olhos como um outro. As réplicas perfeitas talvez, só existam no imaginário. Os pares não são cópias; são sujeitos cuja individualidade é ontologicamente construída pelo plural, e, que se diferenciam entre si. Posto isto, parece que o imigrante associava sua religiosidade e sua veneração aos ícones, como marcas de pertencimento e de identidade. Os imigrantes construíram suas casas em sistema de mutirão e, da mesma forma, ergueram seu templo: uma igreja no estilo bizantino eslavo, toda de madeira extraída da mata. Depois de pronta, em 1931, nela se reuniam os imigrantes para manifestar sua religiosidade, e solidificar seus laços familiares e sociais. Observa-se que a igreja ocupava um espaço preponderante no pensar social dos imigrantes: a igreja era um lugar de poder social. Parecia ser ela o ponto de convergência e o eixo centralizador das engrenagens do existir étnico daquele lugar. 110

Assim, a religiosidade parece ser um elemento de identidade que está intimamente ligada à etnicidade do grupo e “pode se tornar um elemento poderoso de identidade, verdadeira reivindicação cultural”, como afirma Andrea Semprini (SEMPRINI 1999, p.163). Segundo o historiador romeno Mircea Eliade, a igreja é um espaço sagrado com um valor existencial importante para o homem religioso e é ela quem orienta as possibilidades das vivências no viver real (ELIADE, 1999, p. 26-27). As casas da colônia estavam construídas ao seu redor como se buscassem o aconchego, a proteção e a segurança de um centro ou ainda como filhos que se aninhavam nos braços da mãe, sentindo-se seguros, protegidos. Também pode ser vista, muito além do espaço reservado ao sagrado, místico e espiritual, mas também como um lugar de afirmação, preservação e transmissão da cultura. Daí, pode-se pensar que o pleno exercício da espiritualidade guarda relação intrínseca com evidentes finalidades como para outros objetivos , não implícitos. Segundo os cânones da Igreja Ortodoxa, toda igreja deve ser construída estando de frente para o nascente, devendo os fiéis estar com a face voltada para o Oriente (onde nasce o sol) no momento da celebração da Divina Liturgia, pois Cristo é a luz que veio para iluminar as trevas (SPERANDIO, 2008), revela o sacerdote ortodoxo. A igreja, espaço sagrado, entendida por Émile Durkheim, como sendo o lugar destinado à vivência religiosa, não pode coexistir no mesmo espaço do profano nem no mesmo tempo em que as coisas profanas convivem, por isso ela edifica seu calendário, separando dias do trabalho dos dias dedicados ao sagrado, indicando dias específicos para as festas (DURKHEIM,1989) ou seja,

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celebrar os dias santos. Se de um lado, a Igreja marcava o tempo, prescrevendo quais dias deveriam ser observados como dias santos, por outro, o grupo o marcava com suas características. A Igreja dos ucranianos tornou-se típica; as marcas do pertencimento a tornava elemento identificador de etnia. O grupo deixava seus rastros, seus selos, de forma visível afastando possibilidades de confusão e a inteligibilidade e decifração desses códigos se fazia possível para os membros de sua grei. Também Certeau entende que é necessário que a igreja construa seu próprio espaço onde seja possível gerir seus saberes e poderes, já que ela se coloca como ‘outra’ dentro de um espaço social previamente organizado (CERTEAU,1994). A igreja, para além de constituir o território autorizado e apropriado onde se sucediam estas manifestações religiosas, era uma instituição onde o simbólico ultrapassava as fronteiras do real, uma vez que lidava com realidades subjetivas, de natureza espiritual, predominantemente individualizada, por mais que se manifestasse coletivamente. A Igreja Ortodoxa, fazendo uso do recurso da imagem através da abundância dos ícones expostos nas paredes do templo, levava os corpos piedosos de seus fiéis às experiências tidas como contemplativas, reforçando o simbólico inserido no factual. A imagem passava a ter lugar privilegiado no âmbito da representação. A igreja não era somente a soma do conjunto de imagens, mas uma instituição que também socializava memórias pelas imagens. Nas palavras de Debord: “O espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como sentido privilegiado da pessoa humana” (DEBORD, 1997). Os ucranianos ao entrarem na igreja repleta de

santos ou passagens da vida de Jesus iconografadas nas paredes, sentiam-se impelidos, pelo olhar, a buscar no passado a fé que seus antepassados professaram, bem como recordações, lembranças. Tudo aquilo que atrai e prende nossa atenção pelo olhar chama-se, segundo a semântica latina, de ‘espetáculo’. Quando temos a sensação de sermos testemunhas de algo surpreendente, denominamos de ‘espetacular’ a visão que obtivemos do ocorrido. O espetacular dá-se pela contemplação, atraída pela plástica visual, pela força do convencimento, pela afirmação da suntuosidade das formas, cores e traços como também pela representação dada em seu conjunto. Os ícones, modelados e produzidos para promover a sensibilidade, através da visão, articulava o real com a possibilidade e a probabilidade do real. A igreja era a instituição que contribuía para a manutenção da ordem, ou melhor, reforçava simbolicamente a ordem pela pregação proferida por quem era autorizado a fazer pela sua condição: o sacerdote. O sacerdote ortodoxo não era a instituição, mas o seu representante legal que usava da palavra como meio de convencimento, como necessidade de comunicação. O sacerdote tentava transmitir um ensinamento por via de autoridade e apelo à obediência, isto é, em nome de outro: em nome da Igreja a quem deveria estar subserviente. Suas palavras não eram reconhecidas como suas, mas da instituição a que pertencia, por isso tinham peso: assim criam, assim faziam valer. As palavras instituídas pelo seu legítimo representante clerical não eram reconhecidas como regras impostas, mas como princípios coletivamente organizados e que precisavam ser colocados em prática. A estratégia discursiva adotada por ele visava produzir uma naturalidade no processo de imposição, como

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demonstra Bourdieu: “O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de subvertê-la, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras” (BOURDIEU, 1996, p.14) . Somada à palavra proferida estava a figura do clero ortodoxo, portador de um extenso capital simbólico, que agigantava o poder de persuasão e de convencimento acomodando a tudo isso o espetáculo do figurino: a batina preta vestia um homem maduro de voz grave, com barbas e cabelos compridos. A presença do padre impunha a autoridade e o respeito, mesclada por uma nesga de mitificação à pessoa religiosa. Ao reverenciar a pessoa do sacerdote ou ao contemplar os ícones nas paredes da igreja, os fiéis estavam diante do estupor da imagem. A imagem discursa com vozes ‘ouvidas pelos olhos’, pela força impositiva de sua aparência. A estampa, impregnada de sentidos, instiga e faz emergir as sensibilidades, parece mendigar por ser compreendida sem precisar pedir, por aquilo que demonstra, por aquilo que oferta na evidente plasticidade e maleabilidade de estilos. A sócia majoritária da esperança é a imaginação. A imaginação remete às imagens criadas no abstrato, em busca de uma corporificação no real. Ela alimenta a esperança com seus devaneios, criando mundos e entidades possíveis, presumíveis, plausíveis e prováveis, fazendo com que o sonho se aproxime ao máximo do concreto. Por isso, talvez , como afirma Eliade : “A mais pálida das existências está repleta de símbolos o homem mais realista vive de imagens”(ELIADE, 2002, p.12). Para tanto faz uso de uma linguagem apropriada: a linguagem do sonho, do imagético. A linguagem iconográfica é codificada pelo refinamento de quem tenta decifrá-la. 112

Tal refinamento é conseguido pelo contínuo esmero das sensibilidades, exercitado nas tramas, nos enredamentos das vivências de certa sacralidade. Contemplar um ícone, sem este preparo, é contemplar sem compreender, por isso é uma contemplação estéril de sentido e visão: deve-se compreender o que se vê ou, do contrário, não há o que se ver (FOERSTER,1996). Estar diante do ícone de devoção parecia, para alguns fiéis estar diante de sua história, pois as lembranças do passado impingiam a nostalgia, remetendo o orante a outros tempos, quando a mesma contemplação era feita, em sua terra natal, em sua igreja. Tais reminiscências invadiam o cenário, sem pedir licença, interrompendo o momento de oração para dar lugar a saudade. Segundo Chartier, as práticas do passado chegam até nos, geralmente, através de textos escritos que obedecem a uma lógica adequada e seqüencial. “A imagem obedece uma outra lógica, que não é mesma da escrita, a lógica da construção e decifração da figura” (CHARTIER, 2004, p.12) . O que nos chega do passado através da imagem, nem sempre é passível de fácil decifração, pois foge do senso comum; há que se ter um olhar aguçado e esmerado. A escrita, penso, exige igualmente refinamento, todavia, não tão contundente, para sua compreensão e assimilação intelectual. Quem já não experimentou a sensação de deleite, de satisfação e de catarse, ao se deparar com um bom texto, livro ou obra, diante de palavras tão acertadamente construídas, de pensamentos tão inteligentemente articulados, das idéias que levam a fazer liames entre reflexões, materializados nas formas elegantes do escrever? O texto escrito nos permite tais sensações, talvez porque siga uma trajetória seqüencial, puxado pelo campo gravitacional das teorias, calçado pelos conceitos, protegido pelos métodos,

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tentando fugir de possíveis sofismas, resultando numa esperada coerência. O impacto frente à imagem é fruto da percepção que abre possibilidades para outros entendimentos, outros olhares. Não obedece a uma trajetória seqüencial ou um estilo igual a da escrita, mas trilha seus próprios caminhos para uma correta interpretação do que nela se contempla. A imagem iconográfica exposta no ambiente propício para oração (a igreja) estendia seus rizomas para além desta finalidade: oportunizava a contemplação. A contemplação é a comunicação com a beleza e a beleza é essencialmente gratuita, não se impõe apenas se propõe (EVDOKIMOV , 1990, p.47). A beleza nem sempre está naquilo que é explícito, por vezes ela prefere ser encontrada no escondido, não quer ser o centro de convergência de todos os olhares, só daqueles poucos que a mereçam; a visibilidade de sua essência se dá por outras vias, não apenas pelo olhar. Na igreja de rito bizantino eslavo, parece que o mais importante, que o mais sagrado será encontrado no velado, tanto que, o altar principal está atrás de uma parede chamada iconostase, do grego åßêïíïóôÜóéïí que significa uma parede ornamentada com ícones separando o santuário do corpo da igreja. O sagrado está polarizado pelo mistério que convida ao respeito e não ao temor. Ainda hoje, muitos cristãos não bizantinos, não compreendem o porquê da parte mais sagrada de uma igreja ortodoxa estar reservada ao clero e alguns auxiliares. Parece que este fato desconcerta-os, a ponto de ser necessário desvelar o mistério para satisfazer a compreensão. Os ucranianos, ao que parece, não estavam preocupados com a razão, com os porquês, com a compreensão; relevante era contemplar, adorar, deixar-se absorver pelo mistério.

Se na escrita, busca-se uma coerência lógica e racional, na imagem não se busca, a priori, elucidações, esclarecimentos ou explicações do contemplado. Almeja-se um entrelaçamento daquilo que está vivo, daquilo que é real e concreto com aquilo que é espiritualizado, pensado, imaginado, subjetivado. Confundir, talvez seja a fusão de tantos olhares subjetivos, de tantos pensamentos tomados por corretos, mas que se perdem no ato de se contemplar uma imagem. Em um ícone, por exemplo, os limites espaciais da figura não coincidem necessariamente com a abrangência de sua representação, ela ultrapassa os perímetros físicos, impostos pela sempre criativa imaginação. Ao reverenciar um ícone de Cristo ou de Maria, automaticamente, quem o contemplava parecia ser transportado para outras dimensões, outras realidades, outros contextos. Os fenômenos visuais ou a visualidade estética, que dos ícones pareciam brotar, podiam determinar algo de histórico, uma vez que a imagem repercutia de maneira sintomática no imigrante, fazendo-o rememorar o pretérito. Sob o prisma da exigência metodológica, os ícones podem, então ser encarados como fonte histórica, pois possibilitam lograr alguns entendimentos. Para Ulpiano Bezerra de Menezes, os ícones são um insuperável manancial de informações que seria insensato ignorar , pois apontam para tantos vetores das vivências do presente e do passado. Os ícones não são apenas fontes estagnadas, elas interagem no cotidiano fazendo parte do discurso produzido e circulado por aqueles com quem às imagens se afinam. As figuras tornaram-se parte integrante da elaboração do discurso reforçando o seu caráter documental. O historiador não pode se deixar seduzir pura e

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simplesmente pela beleza da imagem; mais do que mensurar sua estética, talvez deva se ater aos modos de como estas imagens são apreendidas. Quando o imigrante ucraniano sentia-se atingido pelo estupor da imagem, observa-se um modo peculiar de apreensão que o levava a produzir sentidos. Talvez, seja nesta produção de sentidos que resida a chave para entender tal arrebatamento como conseqüência da capacidade que ele tinha de articular os códigos imagéticos com o real. Através das imagens, o passado daqueles imigrantes tornava-se coetâneo, tornando possível não esquecê-lo, reforçando aspectos caros ao grupo e ao indivíduo. No rastro deste novo jeito de se fazer história, trilham outros tantos exemplos que abrem os olhos para o fato acontecido e sua decorrente interpretação dadas pela música, pela dança, pelas artes plásticas e cenográficas. A história, plasmada pelos códigos, pela representação, pelos entendimentos põem em relevo não somente o acontecido, mas os significados que lhe são atribuídos dentro de um contexto.

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WHEN TWO WORLDS COLLIDE: REPRESENTAÇÕES DO REAL E MONSTRUOSIDADES FANTÁSTICAS NO CONJUNTO...

When Two Worlds Collide Representações do real e monstruosidades fantásticas no conjunto simbólico das capas de álbuns e singles da banda Iron Maiden Rodrigo Medina Zagni Doutorando em Práticas Políticas e Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo – PROLAM/USP – São Paulo. Docente do curso de Ciências Sociais da Universidade Cruzeiro do Sul. Autor de “Imagens projetadas do Império: o cinema hollywoodiano e a construção de uma identidade americana para a política da boa vizinhança”. Cadernos PROLAM/USP, v. 1, 2008.

RESUMO Por meio do estudo das capas de long plays, compact discs, extended plays e singles promocionais da banda inglesa Iron Maiden, pretendemos identificar e compreender emissor e receptor no conjunto de representações simbólicas ali inscritas, bem como o tempo histórico no qual estão inseridas, às problemáticas ali representadas e auxiliar na compreensão do fenômeno do heavy metal não apenas como estilo musical, mas como campo de produção de sentidos. PALAVRAS-CHAVE: representações simbólicas; heavy metal; Iron Maiden.

ABSTRACT Through the study of layers of long plays, compact discs, singles and extended plays promotional English banda Iron Maiden, we identify and understand transmitter and receiver in the set of symbolic representations entered there, and the historical time in which they are inserted, the issues represented there and help in understanding the phenomenon not only as a heavy metal style music, but as a field of production of meaning. KEYWORDS: symbolic representations; heavy metal; Iron Maiden.

Recebido em: 10/03/2009

Aprovado em: 10/04/2009

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RODRIGO MEDINA ZAGNI

When Two Worlds Collide* Representações do real e monstruosidades fantásticas no conjunto simbólico das capas de álbuns e singles da banda Iron Maiden Nas sociedades contemporâneas pósindustriais, sob vigência do ciclo sistêmico do capital que intensificou o consumo de massa e conformou o que se convencionou como globalização, imagens circulam com velocidade, intensidade e facilidade nunca antes vistas1. A subordinação da ação criativa humana à lógica da linha de produção, geradora do mass media2, a conversão de bens simbólicos em produtos culturais de consumo de massa (que reconfigurou sua própria lógica produtora) 3 e sua inserção em mercados específicos, corroboraram também para o fenômeno da consolidação do que podemos designar firmemente como uma sociedade de imagens, numa espiral de produção e recepção, conformando relações sociais vetorizadas por relações de consumo. Nunca antes produtos dos mais variados tipos dependeram tanto de imagens para fixálos consciente e inconscientemente no público receptor por meios propagandisticos. Com o uso de sofisticadas estratégias de marketing, muitas fincadas em princípios de psicologia social que buscam nas esferas mais profundas da condição humana criar necessidades de consumo, são construídas

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ilusões de satisfação para anseios projetados e materializados em objetos tridimensionais ou atribuídos a bens imateriais, por meio de relações constituídas e mediadas primordialmente por imagens. Não escapa a essa lógica a indústria fonográfica, como indústria de bens culturais e de consumo de massa. Desde a difusão dos primeiros long-plays na década de 1930 – confeccionados em vinil –, até a consolidação dos compact discs na década de 1990 – com uso de tecnologia laser – a produção e circulação de imagens em embalagens que acompanham o produto principal foi determinante para sua identificação como aliciador para o seu consumo segundo o objetivo de seu emissor: a venda. Nesse sentido, a indústria fonográfica nada inovou, senão readaptou o conceito de “embalagem” anterior à própria revolução industrial; contudo, na nova ordem do que Walter Benjamin designou como da “reprodutibilidade técnica”. O capital – como relação social –, e a produção de imagens subordinada às necessidades de mercado – como parte de estratégias de venda –, determinaram uma natureza específica de relação entre imagem

Faixa 5 do Compact Disc Virtual XI. Iron Maiden. EMI. Londres, 23 de março de 1998. 1 CD. Eduardo Neiva se refere ao século XX como “um século de imagens”. In: Imagem, história e semiótica. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material. Nova série n. 1, 1993. A esse respeito ver GULLAR, Ferreira. Vanguarda e subdesenvolvimento. Ensaios sobre Arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984 e SCHWARZ, Roberto. O Pai de Família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. A questão é trabalhada por BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Obras Escolhidas. São Paulo : Brasiliense, 1993.

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e receptor sob a égide do consumo, colocando a questão econômica como determinante da função social deste tipo de produção simbólica, o que pode ser constatado por meio da análise de seu suporte, não só em seus aspectos ergonômicos e estéticos, mas como base informativa de representações imagéticas (desde as capas para LP’s até os encartes acondicionados em estojos para CD’s). Estas anunciam aspectos fundamentais do produto principal, ou melhor, como os simboliza o emissor das imagens segundo suas estratégias de venda. Um segmento de fundamental importância dessa indústria é o relacionado aos grupos de heavy metal, um mercado fortemente consolidado no âmbito mundial. O gênero musical conformado entre o final da década de 1960 e início da década de 1970 – pensando como marco fundacional do estilo já acabado a gravação do álbum Black Sabbath, da banda de mesmo nome, no ano de 1970, pela Warner Bros. na Inglaterra –, é tributário do lamento dos escravos negros no sul dos EUA, expresso nas notas melancólicas do blues, cujos primeiros acordes elétricos se deram em guitarras artesanais de péssima qualidade e caixas acústicas igualmente precárias, motivo pelo qual soavam distorcidas. Se quisermos reconstruir a árvore genealógica para determinarmos a descendência do heavy metal, ela advém diretamente do rock’n roll, tronco do qual deriva o estilo metálico, onde a distorção primal e a busca pelo grito de liberdade, como signo de resistência, são ainda traços característicos fundamentais. Mas o rock, como estilo acabado, além de ter incorporado características não só do rhythm & blues (a música negra), da pop music (a música branca conservadora) e da country and western music (uma versão

branca, também folk como o blues, para o sofrimento de pequenos camponeses), conforme defende Carl Belz em The story of rock (1972, passim), pode ser associado a tradições musicais muito mais antigas. O rock progressivo, o mais próximo na genealogia do heavy metal, traz uma enorme influência da música erudita renascentista e barroca, como nos casos de Cream; King Crimson; Yes; Genesis; Wish Bone Ash; Pink Floyd; Emerson, Lake And Palmer; Frank Zappa and The Mothers Of Invention e Jethro Tull, que influenciaram enormemente os primeiros acordes do heavy metal inglês. Tendo herdado a tradição erudita do rock progressivo, herdou também outras de suas características que acabaram se tornando marcas fundamentais do estilo. Por exemplo, as experimentações que deram ao progressivo uma estética introspectiva, como elemento fundamental para experiências com substâncias alucinógenas, acompanhadas por letras ricamente elaboradas, dignas da mais alta literatura, e da virtuosidade de musicistas extremamente técnicos e talentosos. Na prática, aqueles que foram capturados por este ambiente desenvolveram outras dinâmicas em relação aos hábitos dos roqueiros até então convencionais. Não se dançava mais, a música deveria ser ouvida e partilhada em silêncio. A rebeldia primordial, abandonada em alguma medida pelo rock progressivo, seria catalizada não só pelo movimento punk mas por boa parte das bandas de heavy metal que receberam a alcunha pouco aceita de “rock pauleira”, cujas canções referiam-se a banalidades (como o sexo e drogas), mas que afrontavam os regramentos sociais impostos. Dentre as bandas de heavy metal que surgiram nesse período formativo e ainda hoje estão em atividade (como Motörhead, AC/ DC, Deep Purple, Kiss, Black Sabbath, Judas

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Priest e Iron Maiden), no cenário de bandas do gênero, pode-se dizer que são as poucas que ainda carregam o maior conjunto de elementos identificadores que deram marca ao estilo: arquétipos de transgressão a uma ordem social rigidamente constituída. Fato notório é o de muitas das bandas acima elencadas serem inglesas (à exceção do Kiss, dos EUA, e dos australianos do AC/DC), não só pelo fato de nas décadas de profusão do estilo a Inglaterra ser ainda um centro industrial importante e uma das maiores economias mundiais (devidamente subordinada à nova órbita hegemônica estadunidocentrista, consolidada no pósSegunda Guerra Mundial), cuja indústria fonográfica representava uma parcela significativa no mercado mundial de bens culturais; mas por conta da extrema rigidez do Estado no controle social e dos códigos de conduta que se abatiam numa sociedade puritana extremamente conservadora, que reprimia os anseios de seus jovens por expressarem-se, condicionando-os rigorosamente em todos os âmbitos da vida social. Fundamentalmente por meio daqueles alijados da distribuição das riquezas advindas do capitalismo, o recalcamento das restrições sociais explodiria de alguma forma. A repressão foi o motriz da explosão de movimentos como o punk e a New Wave Of British Heavy Metal, cujo berço foi a Inglaterra. O primeiro teve como maior representante a banda Sex Pistols, liderada por Sid Vicious, bem como o The Clash, que se opunham ao assédio das grandes gravadoras e mantinham-se fiéis aos pubs londrinos (por pouquíssimo tempo). O segundo teve como maior expoente a banda Iron Maiden, que antes mesmo de assinar

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contrato com a EMI já tinha fãs fidelíssimos em pubs como o Marquee ou o Ruskin Arms. Como traço comum apresenta-se uma forte crítica à sociedade britânica e seus mecanismos de controle; personificados nos dois movimentos na figura política de Margareth Thatcher, a quem fora atribuída a alcunha de “donzela de ferro”, em inglês Iron Maiden, um instrumento de tortura medieval. Sobre a banda inglesa (que leva como nome o apelido de Thatcher), as letras das músicas, performances de palco e referências a signos do ocultismo, como produtos culturais, constituíram ícones que foram adquiridos em larga escala também por meio de relações de consumo. Contudo, tratavase de imagens divergentes do conjunto produzido naquele período, se levarmos em consideração bandas mundialmente famosas que tinham como temas de suas músicas e estereótipo de seu comportamento e conduta a exaltação ao sexo livre, a apologia às drogas, bebidas e a cuidadosa manutenção de históricos pessoais de transgressão às leis e à moral cristã. Junto de outras bandas da New Wave Of Brithish Heavy Metal, como Angel Witch, Samson 4, Tokio Blade, U.F.O., Sledhammer e Praying Mantis, foram continuadores de certa forma da tradição deixada pelas bandas de rock progressivo, incorporando a ela uma sonoridade agressiva, tal qual o próprio punk, com melodias harmoniosas, introduções dedilhadas, arpejos, canto operístico e os característicos duetos de guitarras. Um dos primeiros méritos do Iron Maiden foi catalizar em maior grau essas características, dandolhe uma feição próprias.

De onde sairia o vocalista Bruce Dickinson, em 1981, para integrar o Iron Maiden.

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O vocalista com o qual gravaram seus dois primeiros álbuns, Paul Di’Anno, dava conta de aliar à banda características vocais, postura de palco e conduta comportamental muito semelhantes às das bandas punks (o que no final das contas inviabilizou sua própria permanência na banda). Já Bruce Dickinson, que o substituiu, era dono de características tipicamente operísticas, desde a indumentária, impostação de voz, até as dramatizações no palco. Professor de História, o vocalista junto do fundador da banda, o baixista Steve Harris, foram responsáveis por canções cujas temáticas faziam referência à literatura inglesa e a narrativas históricas, buscando aliar um grau sutil de intelectualidade a uma sonoridade extremamente densa e pesada. Literatura e História aparecem em diversas canções como: Murders in the rue Morgue, gravada pela banda em 1982 no polêmico álbum The number of the beast, inspirada no livro de mesmo nome, de Edgar Alan Poe; To tame a Land, gravada em 1983 no álbum Piece of mind, inspirada no romance Dune de Frank Herbert (apesar de o autor ter proibido judicialmente a banda de fazer qualquer referência ao seu livro em seus discos); o poema The Rime Of The Ancient Mariner de Samuel Taylor Coleridge deu origem à música de mesmo nome, gravada em 1984 no álbum Powerslave; todo o disco Seven Son of a Seven Son, de 1986, teve como referência o livro The Seven Son de Orson Scott Card; entre tantas. Vários outros clássicos da literatura influenciaram a banda ao longo de sua trajetória, havendo ainda um número expressivo de músicas inspiradas em filmes clássicos de guerra, ficção científica e terror. Na iconografia das capas a literatura inglesa ganhou lugar na ilustração criada para o álbum Live after death, que traz uma

transcrição literal de um texto de H.P. Lovecraft. Sobre as imagens, as representações criadas como itens de divulgação da banda são numerosas e circularam sobre vários suportes: pôsteres de divulgação de álbuns e turnês, bandeiras comemorativas, camisetas, braceletes, canecas, cadernos escolares, capas de vídeos VHS, DVD’s, bonecos de seu mascote Eddie e finalmente capas de fitas K7, LP’s, EP’s, singles e CD’s, estes últimos na maior parte das vezes detentores dos matrizes reproduzidos nas demais imagens. Desta forma, podem estar contidos em capas de álbuns e singles da banda, elementos identificadores do segmento de sociedade que as produziu, bem como de seus receptores. Pensando em uma hermenêutica visual, as particularidades representadas pictoricamente ou simbolizadas por meio de representações de objetos, paisagens, vestimentas, seres humanos ou monstruosidades recorrentes, são conformadoras de sentidos gerais passíveis de apreensão por meio de uma análise das capas como itens de uma História Visual, para melhor compreender os processos de transformações sociais em curso. É evidente portanto que para conjuntos de heavy metal, tão importante quanto a sonoridade, é a imagem produzida em torno da banda. Da mesma forma que as músicas potencialmente contêm o que milhões de pessoas pensam, nessas imagens também estão contidos os arquétipos do que seu público consumidor “quer ver”, numa relação identitária que pressupõe reconhecimento, criando e recriando signos de cujo sentido faz parte o índice de pertencimento a um mesmo sistema cultural. Sendo assim, o segmento de sociedade que as produziu e fez circular é nosso objeto final, e dada a natureza de nosso corpo

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documental, bem como de seu âmbito de circulação (o mercado), torna-se nosso objeto de compreensão o mercado consumidor do heavy metal como bem de consumo de massa. Para o historiador Paulo Chacon [...] o rock (ou o disco) é uma mercadoria, está inscrito no modo de produção capitalista, setor ideológico ou lazer, como preferirem. Ele envolve um setor de produção, uma comercialização, propaganda, lucros, royalties, etc. (CHACON, 1985, p. 20)

Utilizamos a mesma delimitação, dada para o rock, como meio de circulação do heavy metal como bem de consumo de massa, e aqui enquadramos seu mercado consumidor, como “[...] catalizador e unificador de vontades individuais que precisam de um veículo de massa para ter um comportamento de massa” (CHACON, 1985, p. 52). No âmbito do mercado consumidor desses bens, Chacon definiu o público de rock como o “[...] indivíduo que compra o LP, ouve as FMs, assiste aos shows e, em diferentes níveis e graus, idolatra bandas e solistas” (CHACON, 1985, p. 16). Contudo, este mercado consumidor mudou drasticamente desde que Chacon escreveu O que é Rock para a Coleção Primeiros Passos, da Editora Nova Cultural / Brasiliense. Em 1985, ano de publicação do opúsculo, o perfil deste consumidor poderia ser caracterizado, como foi, da seguinte forma: Majoritariamente, ele é representado pelos jovens no início da adolescência até o momento crítico da entrada nos tortuosos caminhos da linha de produção. Isto é, o nosso público é aquele que vai da primeira mesada ao primeiro salário. (CHACON, 1985, p. 52)

Em 1985, aqueles que nasceram com os primeiros acordes de Black Sabbath, Judas 120

Priest e Iron Maiden, de fato estavam em sua primeira adolescência, o que deu ao autor a falsa sensação de que esta lógica de perfil se perpetuaria, ou seja, que a fidelidade ao estilo se tratava de um ímpeto adolescencial passageiro. Mas os bangers que eram adolescentes na década de 1980 hoje são respeitáveis pais de família, e muitos deles não se desfizeram de suas coleções de LP’s, mesmo tendo-as atualizado em CD. Nos shows de bandas como Iron Maiden, Deep Purple e Judas Priest, que visitam o Brasil em suas turnês mundiais com certa regularidade, o que fica evidente é a oscilação do perfil de público transitando entre 3 faixas etárias principais: aqueles que foram adolescentes nas décadas de 1970 e 1980, que trazem os filhos já jovens, que por sua vez podem trazer os filhos adolescentes ou mesmo crianças. Na prática isso ficou evidente, para este autor, numa tarde recente em um parque de diversões, quando uma criança (de 3 ou 4 anos), no colo do pai (já com uns 40 ou mais anos de idade), apontou para a camiseta que o autor vestia, com a imagem da capa de Piece of mind, e disse ao pai: “Eddie, Eddie!!!!” Conclusão lógica: três gerações ali compreendiam o mesmo sistema cultural, se articulavam e se reconheciam identitariamente a partir dele. Primordialmente o heavy metal, não só como estilo musical, mas como campo de produção de sentidos e sistema identitário, comportamental, e uma própria visão de mundo, continua atingindo primordialmente o público jovem, mas não o tomemos como único ou hegemômico, e nem mesmo homogêneo. Tal como o rock , o heavy metal é característicamente polimorfo, para dar conta de diferentes faixas etárias e diferentes identidades, motivo pelo qual decorre dele uma série de outras subcategorias, como:

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power metal, thrash metal, death metal, progressive metal, melodic metal, black metal, white metal, symphonic metal e outros tantos, sobre os quais paira ainda o paradigma do “heavy metal tradicional”. São diferentes perfis para diferentes receptores (consumidores), que se conformaram a partir da primeira vertente metálica. Os que viveram o heavy metal nas décadas de 1970 e 1980 não são hoje, necessariamente, motociclistas de terceira idade, vestindo jaquetas de couro, com cabelos e barbas longas e grisalhas, com mulheres loiras na garupa de suas chopers e Harley Davison’s; muitos são burocratas, banqueiros, analistas de sistema, médicos e vejam só: historiadores! Desta forma, não cabe mais a designação de rebels ou de juventude transviada para delimitar o perfil de receptor deste que, a partir da década de 1970, já era um produto de consumo de massa. Isso para dizer que nunca Frank Sinatra esteve tão errado ao dizer que “[...] o rock’n roll é a marcha marcial de todos os delinqüentes juvenis sobre a face da terra” (citado por CHACON, 1985, p. 54). Contudo, o preconceito ainda é vigente nas mentalidades hoje, o que repercute na postura também da academia. Pensamos que poucas vezes um clichê recorrente em pesquisas acadêmicas seja tão

bem alocado como justificativa quanto neste paper: a falta de trabalhos anteriores sobre o tema. Não há, segundo a plataforma CRUESP/Bibliotecas 5 , Sibi 6 e Dedalus 7 nenhum trabalho acadêmico sobre representações simbólicas em capas de álbuns da banda Iron Maiden, ou qualquer trabalho sobre o grupo em geral, nas três mais importantes universidades estaduais paulistas: Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Tampouco no sistema de busca Google acadêmico. Sobre o universo simbólico do heavy metal, encontramos o trabalho de Jeder Janotti Jr., sua dissertação de mestrado apresentada na UNICAMP 8 e um artigo científico apresentado à Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA)9; e a monografia de conclusão do curso de História de Cláudio Augusto Araújo Rovel, apresentado à Universidade Federal do Paraná (UFPR)10. Sobre a produção da banda, localizamos por meio do sistema on-line Google acadêmico o artigo de Ryan Tiegs, do Citrus College, de Glendora, Califórnia11, que relacionou a letra de The Flight Of Icarus 12, gravada em 1983, ao mito grego de Ícaro. Ancorar nossa justificativa na ausência de trabalhos acadêmicos sobre o tema não

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Conselho dos Reitores das Universidades Estaduais de São Paulo, acessível no sítio na internet: http://bibliotecas-cruesp.usp.br/ bibliotecas/CRUESP.htm . Sistema Integrado de Bibliotecas da Universidade de São Paulo, com mecanismo de pesquisa disponível no sítio na internet: http:/ /www.usp.br/sibi/ . 7 O Banco de Dados Bibliográficos da Universidade de São Paulo, com sistema de busca global disponível no sítio na internet: http:/ /dedalus.usp.br:4500/ALEPH/por/USP/USP/DEDALUS/START . 8 Heavy Metal: O universo tribal e o espaço dos sonhos. Campinas: Unicamp, 1994 (mimeo, dissertação de mestrado apresentado junto ao Departamento de Multimeios). 9 666 The Number Of The Beast: Alguns apontamentos sobre a experiência simbólica a partir das letras, crânios, demônios e sonhos do heavy metal. Salvador: UFBA, s/d (paper, apresentado junto à Faculdade de Comunicação). 10 Chifres, pentagramas e seus aparatos: Representações do Diabo no Heavy Metal. Curitiba: UFPR, 2002 (monografia de conclusão de curso apresentada junto ao Departamento de História). 11 The Flight Of Icarus. Glendora: Citrus College, 1999 (paper, s.n.t.). 12 Faixa 3 do Compact Disc Piece Of Mind. Iron Maiden. EMI. Londres, 16 de maio de 1983. 1 CD. 6

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resolve a questão se não esclarecermos que isso denuncia uma lacuna ainda maior: a falta de um esforço compreensivo para um fenômeno cultural com fortíssimas conotações de crítica social, circunscrito a segmentos sociais específicos, com dinâmicas e códigos de conduta muito próprios e que se organizam parcialmente ao arrepio do Estado, parte sob controle deste e manifestando significativas condutas de contra-controle, construindo zonas de contato e resistência, negociação e incorporação. Compreender a sociedade nunca será possível em sua totalidade se não entendermos suas segmentações sociais, e aqui encontramos segmentos marginalizados não apenas pela ordem cultural posta verticalmente pela mídia conformadora de comportamentos e condutas, mas pelo próprio pensamento acadêmico, fruto também em larga medida desses mecanismos de controle. Faz-se necessário compreender a “sociedade” sem desconsiderar seus diversos segmentos, e a cultura sem desconsiderar suas diversas formas de representação. O descompasso é visível: enquanto tentase compreender, por exemplo, o fenômeno político da música de protesto na MPB durante o regime militar brasileiro, ignoram-se as bandas de punk-rock do ABC paulista durante o mesmo período de repressão. Mesmo posteriormente, durante a abertura política, a mesma lógica opera (começa-se a compreender o rock-nacional nesse segundo momento, mas a História pouco fez a esse respeito). Enquanto estuda-se sociologicamente o hip-hop e o maracatu, sob o pretexto de “tirá-los do gueto”, novos guetos foram criados, oprimidos por sua vez pelo mesmo hip-hop e maracatu, hoje hegemônicos nos estudos culturais que têm a música popular como objeto. 122

Para Paulo Chacon trata-se de um preconceito anda maior que se abate sobre o próprio rock, pai do heavy metal em sua árvore genealógica e que legou à prole toda a carga de preconceito, reproduzida também pelo pensamento acadêmico. Em função disso, Chacon determina aos relutantes: “[...] quebre seu dogmatismo para com o rock e você ouvirá melhor o que os novos jovens acham do mundo.” Isso porque muitas pessoas insistem em ver no rock aquela maldita música americana que ocupa espaços da MPB nas rádios ou que se distorce de uma tal maneira que os ouvidos parecem estourar (CHACON, 1985, p. 9).

Trata-se de uma postura acadêmica, vestida de uma fantasia progressista e multiculturalista, extremamente conservadora, que no final das contas nega o próprio tempo presente. Desta forma, negar o estilo metálico como índice de um movimento cultural maior, como campo de produção de sentidos e como âmbito de sociabilidade com signos identitários próprios, é negar uma dimensão da própria realidade social, onde num foco mais aproximado o esteriótipo de rockeiro ou headbanger como um indivíduo alienado não dá conta de explicar a complexidade do fenômeno que aqui pretendemos tratar. Nossa proposta é visitar um desses guetos, onde buscamos compreender uma das dimensões do fenômeno do heavy metal, pretendendo fazer emergir um segmento social importantíssimo para a compreensão do tempo presente. Nas palavras de Chacon, para que o fenômeno “[...] conquiste um espaço acadêmico que a comunidade [a acadêmica] sempre lhe negou” (CHACON, 1985, p. 11). Para Jeder Janotti Jr., que empreendeu estudo semelhante ao aqui proposto, é possível tomar o universo metálico como um campo imagético uma vez que

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WHEN TWO WORLDS COLLIDE: REPRESENTAÇÕES DO REAL E MONSTRUOSIDADES FANTÁSTICAS NO CONJUNTO... [...] os símbolos possibilitam a compreensão da “experiência vivida” no Heavy metal como um espaço onírico que permite aos headbangers [fãs do estilo] a partilha de sentimentos e atitudes diante do mundo contemporâneo (JANOTTI Jr., 1994, p. 6).

Com esse objetivo analisamos 58 imagens de capas de LP’s, EP’s, CD’s e singles promocionais da banda Iron Maiden. Chegar a esse número requereu o estabelecimento de um critério específico, diante da multiplicidade de imagens produzidas para ilustrar as capas de álbuns e singles da banda em diferentes centros emissores (isso porque um mesmo single pode ter sido lançado com diferentes capas em países diferentes, ou mesmo um álbum oficial lançado em um número restrito de países). Há ainda o problema da produção e distribuição de bootlegs, ou seja, CD’s não oficiais, não autorizados pela banda bem como por sua gravadora (até o ano de 2006 a EMI Odeon), muitos elaborados por fãsclubes não oficiais ou mesmo por fãs que de alguma forma têm acesso a arquivos de áudio de shows e bancos de imagens da banda (disponíveis na Internet), e que os transformam em CD’s, ilustrados por capas criadas por vários emissores (o mesmo bootleg pode ter incontáveis artes de capas, uma vez que os mesmos arquivos, socializados pela internet, podem ser tratados, produzidos e apresentados por incontáveis emissores)13. Diante desta problemática (a da diversidade de fontes), utilizamos como

critério para a sua delimitação a discografia tida como oficial pela própria banda por meio de seu web-site oficial www.ironmaiden.com até agosto de 2005 (até ali o mês de lançamento do álbum Death On The Road)14. Até a escolha do nosso lote documental, não havia ainda sido lançado o mais recente álbum inédito da banda, gravado em estúdio: A Matter Of Life And Death15; motivo pelo qual sua arte de capa ficou de fora do lote documental analisado. Parece-nos que o critério utilizado pela banda para delineamento de sua discografia oficial foi a utilização dos títulos lançados pela EMI no mercado mundial, o que corresponderia dizer, os títulos lançados simultaneamente por todas as suas distribuidoras no mundo. A partir deste critério, chegamos ao número de 58 discos, dos quais 25 são álbuns (43% do total), distribuídos entre inéditos gravados em estúdio (52% – 13 de 25), inéditos gravados ao vivo (24% – 6 de 25) e compilações (não inéditas) – trata-se das coletâneas, ou seja, compilações dos maiores sucessos da banda, também conhecidos como Greatest Hits ou The Best Of... – (24% – 6 de 25); e mais 33 singles promocionais (57% do total), onde as subcategorias aplicadas aos álbuns se confundem, uma vez que o material destinado à promoção dos álbuns principais traz, além de gravações inéditas, sobras de estúdio, gravações raras ao vivo, video-clips, arquivos multimídia e por

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Para se ter uma idéia do quão numerosa é a produção de bootlegs convém ver os principais sites que não só relacionam como disponibilizam suas respectivas artes de capa. No endereço http://www.maidenfans.com/imc/ ?link=tours&url=bootindex&lang=eng é possível acessá-los clicando nos links organizados por turnês (a banda encontra-se no curso de sua 18ª turnê mundial); sendo possível ainda acessar a produção de bootlegs por meio do site www.bootlegsandbsides.co.uk. Bancos de imagens da banda, incluindo fotografias de suas performances e gravuras, tanto as que foram escolhidas para ilustrar as capas de singles e álbuns como as rejeitadas, além de outros materiais promocionais, podem ser livremente acessados nos sites: www.ironmaiden.com; www.ironmaiden.org; www.maidenfans.com; www.bravenewworld.hpg.ig.com.br; www.maidenmania.hpg.ig.com.br; www.somewhereinweb.cjb.net; www.ironmaiden.com.br; e www.ironmaidenbr.com. 14 Álbum inédito gravado ao vivo Death On The Road. Iron Maiden. EMI. Londres, 29 de agosto de 2005. 2 CD. 15 Iron Maiden. EMI. Londres, 28 de agosto de 2006. 1 CD.

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vezes faixas idênticas aos álbuns, quase sempre no mesmo disco. O período de produção das imagens selecionadas vai de 9 de novembro de 1979, com o lançamento do primeiro EP da banda, The Soundhouse Tapes, até 29 de agosto de 2005, com o lançamento do álbum ao vivo Death On The Road. Desta forma, as imagens estão distribuídas ao longo de 27 dos 30 anos de carreira da banda, que iniciou suas atividades em Londres, com o nome Iron Maiden, no ano de 1975. Há um longo período anterior no qual o líder da banda, Steve Harris, tentou com várias formações afirmar o projeto que levaria ao Iron Maiden, com outros nomes. Analisamos com isso não só as gravuras de Derek Riggs, o mais célebre desenhista da banda e criador de Eddie em 1979 – o “mascote” do grupo –, responsável pela ilustração dos 8 primeiros álbuns, bem como de seus respectivos singles e EP’S; e de Melvyn Grantno, que ilustrou a capa do álbum Fear Of The Dark, de 1992. Há uma gigantesca dificuldade para a determinação do âmbito de circulação de referidas imagens. Os meios possíveis para o seu estabelecimento são a gravadora EMI Odeon, por meio de seu escritório no Brasil; o Fan-Club oficial inglês The Iron Maiden FC; e a Sanctuary Music ou Iron Maiden Holdings, as produtoras oficiais da banda até o lançamento de Death On The Road. Solicitamos, por meio de correspondência eletrônica datada de 10 de outubro de 2006, ao representante do Iron Maiden FC, dados referentes às vendas de álbuns da banda. Em correspondência eletrônica enviada na mesma data solicitamos os dados a Rod Smalwood, manager da banda e junto de Andy Taylor um dos representantes, na oportunidade, da Sanctuary Music. Na data de 19 de agosto de 2006, enviamos também 124

correspondência eletrônica, com mesmo teor, ao departamento de relações públicas da EMI Brasil. Em nenhum dos casos mencionados obtivemos resposta, mesmo tendo sido explicitado o caráter científico e inédito da pesquisa, pois nunca antes foi apresentado trabalho semelhante ao Departamento de História da Universidade de São Paulo, o mais tradicional centro de estudos históricos no Brasil, onde a pesquisa foi realizada, e que os dados solicitados seriam utilizados na etapa de determinação do âmbito de circulação que as imagens tiveram. Se nos ativéssemos ao número de 70 milhões de cópias vendidas no mundo todo, largamente divulgado pela própria banda, não chegaríamos nem perto do âmbito real em que as imagens circularam, diante do histórico de reproduções em outros suportes (camisetas, vídeos e itens promocionais os mais diversos) bem como socializadas por meio da internet, não havendo ainda método para sua quantificação. Não há dados oficiais divulgados sequer pela gravadora EMI Odeon, podendo a utilização do número referido ser também parte da estratégia de marketing para a banda, e isso explicaria a atitude de não divulgação dos números exatos. Consta que o único álbum que não atingiu a marca de 1 milhão de cópias vendidas teria sido o Virtual XI, de 1998. Não levamos também em conta o mercado informal de compra e venda de CD’s reproduzidos sem autorização da gravadora (cujo matriz é o CD oficial), cópias essas vulgarmente chamadas de piratas e postas na ilegalidade no interesse das majors, as mega-gravadoras, das quais a EMI é um dos grandes representantes, movimentando bilhões de dólares anualmente. Para determinação do âmbito de circulação das imagens a ajuda que tivemos

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veio da legião de fãs que a banda possui, especialmente no Brasil. Por meio do fórum de discussões “Forum Maiden Brasil”, do sítio “Iron Maiden Brasil” (http:// www.ironmaidenbrasil.com/forum) vários fãs se mobilizaram na tentativa de localizar os dados na rede mundial de computadores16. A partir deste esforço coletivo foi possível localizar os dados sobre as vendas dos álbuns da banda nos EUA, dispostos pela Nielsen SoundScan, órgão que desde 1991 controla as vendas de CD’s no mercado estadunidense. O número total, computado portanto a partir de 1991 para os títulos relançados e lançados até o ano de 2003, com o lançamento de Dance of death, é de 4.501.830 de álbuns vendidos. Os dados foram divulgados no sítio www.wiplash.net e referem-se à soma da venda apenas dos álbuns e não dos singles promocionais17. Outros sistemas de contagem podem ser utilizados para que se tenha uma idéia mais próxima do real, sobre as vendas de álbuns da banda. O sistema RIAA Golden and Platinum certification atribui para as vendas

no mercado de países de língua inglesa as seguintes categorias: Gold album para 500.000 cópias vendidas; Platinum album para 1.000.000; e Diamond album para 10.000.000. Segundo os dados dispostos por este sistema os álbuns da banda teriam atingido a marca de 6.000.000 de álbuns vendidos18. Já o sistema de certificação BPI Certification atribui à categoria platinum a marca de mais de 300.000 cópias e para gold mais de 100.000. Por este sistema as certificações atribuídas aos álbuns da banda somam 2.000.000 de cópias vendidas19. O mercado fonográfico alemão utiliza o sistema IFPI Gold Certification para álbuns com mais de 100.000 cópias vendidas, pelo qual a banda teve 9 de seus álbuns certificados, portanto contabilizando 900.000 cópias vendidas20. O sistema IFPI Gold and Platinum certification utilizado na Finlândia, onde 5 álbuns da banda receberam a certificação gold, não informa qual a vendagem mínima para sua atribuição, impossibilitando qualquer tentativa de quantificação 21. Já o sistema IFPI Gold

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É digna de nota a ajuda dos fãs de nicknames: SAMUHELL, Pedro McBrain, Spirit_Crusher, fjp-maiden e JudasRising. Álbum a álbum, os números divulgados pela Nielsen SoundScan são: Iron Maiden – 196,628; Killers – 211.410; The Number of the beast – 357.463; Piece of mind – 347.400; Powerslave – 299.022; Live after death – 558.578; Somewhere in time – 291.420; Seventh son of a seventh son – 218.056; No prayer for the dying – 213.745; Fear of the dark – 421.786; Live at Donnington – 23.639; A real live one – 108.177; A real dead one – 130.652; A real live / dead one (novo formato a partir de 1998) – 20.621; The X factor – 112.710; Best of the beast – 251.112; Virtual XI – 65.243; Ed Hunter – 52.886; Brave new world – 282.460; Rock in Rio – 69.307; Edward The Great – 130.611; Dance of death – 138.904. 18 Conforme o sistema de contagem RIAA Golden and Platinum certification as certificações atribuídas pela venda dos álbuns da banda seriam: The number of the beast (contagem até outubro de 1986) – platinum; Piece of mind (contagem até novembro de 1986) – platinum; Killers (contagem até janeiro de 1987) – gold; Seventh son of a seventh son (contagem até junho de 1988)– gold; No prayer for the dying (contagem até novembro de 1990) – gold; Powerslave (contagem até junho de 1991) – platinum; Live after death (contagem até junho de 1991) – platinum; e Somewhere in time (contagem até julho de 1992) – platinum. 19 Pelo sistema BPI Certification as vendas de álbuns teriam atingido os seguintes números: Iron Maiden (contagem até março de 1995) – platinum; The number of the beast (contagem até novembro de 2002) – platinum; Piece of mind (contagem até março de 1995) – platinum; Killers (contagem até novembro de 1985) – gold; Powerslave (contagem até dezembro de 1984) – gold; Live after death (contagem até novembro de 1985) – gold; Somewhere in time (contagem até outubro de 1986) – gold; Seventh sono f a seventh son (contagem até abril de 1988) – gold; No prayer for the dying (contagem até outubro de 1990); Fear of the dark (contagem até maio de 1992) – gold; Best of the beast (contagem até maio de 2002) – gold; Dance of death (contagem até outubro de 2003) – gold; Edward The Great (contagem até outubro de 2004) – gold; Brave new world (contagem até fevereiro de 2005) – gold. 20 Os álbuns certificados pelo sistema IFPI Golden Certification, na Alemanha, foram: (contagem até 1987); Killers The number of the beast (contagem até 1992); Live after death (contagem até 1993); Seventh son of a seventh son (contagem até 1993); Iron Maiden (contagem até 1996); Piece of mind (contagem até 1996); Powerslave (contagem até 1996); Somewhere in time (contagem até 1996); e Dance of death (contagem até 2005). 21 Os álbuns certificados pelo sistema IFPI Gold and Platinum Certification, na Finlândia, foram: Piece of mind (contagem até 1990); Best of the beast (contagem até 2001); Brave new world (contagem até 2003); Dance of death (contagem até 2003); e Edward The Great (contagem até 2003). 17

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Certification utilizado na Suíça, para álbuns vendidos apenas a partir de 1989, utiliza para o padrão gold o número de 25.000 cópias vendidas; neste sistema a banda teve 2 de seus álbuns certificados, somando assim 50.000 cópias22. A experiência de esforço coletivo deixounos algumas impressões sobre as possibilidades de se recorrer às ferramentas disponibilizadas na rede mundial de computadores para a análise histórica no campo das fontes visuais. Em primeiro lugar fica aqui a sugestão de utilização de fóruns de discussão para quantificação e qualificação das impressões de receptores de material visual, com real possibilidade para aplicação de formulários específicos. Daí decorre o desafio do desenvolvimento de métodos adequados à impessoalidade da natureza das informações obtidas a partir da internet, em função do anonimato ensejado na troca, o que compromete a credibilidade das fontes de informações. O mesmo problema se dá em relação aos dados sobre as vendas de álbuns da banda disponíveis na internet, cuja divulgação pode ser parte das estratégias de marketing de seus promotores. Esclarecemos que o tratamento inicial das fontes, com uma finalidade organizacional, possibilitou-nos vislumbrar os primeiros conjuntos de problemas que adiante trabalharemos, na medida em que os métodos desenvolvidos para categorização do lote utilizado foram proporcionando visões gerais do conjunto das fontes, o que seria inviável com a mera confecção de fichas descritivas. Como dissemos, a primeira organização tipológica agrupava as fontes segundo o critério da natureza do conteúdo dos discos: álbuns inéditos gravados em estúdio, inéditos 22

gravados ao vivo, e compilações não inéditas; e singles promocionais, categoria à qual incorporamos os EP’s em virtude de obedecerem à mesma lógica – na verdade, trata-se de uma questão exclusivamente de nomenclatura, uma vez que os tradicionais mini-discs, os EP’s, foram sendo gradativamente chamados de singles promocionais, ou promo-discs. Após sua organização nessa primeira tipologia, tivemos que criar um segundo quadro de critérios organizacionais, não mais em função do “produto” musical mas partindo das imagens de arte de capa, das representações ali inscritas e características fundamentais de sua composição. Uma primeira observação das imagens, com vistas à construção de categorias, nos levou a observar a ocorrência de representações de: 1) Itens de cultura material a. Paisagens: que poderiam ocorrer em tempo passado, presente ou futuro, por sua vez podendo ser aquáticas, terrestres, aéreas ou espaciais, ocorrendo em ambiente natural ou urbano, sendo interna ou externa a edificações; b. Edificações: que poderiam ser comerciais e industriais; civis, com estruturas urbanas – gradis, muros, viadutos, pontes – ou habitacionais – individuais ou prédios de apartamentos – religiosas – templos ou túmulos; por fim, podendo ser edificações térreas ou sobrados; c. Vestimentas: podendo ser de uso cotidiano ou fantasias, subdivididas em roupas e acessórios; e d. Utensílios: de uso público ou privado;

Os álbuns certificados pelo sistema IFPI Gold certification, na Suíça, foram: The number of the beast (contagem até 1990) e Seventh son of a seventh son (contagem até 1990).

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2) Seres Humanos, animais, híbridos ou sobrehumanos; aos quais poderiam, à exceção dos animais, ser aplicado o critério de gênero, masculino ou feminino; 3) Inscrições nas capas Logotipo da banda, título do álbum, gravadora, número de série e selo comemorativo; os quais poderiam ser agrupados pela ocorrência de tipos de fontes e sua respectiva cor de preenchimento; e 4) Questões gráficas Compreendendo o suporte, técnica e número de planos utilizados na composição. As características fundamentais que quantificamos se referiam ao suporte utilizado para as imagens: papel em 100% dos casos analisados (tanto para LP’s e EP’s quanto para CD’s); nesse caso cumpre informar que todas as imagens analisadas tiveram o suporte no formato de embalagem para Compact Disc, mesmo se tratando de álbuns e singles lançados primeiramente como LP’s ou EP’s, em razão de terem sido todos relançados no formato de CD’s após a difusão da técnica a partir da década de 1990. Desta forma temos os trabalhos lançados exclusivamente em CD’s no total de 15 (25,8%), em formato de CD e EP o total é 28 (48,2%), e de CD e LP o total é de 15 (25,8%). Vale aqui ressaltar que o implemento das tecnologias a laser no mercado fonográfico obrigou a re-configuração das imagens produzidas para suas embalagens, frente a necessidade de adequação da produção iconográfica a um suporte de menores proporções. Até ali havia se estabelecido quase que um rito a procura por mensagens subliminares nas capas de LP’s da banda, ou da assinatura oculta de Derek Riggs, dada a possibilidade de serem inseridas mensagens

de proporções minúsculas nas imagens. Havia a prática inclusive da utilização de lupas para serem encontradas inscrições como Indiana Jones was here e a figura do Mickey Mouse, entre os hieróglifos inscritos nas paredes do templo egípcio representado em Powerslave, de 1984; bem como referências às músicas da banda e até mesmo um placar de futebol nos out-doors e lay-outs da cidade futurista de Somewhere in time. Nada disso foi mais possível com o implemento do formato compact disc. Com relação às técnicas utilizadas para composição das imagens, identificamos que majoritariamente trata-se de gravuras, em 45 imagens (77,5%), técnicas de computação gráfica em 6 imagens (10,3%) e técnicas mistas entre computação gráfica e fotografia em 3 das imagens (5,1%). Finalmente, quanto ao número de planos utilizados temos: 1 plano: 18 imagens – 31%; 2 planos: 15 imagens – 25,8%; 3 planos: 17 imagens – 29,3%; 4 planos: 5 imagens – 8,6%; e 5 planos: 1 imagem – 1,1%. Após empreender portanto uma caracterização tipológica a partir das questões gráficas fundamentais quantificadas, foi criado um segundo critério para estabelecimento de tipos de análise: de inscrições constantes nas imagens, na aparição fundamentalmente de textos escritos dissociados das paisagens ali constantes (foi criado, como veremos, um novo tipo para inscrições constantes na paisagem, diferenciado portanto deste tipo específico), no qual identificamos a utilização de um logotipo da banda presente em 55 das 58 imagens analisadas (94,8%) e cujo tipo de fonte não varia em 100% dos casos, variando a coloração de seu preenchimento e contorno; título dos álbuns, que aparecem em 49 das 58 imagens (84,4%) e variam em cor e tipo de fonte; identificação da

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gravadora (EMI) em 6 imagens (10,3%), com tipo de fonte e coloração invariáveis em 100% dos casos; e número de série em 9 imagens (15,5%). Dispondo os dados obtidos por meio das quantificações, a partir das tipologias criadas, em um esquema organográfico no qual as categorias mencionadas foram devidamente hierarquizadas, novamente quantificadas, submetidas à cálculo estatístico e por fim à análise qualitativa, pudemos observar alguns conjuntos de problemas, a partir dos quais parte nossa proposta de trabalho. Chamou-nos a atenção primeiramente o fato de as paisagens, usuais em 96,5% das imagens analisadas, tratarem majoritariamente do tempo presente à sua composição em 58,9% dos casos, contra 8,9% que se referiam a um tempo passado e a mesma percentagem a um tempo futuro. Constatamos ainda que nessas imagens (em tempo presente) 69,9% das paisagens eram terrestres, dessas 62,2% em ambiente urbano, que em 66,6% dos casos eram paisagens externas. Foi identificada portanto a paisagem urbana como recorrente, e a partir dela chegamos a utilização por meio de representação simbólica de um modelo de ocupação de espaço: otimização de estruturas habitacionais por meio de edificações do tipo sobrados e prédios de apartamentos, que aparecem em 85,7% das imagens. Representações de muros (em 42,8% das imagens) e gradis (em 28,5% das imagens) fazem alusão também ao uso do espaço, público ou privado, de acesso privado ou restrito, como delimitadores do espaço ou demarcadores de propriedade. Outros aspectos sociais puderam ser determinados pela utilização recorrente de representações de estabelecimentos comerciais e industriais, em 48,1% das imagens, aludindo à sociedade de consumo 128

como referencial das práticas econômicas da sociedade ali representada. O modelo de paisagem identificado como recorrente traz ainda como característica as cores que vetorizam sua utilização, predominantemente o preto, marrom e azul, que remetem portanto a uma paisagem noturna. Tempo presente, ambiente externo, urbano e noturno. Não poderíamos identificar qualquer problemática na utilização deste modelo recorrente, uma vez que se trata do ambiente urbano no qual estão inseridos tanto o emissor das imagens quanto seu público receptor majoritário; senão por um fato observado por nós no organograma criado para análise das fontes: os seres que interagem nessa paisagem não são na sua maioria humanos. A categoria designada para seres sobrehumanos revela sua utilização em 85,9% das imagens, deles 97,9% são do gênero masculino, e referida predominância se dá na maior parte das imagens pela utilização de um personagem recorrente, cujas características identificadoras são os contornos dos olhos desprovidos de pálpebras, nariz desprovido de cartilagem, sobrancelhas desprovidas de pêlos; ausência de pele e decorrente aparência dos músculos faciais: fatores que denotam para um estado adiantado de putrefação pós-mortem. As próprias imagens identificam-no como Edward, ou simplesmente Eddie, o mascote do grupo. É largamente utilizado nas imagens analisadas e passa por processos de profundas transformações ao longo das três décadas em que acompanha a banda, a ponto de ser celebrado, nas mais variadas formas em que já apareceu, em Best of the beast, de 1995. O nome dado ao mascote da banda se refere a uma anedota popular britânica, em que os pais de uma criança que só possuía a

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cabeça, chamado Eddie, após consultarem um médico que garantiu poder dar-lhe um corpo, anunciaram ao garoto que tinham para ele uma surpresa, ao que o menino prontamente responde: “Ah, não! Outra merda de chapéu!” Como em seus primeiros shows a banda fazia uso de uma grande máscara instalada logo acima e atrás do baterista, e que por meio de tubos e uma carriola soltava tinta vermelha pelo nariz (simulando sangue), batizaram-na de Eddie The Head: uma menção à anedota largamente difundida na época. Retomando o problema, verificamos que a paisagem recorrente representa ou simboliza o plano real, o mundo fenomenológico e socialmente apropriado, já as monstruosidades que interagem nessas paisagens não. Qual a finalidade de sua utilização se pensarmos a função primordial dessas imagens e como são difundidas? Qual a função de Eddie e das demais monstruosidades utilizadas nas imagens e, ampliando o fenômeno, que preenchem o universo simbólico do heavy metal? Para responder a essas perguntas precisamos primeiro nos resolver com o método. Por método de trabalho compreendemos fundamentalmente duas dimensões, a partir das quais determinamos então como pretendemos analisar nosso conjunto documental: o âmbito teórico concernente às correntes teórico-metodológicas que orientam o trabalho científico e o âmbito prático da técnica ou do “saber fazer”. Em tese as duas dimensões não deveriam ser dissociadas, contudo o trabalho científico em História carece ainda de desenvolvimento de métodos dado a notável maior complexidade dos objetos das ciências humanas em relação às ciências da natureza: os processos de

mudança social que nos obrigam à compreensão do Homem e suas obras, aliados ao quão recente foi a incorporação do material visual como fonte de análise em História. Diante da natureza de nossas fontes e da problemática aqui ensejada, com vistas a esclarecer a utilização de representações de seres sobre-humanos ou monstruosidades fantasiosas em ambientes urbanos referentes ao plano real, apontamos para dois orientadores teóricos gerais. Os preceitos da psicologia analítica e sua idéia de “experiência simbólica” na concepção jungiana (JUNG, 1986, p. 7). nos serviu para a análise do campo imagético das fontes; e da hermenêutica visual para o estabelecimento de nexos estruturais de sentido conectores entre as imagens e a sociedade que as produziu, consumiu e as fez circular. Quanto a essa hermenêutica visual, sua compreensão pode ser auxiliada pela idéia de iconologia desenvolvida por Panofsky e E. H. Gombrich, cuja reintepretação de Eduardo Neiva nos é muito cara (NEIVA, 1993, passim) como método interpretativo. Eduardo Neiva estabelece uma distinção bem exemplificada entre índices, ícones e símbolos. Para ele os índices referem-se ao passado, como representações do que desaparecerá (um fenômeno natural finito por exemplo); os ícones como referência ao presente, tanto diante do olhar do observador como no mundo que o cerca; e finalmente os símbolos, frutos de convenções e leis, que por independerem das ações presentes projetamse para o futuro (NEIVA, 1993, p. 28). Analisados portanto os símbolos na ótica da experiência simbólica dissociados dos ícones e índices, passamos às instituições constituintes dos símbolos, “[...] da imagem à ação”, para nós como um percurso

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hermenêutico, pois as imagens podem efetivamente nos conectar a sentidos maiores uma vez que estão “[...] saturadas de sua cultura” e “[...] existem no interior de classes onde acontecem transfigurações” (NEIVA, 1993, p. 14). No percurso proposto por Panofsk, sob a ótica dos problemas vislumbrados, realizamos uma descrição pré-iconográfica das imagens, compreendendo o empreendimento de uma abordagem histórica, uma primeira interpretação como descrição verbal, sua datação, assentamento em séries conexas e inserção numa ordem cultural, criando um parâmetro inicial de compreensão. Seguindo ainda este percurso determinamos sua matéria convencional ou secundária, associando os motivos primários a temas e conteúdos, determinando os níveis comunicacionais das imagens por meio das convenções socialmente estabelecidas no tempo de sua criação e circulação. Implica em determinar os significados alegóricos dos símbolos inscritos, tentando chegar o mais próximo possível do texto gerador das imagens. Por fim tentamos compreender seus sentidos iconográficos, visando apreender seus significados intrínsecos ou seu conteúdo. Empreendendo uma análise de sentido hermenêutico analisamos os nexos estruturais de sentido conectores das figurações e a época que as produziu, e concluímos o que segue: A hipótese levantada inicialmente por nós, no primeiro contato que tivemos com as fontes (antes mesmo do rito organizacional que empreendemos), levou-nos a crer que signos de violência urbana e figuras teratológicas que eram perceptíveis em grande parte das imagens seriam instrumentalizados como recurso de choque para a fixação da imagem por seu receptor, o 130

que faria funcionar sua finalidade de aliciamento para o consumo do produto que media. No entanto, a visualidade do lote documental proporcionada pela montagem do organograma, que levou em conta os diversos elementos que se mostraram ao final de sua estruturação, indicou que esta hipótese não se sustentaria e não daria conta de explicar os históricos de rejeição que as imagens tiveram naqueles em que provocaram choque de fato, advogando contra a lógica do consumo numa sociedade de massas. Sabe-se, por exemplo, que várias cópias do álbum The Number Of The Beast, lançado no ano de 1982 e que trazia uma representação do demônio sendo manipulado por “Eddie”, por sua vez manipulando humanos, foram queimadas por grupos religiosos que diziam que suas músicas evocavam cantos demoníacos. No mesmo ano um boneco de 3 metros do mascote Eddie foi censurado no video-clip da música The Number Of The Beast, por ser “assustador demais para a televisão”. Os primeiros álbuns da banda trouxeram, por conta da perseguição que sofreram, o aviso de “letras explícitas” nas capas. Sabe-se também que uma década depois do lançamento de The Number Of The Beast a Igreja Católica chilena convenceu o governo de seu país a proibir uma exibição da banda por “corromper” a juventude com suas letras e imagens; segundo a Igreja a música Bring your daughter... to the slaughter, do álbum Fear of the dark de 1992, incitava o assassinato e The Number Of The Beast o satanismo. A questão da censura não se põe, segundo entendemos, como uma questão unicamente relacionada à imagem, mas sim ao uso social da imagem. Exemplo disso é o fato de o videoclip da música The Trooper, de 1983, ter sido

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censurado por mostrar uma carga de cavalaria obtida do filme Die With Your Boots On, e a BBC de Londres ter exibido livremente o filme na íntegra, às 19 horas do dia em que a banda recebia o parecer de que o vídeoclip de The Trooper era “muito sangrento para ser assistido por jovens”. Ao observarmos a estatística obtida, aplicada ao organograma, elementos fundamentais para a problematização da documentação surgiram fazendo cair por terra a questão do choque provocado pela imagem. Levando-se em conta a questão cromática a qual, por meio do organograma, mostrou a predominância de paisagens noturnas, pudemos inferir que a recorrência desse período se conforma como um símbolo de propicidade para a transgressão, pela alusão à escuridão, o sombrio, o não ver, pela dificuldade de visibilidade e por ser o momento convencional de repouso para o trabalho diurno que é obliterado (ordem característica das sociedades capitalistas modernas, ordem que aqui é transgredida). Outro importante ponto na questão da cultura material perpassa a representação dos próprios objetos, abundantes em toda a documentação. Na organização do corpo documental constatamos a presença de representações de armas de fogo (13 unidades), armas brancas (4 machadinhas; 1 broca; 12 lanças; 3 tridentes; 1 florete; 1 faca; 1 garrafa de vidro quebrada) e da entidade morte aparecendo 2 vezes como ser e outras 2 representada em cartas de tarô; o que nos possibilitou pensar que estas representações estariam diretamente relacionadas à prática de atos de violência, principalmente a agressão física e o assassinato. Mais precisamente há 11 agressões físicas ou assassinatos representados no conjunto documental. Juntamente a forte presença de indumentária de uso cotidiano (em 85,7%

das imagens analisadas) caracterizada pelo uso recorrente de calça jeans (aparecem 14 vezes) e por camiseta (aparecem 41 vezes), aliado a representações de cortes de cabelo não convencionais aos padrões de conduta regulares à época da criação das imagens, tem-se um conjunto de símbolos que convergiriam a um ideal de transgressão da ordem vigente. As décadas de 1970 e 1980 atribuíram às calças jeans uma forte conotação de espírito transgressor e de contracultura como espírito de juventude e de liberdade, da mesma forma que os cortes de cabelo ou os cabelos compridos. O descompasso enorme na utilização de camisetas e calças jeans não quer dizer que outro tipo de calça tenha sido utilizada para acompanhar as camisetas, mas um número significativo de calças não puderam ser identificadas como jeans por ausência de denotadores (cor azul, por exemplo). Da mesma forma, o contato com as fontes, num sentido quantitativo e depois pela montagem do organograma, possibilitou ainda identificar outro ponto relevante: a questão da aparição das criaturas teratológicas, fundamentalmente da monstruosidade Eddie. Sua interação com a paisagem urbana ali simbolizada demonstra que sua função primordial é a de transgredir a ordem posta. Concluímos que a transgressão representada por este ente apresenta-se na dimensão política, moral, religiosa, normativa-social e biológica. Com relação à ordem política temos a forma agressiva de tratamento do personagem Eddie para com Margaret Thatcher, nas imagens: Sanctuary e Women In Uniform, de maio e outubro de 1980, nas quais, respectivamente, ela aparece morta, assassinada por Eddie que empunha uma faca ensangüentada; e viva, portando uma

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arma de fogo e a espreita, prestes a atacar Eddie. Um dado importante a ser levado em consideração, para que sejam relacionadas as imagens, é o fato de na capa de Women in uniform, Thatcher aparecer em contraste com uma parede na qual está afixado um pôster da banda Iron Maiden rasgado; em Sanctuary, o cadáver de Thatcher agarra pela mão direita um pôster idêntico, demonstrando na parede à esquerda da cena um outro pôster parcialmente rasgado. A relação causa/ conseqüência é a de que Thatcher pagou com a vida pela censura empreendida à banda, e Eddie foi seu algoz. A ordem moral e religiosa é afrontada pela interação de Eddie com o próprio mito cristão. Neste último caso nossas conclusões partem das referências ao inferno e a coexistência ou luta de Eddie com Satã. Apesar de o inferno estar referido em várias ilustrações, a temática é mais explícita no álbum e conjunto de singles de The Number Of The Beast, de 1982. A imagem de capa do álbum lançado em março de 1982 instaurou a polêmica sobre o envolvimento da banda com seitas satânicas e até mesmo um possível pacto com o diabo, boatos que proliferavam provocando rejeição do produto por vários segmentos religiosos que estimulavam a queima dos álbuns. Ocorre que os segmentos religiosos nunca foram considerados público-alvo nas estratégias de marketing da banda! A imagem que mostrava Eddie manipulando a entidade que no mito cristão é caracterizado como o demônio, parece encontrar nas capas dos singles subseqüentes uma tentativa de minimizar o estrago criado pela mídia. O single Run to the hills, de fevereiro de 1982, ao invés de demonstrar a manipulação de Eddie exercida sobre o demônio, representa uma luta do mascote contra a entidade portadora de todo o mal. Eddie está prestes a desferir um golpe de machadinha contra o 132

demônio enquanto estrangula-o com a mão esquerda, enquanto o demônio ameaça-o com um tridente segurado pela mão direita. O palco da luta é o próprio inferno onde pululam demônios subalternos e outras figuras teratológicas. O resultado do enfrentamento é dado na capa do single The number of the beast, onde é demonstrada a vitória de Eddie, numa perspectiva simbólica contra o próprio mal, pois segura a cabeça do diabo que verte sangue e cujos olhos mostram o estado de morte. Apenas as duas entidades ocupam a imagem, as demais monstruosidades desaparecem e só é possível vislumbrar as chamas do inferno, expurgado das almas condenadas. As normas de conduta social são transgredidas pela afronta à monogamia por exemplo, referência notável no single Women In Uniform de 1981, onde Eddie enfrenta os valores conservadores ao transitar em público na companhia de duas mulheres, acariciado por uma delas. Seria possível afirmar ainda que a transgressão que este personagem representa se dá no âmbito da própria ordem biológica humana: tal fato se coloca justamente pela recorrente presença do sobrenatural nas imagens, representado pela morte e pela vida após a morte de Eddie, que sai de covas em Live After Death de 1985 e Best Of The Beast de 1995 – onde também aparece como múmia-viva –, de túmulos em No Prayer For The Dying de 1990, perambula entre o céu de Flight Of Icarus de 1984 e o inferno de The Number Of The Beast e Run To The Hills de 1982, de A Real Dead One de 1993, de Virtual XI de 1998, e de Hallowed Be Thy Name de 1993, onde mata o próprio vocalista da banda (Bruce Dickinson, que despedia-se do Iron Maiden para voltar em 1999), e interage com humanos abraçando mulheres em Women In Uniform

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de 1981 e Bring Your Daughter… To The Slaughter de 1992, interagindo em um bar em Stranger In A Stranger Land de 1988, gestando vida em Seven Son Of A Seven Son de 1988, sendo o arauto da morte em Sanctuary de 1980, Run To The Hills e The Number Of The Beast (single) de 1982, Flight Of Icarus e The Trooper de 1983, No Prayer For The Dying de 1990, Be Quick Or Be Dead de 1992 e Hallowed Be Thy Name de 1993, ou a própria morte em Dance Of Death de 2003 – onde aparece de pé no centro do círculo da morte –, e Death On The Road de 2005. A morte também é referenciada pela utilização da representação do gato, que aparece quase oculto, confundindo-se com a paisagem e numa escala minimizada em Killers, Live after death e Somewhere in time. A imagem do animal foi carregada de significados relacionados ao ocultismo, pelo menos desde a cosmovisão egípcia prédinástica, na qual aparecia como um ser que transitava livremente tanto pelo mundo dos vivos como dos mortos. Nas três imagens referidas, ele testemunha a cena principal, anunciando o evento da morte como resultado das ações ali ensejadas. A fatalidade é referida como dilema imposto pela própria efemeridade da vida e das incertezas decorrentes da infalibilidade e aproximação inexorável da morte. A morte como evento carregado de conotações ocultas e sombrias, frente à insegurança da condição humana por sua perpetuação e pelo anseio por imortalidade, tem lugar nos cemitérios representados em Live after death e No prayer for the dying, onde o morto retorna de sua condição por intervenção sobrenatural demoníaca, batizado pelo fogo, contrário ao batismo divino cuja unção é dada pela água – na primeira imagem –; para atacar os vivos,

lembrando-os de sua mera condição de mortalidade e fragilidade diante das forças que desconhece – na segunda imagem. Os elementos sobrenaturais, os seres sobre-humanos e os objetos de cultura material representando atos de violência seriam utilizados, portanto, no contexto de transgressão e violência urbana do tempo presente à época em que foram produzidas as imagens, segundo a paisagem identificada por nós como recorrente e a natureza da interação que é empreendida pelas monstruosidades. Concluímos que os elementos sobrehumanos e toda relação destes com a cultura material, que acabam por representar atos de transgressão, teriam por objetivo atribuir a elementos fantasiosos as ações humanas desejadas, contudo frustradas pelos mecanismos de controle da ordem pública e pela ordem natural do desenvolvimento da vida em sociedade sob a égide do capitalismo, também pela própria ordem biológica humana. Exemplo disso é que, à exceção da capa dos álbuns Piece Of Mind de 1983 – na qual Eddie aparece contido por uma camisa de força, acorrentado no que parece ser um manicômio –, e na capa de The X Factor de 1995, bem como do single A Man On The Edge deste mesmo álbum – nos quais aparece em uma cadeira elétrica –; em nenhuma outra imagem se abate sobre ele qualquer mecanismo de controle social: policial ou religioso. A recorrência nas imagens, em resposta à corrente que o priva de liberdade em Piece Of Mind, são os grilhões quebrados nas capas seguintes: Live After Death de 1985, The Angel & The Gambler de 1998 e Futureal de 1999; bem como a liberdade plena em que aparece nas demais imagens. Concluímos que o fenômeno de grande circulação das imagens seria demonstrativo de uma demanda, de determinado segmento social, por um universo fantasioso no qual os

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regramentos sociais e naturais pudessem ser transgredidos sem que a força dos mecanismos de controle social recaísse sobre o transgressor. Fica claro que o extrato social majoritariamente receptor das imagens analisadas é subordinado a um determinado controle comportamental e de conduta. Dessa forma o ser sobre-humano “Eddie” passaria a servir como arquétipo deste segmento, desejoso por transgredir a ordem vigente. Nossas conclusões apontam para a utilização da paisagem modelar por sua recorrência como estabelecedora de uma identificação entre o emissor – inserido numa cultura urbana pós-industrial – e o público receptor – igualmente majoritariamente urbano –, por meio do espaço geográfico e a forma de relação social mantida com este espaço: a marginalidade demonstrada pela externalidade em período noturno onde o lugar primordial são as ruas. Pensamos que a utilização do contraste destes seres com muros e paredes externas de edificações denota essa condição de externalidade, ou melhor, explicitam-na; é o caso da capa de Iron Maiden, Running free e Women in uniform, de 1980; de Killers, de 1981; Somewhere in time, de 1986; Bring your daughter... to the slaughter, de 1992; Futureal, de 1998; e Ed Hunter, de 1999. Da mesma forma, a utilização recorrente de entidades sobre-humanas, especificamente da monstruosidade denominada Eddie, teria também uma função identitária, contudo não espacial como teria a paisagem recorrente, mas psico-social. Em última análise, este personagem provocaria uma identificação do citado extrato social capaz de fazer com que as imagens que compõem este corpus documental vetorizasse a relação de consumo desejada por seu emissor. 134

A lógica deste processo passaria pela necessidade de afirmação da marca Iron Maiden. Isso está demonstrado pela invariabilidade do logotipo utilizado pela banda. Não varia em forma mas apenas na coloração de seu preenchimento e contorno, de acordo com a cor predominante da imagem principal, sendo determinante para sua escolha o efeito de contraste para privilegiar o destaque da marca. A repetição constante das linhas características do logotipo na seqüência de imagens, produtoras dos sentidos gerais aqui determinados, provocariam a associação de suas formas com os signos identificados, concentrados nas ações perpetradas e centralizadamente no personagem Eddie. O espírito geral de transgressão, veiculado no reconhecimento entre identidades vetorizado pelo espaço representado e pela conduta psico-social simbolizada, seria fixado à marca Iron Maiden por meio de seu logotipo. O objetivo da fixação atenderia portanto às necessidades mercadológicas da indústria fonográfica, pois é na capa de CD’s e de LP’s que as imagens circulam com primazia. Estamos dizendo que a indústria fonográfica fez (e está fazendo) uso de representações de problemáticas sociais e de anseios coletivos a determinados segmentos como instrumentos de identificação de seu público alvo, no âmbito sensorial do mundo fenomenológico e no âmbito abstrato de um inconsciente coletivo, com o objetivo de vender bens simbólicos como bens de consumo de massa. Nessas imagens estão contidas representações dos próprios processos de mudança social que afetam não só a estes segmentos específicos, mas referem-se a um próprio signo da contemporaneidade. Não por acaso, não é este mesmo o objeto da História?

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CINEMA E CINECLUBISMO COMO PROCESSOS DE SIGNIFICAÇÃO SOCIAL

Cinema e cineclubismo como processos de significação social

Veruska Anacirema Santos da Silva Mestranda em Memória: Linguagem e Sociedade – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Colaboradora do Programa Janela Indiscreta Cine-vídeo UESB. Autora de “Cinema como semióforo e suas contribuições na formação de memórias sociais”. Revista Baleia na Rede, v. 1, 2008.

RESUMO O propósito desse texto é refletir sobre as possibilidades de significação social entretidas nas práticas sociais do cinema e na legitimação desse domínio como um lugar de saberes e fazeres. Destaco o cineclubismo como uma das práticas de imputação de sentido, que participa da estruturação de formas de ver e entender o mundo, com efeitos nas intenções e objetivações humanas. Como principal exemplo, tomo o Clube de Cinema da Bahia, fundado em 1950, que atuou na formação cultural de uma geração, incluindo nomes como o do cineasta Glauber Rocha. Para tanto, busco apoio no conceito sociosemiótico de cultura de Nestor García Canclini com suas teorizações a respeito dos processos de significação e dos atravessamentos simbólicos tecidos nas experiências culturais. PALAVRAS-CHAVE: cinema; cineclubismo; processos de significação.

ABSTRACT The purpose of this text is to reflect on the possibilities of social meaning entertained in the social practices of cinema and in the legitimacy of that area as a place of knowledge and actions. I highlight the movie clubs as one of the practices of meaning imputation, which participates in structuring ways to see and understand the world, with effects on human intentions and objectivations. As a prime example, I take the Film Club of Bahia, founded in 1950, which served in the cultural education of a generation, including names such as filmmaker Glauber Rocha. To do so, I look for support in the sociosemiotic concept of culture by Nestor García Canclini with his theories about the processes of meaning and the symbolic crossings woven in the cultural experiences. KEYWORDS: cinema; movie clubs; meaning processes.

Recebido em: 05/03/2009

Aprovado em: 25/04/2009

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VERUSKA ANACIREMA SANTOS DA SILVA

Cinema e cineclubismo como processos de significação social

Considerações iniciais A atividade simbólica1 parece ter sido sempre uma característica constitutiva da vida social, atuando na regulação das informações e das formas de comunicação que permitem a circulação dessas informações pelas redes humanas. Família, instituições religiosas e de ensino são algumas das instâncias sociais que comparecem como lugares de produção e consumo simbólicos de diversas ordens que dão sentido aos atos da vida. A complexificação da sociedade, com o advento do tempo histórico que chamamos modernidade, incluiu entre essas instâncias de produção de sentido os meios de comunicação e entretenimento que, compreendidos de forma ampla, “implica a criação de novas formas de ação e de interação no mundo social, novos tipos de relações sociais e novas maneiras de relacionamento do indivíduo com os outros e consigo mesmo” (THOMPSON, 1998, p. 13). Entre os diversos meios em funcionamento na contemporaneidade, esse

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texto se propõe a pensar naquele que primeiro conseguiu realizar o velho desejo do homem em reproduzir imagens em movimento: o cinema. Essa arte centenária – a única verdadeiramente moderna, na opinião do crítico cinematográfico Walter da Silveira2 – mudou a maneira como a sociedade vê e expressa o mundo que a cerca. Por isso, a abordagem aqui delineada não toma aspectos da história do cinema nem se envereda pelo tema da recepção das mensagens disposta na relação entre filme e espectador. A intenção é refletir sobre o cinema enquanto prática social, ou melhor, como um conjunto de práticas sociais distintas, como “um meio específico de produzir e reproduzir significação cultural” (TURNER, 1997, p. 49). Nesse sentido, o que se quer sublinhar é a possibilidade de pensar a sétima arte e suas dinâmicas como lugares de conhecimento na sociedade, que põem em funcionamento determinadas condições de produção, transmissão e consumo das informações3, portanto, doando significados às trajetórias de vida.

O conceito de simbólico, assim como outros das ciências humanas, comporta várias perspectivas. Nesse artigo, esse conceito está pautado em Pierre Bourdieu (2004) que, de forma sintética, pode ser traduzido como um instrumento de conhecimento, comunicação e classificação do mundo social. O advogado baiano Walter da Silveira, nascido em 1915 e falecido em 1970, foi um dos mais renomados críticos cinematográficos do país. Em 1950, ele fundou o Clube de Cinema da Bahia, que marcou toda uma geração. Em 1960, ele escreveu “tanto se fala em arte moderna, esquece-se que só há realmente uma: o cinema. Todas as outras são antigas, são artes que se modernizaram – modernizadas digamos”. Essa passagem está na coletânea Walter da Silveira: o eterno e o efêmero, organizada por José Umberto Dias, um dos freqüentadores do cineclube, e publicada em 2006 pela Oiti Editora e Produções Culturais Ltda. Por informação, entendemos, conforme Farias (2007), a seleção de possibilidades intrínsecas à dinâmica que provém as instituições designadas pela coordenação das relações sociais dos recursos cuja dosagem na distribuição interfere decididamente na orientação de diferentes condutas.

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Para os fins dessa proposta, destaco uma dinâmica específica ligada ao cinema, qual seja, o cineclubismo, prática que reúne grupos de pessoas interessadas em ver e discutir sobre filmes, tomando como principal exemplo uma experiência ocorrida na Bahia, nos anos 1950 e que deixou marcas importantes em toda uma geração de cineastas e outros intelectuais ligados ao cinema, incluindo nomes como Glauber Rocha. A aposta aqui é que essa prática, tornada habitus social4, atua na elaboração e circulação de significados com impactos sobre comportamentos, estimas e afetos incorporados aos contornos de identidades coletivas e individuais. Nessa trilha, busco o aporte teórico do antropólogo Nestor García Canclini, no que diz respeito aos processos de significação social disparados pelas experiências culturais, algo que nos ajuda a pensar na formação dos indivíduos a partir de suas implicações com os objetos da cultura. Sua abordagem da cultura, que define como sociosemiótica, lança luzes sobre as transformações dos objetos culturais através de seus usos e apropriações nas relações sociais. Cinema e processos formativos O predomínio das abordagens sobre educação ligadas à escola e seus similares obliteram outras possibilidades de formação dos indivíduos, grupos e gerações existentes nas diversas instâncias da vida social. Ao contrário dessa visada, a proposta desse texto é pensar no cinema como um lugar de significação, de aprendizagem social, com potencial para modular comportamentos e estimas. Nesse sentido, o esforço que se quer realizar exige que se tenha clara a opção

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teórica de aprendizagem escolhida para esse fim. Aqui, parto de uma perspectiva sociocultural que a conceitua como sendo um processo de significação que [...] gera movimentos individuais e coletivos em torno de sistemas de significados histórica e culturalmente situados, significados que expressam modos específicos de compreensão do mundo material e simbólico (COLINVAUX, 2008, p. 61).

Tal definição nos permite andar por um terreno que privilegia a plasticidade dos modos de aprender e que, muito antes de encerrar-se em qualquer instituição, está em funcionamento nas vivências humanas. Assim, presente nos diversos circuitos da vida social, a idéia de aprendizagem como um modo de significação parece conectar-se com o conceito, também abrangente, de cultura, formulado pelo antropólogo Nestor García Canclini, para quem “a cultura abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social” (2005, p. 41). Aliar essas concepções de cultura e educação está na trilha da compreensão de que a relação dos processos de aprendizagem com a cultura passa, em grande parte, pela significação, pois “toda cultura vive por meio da invenção e propagação de significados de vida” (BAUMAN, 2008, p. 11), algo que dá substância aos discursos, práticas, gostos e estilos de vida de um dado grupo social. No amplo fundo de conhecimento que constitui a experiência humana, em que cultura e aprendizagem se dispõem de forma relacional, busco privilegiar um momento da vida cultural, qual seja, o cinema. Entretido nos modos de existência delineados pela modernidade, a arte cinematografia assume

Habitus social, de acordo com Elias (1995), é o elenco de disposições para o pensamento e a ação.

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um lugar importante nas estruturas sociais, com impactos nos processos de significação social que atuam na formação cultural dos indivíduos. A intenção aqui é pensar que o cinema e suas dinâmicas– que vão do processo de criação de um filme e seus engates com o mercado, passam pelos manejos técnicos e deságuam nas relações com o espectador – participam da estruturação de formas de ver e entender o mundo ou, dito de outro modo, constrói sentidos. “O cinema tanto se caracteriza como meio, linguagem e possibilidade expressiva, como suporte material da memória que viabiliza processos de aprendizagem, engendrando e resignificando práticas sociais de geração em geração” (GUSMÃO, 2007, p. 54). É sabido que a experiência cinematográfica conquistou multidões ao revelar não tanto coisas novas, mas novas maneiras de ver velhas coisas, até da mais sórdida cotidianidade (MARTÍN-BARBERO, 2003). Podemos especular que, a experiência do cinema, novidade no fim do século XIX e início do XX, exigiu dos seus espectadores novos aprendizados para a fruição dos espetáculos imagéticos. Todo o ritual para ir ao cinema e permanecer na sala escura desencadeou movimentos corporais e emocionais específicos àquela situação. Talvez por isso, o poeta e crítico cinematográfico, Vinicius de Moraes, alertava, em um de seus textos, que “é preciso também saber ir ao cinema” (1991, p. 25). O surgimento de profissões engendradas pela execução dos filmes exigiu novos saberes e fazeres (GUSMÃO, 2007). Vários estudos dão conta da maneira como o cinema atuou na formação de comportamentos e sensibilidades. Martín-Barbero e Rey, comentando uma afirmação de C. Monsivais, nos dizem que, na primeira metade do século 140

XX, os mexicanos não iam “ao cinema para sonhar, mas para aprender a ser mexicanos” (2001, p. 35). Quando se diz que as práticas acima descritas são processos de significação, está em discussão a proposição de que as experiências ligadas ao cinema são exemplos de situações que disparam aprendizados processuais, realizados nos próprios ambientes de produção e consumo dos filmes, sem sistematizações específicas. Uma vez incorporados pelos agentes que vivenciam suas relações com esse bem cultural, com outras pessoas e com as condições sócio-históricas existentes em um tempo dado, esses saberes afetam os indivíduos em suas estruturas sócio-psiquícas, ou seja, produzem significados que passam a orientar os modos de vida dos indivíduos implicados em determinadas conjunturas. Desse lugar, o cinema pode ser visto como uma experiência constitutiva das interações cotidianas, à medida que desenvolve processos de significação, fazendo com que indivíduos e instituições dediquem parte importante de suas existências às relações com a sétima arte. O processo formativo implicado aqui, na experiência do cinema, tem potencial para atuar, manter e transformar atitudes humanas prenhes de significados. A reflexão que guia esse texto é possível a partir das considerações tecidas no campo dos estudos culturais, atravessado por teorizações advindas dos âmbitos da Sociologia, da História, da Antropologia e da Comunicação, que incluem as experiências audiovisuais no bojo das novas configurações sócio-históricas surgidas com a modernidade – e intensificadas na pós-modernidade – e que a avaliam como tendo papel fundamental na constituição das variadas maneiras de viver, com efeitos nas intenções e objetivações

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humanas. As práticas aliando informação, comunicação, cultura e entretenimento, a exemplo do cinema, traduzem o atravessamento de universos simbólicos e suas habilidades em operacionalizar novos modos de formação cultural e de significação da vida. Nesse movimento, o cinema também faz parte dos domínios de memória existentes nas sociedades contemporâneas, com impactos nas possibilidades de favorecer lembranças e, ao mesmo tempo, ativar esquecimentos (FARIAS, 2007). Ao considerarmos o impacto do cinema na percepção do homem moderno, como bem destacou Walter Benjamin (1994), podemos perceber sua dimensão simbólica irredutível, ao se relacionar com a produção, armazenamento e circulação de sentidos significativos para os indivíduos. Quando avaliamos, como pretende esse artigo, a participação do cinema na significação e resignificação dos conteúdos simbólicos produzidos e intercambiados no mundo social, é possível observar os efeitos de tais disposições simbólicas nas práticas dos indivíduos entretidos nessa experiência, já que as práticas estão informadas pelos modos de orientação tramados nos processos de significação social. Para tanto, tomo uma dinâmica específica, o cineclubismo, como um exemplo de prática ligada à sétima arte que gera impactos nas vivências dos indivíduos ou, dito de outro modo, como um processo de formação, passível de apreensão nas maneiras como determinados hábitos culturais transformam-se em saberes presentes nos corpos, nos pensamentos, nas percepções e nas ações de inúmeros agentes sociais. “Nestes movimentos, comunicam-se significados, que são recebidos, reprocessados e recodificados” (GARCÍA CANCLINI, 2005, p. 43). O cineclubismo é um exemplo de como os espaços sociais constituídos nas

experiências culturais geram ambiências favoráveis a determinados tipos de aprendizados, compartilhados e utilizados por um dado número de pares, não raro reunidos em torno da figura de um mestre ou líder, com impactos nas memórias dos indivíduos, nas formas como eles mobilizam os saberes e fazeres adquiridos durante tal experiência. Quando passa a compor a existência de indivíduos, orientando suas maneiras de ser e agir, o cineclubismo pode ser considerado um espaço de significação e imputação de sentido e que, assim como outras experiências, deriva em padrões de relações sociais específicos com suas respectivas pautas de poder e seus jogos de disputas e acomodações. Nesses termos, o cineclubismo, enquanto lugar de significação, dá sentido a uma série de trajetórias individuais, aliando cultura e aprendizagem social. Essa percepção está na contrapartida da análise realizada por García Canclini (2005) que destaca a existência, além das relações de força, mais comumente identificadas na sociedade, das relações de sentido e significação, que organizam a vida social. Cineclubismo, formação cultural e significação social Nessa parte do artigo, busco apontar alguns exemplos de prática cineclubista a fim de demonstrar os impactos dessa experiência na formação cultural de vários indivíduos. A história do cinema mundial reserva um capítulo à parte ao cineclubismo, prática social que surge poucos anos após o aparecimento do cinematógrafo dos Lumière, em 1895. Os esforços para datar seu começo apontam, como início oficial, o cineclube fundado pelo francês Louis Delluc que, em janeiro de 1920, num texto publicado no primeiro número da Revista Ciné Club,

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escreveu: “Existe o Touring Club, é preciso haver também o Ciné Club” (MACEDO, 2008). Nessa revista, foram publicados os estatutos do primeiro cineclube organizado em bases definidas e a expressão se transformou na denominação para os grupos que se reúnem para assistir e discutir filmes. Suas atividades começaram em 12 de junho, entretanto, a primeira projeção só aconteceu em 14 de novembro de 1921, no cinema Colisée, em Paris, com O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene. Em 1925, nasce a Tribuna Livre do Cinema, fundada por Charles Léger, que inaugura a tradição cineclubista de sessões semanais seguidas de debate. As análises sobre o surgimento dos cineclubes revelam o fato de que, desde o início, esses espaços proporcionaram muito mais do que exibições e comentários de obras cinematográficas. Foi nessa ambiência que, muitas vezes, se desenvolveu uma sólida prática de crítica cinematográfica, de falares e olhares sobre os filmes que iam além das leituras dos espectadores menos atentos. Espalhados por diversos países, reunidos em federações nacionais e internacionais, “os cineclubes comparecem como organizações atuantes, que foram fundamentais para a formação de núcleos de discussão intelectual sobre cinema em diversos lugares do mundo” (GUSMÃO, 2007, p. 168). Esse ambiente favorável à apreciação regular de filmes e seus conteúdos formais e estéticos foi importante para uma série de movimentos. Segundo Macedo, o neorealismo italiano e a nouvelle vague francesa5, “são diretamente originários do cineclubismo” (2008, p. 27), desse ambiente de discussão e 5

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formação cultural, em que os aprendizados, uma vez incorporados, ampliaram o fundo de saberes sobre a sétima arte e informaram novos fazeres. Ao fazer da prática de ver filme um habitus, uma profissão, uma atividade que ocupa parte importante da existência, vivida e compartilhada em grupo, os agentes sociais estão mobilizando saberes e gostos que, conjuntamente, dão significado a um processo social. Nessa experiência, sentidos são construídos, ligando os indivíduos em teias vitais para o desenvolvimento de configurações sociais, nas quais a idéia e a experiência de cultura ganham centralidade nas sociedades contemporâneas. A organização dos cineclubes permite não só uma série de aprendizados – ainda que não conscientes –, mas também a transmissão desses saberes por vias porosas constituídas nas relações entre os indivíduos, que atuam na manutenção ou na transformação dessas práticas. A experiência do cineclubismo deixou marcas em nomes importantes de diversos campos de atuação como os escritores H.G. Wells e George Bernard Shaw e o célebre economista John Maynard Keyne, todos associados da Film Society of London, criada em 1925, para promover filmes de arte e independentes. A contribuição do movimento cineclubista na formação de várias gerações de cineastas pode ser observada nas carreiras de nomes como JeanLuc Godard e Win Wenders. No Brasil, os cineclubes também se estruturaram como espaços de aprendizados e de formação cultural desde o seu início. O primeiro deles, pelo menos oficialmente6, foi

O neo-realismo surgiu entre os anos 1944-1945, caracterizado pelo uso de elementos da realidade no cinema, buscando representar a realidade social e econômica do pós-guerra, na Itália. Já a nouvelle vague foi um movimento artístico da cinematografia francesa que se insere no espírito contestatário próprio dos anos sessenta. Uma de suas principais característica é a narrativa não-linear. Segundo Felipe Macedo (2008), em 1917 – antes, portanto dos cineclubes franceses de Delluc e Canuto – já existia uma atividade típica, mas não formalmente cineclubista: o Grupo do Paredão – Adhemar Gonzaga, Álvaro Rocha, Paulo Vanderley, Pedro Lima, entre outros – que se reunia para ver e debater filmes, nos cinemas Íris e Pátria, no Rio de Janeiro. Esse grupo será responsável, mais tarde, por importantes ações ligadas ao cinema nacional, como a criação da Revista Cinearte, considerada a principal publicação voltada especificamente à sétima arte; e a implantação do estúdio Cinédia, um dos marcos na história do cinema nacional.

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o Chaplin Club, fundado em 1928, no Rio de Janeiro, por Plínio Sussekind, Otávio de Faria, Almir Castro e Cláudio Melo. Esse grupo de intelectuais se inspirou na experiência francesa para fundar o clube e, além das atividades de exibição e discussão, editou a revista O Fan e foi responsável por momentos memoráveis da história do cinema nacional como a primeira exibição do clássico filme Limite, de Mário Peixoto, em uma sessão realizada em 1931. Outro marco importante do cineclubismo brasileiro é a criação do Clube de Cinema de São Paulo, em 1940, que, depois de uma trajetória irregular, com interdição do governo varguista e exibições clandestinas, constituiu-se, mais tarde, em escola de cinema informal, promovendo cursos e seminários, atuando, portanto, na formação cultural – e profissional – de levas de indivíduos interessados em cinema e, também, servindo como modelo para a criação de outros cineclubes. Entre os vários cineclubes fundados no país a partir dos anos 1940 e 1950, período em que ocorre a consolidação de uma sociedade urbano-industrial e o surgimento de um incipiente mercado de produção e consumo cultural no Brasil, chama especial atenção a experiência baiana. Nesse contexto histórico, no qual o cinema se torna de fato um bem de consumo e o país assiste a um crescimento das atividades culturais em termos empresariais (ORTIZ, 2001), surgiu o primeiro cineclube da Bahia, fundado, em 27 de junho de 1950, na cidade de Salvador, pelo advogado e crítico de cinema Walter da Silveira. Referência fundamental para os estudos realizados sobre cinema no Estado, o Clube de Cinema da Bahia (CCB) foi importante na formação de uma geração de cineastas e críticos de cinema, que inclui nomes como Glauber Rocha. A singularidade dessa experiência pode ser realçada pelas

observações do historiador e crítico de cinema brasileiro Paulo Emílio Salles Gomes. Em uma matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 24 de novembro de 1962, intitulada Calor da Bahia, Paulo Emílio aponta para uma ambiência específica encontrada em Salvador aliando formação cultural e produção cinematográfica, com destaque para Walter da Silveira e seu Clube de Cinema (GUSMÃO, 2007). Freqüentado por um público formado por estudantes universitários e secundaristas, professores, profissionais liberais, intelectuais e artistas, o Clube de Cinema da Bahia exibia filmes, na maioria de origem européia, muitos deles de cineastas desconhecidos, que não chegavam aos espectadores pelo circuito comercial. O Clube de Cinema da Bahia proporcionou aos cinéfilos assistirem aos clássicos de Jean Cocteau, René Clair e Charles Chaplin; dos expressionistas alemães (Murnau, Wiene, Pabst, Lubitsch, Lang); de cineastas britânicos e soviéticos (com destaque para os filmes de Eisenstein). Assim como se empenhou para que o público baiano também pudesse ver os filmes dos jovens realizadores franceses que estavam fazendo o “mundo vibrar em debates, aplausos, vaias, polêmicas radicais ou simplesmente discussões legais”. Eram eles, segundo o crítico Orlando Senna, Alain Resnais, François Truffaut, Roger Vadim, Louis Malle e Claude Charbol, citando aqui apenas os mais conhecidos (CARVALHO, 1999, p. 178).

Esse mundo de novas informações, idéias e comportamentos que chegaram por meio dos filmes exibidos e a ambiência marcada pelos debates e pelas trocas culturais, atuaram na educação dos sentidos e das emoções dos agentes sociais freqüentadores do cineclube. Compreender esse aspecto do cineclubismo é importante porque, para falar como García Canclini, “para entender cada grupo, deve-se descrever como se apropria

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dos produtos materiais e simbólicos alheios e os interpreta” (2005, p. 25). Nesse sentido, a experimentação e a apropriação da arte cinematográfica realizadas no clube de cinema contribuíam com a formação cultural das pessoas, por meio de uma educação sensível, atravessada por modos dinâmicos de existência, que permitem reagir, participar, simpatizar ou antipatizar os processos sociais e, nesse movimento, favorece a incorporação de significados que passam a nortear as relações dos indivíduos tanto com o cinema quanto com outros vãos da existência. Tais processos de aprendizagem realizados no âmbito da cultura são pautados pela cognição e pela afetividade, sem que um nível tenha primazia sobre outro, atuando, dessa maneira, conjuntamente, nas disposições corporais e emocionais que estruturam as condutas da vida, fazendo com que a imagem seja um domínio legitimador de saberes e fazeres, de sentires e falares e, mais ainda, de organização de expressões sócio-culturais. Como prova da fecundidade do trabalho, desse segmento de público familiarizado com uma leitura mais profunda dos filmes, surge um grupo de pessoas que se debruçavam mais demorada e criticamente sobre as obras, a fim de desvendar seus possíveis mistérios. Eram os críticos cinematográficos, preocupados em analisar o cinema nos seus vários aspectos – estéticos, históricos, sociais, políticos, econômicos – para, inclusive, facilitar a comunicação entre os realizadores e o grande público (CARVALHO, 1999, p. 181-182).

Entre as pessoas formadas nesse ambiente cultural estão nomes como o do cineasta, Glauber Rocha, e o crítico cinematográfico e professor, Orlando Senna, sendo que este último ainda atua em coisas ligadas ao cinema, mais de cinqüenta anos depois da fundação do primeiro cineclube baiano, deixando entrever o engate entre os 144

saberes incorporados e a memória. Se isso ajuda na compreensão, de um lado, das permanências de determinadas experiências na sociedade, por outro, nos faz pensar no lugar ocupado pelos agentes culturais nas sociedades modernas e nas suas competências para mobilizar saberes para a produção de sentido. Segundo Farias (2008), os artistas, intelectuais e outros agentes posicionados nessa ambiência são, atualmente, os guardiões da cultura e da memória. Nesse sentido, adentramos em um terreno de memórias socialmente legitimadas por um grupo específico de indivíduos que viveram a experiência do cineclubismo na década de 1950 e início dos anos 1960, cujos aprendizados foram elaborados, transmitidos e conservados em seus próprios percursos de vida ou nas continuidades alocadas em distintos contextos sócioculturais. Um dos exemplos clássicos da formação pelo cinema é Glauber Rocha. Apesar de ter iniciado seu interesse pela sétima arte ainda na infância, no município onde nasceu – Vitória da Conquista (BA), o contato com o cineclube teve significado determinante em sua trajetória. Em 1954, quando contava com 15 anos de idade, Glauber passou a freqüentar ativamente o Clube de Cinema da Bahia (PIZZINI, 2008). A ambiência do cineclube e as críticas cinematográficas produzidas por Walter da Silveira tiveram impactos importantes no aprendizado de Glauber Rocha pelo cinema. Em um de seus depoimentos, Glauber disse: “Lendo Walter da Silveira descobri o cinema internacional segundo sua economia, sua política, sua técnica, sua estética, sua ideologia” (apud CARVALHO, 1999, p.183). Foi também no clube baiano que este cineasta, um dos mais renomados do mundo, aprendeu ‘a história do cinema’, ainda que de forma não-linear.

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CINEMA E CINECLUBISMO COMO PROCESSOS DE SIGNIFICAÇÃO SOCIAL

O próprio Walter da Silveira comentou, em referência à realização do primeiro curtametragem de Glauber Rocha, Pátio, de 1959, que “sem dúvida, o adolescente deixara-se impressionar pelo Jean Cocteau de Le sang d´un poète, visto no Clube de Cinema da Bahia, que tanto freqüentava” (2006, p. 327). Para Glauber e sua geração, a ambiência do cineclube, marcada pela possibilidade de formação cultural, atuou na modulação de comportamentos e na determinação de dadas condutas de vida informadas pelos saberes incorporados dispostos nessas experiências ou, dito de outro modo, como um vetor para a formação de gostos culturais, de estilos de vida e de condições para a fruição de filmes e para a estruturação do trabalho intelectual ligado às práticas cinematográficas, a exemplo da crítica e da realização de roteiros, argumentos, produções e direções de filmes. Para os indivíduos educados nessa experiência cultural, o ato de assistir filmes se configura como algo mais do que uma rotina ou um entretenimento, mas como uma marca de distinção, ao por em funcionamento maneiras específicas de consumo, adquiridas nesses processos de formação. Esses esquemas de percepção e elaboração de significados, uma vez incorporados e expressos nas condutas e práticas, criam os instrumentos capazes de atribuir sentido ao mundo e disparam processos de significação que dotam os fluxos humanos de historicidade, de movimento. No percurso da vida, esses aprendizados assumem disposições diferenciadas dando lugar a modos singulares de significação e resignificação das experiências. É o que se percebe na trajetória de outro agente social cuja posição no campo cultural 7

o faz uma referência para as práticas cinematográficas na Bahia, apesar das tensões que possam existir nas relações sociais nas quais está inserido: o crítico Orlando Senna. Nascido na cidade de Lençóis (BA), seu primeiro contato com a sétima arte se deu em sua cidade natal. Mais tarde, parte de seu gosto foi formada nas suas passagens por colégios católicos de Salvador – Marista São Francisco, Nossa Senhora das Vitórias e Jesuíta Antonio Vieira – que realizavam sessões cinematográficas. No Clube de Cinema da Bahia, sua formação pelo cinema foi complementada. Lá, assim como outros sócios, ele teve a oportunidade de assistir filmes de outras cinematografias, que não a brasileira e a norte-americana. “Devo aos cineclubes meu interesse por cinema e um percentual enorme da minha formação geral”, disse Orlando Senna em entrevista à Revista Cineclube Brasil, em novembro de 20047. A formação cultural adquirida nessa experiência, fez com que Senna desenvolvesse as habilidades para se tornar crítico, roteirista, produtor e diretor de cinema e, além disso, para ocupar posições políticas importantes. Entre 2003 e 2007, foi Secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura. A exigüidade do espaço não nos permite retomar outras trajetórias de vida marcadas pelos processos de formação cultural propiciados na ambiência do cineclube, mas podemos afirmar que elas ocorreram em número suficiente para dotar toda uma geração de uma significação específica ligada à sétima arte, com impactos não apenas em suas vivências, mas na estruturação da história do cinema baiano. Isso nos leva de volta à consideração da importância dos meios de

Esse trecho da entrevista está na tese de doutorado da pesquisadora Dra. Milene Gusmão (2007), que consta da bibliografia deste artigo.

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VERUSKA ANACIREMA SANTOS DA SILVA

comunicação e entretenimento nas configurações sociais da modernidade e às condições de produção, transmissão e consumo das informações dispostas nesses arranjos societais. Os saberes incorporados nas experiências culturais se traduzem como um elenco de disposições para o pensamento e a ação (LEÃO, 2007), que, adquiridos ao longo da formação do indivíduo, mesmo quando esse já alcançou a vida adulta, continuam informando comportamentos e gostos, tomando forma, por exemplo, nas condutas profissionais, na formulação de políticas públicas, na retomada de movimentos sociais e culturais, a exemplo do próprio cineclubismo, que passa por uma revitalização desde 2003, demonstrando a vitalidade dos processos de significação decorrentes das redes que atravessam e constituem o âmbito do cinema. Essa significação decorre do fato de que, ao longo de sua existência, “este movimento cultural teve um papel políticopedagógico importante na formação dos seus participantes [...], por ser um espaço de construção intelectual” (MATELA, 2008, p.20), atuando como um elemento estruturante do conhecimento e da cultura, um lugar de aprendizagem e cultivo, de significação e resignificação de conhecimentos variados. O cinema, tecido e compartilhado interativamente nos contextos sóciohistóricos, desencadeia processos de significação ao possibilitar aprendizados que passam a orientar comportamentos que, por sua vez, encontram permanências. A formação cultural pelo cinema pode, então, ser considerada, ao mesmo tempo, produto e alavanca de desenvolvimentos socioculturais que compõe os movimentos mais amplos das dinâmicas características da modernidade. Integrados às estruturas que vão se 146

constituindo entre os indivíduos, as condições e os tipos de aprendizados disponíveis só podem ser compreendidos nas sociabilidades proporcionadas pelos espaços de consumo dos filmes. O cineclube dirigido por Walter da Silveira e seus similares espalhados pelo País atuaram como espaços de formação cultural de um público interessado em ver e discutir cinema; um lugar de significação social, ao doar nexos de sentidos às trajetórias de indivíduos e grupos. Essa ambiência deixou traços que constituem a memória social, na medida em que participa da apreensão, elaboração e transmissão de significados que pautam diversas condutas de vida. Se considerarmos que os processos ocorridos nos desenvolvimentos sócio-históricos portam, muitas vezes, conseqüências não programadas, então podemos compreender como o cinema se tornou um domínio no âmbito da cultura que favorece significados que excedem suas intenções originárias, doando sentido aos espaços e tempos que ancoram as existências de vários agentes e grupos sociais. Os temas culturais, entre eles, as experiências imagéticas, comparecem, cada vez mais, como uma possibilidade de lançar novos olhares sobre as dinâmicas sóciohistóricas apreendidas nas relações interpessoais e geracionais que tecem teias de lembranças e significados. No percurso aqui trilhado, podemos especular que as imagens, fixas ou em movimento, desencadeiam processos de significação em contextos de comunicação permitindo, por parte do espectador, a construção de sentidos variados, marcando as subjetividades e norteando gostos, estimas e práticas. Assim, as imagens participam de um mundo de representações, não só como meio, mas também como mediação de discursos e experiências, atuando nas maneiras pelas quais os indivíduos transitam no mundo.

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CINEMA E CINECLUBISMO COMO PROCESSOS DE SIGNIFICAÇÃO SOCIAL

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resenhas



RESENHA

DIDI-HUBERMAN, Georges. La pintura encarnada. Trad. Manuel Arranz. Valência: Correspondências. Pré-textos – Universidade Politécnica de Valência. 2007.

Rafael Alves Pinto Junior Doutorando de História – Universidade Federal de Goiás (UFG). Docente do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás. Autor de “Ornamentação modernista: azulejaria de Portinari na Igreja da Pampulha”. Pós. Revista do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. FAU/USP, v. 23, 2008.

Recebido em: 25/11/2008

Aceito em: 25/03/2009

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RAFAEL ALVES PINTO JUNIOR

DIDI-HUBERMAN, Georges. La pintura encarnada. Trad. Manuel Arranz. Valência: Correspondências. Pré-textos – Universidade Politécnica de Valência. 2007.

O encarnado seria, portanto, outro fantasma, o colorido em ato e em trânsito, uma trança entre a superfície e a profundidade corporal [...] que um quadro durma, desperte, sofra, reaja, se negue, se transforme, ou se ruborize como o rosto de uma amante quando se sente observado pelo amado; isto é tudo que se pode esperar da eficácia de uma imagem. – Georges Didi-Huberman

La peinture incarnée de Georges DidiHuberman divide-se em duas partes: uma primeira, em que o autor se debruça frente ao tema da encarnação na pintura – a própria representação e seus limites; e outra, em seqüência, traz o texto integral de Balzac (1799-1850) – A obra-prima desconhecida – publicada originalmente em 18371. Huberman parece entender o texto literário balzaquiano como a fonte de uma alegoria às questões recalcadas na persistência da pintura. O autor vai além da ekphrasis e conduz o leitor a um exercício reconstrutivo do que foi examinado, pretendendo interferir nas qualidades do objeto. Levanta questões que são constituintes da pintura mas que estão além da pura visibilidade. Problemas já discutidos em sua obra anterior – O que vemos, o que nos olha (1998) – mas que o autor leva adiante na discussão da constituição da visualidade 1

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artística como uma alegoria pós-Benjamin do corpo expresso através da carne da pintura. A história de Balzac se desenrola no início do século XVII e conta a história de Frenhofer, um pintor que dedica anos de trabalho à execução de um retrato que corresponderia à completa e fidedigna representação da realidade2: o (ainda) desconhecido Nicolas Poussin, acompanhado por Frenhofer, visitam o artista Porbus e vêem o quadro Maria Egipcíaca, de sua autoria. Para Frenhofer, faltava vida à pintura. O quadro parecia incompleto. Ele o corrige rapidamente e fica perfeito. Três meses depois, Porbus e Poussin vão ao atelier de Frenhofer e o encontram esgotado tentando acabar sua misteriosa obra prima. O artista buscava o modelo ideal da arte e a obra-prima que ninguém havia visto até então seria o retrato de sua amada Catherine Lescault. Ele havia dedicado ao quadro, praticamente uma década de trabalho. Porbus e Poussin são convidados a admirar a tela, mas não são capazes de reconhecer a figura do quadro. Distinguem apenas uma parte magníficamente bem feito de um pé, perdido numa profusão de cores e formas. Pintado e repintado inúmeras vezes, a obra prima se perdera numa névoa informe. A desilusão de Porbus e Poussin levam o velho mestre ao desespero. Inconsolável, Frenhofer morre, depois de atear fogo às telas.

O texto de Balzac data de 1831, publicado no jornal l´Artiste sob o título de Mestre Frenhofer, e em seguida, ainda no mesmo jornal como um conto fantástico – Catherine Lescault – no mesmo ano. Apareceria revisado e corrigido nos Etudes philosophiques em 1837. Para ele, a missão da arte não era copiar a natureza, mas expressá-la.

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RESENHA

O personagem de Balzac certamente não foi o único artista a criar uma figura e se apaixonar por ela. Se o pintor quiser ver belezas e se apaixonar por elas, basta-lhe crialas, pois tem poder para isso, já lembrava Leonardo (1452-1519)3. Ele também sabia que o desejo de criar, de trazer à luz uma segunda realidade, encontra horizontes definidos em seu próprio meio. A pintura é o limite da própria pintura. No texto de Balzac, Huberman vê uma metáfora sobre a origem e os próprios meios de comunicação da superfície pictórica. Esta metáfora ilustra um dos pressupostos sobre o sentido e o significado da imagem na (da) pintura: ela surge como instrumento e meio para se alcançar o objetivo da representação artística. A imagem aparece como uma “outra” natureza, coincidente ou não com o real. Algumas questões se destacam: quando uma pintura está terminada? Qual a pincelada será entendida como a última necessária para que os objetivos do quadro possam ser dados como alcançados? Quantos retoques seriam necessários para que a pintura seja dada por concluída? Que matéria seria esta, informe, subjetiva, milagrosa dado que incomensurável, a responsável por distinguir uma obra prima de um borrão, uma mancha destituída de sentido ou valor para a arte? O procedimento da pintura emerge neste cenário como um fazer dionísico – uma espécie de dúvida – um sofrimento do sujeito autor da obra. Delírio dos sentidos, afirmação da cor como meio. Uma questão incontornável para o artista: os limites da obra

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de arte. Limites estes que funcionam como verdade absoluta e alteridade extrema. No conto, ao corrigir o quadro de Porbus – Maria Egipcíaca – Frenhofer infunde um certo anima 4 na pintura. O que corresponderia a uma questão estética consubstanciada na pintura comum a Cenini, Diderot, Hegel e Merleau-Ponty: do tangível ao visível e da própria constituição de um corpo que é capaz de ver, mas que acaba não sendo representável em essência na representação pictórica, que é certamente, uma estrutura. Mas que espécie de estrutura? Esta seria uma questão inescapável de todo fazer pictórico e que todo artista tem que enfrentar. De acordo com Huberman, o que Frenhofer faz, no texto de Balzac, é buscar a encarnação em sua pintura. Seu objetivo é produzir uma pintura encarnada. No sentido puramente técnico, literal, carnação em pintura significa a camada de tinta que reveste as partes descobertas da anatomia humana, simulando a cor e a textura da carne. Vale lembrar que, para a teologia, a encarnação é o mistério pelo qual a divindade se manifesta na forma humana. Encarnar corresponderia à personificar, tomar vulto mediante a carne do corpo, fazer-se visível, corpóreo. Para Huberman, a encarnação na pintura é uma condição necessária para que o olho se desvie, perpasse a superfície da tela e chegue à profundidade do significado da obra. Corresponde, pois, à intensidade do corpo que se faz visível mediante a superfície pictórica, revelando-se ao olhar que o vê. Corresponde também a uma cor limite, ou extrema,

Leonardo, Treatise, ed. MacMahon, n. 33. In:GOMBRICH, E.H. Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 85. Para os dicionaristas, o anima é um antepositivo, do lat. anima, ae (equivalente semântico do gr. psukhe) sopro ar, depois sopro de vida, alma. E é precisamente este o objetivo de se animar o espaço pictórico, como o entendido no texto de Balzac: imprimindolhe uma alma através de determinados recursos estéticos e formais de maneira a compor o mais precisamente possível o espaço pictórico e os objetivos propostos.

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RAFAEL ALVES PINTO JUNIOR

mediante a qual a pintura poderia ser vista como corpo e como sujeito e portanto, capaz de despertar o desejo. Apesar de nada mais ser que uma qualidade da superfície pictórica, a encarnação traduziria também uma cor em potência, dado que seu efeito não acontece nela, mas se completa no olhar. Nestes limites se enquadram os desejos do artista que se coloca diante da tela como à beira de uma falésia. A busca pela encarnação corresponderia a essa tormenta da representação do corpo, sendo fenômenoíndice do próprio movimento do desejo na superfície tegumentária do corpo. Procede, pois, do sangue – vermelho, portanto – e refere-se a um dever ser da cor, como a cor mesma de um corpo que é olhado com desejo. Temos aí o rubor e a noção de pudor – a consciência do erro. Na tensão e na antítese entre o desejo e a negação do objeto de desejo, o pudor explicitaria para Huberman, o acontecimento antitético de uma pulsão escópica rebaixada por uma negação, mas ao mesmo tempo, confirmada por ela. Não há como não lembrar da Madalena Penitente 5 de Tiziano (1490-1576) escondendo o corpo com os longos cabelos. A carne latejando sob o véu. Rubor da santa sobre a carne da prostituta. À essa compreensão, o Frenhofer no texto de Balzac evoca à Pigmalião. Huberman, porém, vê uma radical diferença entre eles. Se por um lado, no mito relatado por Ovídio, Pigmalião se contenta em pedir à Vênus um ser semelhante à sua estátua6, Frenhofer, por outro lado, comete um erro fatídico, talvez justificado pela impaciência do desejo e nomeia seu objeto de desejo. Catherine Lescault seria apenas o título da obra, jamais 5 6

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o nome do sujeito da representação (nome da obra x nome do desejo). Surge a figura representada como um fantasma. O próprio objeto, ao ser visto, rompe o “espelho” da representação (plano pictórico) e coloca no centro desta ilusão o próprio olhar do observador. Frenhofer é forçado por uma fenda que deixa antever o real e se coloca não diante de uma imagem de sua amada, mas de um fantasma de seu próprio desejo. Sob a ótica lacaniana 7, a função do fantasma é a de tamponar a falta que marca a emergência do sujeito e que se apresenta na cadeia significante. Uma vez que não há completude quando se está no campo do sujeito, o fantasma aparece objetivando estabelecer uma unidade ausente e encobrir esta falta. Uma perda que para as noções de objeto e sujeito na pintura jamais poderá ser estabilizada ou estabilizadora. Huberman evidencia que a estrutura desta relação fantasmática na pintura não é fácil de se ver. Em pintura, sempre se tem buscado uma perfeição que em principio, significa uma pintura adequada à sua própria idéia, objeto fidedigno ao seu próprio projeto. Esta seria uma perfeição entendida como platônica. Há outra maneira de perfeição, ovidiana, que concebe a perfeição da pintura como o acontecimento de sua metamorfose, como se a pintura fosse capaz de se converter no que representa. Sonho de Pigmalião. De acordo com Huberman, estas duas quimeras que assombram o fazer pictórico não podem ser subestimados. Frente a eles o autor identifica o brilho como uma faísca correspondente a um acontecimento pictórico de uma ruptura da pintura ideal, uma

(1530-1535). Para Huberman, Vênus somente concede o objeto de desejo a partir desta dissociação enunciativa do desejo e do pedido e concede a própria estátua de marfim como esposa à Pigmalião. Seminário XIV.

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RESENHA

cisão entre o espaço óptico e o háptico e que pode ter dois efeitos. Pode, por um lado, aparecer como um efeito de tela, expressão de sua planificação e desastre8 – expressão do sem sentido – na ordem do visual. Por outro lado, pode aparecer como um efeito de detalhe – o fragmento do pé “vivo”, apesar de marmorizado9 – encontro de sentido na ordem do visível. Neste sentido e de certo modo no conto de Balzac, a pintura de Frenhofer não é mais que o próprio túmulo de Catherine Lescault. A metáfora se realiza entre o nada (devastação do efeito da tela) e o quase nada (brilho e identificação do detalhe). A imagem é o túmulo do objeto de desejo. A leitura que Huberman faz de Balzac e como identifica esta metáfora sobre a arte, mostra que a pintura carrega, ela própria, os meios de sua destruição. Espada de Dâmocles eternamente suspensa sobre si. O que constitui a pintura constitui também o maior perigo à qualquer representação na (da) pintura e mantêm um vínculo ontológico com a natureza profundamente antitética de toda fascinação. Estabelece uma relação fugidia que é, ela mesma, seu próprio limite. Fetiche e fim da imagem. O pintor Frenhofer descobriu este efeito da bidimensionalidade da tela e, diante dele, tanto o tema do quadro (Catherine) quanto o

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sujeito (pintor) não sobreviveram. Como o personagem do conto, podemos nos colocar diante da obra de arte de duas maneiras: enfrentando-a, dado que não a alcançaremos, ou submetendo-nos, reconhecendo seu poder de ferir. Em ambos os casos trata-se de um enfrentamento frente ao vazio do túmulo e à aniquilação da morte. Feita ao preço do sofrimento do sujeito, esta experiência prometéica, produz em quem tem a coragem de se submeter, uma angústia irreparável. Produz a ruína do fetiche da imagem e o sujeito (autor ou observador) se vê diante da escolha entre a morte do desejo ou a desaparição do objeto. Como historiador da arte, interessa observar como Huberman recupera um texto literário como fonte historiográfica frente às questões da arte contemporânea. Sendo ambas – literatura e pintura – representações do real, o autor não vê a literatura como mais uma fonte, mas capaz de fornecer à história um “algo” a mais. Reconhece na literatura seu poder metafórico – articulado pelo imaginário – de conferir às visualidades uma função e um sentido. Afinal, tanto o drama de Frenhofer quanto as imagens de Maria Egipcíaca e Catherine Lescault somente podem ser vistos na imaginação do leitor.

Violência da ausência, que levou o pintor Frenhofer a exclamar “Nada, nada!” diante de sua obra-prima perdida. Porbus e Poussin identificam apenas uma parte – o pé – de Catherine Lescault, e portanto, o efeito de detalhe que sobressai e se faz evidente a partir de um fundo de invisibilidade.

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Normas para Publicação

A Revista Domínios da Imagem é uma publicação dirigida pelo Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História – LEDI, um projeto integrado (pesquisa/extensão) do Departamento de História e está vinculada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná – Brasil. Tal iniciativa tem como objetivo difundir o diálogo intelectual entre pesquisadores que atuam em diferentes regiões do país e no exterior, bem como fomentar a interlocução entre distintas áreas que tratam dos domínios da imagem. A Revista Domínios da Imagem tem periodicidade semestral, com fluxo contínuo para o recebimento de artigos e resenhas. Conta com um Conselho Editorial e Científico e um Conselho Consultivo, compostos por pesquisadores ligados à várias universidades brasileiras e estrangeiras. Solicitamos aos nossos colaboradores que enviem seus trabalhos para o endereço abaixo mencionado atendendo as seguintes especificações: • Todo o material deve ser encaminhado em envelope contendo: 3 (três) cópias impressas em papel A4 (210x297mm), sendo 1 (uma) identificada e 2 (duas) sem identificação; • 1 (uma) cópia idêntica em CD-Rom; • 1 (uma) folha contendo os seguintes dados de identificação: seção para a qual envia o trabalho (artigos ou resenhas), título do texto, nome completo do(s) autor(es), instituição a que pertence, titulação, endereço completo, telefone, fax e endereço eletrônico; • Os textos devem ter a seguinte formatação: editor Word for Windows, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço entrelinhas 1,5 cm. e com margens de 3 cm; • Todos os textos deverão ser apresentados após revisão ortográfica e gramatical; • Os artigos terão a extensão de 08 a 20 laudas, no máximo, incluindo imagens; • As notas deverão ser colocadas no final do texto, podendo nelas constar referências bibliográficas e/ou comentários críticos ficando as referências restritas exclusivamente ao espaço das notas. Da remissão deve constar, entre parênteses, o nome do autor, seguido da data de publicação da obra e do número da página, separados por vírgulas. Exemplo: (FRANCO, 1983, p. 114); • Os artigos serão acompanhados de título, resumo e abstract de, no máximo, 10 linhas e de 03 palavras-chave em português e em inglês; • Os artigos e as resenhas em inglês, francês e espanhol serão publicados na língua original, sem a necessidade de título, resumo e palavras-chave em português; • As resenhas poderão ter entre 03 e 05 páginas e deverão vir acompanhadas de 03 palavraschave em português e em inglês; • As fotografias, ilustrações e/ou gráficos deverão vir em preto e branco, com resolução mínima de 300 dpi, desde que as fontes sejam devidamente mencionadas e autorizadas, respeitando a legislação em vigor; • Abaixo do nome do autor deverá constar a Instituição à qual se vincula, bem como titulação máxima;

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