Portfolio Académico - Trabalhos Escritos - Miguel Oliveira

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Portfolio Académico Trabalhos Escritos

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Nome do Trabalho

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Os HuNanos e o Desejo de Penetração Ensaio para Cibercultura

8

A Indiferença Pura Recensão Crítica para Seminário de Investigação (G. Lipovetsky)

15

Liberdade de escolha do vestuário na Pós-Modernidade e o derreter

do espelho de si mesmo Análise Crítica para Semiótica 20

A Ética do Poder Legislativo e a tranquilidade do acordar Trabalho para Ética e Deontologia

26

esta imagem – O Silêncio Texto para Técnicas de Expressão

28

Realidade, Simulacro e Virtualidade Trabalho para Media e Cultura Contemporânea


Os HuNanos e o Desejo da Penetração

- Ensaio para Cibercultura -

José Miguel da Silva Oliveira Universidade do Minho – Instituto de Ciências Sociais Braga, 26 de Maio de 2009


Os HuNanos e o Desejo da Penetração

Deus no Ventre Materno

Foi na alvorada dos tempos, na sequência natural da evolução do Animal para o Homem, que este último terá ganho aquilo a que milhares de anos depois foi chamado Razão. Desde aí, este novo ser (o Homem) procura formas de alienação, “mundos paralelos” que lhe permitem escapar, de alguma forma, à primeira realidade. A mais natural fuga, a que acompanha o Homem desde sempre e que ainda hoje permanece um paradigma nos trâmites da investigação científica, é o sonho. Natural alienação, reestruturação neuronal, viajem a mundos paralelos, decomposição do ser em corpo e alma. Do sonho à morte, considerando que o sonho pode ser concebido como uma espécie de “pequena morte”, encontramos no imaginário colectivo das sociedades milenares uma formulação de um conjunto de utopias, de possibilidades de religação, como se fosse a vida terrena a distopia dos tempos idos e a nossa verdadeira morada num qualquer espaço que reencontraremos na vida post mortem. Aliado ao sonho e à morte encontramos o sexo, que para além de cumprir a sua função primordial animal, é constituído por um “inevitável” caminho até ao climax - o orgasmo - onde se permanece durante tempo suficiente para percebermos que constitui, também ele, um “espaço supra-terreste”, também ele em parte neuronal, que nos permite uma nova fuga de nós mesmos, com um conjunto de interfaces orgânicos que nos conecta a outra pessoa para nos transportar a esse espaço orgásmico, a esse espaço de alienação no qual a fuga é apenas temporária. A dependência relativamente ao sexo e a ânsia pelo climax, leva-nos ao mais formal e banal método de alienação – a droga. Conjunto de técnicas e tecnologias de alienação, usa também um conjunto de interfaces, desta vez artificiais, que permitem, mais uma vez, um escape à realidade crua. O sonho, o sexo, a morte e a droga constituem formas de evasão do nosso corpo para dimensões alheias à nossa realidade natural que podem representar, de alguma forma, o nosso desejo de regresso ao ventre materno – o desejo da penetração – o sentimento último da religação – deus no ventre materno.


O Útero Perdido

É neste fluido climatizado e extremamente confortável, o líquido amniótico, onde somos totalmente controlados e estimados em condições perfeitas, que o ser humano se sente no espaço ideal - o paraíso pré-natal. É este o espaço que vamos procurar durante toda a vida noutras substâncias e técnicas: na fé de um paraíso, de uma finalidade perdida (Martins, 2002); nas aproximações oníricas; no clímax da cópula carnal – a tentativa de regresso ao nosso “génesis individual” – do qual “há muito perdemos o caminho” (Martins, 2002:353) ou numa escatologia também ela individual, mas no sentido inverso (no sentido uterino); e/ou no “espectro que assombra a cultura planetária – o espectro das drogas” (McKenna, 1992:13). Nesta sequência de ideias poderíamos encontrar no cordão umbilical o nosso interface pré-natal, aquele que nos liga a uma diferente realidade da do útero e através da qual somos conectados a toda uma bios, a uma máquina perfeita que nos alimenta, nos mantém vivos e nos projecta uma série de sensações e estímulos. Não haverá uma qualquer relação imagética entre este interface e a consola orgânica do eXistenZ? Na consequência do nascimento, no corte do cordão umbilical, desse prolongamento do nosso corpo, somos remetidos a um novo mundo, onde temos que respirar sozinhos. Será a preservação das células estaminais um desejo inconsciente de preservação simbólica do cordão umbilical? É nesse momento de desligação que somos remetidos para a nossa realidade, aquela que consideramos a verdadeira. É nesse momento que se dá o choque, o trauma que nos vai acompanhar toda a vida - uma incessante busca do útero perdido.

A HuNanização

Considerando o desejo de regresso ao ventre materno como um constante paradigma existencial e o cada vez mais fugaz e acelerado desenvolvimento tecnológico e científico, criamos constantemente novas formas de evasão, alienação, conforto, segurança e dependência. A miniaturização dos componentes tecnológicos digitais levanos a uma nova possibilidade de recriar as condições mais análogas ao sonho uterino, é na “tecnologia digital [que] reconhecemos secretamente um inconsciente que é, afinal, uma extensão dos nossos desejos” (Pires, 2002:289). A nanotecnologia invade-nos o corpo e

passa a fazer a cooperação e simbiose perfeitas entre o Humano e a Tecnologia. É então


que nos “entregamo-nos a uma osmose, pois longe vão os «tempos modernos» do binómio homem/máquina ou do corpo/ser” (Pires, 2002:289). Denota-se, pela primeira vez na História da Humanidade, que as imagens cientificamente ficcionadas dos cyborgs, cibiontes, replicantes, hómunculos e Der golens, se transformam em “quaserealidades". Concretiza-se assim a “ambição de uma mutação radical, da transição para o trans-humano” (Pires, 2002:291) e acontece, então, uma HuNanização – uma junção entre o Humano e a Nanotecnologia – e cria-se um novo tipo de Homem – o HuNano. O real, como pressuposto do ambiente pragmático do Humano, derrete-se com o virtual, numa luta constante pelo poderio do ser, numa “obsessão bélica” (Martins, 2006), criando uma “nova experiência psicológica com implicações imensas. A melhor vingança contra as psicotecnologias que nos transformariam em extensões delas próprias é incluí-las na nossa psicologia individual. Um novo ser humano está a nascer” (Kerchove, 1997:284). Os gadgets são incorporados na corrente sanguínea e alocados no cérebro. Desta forma, “ao apercebermo-nos de que a pele deixou de ser o que separa o dentro do fora, vemos que o mundo inteiro está dentro de nós” (Pires, 2002:289). Há uma satisfação do desejo recalcado de regressar ao ventre, de penetrar, agora no sentido inverso, o útero materno. Há uma espécie de “ingestão do cordão umbilical” e os interfaces deixam de ser prolongamentos do corpo, passando a ser “o corpo” per si.

Verichip

A absorção de nano-materiais por parte do humano é um passo previsto para um futuro próximo, conforme se desenvolvem, em natural aceleração da sociedade pósmoderna, as investigações multidisciplinares numa “crescente convergência de tecnologias específicas para um sistema altamente integrado” (Castells, 2001:33), das quais saliento os estudos em engenharia genética, nanobiologia e nanobiotecnologia. Não está já posicionado no seio da urbe bracarense, junto à universidade, como um vulgo ramo do conhecimento, o Laboratório Internacional Ibérico de Nanotecnologia? Em Agosto de 1988, a BBC fez a cobertura da primeira implantação de um microchip no ser humano. No Baja Beach Club, em Barcelona, as implantações de Verichips fazem-se às Terças-Feiras. Entra-se numa sala e uma enfermeira injecta uma cápsula Verichip debaixo da pele, com uma seringa. Os membros Verichip podem evitar filas de entrada, reservar mesas e frequentar o clube nocturno VIP.


É verdade que estas referidas realidades mediatizadas nada têm a ver com nanotecnologia, mas enormes desenvolvimentos estão neste momento a acontecer e não tardarão a surgir todo o tipo de gadgets que substituirão o vulgar computador e os seus interfaces por nano-processadores e nano-interfaces que farão parte do nosso corpo e, inevitavelmente, do nosso quotidiano. Será razoável admitir que poderemos, num futuro próximo, instalar a última versão do Windows Media Player com uma seringa e reproduzir apenas com o pensamento e com mais definição que nunca as nossas músicas preferidas? Ou viver uma Second Life como First Life, delegando para uma Segunda Vida a nossa vida “real”, onde a fealdade facilmente se substitui num “efeito cada vez mais alargado de uma estetização da existência” (Martins, 2007)? É a abolição dos ruídos que provocam os interfaces na comunicação Homem-computador, pois as aplicações estarão directamente ligadas ao cérebro e ao sistema nervoso central. É a ergonomia a percorrer o nosso sangue, “é o caminho o futuro de todos os encontros” (Martins, 2002:352). O mundo virtual deixa de se posicionar no exterior e a imersão será, desta vez, total. Nano-gadgets, nano-vacinas, nano-doenças. Os riscos de ciber-overdose, alienação e apatia constituirão peças reformuladas de um novo paradigma. Será possível falar de um novo tipo de êxodo, onde apenas a minoria tecno-eleita (dos países desenvolvidos) se refugia num ciber-espaço de conexões, composto por indivíduos endodermicamente modificados, deixando para trás a maioria numa espécie de Reserva, ao estilo do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley? A Nanotecnologia é, basicamente, a construcção de estruturas e novos materiais a partir dos átomos, cujo último intuito seria proporcionar uma vida melhor ao Homem. Será que destes átomos emergirá definitivamente a atomização total da sociedade, num “vazio sem trágico nem apocalipse” (Lipovetsky, 1983:11)?

Eternidade e Penetração

Os HuNanos são a resposta ao sofrimento de separação do ventre materno, criando os artifício necessários de simulação do ambiente intra-utrino por oposição à fria realidade, num ciber-espaço enclausurado debaixo da nossa própria pele, através de uma série de próteses orgânicas. Assim criamos um novo ser, com um novo corpo, “um corpo que já não inscreve em si «a dor da impossibilidade de chegar à vida», nem a vontade de interpelar aquilo que escapa à representação, mas antes o prazer simulado da


superação dos limites do próprio corpo e o desejo apocalíptico de ligação à realidade virtual” (Pires, 2002:287/288). A ténue linha que separa a ficção da realidade constrói a hipótese de sararmos o nosso desejo de eternidade, o nosso desejo de penetração no ventre materno.

Referências Bibliográficas

Castells, M. (2001) A Sociedade em Rede, São Paulo: Paz e Terra. Kerckhove, D. (1997) A Pele da Cultura, Lisboa: Relógio D‟Água. Lévy, P. (2001) O que é o Virtual?, Coimbra: Quarteto Editora. Lipovetsky, G. (1983) A Era do Vazio, Lisboa: Relógio D‟Água. Martins, M. (2006) „A Nova Erótica Interactiva‟, Comunicação e Linguagens, 37. Martins, M. (2002) „De animais de promessa a animais em sofrimento de finalidade‟, O Escritor, 18/19/20: 351-354. Martins, M. (2007) „Utopias Tecnológicas e Figurações do Humano‟, Comunicação e Sociedade, 12. McKenna, T. (1992) O Pão dos Deuses, Porto: Via Optima. Pires, H. (2002) „Do Gesto Hesitante da Dor à Fusão Apocalítpica do Corpo‟, Comunicação e Sociedade, 4: 287-296. Vattimo, G. (1992) A Sociedade Transparente, Lisboa: Relógio D‟Água.


Universidade do Minho Instituto de Ciências da Comunicação

- Seminário de Investigação -

Recensão Crítica

Docente: Professor Joaquim Fidalgo Discente: José Miguel da Silva Oliveira, PG13832


A indiferença pura

Lipovetsky, G. (1983) 'A indiferença Pura' in Lipovetsky, G. (1983) A Era do Vazio: Ensaio Sobre o Individualismo Contemporâneo, Lisboa: Relógio D'Água, pp. 33-46.

Gilles Lipovetsky é um filósofo francês, docente de Filosofia na Universidade de Grenoble, em França, sendo considerado um teórico da Hipermodernidade. É autor de várias obras literárias, das quais se destacam: O Império do Efémero; O Luxo Eterno: da Idade do Sagrado ao Tempo das Marcas; A Felicidade Paradoxal; Os Tempos Hipermodernos e, a mais aclamada de todas, A Era do Vazio: Ensaio Sobre o Individualismo Contemporâneo. Esta última obra serve de base à presente recensão crítica. Em A Era do Vazio, Lipovetsky escreve sobre as novas atitudes surgidas nas sociedades ocidentais e contemporâneas, sobre a apatia, a indiferença e a substituição do princípio da sedução ao da convicção. Nesta obra escreve ainda sobre o narcisismo e as novas relações sociais emergentes, condensando estes fenómenos no intitulado individualismo contemporâneo. Dividido em seis capítulos (Sedução non stop; A indiferença pura; Narciso ou a estratégia do vazio; Modernismo e pós-modernismo; A sociedade humorística; e Violências selvagens, violências modernas), analiso nesta recensão mais detalhada e criticamente o Capítulo II – A indiferença pura do referido livro. O capítulo II de A Era do Vazio está dividido em quatro sub-capítulos: A deserção de massa; Apatia new-look; Indiferença operacional; e O «flip». Nesta recensão crítica irei sumariar criticamente cada um destes sub-capítulos, contextualizando-os com o pensamento global de Lipovetsky na globalidade de A Era do Vazio, de forma a melhor clarificar a complexa análise dos interstícios do ser humano como ser isolado e do ser humano como “ser social” presente na obra.

A deserção de massa Numa visão escatológica das páginas em branco, que são os dias de Paz, inscritos no livro da História da Humanidade, Lipovetsky (1983: 33) refere-se ao “desenraizamento sistemático das populações rurais e depois urbanas”, durante os séculos XIX e XX, como a formação de um


“deserto”, fim último das populações vítimas da barbaridade bélica e ideológica humanas. Num nihilista e apocalíptico aniquilamento planetário da espécie humana, ou como diria Nietzsche, do “últimos dos homens” (Nietzsche, 1885: S/P), esta deambula no deserto assumindo uma nova figura trágica embriã da modernidade, que habita a “paixão do nada” (Lipovetsky, 1983:33) e a “potência do negativo” (ibid.: 34). Este deserto lipovetskiano não é por si só uma representação transparente e exacta da matriz situacional do ser humano, nesta época realmente impregnada de terror, injustiça, fome, ódio e putrefacção mental. Essa matriz é tornada, de certa forma, limpa e invisível pela lente colorida e programada dos sistemas de controlo mediáticos (para, de certa forma, manter a máquina neoliberal a rodopiar e a ampliar este deserto). Para Lipovetsky (1983: 34), existe ainda um outro deserto - o deserto das instituições, com o esvaziamento da sua substância, dos valores e finalidades de épocas anteriores, um deserto silencioso, “paradoxal, sem catástrofe, sem trágico nem vertigem”. As instituições das metrópoles contemporâneas (a escola, o trabalho, o exército, a família, a Igreja, a política, etc.) perderam todo o crédito, deixaram de funcionar, globalmente, como “princípios absolutos e intocáveis” (ibidem). Paralelamente a este panorama árido convive, paradoxalmente, o funcionamento do sistema, sob “a lei geral que gere o nosso quotidiano, a saber: a vida nos espaços desafectados” (Lipovetsky, 1983:35), incentivando cada vez mais à especialização dirigida para a “admirável” 1 máquina produtiva, com a metafórica abolição da Filosofia, numa aniquilação constante e subversiva do pensamento e raciocínio individual, entorpecido e entretido com pseudo-necessidades e fait divers. Os especialistas que controlam as instituições são “os últimos sacerdotes, como diria Nietzsche” (ibidem), os únicos que querem ainda “injectar sentido e valor onde já nada reina para além de um deserto apático” (ibidem).

Apatia new-look Na sequência da aparente lamentação sobre a decadência ocidental iniciada no sub-capítulo anterior, Lipovetsky (1983: 35) esclarece que já não é na incidência sobre a “morte da ideologias e «morte de Deus» que recai o deserto nihilista europeu, alegando que “Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-se, mas toda a gente se está a lixar para isso”. É o aparente limite nietzscheniano a respeito da queda europeia, uma apatia generalizada, massiva, alicerçada numa “bulimia de sensações, de sexo, de prazer, [que] nada esconde, nada compensa e, sobretudo, não 1 Referência ao livro de Aldous Huxley, o Admirável Mundo Novo.


esconde nem compensa o abismo de sentido aberto pela morte de Deus” (ibidem). Esta apatia massiva está paralelamente evocada na cegueira capitalista que, em formato de rebanho, nos conduz através da contemporânea e artificial liquidação do cansaço, pelo deserto apático e desprovido de valores, deixando para trás a nostalgia do existencialismo (Lipovetsky, 1983). Assim, a revolta, o desafio, as Sorbonne e as vitórias democráticas extinguem-se numa “indiferença pelo sentido” (ibid.: 36), onde coabitam as antinomias, principalmente a “oposição do sentido e do não-sentido” (ibid.: 37). Lipovetsky refere, numa clara referência a Guy Debord e ao seu livro A Sociedade do Espectáculo, o esbatimento dessas “antinomias duras (..), do belo e do feio, do real e da ilusão”, e da nova existência humana “sem finalidade nem sentido”. Extingue-se a necessidade de sentido, no crepúsculo de novas questões, fora da necessidade de “devaneios nostálgicos” e dogmatismos. Esmorece quase na totalidade a premissa de Nietzsche: “Qualquer sentido é preferível à completa ausência de sentido” (ibidem). O mundo, posto a girar a velocidades supra-normais, acresce de apatia e indiferença o ser humano que, numa espécie de movimento centrífugo, banaliza o Ensino e o “discurso do Mestre” (Lipovetsky, 1983:37) numa profunda “apatia escolar, feita de atenção dispersa e de cepticismo desenvolto ante o saber” (ibidem), absorve, indiferente, a Política espectacular, “varrida de cena por [acontecimentos] ainda mais espectaculares”, tornada variedade numa conquista pouco política de um pseudo-eleitorado “disperso, [captado] por tudo e por nada” (ibid.: 38). Como os valores do modernismo se encontram esgotados, onde “o futuro já não entusiasma ninguém” (Lipovetsky, 1983:39), num novo coabitar de antinomias e numa indiferença pura, o pósmoderno é um indivíduo consagrado ao “self-service narcísico e a combinações caleidoscópicas indiferentes” (ibid.: 40). Lipovetsky não enquadra a situação deste novo Homem pós-moderno na “alienação” marxista, mas encontra um novo Homem, cuja indiferença não significa “passividade, resignação ou mistificação” e este novo Homem não é o “decadente pessimista de Nietzsche nem o trabalhador oprimido de Marx”. Este Homem é uma nova espécie – o “homem cool” (ibidem).

Indiferença operacional Ao contrário do que possa parecer, na análise de Lipovetsky, o ambiente ou “karma” social não corresponde à total ausência de sentido. A apatia e a personalização refere-se à “atomização” (Lipovetsky, 1983: 40), imposta socialmente regindo o funcionamento da sociedade, experimentada e aplicada de um modo científico. Esta atomização controlada desenrola um novo conjunto de princípios, através dos quais, e com a queda dos ideais e valores públicos, permanece apenas a


“demanda do ego (...), o êxtase da libertação «pessoal», a obsessão do corpo e do sexo [num] hiperinvestimento do privado e, por conseguinte, desmobilização do espaço público” (ibid.: 41). Com a desafecção do social, surgem os novos e únicos valores: o desejo, a fruição e a comunicação e os novos sacerdotes do deserto – os «psi». Assim, a era «psi» começa com a “deserção de massa e a líbido é um fluxo do deserto” (Lipovetsky, 1983: 41). O funcionamento do capitalismo moderno enquanto “sistema experimental acelerado e sistemático” (Lipovetsky, 1983: 41) necessita desta apatia generalizada, esta nova forma de socialização “flexível e «económica», como condição essencial e ideal para a experimentação deste novo capitalismo tendo na apatia um mínimo de resistência”. Desta forma, a indiferença permite pôr em prática e operacional este novo capitalismo, estando assim “a indiferença ao serviço do lucro” (ibidem). O sistema aparece como gerador de “indiferença por saturação, informação e isolamento” (Lipovetsky, 1983: 42) elaborando com natural minúcia um “simulacro de contradição” (ibidem) ao incentivar à participação social, à educação, à cidadania, usando a saturação para o esvaziamento motivacional provocando, desta forma, não a total ausência de motivação, mas sim a “«anemia emocional»” (Riesman, cit. por Lipovetsky, 1983: 42). Aparentemente positivo é o facto de que com esta matriz pós-moderna e perante a contínua conquista do deserto, a par com as “grandes conquistas do futuro, ao lado do espaço e da energia” (Lipovetsky, 1983: 43), surgem na “paisagem aleatória” do tempo actual, “singularidades complexas”, uma riqueza que provém, no entanto, do “desinvestimento dos papéis e identidades instituídas, das disjunções e exclusões «clássicas»” (ibidem). Evidente se torna este facto, quando a sociedade contemporânea se hierarquiza cada vez mais (se é que se pode falar em hierarquia, pois esta forma estrutural é apenas representativa do estatuto económico) e donde surgem sucessivamente novas «tribos», nichos, comunidades virtualizadas e necessidade de diferenciação, principalmente nas grandes metrópoles.

O «flip» O «flip» trata da invasão da vaga de deserção na esfera privada. Um enganoso paradoxo, em que o suicídio seria o término do deserto, por oposição à redução da taxa global de suicídios, formula a estética de vida do habitante do deserto social (Lipovetsky, 1983). Neste deserto, “o suicídio torna-se de certo modo «incompatível» com a era da indiferença” (Lipovetsky, 1983: 44), havendo uma mutação da auto-destruição, do desespero definitivo, em patologia de massa: “a


depressão, o «enjoo», o flip” (ibidem). Assim, a tese optimista do «progresso» psicológico desenrola-se na generalização do sentimento de mal-estar e dos estados depressivos (Lipovetsky, 1983). Desprovido de referências divinas, na referida “morte de Deus”, o Homem, caminhando sozinho no vasto e oprimente deserto, “caracteriza-se pela vulnerabilidade” (Lipovetsky, 1983:44). Nesta condição de solitário proveniente da aniquilação da sociedade comunitária, este “indivíduo puro, narciso em busca de si próprio, obcecado apenas por si mesmo” (ibid.: 45), torna-se um ser de fino vidro, susceptível a qualquer momento de derreter ante o árido deserto. Assim, a parte existencial do ser humano, quanto mais tratada é [com o “auxílio psi” (ibidem)] mais insuperável e insuportável se torna. A vida acresce de drama e stress, onde “envelhecer, engordar, desfear-se, dormir, educar os filhos, partir de férias” se torna um problema, ou seja, as actividades elementares “tornaram-se impossíveis” (ibidem). A solidão passou então a ser revestida de inércia, um facto, uma banalidade, a relação com o Outro “sucumbe ao processo de desafecção” (Lipovetsky, 1983: 45). Misturam-se a vontade e a dor de se querer estar só, de não suportar o Outro, e atinge-se, assim, o “extremo do deserto”, onde o indivíduo “pede para ficar só, cada vez mais só e simultaneamente não se suporta a si próprio, a sós consigo. Aqui o deserto já não tem começo nem fim”(ibid.: 46).


Considerações finais Este capítulo de A Era do Vazio de Lipovetsky, embora retrate de uma forma um tanto cáustica a sociedade contemporânea, consegue chegar a um âmago existencialista que de outra forma não teríamos percepção. É este individualismo contemporâneo que nos acompanha e que nos insere uma ordem de ideias bastante controversa, porém popular e, de certa forma, genericamente aceite. Uma ordem de ideias que acompanha um pensamento subversivo, fora da pseudotransparência da vida cosmopolita e quotidiana actual. Uma visão sobre o vazio emocional, sobre a indiferença e a possibilidade de viver sem finalidade nem sentido, sobre a banalização da solidão e a desafecção e o apagamento do relacional. Uma obra que se pode considerar (embora de um foro diferente) na linha de Orwell, Huxley, Debord, Chomsky, entre outros e que, embora de certa forma desactualizada (data de 1983), continua a ser adequável aos novos paradigmas que entretanto surgiram. Uma visão sobre a sociedade e o indivíduo um tanto escatológica e deprimida, mas que quando encarada com realismo faz sobressair algumas “verdades” que, pela nossa sanidade, deliberadamente pretendemos ocultar.

Referências Bibliográficas 

Lipovetsky, G. (1983) A Era do Vazio: Ensaio Sobre o Individualismo Contemporâneo, Lisboa: Relógio D'Água.


Universidade do Minho Instituto de Ciências Sociais Ciências da Comunicação

- Semiótica -

Liberdade de escolha do vestuário na Pós-Modernidade e o derreter do espelho de si mesmo

José Miguel da Silva Oliveira nº 28964 ano lectivo: 2007/2008

Referência Bibliográfica: 

Monteiro, G. (1997). A metalinguagem das roupas. Disponível em: http://bocc.ubi.pt/pag/monteiro-gilson-roupas.html


Sinopse: No mundo contemporâneo da hiper-velocidade de acontecimentos e rápida efemerização dos objectos, a moda torna-se também ela efémera. Sendo o nosso interior moldado pelas circunstâncias contextuais envolventes e espelhado através do uso da roupa, cria-se uma espécie de vazio nesta fugacidade, uma suspensão da solidez do indivíduo, que passa a deturpar a limpidez do significado metalinguístico da roupa, deturpado se tornando também o seu próprio significado. Representação do status, da classe social e da psique, o uso do vestuário algema a livre expressão do indivíduo a uma matriz de condicionantes contextuais num jogo de aparências e de mutações de significâncias estéticas.

Liberdade de escolha do vestuário na Pós-Modernidade e o derreter do espelho de si mesmo.

A comunicação é uma virtude inata ao ser humano. Necessidade primária, a comunicação é transversal à vida, desde a célula microscópica até ao perfume mais personalizado da casa Chanel, num Universo todo ele orgânico e semiótico. Tudo comunica, tudo está envolto no processo de semiose. A roupa está também ela prenha de significados contendo, num não-lugar das suas fibras entrelaçadas, códigos profundos e obscuros, porém vislumbráveis e analisáveis. A roupa fala, através de mensagens de perfil metalinguístico, num “emaranhado de signos que busca em si mesmo o objecto da comunicação” (Monteiro, p. 4). A necessidade inata de comunicar envolve um preenchimento estético do ego e a roupa é o manto desse preenchimento - a lascívia do ego, a pulsão Escópica, o reflexo de si mesmo no “outro” - num jogo animal e sexual de encantamento e sedução. O Homem moderno e ocidental está suspenso num processo de duplo sentido com os objectos com os quais se relaciona, na medida em que o indivíduo é influenciado pelo meio exterior e, no sentido oposto, que projecta em si mesmo essa influência para o exterior. Ao adquirir roupa, fá-lo em função da sua dinâmica psicológica de modo a projectar para fora uma imagem que ele faz de si mesmo, reflectindo-se assim no “outro”, o seu objecto de desejo, numa espécie de narcisismo. Como indivíduo e, como tal, pertencente a um continuum de relações - desde os sub-grupos, classes sociais, até à própria sociedade em que se insere - ostenta as roupas que representam uma “espécie de espelho de si mesmo. (...) [a] sua própria alma, [e a] representação imagética de grupo que a


vestimenta representa.” (Monteiro, p. 1). Desta forma, a roupa significa a sua opção ideológica e a opção de grupo, como pretende mostrar Gilson Monteiro: “A roupa é símbolo de status e diferenciação social e da diferenciação dentro do próprio grupo” (Monteiro, p.3). Como forma de status, a roupa também expressa e codifica a dinâmica psicológica e social da persona1, que ostentando no corpo o seu padrão de vida moral e posicionamento sócio-económico se torna alvo de desejo para as classes inferiores, no seu imparável esmagamento da escada social humana. O nível de orgulho aburguesado desta ostentação e uma espécie de schadenfreude2 determinam parcialmente o perfil psicológico do indivíduo na sociedade actual e mostram que a indumentária como codificação do status na sociedade de consumo a crédito não transparece verdadeiramente essa realidade sócio-económica pois representa apenas o parecer-ter da persona e não o ser do indivíduo. A roupa contém nela um significado profundo, “um núcleo praticamente imutável” (Monteiro, p. 2), inabalável pelas convulsões constantes que ditam as modas e as mutações sociais e aprisionado no seio da retroalimentação metalinguística dos seus significados originais, retroalimentação esta que é uma forma de “recuperar o tempo e reinterpretá-lo” (Monteiro, p. 2). Metaforicamente assente num círculo que roda sobre ela própria e em movimento contínuo sobre um eixo horizontal estático (o eixo do tempo), a moda “realimenta-se dos significados do passado” (Monteiro, p. 2), reinterpretando-os, trazendo-os de volta envoltos no manto de novas significâncias sobre diversas formas, como evidencia por exemplo o neo-tribalismo, o zippie, a retro-fashion ou o “urbano-tecnológico”. Este último retroalimentado pelo modelo urbano do passado recente aliado ao novo paradigma tecnológico. O poder incisivo e ferozmente veloz da sociedade contemporânea de mercado bombardeia e impõe ao indivíduo constantes novas necessidades, seduzindo-o tão violentamente que o fazem migrar dele próprio e da sua vontade. Assim, a veloz efemeridade da moda cria constantemente novas imagens interiores nos indivíduos, tornando ambígua a relação entre indivíduo e consumidor. Desta forma, para além de fabricarem novos desejos e manipularem a vontade, fabricam também novos indivíduos, suspensos deles mesmos e imersos na hegemonia escravizante do consumo “espectacular”. A roupa é o objecto por excelência do individualismo contemporâneo, da hiperpersonalização subjugada ao “desejo de diferenciação, próprio do ser humano” (Monteiro, p. 2) dentro da matriz cada vez mais complexa de possibilidades combinatórias dos artefactos de vestuário, intrínsecos à sociedade pós-moderna do culto do corpo, do sexo, da sedução e do hedonismo. Como expressão do nosso individualismo contemporâneo, esta panóplia de opções 1 A palavra persona deriva do etrusco e significa “máscara”. Nos estudos da Comunicação, persona é o termo que descreve as versões do “Eu” que cada actor social desempenha. 2 Palavra alemã que significa “prazer pelo mal alheio”, não tendo equivalente em português.


demonstra a impossibilidade de generalizações do uso da roupa, mesmo na definição estética das classes, quando observamos o que acontece do ponto de vista do indivíduo. Ou seja, mesmo que haja uma tendência homogeneízante do consumo através da globalização e do imperialismo macroeconómico, esta tendência não impede a unicidade e individualidade pois a possibilidade combinatória dos diferentes artefactos e o histórico cultural único de cada indivíduo, entre outros factores, impedem que existam pessoas que se vistam exactamente igual. Mesmo dentro do grupo, as diferentes saliências perceptivas sublinham a “diferenciação dentro do próprio grupo” (Monteiro, p. 3). Sendo assim, a simbologia do “espelho de si mesmo” (Monteiro, p. 1) é uma deturpação da auto-consciência do Homem pois o leitor do “outro” recebe mas não lê a significação contida na sua indumentária. Esta significação, em vez de ser decifrada claramente pelo leitor, impõe-se, como afirma Roland Barthes, “através da sua nebulosidade, de sua impressão maciça. Este significado é constituído por uma visão a um tempo eufórica e sincrética do mundo, na medida em que tolera a coexistência dos contrários” (Monteiro, p. 3). Daqui advém o derreter do espelho de si mesmo, de não haver uma correspondência legítima no reflexo do “outro”, do profundo individualismo da sociedade contemporânea e do narcisismo que tolda a visão para fora e para dentro de nós próprios, do nosso ego. Este espelho está condicionado às amarras da moda, à prisão da sua situação geográfica, à sociedade em que está inserido e ao vestuário existente impedindo o nosso reflexo límpido através dele. Como exemplo, para além dos “rebeldes sem causa” (Monteiro, p. 10) que iludidamente pretendem criar a sua própria moda, ou seja, a moda anti-moda, num grito monótono contra o também monótono (pela não-surpresa e apatia no pós-modernismo) jogo mercantil da moda, uma pessoa mesmo que dentro das suas convicções políticas e liberdade de pensamento nunca ousaria ostentar um uniforme nazi no centro de uma capital europeia sem se tornar uma saliência perceptiva inconveniente ou infringir a própria lei. Esta última, uma outra condicionante à liberdade individual de opção de vestuário. Outro exemplo: mesmo que fosse do agrado estético de uma mulher passear de bikini numa rua do centro de Paris a lei, misturada com a moral humana, tornava-se um impedimento à expressão do seu individualismo estético e liberdade de expressão da sua profunda vontade, do seu “eu”. Com estas condicionantes, o “espelho de si mesmo” torna-se uma espelho mais baço, derretido, distorcido, e a “imagem que [o consumidor] faz de si próprio” (Monteiro, p. 1) não é totalmente reflectida nas suas escolhas estéticas, ou seja, não existe a liberdade pessoal e social de significação máxima do indivíduo na metalinguagem da sua roupa. Concluindo, penso ser impossível elaborar generalizações para o uso da roupa pois cada indivíduo usufrui de uma complexa matriz única e irrepetível de factores interiores e exteriores a ele que o levam a ostentar um uso da roupa também ele único e irrepetível, ou seja, o recorte de selecção do código do vestuário varia conforme o utente. Esta matriz é composta por factores do


contexto único e exclusivo do utente no mundo e da sua pirâmide freudiana interior. A expressão metalinguística da roupa dita o status e define grupos sociais mas depende sobretudo desta matriz única. Finalizando com um exemplo: um mendigo não se reflecte metalinguisticamente através do uso da roupa pois, embora lhe determine uma espécie de estatuto social, não significa na roupa o seu “eu” interior. Assim, abstraído do status, dos grupos sociais e do “outro”, preenche um pouco o vazio das generalizações do uso metalinguístico da roupa, abolindo a “ambivalência entre o desejo individual de diferenciar-se e a procura de adequação às regras do grupo” (Monteiro, p 10).


Ética e Deontologia

A Ética do Poder Legislativo e a tranquilidade do acordar

José Miguel da Silva Oliveira nº 28964


“Infantil maldade e ânsia destruidora” Como animal social1, viver em sociedade é condição essencial para a existência da espécie humana, espécie esta que habita este ínfimo e “pálido ponto azul” 2 imerso no cosmos e banhado por um feixe de luz solar. Pressupondo uma solidão universal e aparente casualidade da nossa existência, poder-se-ia esperar que, por instinto de sobrevivência e desprovidos de influência divina e relevância cósmica, os seres humanos coabitassem em paz perpétua e numa profunda simbiose com o seu único habitat. Ora, longe de ser pacífica a nossa relação com o planeta, mais longínqua ainda parece a paz entre os seres humanos. Como salienta Kant, na sua obra A Paz Perpétua e Outros Opúsculos: “...não é possível conter uma certa indignação quando se contempla a azáfama [do ser humano] no grande palco do mundo; e não obstante a esporádica aparição da sabedoria em casos isolados, tudo, no entanto, se encontra finalmente, no conjunto, tecido de loucura, vaidade infantil e, com muita frequência, também de infantil maldade e ânsia destruidora.” É nesta mescla de sensações de vazio3 tecido de loucura e recordando o intenso bombardeamento mediático de infinitas contendas - desde as de índole cómico-trágica até aquelas que nos fazem desacreditar na sanidade do ser humano - que apresento uma crítica ao enraizamento cada vez mais profundo do material legislativo no seio da sociedade e dentro do próprio código jurídico, aos seus valores fundamentais e processos de controlo da liberdade e mente humanas.

A perfectibilidade da ordem jurídica e a espiral concêntrica burocrática A pressuposição de que a lei é perfectível e completa compreende que a lei é, e deve ser, aperfeiçoável. Assim, assume-se que a lei não é perfeita sendo, no entanto, juridicamente e no seio dos possíveis aperfeiçoamentos, considerada completa. Assumindo ser um dos papéis fundamentais da lei o de dissuadir e reprimir, esta não conseguiu dissuadir na totalidade a criminalidade no ser humano, e a tentativa de encontrar soluções para todos os tipos de problemas da vida (e por vezes também da morte) denota-se desfraldada. Pressupõe-se também que o caminho para a perfeição da ordem jurídica seja longo e, de um ponto de vista pragmático, inalcançável. Ora, mesmo considerando a autopoiese do sistema jurídico, ou seja, considerando-o como um sistema orgânico, como um todo, com o surgimento pós-moderno de constantes novos paradigmas surge a 1 Para Aristóteles, o homem é um animal naturalmente social. 2 Referência à fotografia do planeta Terra chamada Pale Blue Dot, captada pela nave espacial Voyager 1, tirada a uma distância de 6,4 biliões de kilómetros da Terra, onde se vê um minúsculo ponto azul iluminado por um feixe de luz solar. Esta fotografia inspirou um livro com o mesmo título de Carl Sagan. 3 Estas “sensações de vazio” são uma analogia à obra de Gilles Lipovetsky, A Era do Vazio, onde este descreve de uma forma inédita e extraordinária o caos paradigmático em que se insere o indivíduo contemporâneo.


obrigatoriedade de se acrescentar novas leis, de se adaptar artigos e criar brevetes de actualizações e correcções aos códigos legislativos. Esta convulsão de paradigmas pós-moderna poderá, assim, levar à burocratização kafkiana4 da fisiologia do sistema jurídico, ou seja, aumentar os períodos de vacatura, as Letras Mortas, as lacunas, contradições, possibilidades de interpretação do código jurídico, entre outros cenários, numa espiral concêntrica caótica e insuportável. Assente em princípios universais sólidos, sujeitos porém a agressões subjectivas resultantes dos referidos novos paradigmas, a lei, neste processo de endo-enraizamento legislativo, poderá atingir a exaustão, uma complexificação incomportável que deteriorará substancialmente o sentido de perfeição da ordem jurídica, ou, quiçá, no sentido oposto e na melhor das hipóteses, atingir uma perfeição e eficácia tais que o próprio código jurídico não se revele mais necessário, pois estes novos paradigmas terão conduzido o Homem no seu exercício pós-moderno social e humano ao respeito perpétuo por este “novo” código, enraízando-se-lhe no decorrer de um incerto tempo, tornando-se assim parte constitutiva da sua razão, e da sua liberdade.

Da interpretação da lei pelo «lenho retorcido» O texto da lei, sujeito à questão interpretativa (“A interpretação [da lei] não deve cingir-se à letra da lei”5), remete para uma panóplia de hipóteses de interpretação que, abrangidas pela redundância semiótica das palavras (mesmo que adquirindo um sentido mais específico no contexto em que a lei foi elaborada e dentro da unidade do sistema jurídico), deixa para o humano (o intérprete – considero-o aqui como o juíz) a sua aplicação subjectiva. A possibilidade de dar um sentido único ao texto da lei, mesmo que isso representasse uma desconstrução exaustiva e infalível de todas as leis existentes, torna-se literalmente impossível. Assim, a interpretação da lei, não se centrando exclusivamente no seu texto e deixada à subjectividade humana, torna a própria lei falível, mesmo considerando o fechamento linguístico que limita o leque de possibilidades interpretativas deste específico artigo. Em relação à subjectividade humana na interpretação da lei, esta pessoa - o juíz que interpreta sob as referidas circunstâncias a lei, é ele também um homem e, como afirma Kant, “o homem é um animal que, quando vive entre os seus congéneres, precisa de um senhor. (..) Mas tal senhor [o juíz intérprete] é igualmente um animal, que carece de um senhor. Pode, pois, proceder como quiser; não é, pois, de prever como é que um chefe da justiça pública venha a conseguir tornar-se justo; (...) Pois, cada um abusará sempre da sua liberdade se não tiver acima de si ninguém que sobre ele exerça poder em conformidade com as leis.” Embora possa parecer um paradigma de 4 Referência à obra literária de Franz Kafka, O Processo. 5 Artigo 9º do Código Civil – Interpretação da lei


impossível resolução, Kant apresenta uma solução, solução esta adaptada “no melhor dos mundos possíveis”6 na nossa sociedade actual: “O chefe supremo [de novo, o supremo juíz], porém, deve ser justo por si mesmo e, não obstante, ser homem.” Esta solução não é, no entanto, para Kant uma solução perfeita, pois considera que a solução perfeita é impossível visto que “de um lenho tão retorcido, de que o homem é feito, nada de inteiramente direito se pode fazer.”

Das Trevas para a “mansão da felicidade” O processo evolutivo do ser humano e da sua condição de ser social e animal politico7, recorda-nos, numa análise superficial, a passagem gradual das Trevas para a Luz, princípio básico de um dos principais paradigmas ético-morais da Humanidade - a Religião, nomeadamente as religiões baseadas no princípio dualista do Bem e do Mal. Ora, este processo evolutivo faz-nos pensar que todo o conhecimento adquirido nas altas escolas do pensamento preparou o terreno terrestre para a Luz, para “as ultimas gerações [que] terão a sorte de habitar na mansão em que uma longa série dos seus antepassados (talvez, decerto, sem intenção sua) trabalhou, sem no entanto poderem partilhar da felicidade que preparam” (Kant, 2002) ou, numa visão nietzscheniana (excluindo aqui a multiplicidade de interpretações possíveis), a construção da ponte, do caminho para o super-homem. Analisando empiricamente o emaranhado de situações que decorrem no mundo actual, denota-se que todos os esforços evolutivos teórico-práticos aplicados durante centenas de anos não transformaram o mundo num local pacífico e isento de criminalidade e longe está a outra margem na construção desta ponte. Segundo Kant, a “brutalidade” surge como valor social do homem, de cariz inato e imanente, da dificuldade da relação entre a propensão a isolar-se e as forças de resistência entre indivíduos. É, porém, esta “discórdia” que o retira da indolência e satisfação ociosa (“os motivos naturais, as fontes de insociabilidade e da resistência geral”), donde tantos males brotam, e que o impele no desenvolvimento e evolução. Ora, esta condenável brutalidade violenta dirigida para o outro e alicerçada na necessidade desta mesma brutalidade para que o homem não entre num marasmo niilista, faz com que a Luz cegue, e o outro lado da ponte desvaneça na cegueira. Penso que o emaranhado hiper-complexo de pseudo-soluções que visam controlar esta “imperfeição” humana - a inata propensão para o “mal” aliada à necessidade8 que nos acompanha 6 Referência ao Dr. Pangloss, personagem da obra de Voltaire, Cândido ou O Optimismo. O Dr. Pangloss, apesar de enfrentar uma série de infortúnios e desventuras, afirma veementemente que “tudo está o melhor no melhor dos mundos possíveis”, num “insensato” optimismo. 7 Para Aristóteles, o homem é por natureza um animal político. 8 Segundo Kant: “A necessidade é que constrange o homem tão afeiçoado, aliás, à liberdade irrestrita, a entrar [no] estado de coacção.”


desde a alvorada dos tempos - não transformou nem irá transformar o humano num ser pacífico (e, à margem de situações sócio-económicas conspiratórias, desejavelmente pacífico), num mundo que se anseia harmonioso, até que este, por auto-consciência generalizada, absorva toda a ética e toda a “moral” per si, fora de imposições restritivas de códigos de conduta cujas soluções são, por vezes, o começo de um problema maior9.

Nota final Com este texto não pretendo de forma alguma menosprezar o papel da Ética, do Direito, da Deontologia ou do Estado, mas sim dar o meu ponto de vista em relação a algumas questões que me intrigam. Estas formas de prevenção, regulação e controlo da sociedade são indispensáveis para um melhor funcionamento do sistema social e assumo que a sua constante mutação surge no sentido de melhorar e adaptar estas regulações visando um maior respeito pela liberdade humana, apontando assim para um formato de existência mais pacífico, consciente e harmonioso. Ou seja, penso que mesmo com uma certa dose de optimismo, “é necessário cultivar o nosso jardim” 10. Daqui advém a tranquilidade do acordar. O acordar de cada um que, metaforicamente suspenso nos diversos códigos de “conduta”, se pode espreguiçar tranquilamente em cada novo dia; e o acordar lento da Humanidade que, com o “serviço” dos Homens de Direito, pode esperar um futuro, também ele mais tranquilo. Para finalizar e sublinhando um pouco este pensamento fica esta frase do Professor Manuel Pinto11: “A História Contemporânea mostra de forma trágica que a liberdade e a democracia constituem conquistas provisórias, construções periclitantes, trespassadas por tensões e ameaçadas por impasses. Correm, pois, o risco de estiolamento, se não forem permanentemente vivificadas e enriquecidas.” (Pinto, 2005)

9 Este “problema maior” é uma referência à grelha sancionatória, nomeadamente às prisões e às micro-sociedades criminosas que lá se instalaram. 10 No romance de Voltaire, Cândido, ou O Optimismo, Cândido contestando o optimismo exposto pelo Dr. Pangloss diz: “É necessário cultivar o nosso jardim”. 11 Docente da Universidade do Minho


Referências Bibliográficas 

Kant, I. (2002). A Paz Perpétua e outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70.

Lipovetsky, G (1983). A Era do Vazio. Lisboa: Antropos.

Nietzsch, F (1998). Assim Falava Zaratustra. Lisboa: Guimarães Editores.

Pinto, M. (Coord.) (2005). Televisão e Cidadania. Contributos para o Debate sobre o Serviço Público. Porto: Campo de Letras.

Voltaire (2006). Cândido, ou O Optimismo. Lisboa: Tinta da China.


esta imagem – folha em branco

« tudo em tudo é tudo o que todos somos » (provérbio budista)

O Silêncio

Mergulho no doce sonho do pensamento, numa espiral concêntrica, geométrica, trucidada pelo arranhar das minhas unhas nas paredes que ansiosamente procuro. Não espero despedaçar-me nesta queda entre universos em que a beleza inesperadamente transcende. A lágrima inevitável não escorre para não salgar a sua doçura, apenas infimamente conspurcada por invisíveis e monstruosas criaturas que habitam nos confins da imaginação, e no fundo desta folha. Talvez sejam os demónios enlouquecidos alojados no caule da árvore no derradeiro momento do seu abate. São vermes que se contorcem na vastidão da superfície, e dentro dela, das suas fibras sabiamente entrelaçadas, destinados a serem calcados, afogados e esmagados pela inspiração de um qualquer poeta ou pintor, e assim, eternizados na arte. O silêncio é absoluto, apenas acompanhado pelo absoluto… do murmurinho monocórdico do bater do coração astral do cosmos. O toque conspurca, mas a doçura do pecado torna-o irresistível. Denota-se áspero, ínvio, e torna-se iriçado como o arrepiar da pele de uma mulher submetida a um prazer intenso. Não se abusa de tanta limpidez, inodora, nívea e prenha. Apenas um agrafe perturba sadicamente a paz que ocupa este espaço, numa invasão sangrenta à pureza erótica que se fecha nos seus limites. Limites irrelevantes, pois basta a infinitude que se nos oferece. A responsabilidade parece-me imensa, e a ansiedade inata de criação dispara neste vazio uma sequência caótica de recordações, latentes no ninho onde repousa a memória. O branco torna-se, ao fixá-lo, num espaço onde vivem manchas brancas, pretas, luminosas e combinatórias, portais para a projecção mental dessas recordações. A nossa própria e única projecção mental da imagem. A criação é materializada em


espaços semi-vazios perpetuando-se na alma de um novo mundo. O Nada, este vazio, pode ser um tesouro, transcendentalmente divinal. Concedo então a paz a este universo e entrego-o ao medo eterno, medo desse deus que é o artista, que somos todos nós, que eterniza a sua arte no sepulcro do vazio. E despeço-me com um beijo, perpetuando assim os meus sentimentos pelo Silêncio, que este amor, agora perdido, me deu.

Miguel Oliveira


Media e Cultura Contempor창nea -Realidade, Simulacro e Virtualidade -


Media e Cultura Contemporânea

-Realidade, Simulacro e Virtualidade -

Este trabalho é subordinado a um dos temas do conteúdo programático da disciplina de Media e Cultura Contemporânea. O tema escolhido foi “Cultura e Técnica – Realidade, Simulacro e Virtualidade”. Neste tema iremos analisar os vários interfaces sobre os quais se delimitam as fronteiras entre o real e o virtual. Para tal basear-nos-emos em vários conteúdos e suportes audiovisuais, diversos autores e diferentes teorias.


-Os Caminhos Lamacentos-

Debatemo-nos constantemente com a feroz velocidade da aproximação de um futuro, cada vez menos longínquo e constantemente tragado pelo presente. A pergunta, um quanto retórica, se a construção da sociedade do futuro é uma realidade antecipada ou simples imaginação leva-nos por «caminhos lamacentos», um tanto neuróticos, cujos ingredientes se misturam, naturalmente, numa massa homogénea de conceitos, ideias e meras sensações. O contexto da construção da identidade na cultura da simulação é “a história da erosão das fronteiras entre o real e o virtual, o animado e o inanimado, o eu unitário e o eu múltiplo, que está a acontecer tanto nos domínios da investigação científica de ponta como nos padrões de vida quotidiana” (Turkle, 1995, p. 12/13). Um trabalho exaustivo seria determinar com exactidão todos os aspectos e pedaços deste “bolo”, uma crise de identidade com que nós, humanos, estamos a tentar lidar, e nele encontrar uma única verdade, linear e específica. Trabalho esse que tentaremos fazer, tendo em conta as limitações, mas com a ajuda deste fascínio que por vezes nos cega, e por outras nos ilumina. Nas palavras de Aldous Huxley: “Rebolar no lodo, não é com certeza a melhor maneira de alguém se lavar”. Assim, sem meditarmos melancolicamente nas nossas faltas, entregamo-nos a este tema que, pressupomos, nunca poderia estar completo. É a sociedade do futuro que se mistura com o presente, e esse próprio futuro, deslumbrante, que se reinventa constantemente na mente e imaginação do Humano, casto de um passado imenso.

-O Último dos Homens e o Admirável Mundo Híbrido-

Diluído no novo paradigma e na pós-modernidade, deparamo-nos com um caos fragmentado de literatura sobre este tema, composto por ideologias, profetizações, filosofias e teorias dispersas que parecem ajustar-se, com naturalidade, ao novo humano. Dividido pela ténue linha que separa o real do virtual, e constantemente em migrações entre ambos os ambientes, o humano caminha em direcção à hibridez,


entregue a uma “completa osmose, pois longe vão os «tempos modernos» do binómio homem/máquina ou do corpo/ser” (Pires, 2002, p. 289), à diluição desta fronteira, a um futuro incógnito e ao “último dos homens”. Nesta nova evolução, profunda e semiconscientemente dependente da técnica, a Humanidade parece continuar a “piscar os olhos” e a “dar estalidos com a língua“, numa alienação nietzschniana da sua Natureza e na ignorância, impotência ou indiferença voluntária generalizada, enquanto que é absorvida por uma consciência mecanicista e niilizante e se deixa “fundir em múltiplas ligações totalitárias e narcisistas, adoptando o cyborg como nova forma de vida”. A sanidade humana só parece manter-se nesta profunda relação de simbiose com a máquina, no on-line, numa dependência absorvente da qual somos todos «utilizadores» e numa tendência geral para uma compulsão de «ligação» (Turkle, 1995), que parece afectar tudo e todos. A possibilidade do desaparecimento repentino desta relação gera uma esquizofrenia geral, uma “ressaca do desejo apocalíptico de ligação” (Pires, 2002, p. 288) e uma preocupação obsessiva na prevenção do caos real e mental entre os humanos Do mesmo modo, a técnica ao assumir uma dependência e consciência humanóides, parece, segundo alguns autores, contribuir pacificamente para o equilíbrio dessa simbiose. Assim, “a loucura conhece hoje o seu reduto de libertação. Camuflada sob a forma da sexualidade e da «relação entre iguais», é no on-line que ela encontra expressão, ao mesmo tempo que é reprimida pelos poderes estabelecidos” (Pires, 2002, p. 288). Vivemos então o começo de uma nova era para a Humanidade, aquilo a que Moisés de Lemos chama a era do Admirável Mundo Híbrido” (Moisés, 2007).

Desde os primórdios que o Homem se tentou desprender do mundo real, num conjunto de processos naturais de aproximação ao Divino e/ou a ele próprio. Terence McKenna (1992), no seu livro “O Pão dos Deuses”, relata a história das migrações dos humanos entre o seu mundo real e o mundo espiritual, onde procura a árvore do conhecimento original, numa história radical das plantas, das drogas e da evolução humana (Mckenna, 1992). No entanto, o Divino dos nossos antepassados parece hoje ter-se transformado na Técnica, técnica essa com que interagimos através de uma panóplia de interfaces de carácter orgânico ou mecanicista, de forma semelhante à que faziam os nossos antepassados.


-VeriChip, Der Golem e HomunculusNos primórdios do nascimento dos primeiros cyborgs, esses seres “simbióticos, misturas de carne e máquinas cibernéticas”, que escrevem na superfície do corpo do Homem pós-moderno textos não só ideológicos e políticos, mas também textos epistemológicos,

semióticos,

tecnológicos

e

económicos

(André

Lemos).

as

implantações de chips intracutâneos começa agora a dar os primeiros passos. Perto se avista agora a eliminação total da fronteira entre humano e máquina, entre real e virtual. A dissolução dessa linha, que outrora separava e dividia, ultrapassa a dependência das tecnologias, uma tecnodependência que estava ao nosso alcance e que agora está dentro de nós. Percorrendo o nosso sangue, cravada nos músculos, no coração, no cérebro. O futuro indicia que o processo de alienação da realidade se torne completamente obsoleto, pois a alienação fará parte da própria existência, condicionada e dependente de ambientes virtuais. As implantações de chips já começaram. O Baja Beach Club em Barcelona é um exemplo disso: “Está a ser levado a cabo uma experiência importante e de profundo significado científico entre os clientes sumariamente vestidos do Baja Beach Club de Barcelona. Estão a ser-lhe implantados cartões de crédito electrónicos debaixo da pele. (…) No Baja Beach Club, as implantações de chips VeriChip fazem-se às terças-feiras. Entra-se e uma enfermeira injecta-lhe uma cápsula VeriChip debaixo da pele, com uma seringa.» Seguindo o raciocínio do autor: “Num futuro muito, muito próximo, os implantes de chips serão apresentados como socialmente positivos através de uma multiplicidade de técnicas mediáticas.”

Se, no contexto de uma pós-modernidade, pode surgir, como defende André Lemos (Lemos, 1995), o discurso sobre os cyborgs, esses seres “simbióticos, misturas de carne e máquinas cibernéticas”, é porque o corpo pós-moderno transformou-se numa superfície de escritura para os mais variados textos: não só o ideológico e o político, mas o epistemológico, o semiótico, o tecnológico e o económico. “Os primeiros seres artificiais eram dados ao mundo pelo acto divino”. A comparação, um tanto forçada, é-nos dada por André Lemos, resgatando a origem desse


imaginário que hoje deverá ser preenchido pelo mito do cyborg (especialmente representada pela ficção científica cyberpunk). Tratava-se então do “sopro vital que anima o barro”, ou do “nome de Deus escrito e colocado na boca do Golem” (Lemos, 1995, p. 7). Nada mais pré-moderno do que essa obra: o rabino Loew dá vida a um Golem, uma estátua de barro que ele próprio molda, colocando um sinal mágico em seu coração – o “sopro vital” de que falava André Lemos –, a partir de instruções de um antigo livro cabalístico. Se o divino é capaz de transmutar a matéria-prima (o barro) inerte em vida, tal poder deveria ser interditado aos homens, cuja banalização dos actos acarreta, fatalmente, destruição e morte. Uma visão do mundo que ainda reserva ao âmbito do sagrado, do divino e dos mistérios um papel preponderante em relação ao destino dos homens. Em 1916, a indústria cinematográfica alemã lançará o primeiro de uma série de seis filmes sobre “Homunculus”, outra criatura artificialmente produzida, considerada por Sigfried Kracauer como a verdadeira antecessora de Frankenstein. Gerado num tubo de laboratório por um famoso cientista, Homunculus torna-se um homem “de intelecto acurado e desejo indomável” (Krakauer, 1988, p. 46) que, entretanto, será tomado pela revolta ao descobrir sua origem. Como o Golem, ele deseja o amor, mas será rejeitado e acabará desprezando raivosamente toda a humanidade. A criatura pressagia o próprio Hitler magistralmente: torna-se ditador de um país, incita greves que esmaga violentamente e chega a provocar um conflito bélico de carácter mundial, sendo finalmente destruída pela força natural (diríamos, também sagrada) de um raio. Apesar desse final, Homunculus (exactamente como Frankenstein) é fruto de uma ciência sem limites morais e éticos. O foco de poder já se desloca, conforme a ênfase moderna na racionalidade – instrumental, diria Theodor Adorno –, para os prodígios de uma ciência que, no entanto, afastada da religião (e de seus valores), mostra-se uma ameaça nas mãos de homens ambiciosos e sem escrúpulos.


-A morte do corpo e eXistenZAs transformações corporais que possibilita a biotecnologia, pela realidade virtual, configuração de um hipercorpo, um corpo híbrido, reactualizam as discussões sobre o corpo que tenho e o corpo que sou, sobre o que nos define como seres humanos, sobre a nossa forma corporal e sobre os limites da nossa corporeidade. Stelarc (1997), artista contemporâneo que realiza performances utilizando a Robótica, sistemas de realidade virtual, interfaces com próteses e computadores tem sido um dos interlocutores deste debate, ao anunciar que o nosso corpo biológico é obsoleto, “uma estrutura nem muito eficiente, nem muito durável” (Stelarc, 1997, p. 54). A total imersão no virtual apodera-se biotecnicamente do humano fazendo com que a mão se torne “uma extensão do meu olho” apresentando a simulação “ com uma eficácia incomparavelmente maior na aniquilação da nossa individualidade” (Pires, 2002, p.293). Em eXistenZ, uma designer de renome de jogos de realidade virtual, criadora de um novo jogo interactivo chamado eXistenZ, é vítima de uma intensa perseguição por fanáticos religiosos que querem assassiná-la. Ainda em fase de teste, Allegra leva seu mais novo “brinquedo” para um pequeno grupo de jogadores de uma cidade do interior experimentar a sua nova e revolucionária obra, em frente a uma pequena plateia. Acoplados a uma consola biotecnologicamente gosmenta, através de um dispositivo acoplado à medula, os jogadores vivem o eXistenZ, tal como a sua própria realidade, mas assumindo uma personagem. O eXistenZ é aquilo a que José Augusto Mourão chama o “paganismo tecnoerótico” e o seu argumento “realiza o sonho inquietante de uma nova erótica, que declina a natureza fantasmática da nossa experiencia, uma natureza abismada todavia por Thanatos (a personificação da morte), com a ficção a envenenar a realidade. Nesta ficção, o sexo e a morte são cada vez mais abstractos e conceptuais, o inorgânico é cada vez mais ameaçador na sua potência e a tecnologia está prenha de sex-appeal.” (Lemos Martins, 2007)


-BIBLIOGRAFIA-

Cronemberg, D., (1999), ExistenZ. Estados Unidos: Alliance Atlantis Communications / Téléfilm Canada / The Movie Network Estulin, D. (2005) Os Senhores do Mundo, Círculo de Leitores Huxley, A. (1967), Admirável Mundo Novo. Livros do Brasil: Lisboa. Le Breton, A. (2003), Adeus ao corpo. In Novaes, A . (Org.). O homemmáquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras. Lemos, A. 1995. Bodynet e Netcyborgs: sociabilidade e novas tecnologias na cultura contemporânea. Disponível em: http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/lemos/index.html. Acesso em: 28/08/2000. Martins, M. L. (2007), A Nova Erótica Interactiva. Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS). Universidade do Minho. McKenna, T. (1992) O Pão dos Deuses, Via Óptima Orwell, G. (1975), mil novecentos e oitenta e quatro. Livros do Brasil: Lisboa. Pires, H. (2002), Do Gesto Hesitante da Dor à Fusão Apocalíptica do Corpo: Leitura de Crítica das Ligações na Era da Técnica. Comunicação e Sociedade, vol. 4, p. 287-296. Stelarc. (1997), Das estratégias psicológicas às ciberestratégias: a protética, a robótica e a existência remota. In Domingues, D. ( Org. ). A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Unesp. Turkle, S. (1997), A Vida No Ecrã. Lisboa: Relógio D'Água Editores. Wachovsky, A. & Wachovsky, (1999). Matrix. Estados Unidos: Village Roadshow Productions.


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