Materia Prima - Maio Ed. 54

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Os bondes velozes Mobilidade urbana? Qual o quê! Quanto aos meios de locomoção, transporte urbano, essas coisas, não houve exigência alguma. A pachorrenta linha de bondes, que servia ao bairro do Horto, dava para o gasto, percorrendo, calma e graciosamente, toda a extensão da rua Pouso Alegre. Nos dias dos grandes jogos, dada a insuficiência do transporte, os torcedores iam a pé, em bloco, para o estádio. Nossa noção de distância era bem diferente, descansada. Andar a pé era uma obrigação aceita com prazer e humildade, ninguém (tinha) precisava de usar carro até para pegar pão quente na padaria da esquina. Os automóveis particulares eram raríssimos, as lotações (miúdos micro-ônibus) substituíam os bondes rumo aos novos bairros que surgiam. Enfim, repito, nós íamos para o Independência quase sempre a pé, no dedão,

lado a lado com os torcedores adversários, num alegre procissão de calor humano e amor ao esporte. Éramos educados, respeitosos, cordiais, sem nunca imaginar que, um dia, teríamos de conviver com essas excrescências chamadas ´´torcidas organizadas´´, uma das maiores vergonhas e ignomínias de qualquer país que se pretenda civilizado, cristão e decente. Assim, a entidade, que não tinha bala na agulha para arrotar grandezas, pediu, prioritariamente, a construção de estádios decentes nas seis cidades-sede da disputa: Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Assim, em 1947, o prefeito Otacílio Negrão de Lima assinou um compromisso com a FIFA para a construção de um novo estádio. O que não era uma exigência absurda, uma vez que os aqui existentes eram pequenos,

acanhados, paroquiais. O melhorzinho era o do América, que recebeu uma reforma em 1948, passando a caber, pasmem, 12 mil torcedores. A construção foi confiada ao Sete de Setembro. Um clube do segundo escalão do futebol mineiro. Dono do terreno adequado, situado nas fronteiras da Floresta, Horto e Sagrada Família. O estádio foi logo batizado de Independência, numa clara alusão ao nome do time e à nossa gloriosa data. Um projeto de respeito: estádio de 45 mil lugares; gramado de dimensões oficiais - 110 m x 70 m (as regras da FIFA permitem a variação de 90 a 120 m de comprimento, por 45 a 90 de largura); e pista de atletismo em torno do gramado, com seis metros de largura. Quando as obras começaram a patinar, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) as encampou. E entregou o estádio a tempo.

Cinco estrelas nenhum Ah, quase me esquecia dos hotéis. A sua escolha foi de uma simplicidade franciscana. Mais ou menos em abril de 1950, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD, antecessora da CBF) mandou um funcionário a BH para, assessorado por um funcionário da Federação Mineira de Futebol (FMF), escolher os hotéis que iriam receber os bolivianos, ingleses, iugoslavos, norteamericanos, suíços e uruguaios. Em coisa de duas, três horas, eles indicaram os hotéis Brasil Palace, Financial, São Miguel e Grande Hotel (onde é, hoje, o Arcangelo Maletta). Em

Nova Lima, nas imperiais acomodações da Mina de Morro Velho. Por isso, além do estádio, da PBH a FIFA exigia apenas a garantia de renda mínima de Cr$1,5 milhão de cruzeiros (cerca de 75 mil dólares, ao câmbio da época, US$1 igual a Cr$18,62) para os três jogos; e mais uma taxa de Cr$240 mil cruzeiros (uns 12 mil dólares). Em troca, a entidade - que, mesmo sem bala na agulha, era blindada munheca de samambaia - garantia a realização de três jogos na cidade; doava 150 ingressos à PBH; e bancava as passagens, a estada e o transporte das seleções visitantes.

Foi assim, essa simplicidade, essa singeleza, essa inocência que se abriram as portas e os corações da cidade para o espetáculo inesquecível que é uma Copa do Mundo. Na verdade, uma fugaz pausa de um mês para, esquecidas as guerras, atentados e conflitos deste mundo insano, vibrarmos com os jogos realizados em estádios apinhados de torcedores. De todas as raças, cores, credos e amores, unidos em torno de um amor comum: o esporte. Este sim, a maneira civilizada de exercer a lei do mais forte. MAIO DE 2014 |

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