Sala de ensaio

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textos sobre a são paulo companhia de dança

sala de ensaio Inês bogéa (org.) antonio prata manuel da costa pinto sandra meyer francisco bosco caco galhardo márcia strazzacappa flávia fontes oliveira fabrício corsaletti agnaldo farias


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sala de ensaio textos sobre a são paulo companhia de dança Inês Bogéa (org.)



SUMÁRIO

introdução 11 Sala de ensaio | inês bogéa

ensaios, ficções e desenhos 19 Os movimentos, as palavras e uma chaleira em, digamos, Santa Rita do Passa Quatro | antonio prata 27 Rituais de abstração | manuel da costa pinto 41 Dança e representação: entre mimese e reflexibilidade | sandra meyer 67 Oferenda textual: seis movimentos para a São Paulo Companhia de Dança | francisco bosco 83 Diário ilustrado | caco galhardo 109 Repertório em movimento | inês bogéa 127 Educação estética pela e para dança: um olhar acerca do trabalho educativo da São Paulo Companhia de Dança | márcia strazzacappa 139 Textura da memória | flávia fontes oliveira 153 Bailarinas | fabrício corsaletti 167 Do ensaio, do espetáculo | agnaldo farias

171 Sobre os autores 175 Referências bibliográficas 285 Créditos das imagens

english version 183 Rehearsal Room – Essays on São Paulo Companhia de Dança | izabel murat burbridge


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Antonio Prata

ensaios, ficções e desenhos

Os movimentos, as palavras e uma chaleira em, digamos, Santa Rita do Passa Quatro2

São onze e quinze da manhã. Numa sala da Oficina Cultural Oswald de Andrade, de parede espelhada, janelas compridas e chão de linóleo preto, quarenta e um bailarinos esperam, em silêncio, o início da música. Lá de fora vem o burburinho do Bom Retiro: o motor de um ônibus se mistura ao pio dos passarinhos, os gritos das crianças, na saída da escola, chegam junto às vozes dos pedestres e lojistas negociando tecidos, esfirras, roupas, burekas e folhinhas de Zona Azul. Quando a primeira nota soar pelas caixas de som, os bailarinos começarão a ensaiar a coreografia Passanoite, de Daniela Cardim, na qual vêm trabalhando há semanas. Todo dia é assim, acordam cedo, pegam metrô, ônibus, carros e vão até a sede da Companhia, onde passam seis horas dançando. São funcionários públicos,3 com holerite, polainas, inss e sapatilhas, pagos pelo Estado para transformar ideias, histórias e emoções em movimento. A maioria das pessoas, no Brasil – e eu me incluo entre elas –, não está acostumada a frequentar balés. Eis a missão da São Paulo Companhia de 2. Texto originalmente publicado no programa 2/2009 da São Paulo Companhia de Dança. 3. A São Paulo Companhia de Dança é gerida pela Associação Pró-Dança, uma Organização Social de Cultura. Seus funcionários são contratados pela Consolidação das Leis Trabalhistas (clt). [n.e.]

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Agora, dois bailarinos estão em cena. Um deles rodopia, outro rodopia atrás, com um pequeno atraso. Tudo o que um faz, o outro imita. Será a rima da dança? E, se a rima é uma espécie de afinidade, serão dois amigos, ali, brincando? Essa também é uma maneira de passar a noite, afinal. Quem sabe, são aqueles pretendentes desprezados pela donzela que decidiram divertir-se sozinhos? Seria o espetáculo sobre vários eventos durante uma noite? Talvez seja uma rima, mas não uma solução, pois ocorre-me que pode não haver narrativa alguma, tanto na cena como no espetáculo. E se for apenas movimento? Se os dois bailarinos girando juntos forem como duas pedras jogadas num lago, com suas ondulações consecutivas e paralelas? Como o vento movendo as folhas nas copas das árvores? Precisa haver enredo para o movimento? O universo não se expande por vaidade ou cobiça. Um rio não corre porque esteja bravo, ou eufórico. Não há fúria nem pressa nas cataratas do Iguaçu. Elas não são o clímax na epopeia de uma gota d’água, que se iniciou no vapor de uma chaleira em, digamos, Santa Rita do Passa Quatro: é só movimento, e é belo, tanto é que, todo ano, milhares de pessoas viajam quilômetros, só para contemplar o espetáculo. Não. Há sempre uma narrativa. Mesmo não havendo enredo nenhum nas cataratas do Iguaçu, cada um projeta ali uma história. Há quem veja nas quedas-d’água a violência da natureza, há quem enxergue a harmonia nos arcos-íris que se formam. Há quem fique calmo diante do estrondo, como se o jorro calasse seus próprios ruídos, há quem volte correndo para o ônibus da excursão, com medo de atirar-se do despenhadeiro. Sou trazido do despenhadeiro para o Bom Retiro pelos aplausos. O ensaio terminou. Os dançarinos saem da sala, deixando-me só com a bailarina nas pontas dos pés, tripudiando da morte, uma moça sendo cortejada por três rapazes, amigos desprezados, brincando de rimar, uma mulher triste, encolhida no chão, pedras atiradas num lago, uma chaleira em, digamos, Santa Rita do Passa Quatro, centenas de turistas japoneses nas cataratas do

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Iguaçu, Drummond sentado num canto e os ruídos do bairro, entrando pelas janelas. Não vejo a hora de conhecer a coreógrafa e descobrir o quanto minha experiência divergiu de suas intenções. Mais tarde, Daniela Cardim me conta que não pensa em enredo nenhum, quando cria um espetáculo. Imagina a coreografia inspirada pela música, apenas. A plateia que veja ali o que bem entender. Sem dúvida, se eu entendesse mais do assunto, veria muito mais coisas. Veria citações de outros coreógrafos, sotaques de outros países, pegaria, no meio de um salto, uma crítica irônica a determinada escola, depreenderia uma visão de mundo duma guinada de quadril, mas tudo bem. A São Paulo Companhia de Dança está apenas começando, tem quase dois anos de existência – Passanoite é o sétimo espetáculo, Polígono foi o primeiro e Gnawa, o sexto. Nós, o público, não precisamos nos afobar. A cada passo daqueles quarenta e um bailarinos, vamos aprender a enxergar mais ideias, histórias e emoções por trás – e por baixo, por cima e ao lado – dos movimentos. Que bom. Afinal de contas, é isso o que fazemos da vida, é isso o que nos diferencia das samambaias, das trutas e dos tamanduás: contemplamos os movimentos à nossa volta e damos sentidos a eles. Que venha o primeiro acorde.

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Rituais de abstração Manuel da Costa Pinto

Nada faço além de perguntar-vos o que é a dança; um e outro de vós parece respectivamente sabê-lo; mas sabê-lo totalmente em separado! Um me diz que ela é o que é, e que se reduz àquilo que nossos olhos estão vendo; e o outro insiste em que ela representa alguma coisa, e que não existe então inteiramente nela mesma, mas principalmente em nós. Quanto a mim, meus amigos, minha incerteza fica intacta! Paul Valéry

Essa aporia, formulada por Paul Valéry, aparece na boca de Sócrates, ao longo de suas conversações com Erixímaco e Fedro no diálogo A alma e a dança5 – em que o poeta francês retoma três das personagens do Banquete de Platão. O texto de Valéry compõe, ao lado de A filosofia da dança (1936) e de Degas dança desenho (1934), um conjunto de reflexões que tem como substrato e finalidade a formulação de uma poética da dança e a partir da dança. O que em A alma e a dança se enuncia como incerteza, como hesitação entre metáfora e metamorfose, será respondido, em A filosofia da dança, como afirmação da pureza abstrata da forma. 5. Valéry, Paul. A alma e a dança – e outros diálogos. Apresentação e tradução de Marcelo Coelho. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

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teatro! Não! Não! Nenhuma ficção! Por que fingir, amigos, quando se dispõe do movimento e da medida, que são o que há de real dentro do real?… Ela era então o ser mesmo do amor! 93

Fedro aqui assume rigorosamente a mesma perspectiva dos grandes teó­ ricos do realismo em literatura. Para estes, a literatura realista não é aquela que descreve, em exatidão de detalhes referenciais, uma determinada realidade, mas sim a que, a despeito da precisão documental, podendo mesmo prescindir parcial ou até integralmente de referenciais, ilumina as relações invisíveis que estruturam uma sociedade, isto é, sua realidade. É por isso que mesmo um romance como O processo, de Kafka, radicalmente indeterminado, pode ser considerado realista. É também por isso que, como argumenta Antonio Candido, Manuel Antonio de Almeida, tendo suprimido de seu clássico simplesmente todos os negros escravos do Brasil oitocentista, e tendo igualmente suprimido a classe dirigente, conseguiu captar e descrever as leis invisíveis que organizavam aquela realidade, em sua complexidade essencial.94 Do mesmo modo, para Fedro a bailarina Atikhtê nada representa com sua dança, mas por meio dela pode dar a ver o ser das coisas. Não é isso o que acontece, por exemplo, em Les noces? Não se trata, ali, de dar a ver a experiência do noivado numa sociedade tradicional? Que imagem mais contundente (cuja experiência nenhuma palavra pode oferecer) da sociedade tradicional pode haver que não sejam aquelas cabeças empilhadas, encaixadas, intrincadas? Do mesmo modo, quando os homens se abaixam e engendram um movimento que parece representar uma carruagem a transportar a noiva – que digo, não parece coisa alguma, 93. Ibidem, p. 46 [grifo meu]. 94. Ver, a propósito, não apenas o clássico ensaio “Dialética da malandragem”, mas também o prefácio do mesmo livro, O discurso e a cidade (São Paulo: Duas Cidades, 1998), em que se encontra esse ensaio.

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nem representa coisa alguma, mas é o ser mesmo da carruagem que é dado a ver: sua força, seu movimento, seu peso, sua massa. Mesmo em Serenade, que, como atestam as declarações de Balanchine, é uma dança pura, radicalmente intransitiva, pura emanação da música, não se pode dizer que a cena final – a bailarina alçada, de braços abertos, ascendendo como que ao céu –, que aquela seja a impossível imagem da transcendência, o milagre da materialização da transcendência, o ser, finalmente, da transcendência? Tudo isso nos lembra que a arte, toda arte, é uma visão. Mesmo quando parece o contrário, quando parece que se trata do visto. Mas os retratos de Ticiano são excepcionais, são verdadeiras visões, pela dimensão moral que revelam de seus retratados, e não pela exatidão representativa de sua técnica (que apenas serve à sua visão). Toda arte é visão – e ver é necessariamente ver, no visível, o invisível, e torná-lo visível.

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Repertório em movimento Inês Bogéa

O palco é um espaço poroso, um território próprio que se nutre da dinâ­ mica de cada espetáculo. Se ao longo do tempo a dança criou estéticas, cristalizou imagens, dialogou com a política e a sociedade de sua época, também foi deixando marcas nos corpos. Cada nova geração questionou ou seguiu a anterior numa construção coletiva através do tempo, até chegar às várias formas de dança que hoje temos. Mesmo partindo de movimentos diferentes, há um fio comum que liga todo este universo: sempre a capacidade humana de tirar proveito das forças e dos elementos do movimento, para criar modos de experimentar o mundo. A São Paulo Companhia de Dança é uma companhia de repertório; isto é, seu repertório abarca desde coreografias de referência da dança até obras inéditas criadas por diferentes artistas especificamente para ela. Há nessa proposta uma procura de mapear a história da arte em que nos movemos hoje, sem se fixar numa única linha, e sim acentuando as relações e intervalos. A São Paulo é jovem e pouco a pouco vai construindo seu repertório, a cada criação embarca numa aposta e aceita surpresas, a cada remontagem a experiência dessa dança por novos intérpretes cria novos significados. Um diálogo incessante, nas realidades da dança. Este texto parte da vivência íntima com o repertório da São Paulo. Aponta relações entre as suas obras vistas por dentro em contato com os

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rehearsal room essays on são paulo companhia de dança | Inês Bogéa (org.)

translator Izabel Murat Burbridge



Table of Contents

foreword 187 Rehearsal Room | inês bogéa essays and fiction 191 Movements, Words and a Tea Kettle in, Say, Santa Rita do Passa Quatro | antonio prata 195 Rituals of Abstraction | manuel da costa pinto 204 Dance and Representation: Between Mimesis and Reflexibility | sandra meyer 221 Textual Offering – Six Movements for São Paulo Companhia de Dança | francisco bosco 232 Repertoire in Movement | inês bogéa 244 Aesthetic Education through and for Dance: a Look onto the

Educational Program at São Paulo Companhia de Dança | márcia strazzacappa

252 The Texture of Memory | flávia fontes oliveira 261 Ballerinas | fabrício corsaletti 269 On Rehearsing and on Performing | agnaldo farias

271 About the Authors 274 Bibliography 285 Image Credits



Introduction

Rehearsal Room Inês Bogéa

The dance of São Paulo Companhia de Dança (spcd) has established itself in a preexisting space (indeed, as it would be impossible to reinvent the dance space from scratch), which it renders visible from its unique perspective – a perspective that heedfully observes the very constitution of this space. Through its activities, the company draws forth pulsations from the art of dancing, celebrating punctuations, presenting choreographic commentaries, and widening territorial borders through movement itself. In the two years that followed the creation of the dance company, a number of remarkable meetings with creators from different fields such as literature, visual arts, music, fashion, theater and the movies have led to the construction of the spaces within spaces in which the São Paulo Companhia de Dança now recognizes its conceptual model. The daily activities of spcd constitute an open weave, a work in progress. The scope of these activities involves taking on countless ambivalences and challenges, arm in arm with dancers, technicians, producers and managers, among other contributors,1 in a permanent quest for an identity within multiple contexts and styles. 1. In 2009, choreographers counted on the collaboration of several people in the creation of their designs for São Paulo Companhia de Dança: theater director Marcio Aurelio did the art direction for Ballo, a piece executed on music especially composed by André Mehmari; fashion designer Ronaldo Fraga designed the costumes for Passanoite, a ballet set to the music of Brazilian composers, played live by the string quintet Quintal Brasileiro; artists Marina Saleme and Arthur Lescher designed the posters and the program covers; cartoonists Paulo Caruso, Marcelo Cipis, Ionit Zilberman and Odilon Moraes illustrated the program leaflets distributed at performances destined for students; Antonio Prata and Agnaldo Farias contributed writings to ballet program leaflets; designers Mayumi Okuyama and Maria Cristaldi created the programs; Cyro Del Nero and Márcio Junji Sono wrote for the leaflets of the series Corpo a Corpo com Professores; musicians Manuel Pessoa, Benjamin Taubkin, André Mehmari and Rodolfo Paes Dias composed soundtracks for the documentaries; Eliana Caminada, Acácio Ribeiro Vallim Júnior, Fabiana Caso, Bergson Queiroz and Inês Bogéa contributed writings to the series Figuras da Dança; photographers João Caldas, Silvia Machado, Reginaldo Azevedo, Alceu Betti, Janete Longo, Mônica Vendramini and André Porto shot photographs of spcd performances, and guest teachers Andréa Pivatto, Boris Storojkov, Daniela Severian, Alphonse Poulin, Léa Havas, Luis Arrieta, Renato Paroni and Simone Ferro gave instruction to dancers.

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rehearsal room

9 788570 608512

ORGANIZAÇÃO SOCIAL DE CULTURA

isbn 978-85-7060-851-2

Essays on são paulo companhia de dança


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