Norte

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marcel

gautherot

nort e apresentação | milton hatoum e samuel titan jr.


Até 1939, a principal atividade de Marcel Gautherot era organizar e documentar as coleções fotográficas do recém-fundado Museu do Homem, em Paris. Mas não foi sua formação na Escola Nacional de Artes Decorativas que o aproximou das lentes e das câmeras. Foi, isto sim, o desejo de aprofundar, por meio da fotografia, seu interesse por outros povos, outros costumes e outras paisagens. Dentre os inúmeros países que poderiam ter capturado a imaginação do jovem funcionário e fotógrafo amador, desde o início o Brasil se destacava. É o próprio Gautherot quem diz: “Nessa época, eu já era apaixonado pela Amazônia e tinha grande desejo de conhecer o Brasil”. Ele pisou em solo brasileiro pela primeira vez em 1939, chegando pelo Recife e estabelecendo-se em Belém. Esteve na África em 1940, preparando-se para lutar na ii Guerra Mundial, mas, devido ao armistício franco-alemão, pôde voltar para o Brasil, e daqui nunca mais saiu. Viveu no Rio de Janeiro, viajou muito pelo território brasileiro, e morreu entre nós, em 1996. A história de nossa cultura, em geral, associa Gautherot primordialmente a seu trabalho de documentação do patrimônio arquitetônico brasileiro, feito a serviço do sphan , nos tempos heroicos da constituição do órgão, durante a presidência de Rodrigo Melo Franco e ainda no embalo do movimento modernista. Não é um erro que seu nome tenha passado para a história dessa forma, nem mesmo um acaso. De fato, seu trabalho na área é inestimável. Em Norte, contudo, o romancista Milton Hatoum e o crítico literário Samuel Titan Jr. iluminam o outro lado da ligação de Gautherot com o Brasil: seu amor pela natureza amazônica. Compilando imagens feitas pelo fotógrafo ao longo de várias viagens ao Norte do Brasil, eles montaram um roteiro imaginário, que parte de Manaus, vai se afastando da “civilização” e se embrenhando por rios e igapós, até chegar ao coração da floresta; em seguida, indo em direção à foz, aos poucos se reaproxima de outra capital, para chegar ao fim em Belém. No ensaio que abre este volume, os dois autores mostram ainda o quanto é difícil a abordagem fotográfica da paisagem


norte



marcel gautherot

nort e

apresentação | milton hatoum e samuel titan jr.


Norte © Instituto Moreira Salles, 2009 “A paciência do olhar” © Milton Hatoum e Samuel Titan Jr., 2009 Fotografias de Marcel Gautherot © Instituto Moreira Salles Capa: Embarcações no porto, em frente ao mercado Ver-o-Peso, Belém, pa, c. 1954 Quarta capa: Embarcações no rio Negro, imediações de Manaus, am, c. 1944 Organização Milton Hatoum e Samuel Titan Jr. Coordenação editorial Rodrigo Lacerda e Samuel Titan Jr. Projeto gráfico Mayumi Okuyama Preparação e revisão Flávio Cintra do Amaral Equipe editorial Acássia Correia, Flávio Cintra do Amaral e Priscila Oliveira Pesquisa de imagens Sergio Burgi, Cristina Zappa, Gabriella Vieira Moyle e Ailton Alexandre da Silva Digitalização e tratamento de imagens Joanna Americana Castilho, Daniel Magalhães de Arruda, Ailton Alexandre da Silva e Tatiana Novás de Souza Carvalho Legendas Bruna Stamato dos Santos Impressão Ipsis Gráfica e Editora Os organizadores agradecem as sugestões de Sergio Burgi, Carlos Martins e Julia Kovensky, bem como o auxílio inestimável de Cristina Zappa, Gabriella Vieira Moyle, Rodrigo Lacerda e Ailton Alexandre da Silva.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gautherot, Marcel (1910-1996) Norte / Marcel Gautherot; organização e apresentação de Milton Hatoum e Samuel Titan Jr. – São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009.

isbn 978-85-86707-47-6

1. Fotografias - Brasil i. Hatoum, Milton. ii. Titan Jr., Samuel. 09-11779 cdd-779.9981 Índice para catálogo sistemático: 1. Brasil: Fotografias 779.9981 2. Fotografias: Brasil 779.9981 www.ims.com.br tiragem 3.000 exemplares fonte Walbaum capa Supremo Duo Design 250 g/m2 miolo GardaPat Kiara 135 gr/m2


s u m á r i o

7 Apresentação | Milton Hatoum e Samuel Titan Jr.

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a pa ci ê n c ia d o ol har m a rc e l g au t h e rot na a ma z ôn i a

Em fins de setembro de 1939, na mesma página em que prometia mais notícias sobre o recente “ataque maciço contra a polônia”, a Folha do Norte anunciava a presença de um “grande repórter francês em Belém”. O tal repórter, na verdade um fotógrafo e “um dos mais bizarros representantes da inteligência francesa”, visitara um dia antes a redação do jornal e expusera seus planos de viagem “em demanda dos confins do Amazonas”. Dali passaria ao Peru, à Bolívia e ao Equador, antes de voltar, via canal do Panamá, a Paris, onde estava ligado ao Museu do Homem. Não viajava por aventura, sugeria o jornal, mas sob os auspícios do museu, sem olhar “dificuldades nem despesas”, para investigar, com auxílio de sua câmera, “o mistério de todas as origens, na ânsia de arrancar uma luz nova da penumbra das idades”.1

1. “Um grande reporter francez em Belem”. Folha do Norte, Belém, set. 1939. Recorte preservado no acervo Marcel Gautherot do Instituto Moreira Salles.


O texto, de tom bacharelesco, prima pela imprecisão. O fotógrafo de fato se chamava Marcel Gautherot, como informava a legenda de seu retrato meio borrado. Mas a verdade é que, aos 20 e tantos anos, não era nenhum expoente da cultura francesa; planejava internar-se pela Amazônia brasileira e peruana, tomar rumo sul e, voltando ao Brasil, terminar a turnê americana no Rio de Janeiro; trazia, sim, cartas de recomendação do Museu do Homem, mas não estava propriamente a seu serviço; a aventura, o gosto da viagem talvez fosse, mais que a ciência, a maior de suas motivações; finalmente, não tinha por então metade da fama que o jornal lhe atribuía, nem estava em posição de desdenhar dificuldades e despesas. Ainda assim, a matéria da Folha do Norte tem o mérito de documentar, em seus primeiros momentos, a relação profunda e privilegiada que a partir daí vincularia o “grande repórter francês” ao Brasil e à Amazônia. Filho de família operária, Gautherot nascera em Paris, em 14 de julho de 1910. Depois de estudar arquitetura – sem contudo concluir o curso noturno da Escola Nacional de Artes Decorativas –, trabalhou alguns anos como projetista de móveis e arquiteto de interiores, inspirado pela tremenda renovação operada por nomes como Le Corbusier e Mies van der Rohe. Foi justamente como arquiteto de interiores que, em 1936, ingressou nos quadros do recém-fundado Museu do Homem; e foi no museu que passou a se ocupar de fotografia – para fins de documentação das coleções, certamente, mas sobretudo para atender a um outro desejo: “A fotografia surgiu antes de tudo do meu desejo de viajar. Nessa época, eu já era apaixonado pela Amazônia e tinha grande desejo de

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conhecer o Brasil.”2 Mas a primeira viagem à América, em 1936, levaria Gautherot não ao Brasil, mas ao México, cuja cena política e cultural atraía então inúmeros intelectuais e exilados, escritores e fotógrafos – como seus compatriotas Pierre Verger e Henri Cartier--Bresson. De volta à França, a leitura de Jubiabá, de Jorge Amado, será o impulso final para o que deveria ser uma longa excursão sul-americana e, sobretudo, brasileira. Sabe-se que aportou no

recorte da folha do norte, belém, set. 1939; instituto moreira salles.

Recife em 21 de maio de 1939. Daí em diante, tudo é vago e cheira a improvisação, mais que a inquérito jornalístico ou expedição científica. Chegando a Belém, trabalhou para um francês, desenhando mapas, e vendeu o relógio de pulso para pagar as contas da viagem. Visitou o Marajó, fotografou garimpeiros no Amapá e partiu para o rio Paru, rumando sem nenhuma pressa para oeste, em 2. Depoimento a Lygia Segala, citado conforme segala, Lygia. “Bumba-meu-boi Brasil”. In: instituto moreira salles. O Brasil de Marcel Gautherot. São Paulo, 2001, p. 27.

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direção à fronteira com o Peru, aonde jamais chegaria: nos primeiros meses de 1940, com a invasão alemã das Ardenas, Gautherot foi convocado pelo exército e teve que retornar à França. Em abril, embarcou rumo ao Senegal, para juntar-se às forças francesas; mas, com o armistício franco-alemão, em junho, Gautherot cruzou novamente o Atlântico. No final do ano, estava de volta ao Rio de Janeiro, cidade onde viveria até o fim da vida – morreu ali, em 1996 – e de onde partiria para as inúmeras incursões que fez pelo Brasil. Voltou repetidamente à Amazônia, o mais das vezes sozinho e sempre viajando em condições precárias – ao contrário do que pensava a Folha do Norte, as despesas materiais seriam sempre um problema. No correr dos anos, produziu um vasto material fotográfico sobre o Norte, marcado menos pelo cunho documentário ou antropológico que se esperaria de um egresso do Museu do Homem e mais pela curiosidade, pelo empenho tácito e persistente em enfrentar as dificuldades pictóricas com que a paisagem vasta, instável e anfíbia confrontava a seu olhar. Impelidas por esse empenho e essa curiosidade, as viagens de Gautherot vão aos poucos deixando o exotismo de lado, para se converterem numa autêntica aventura da sensibilidade, que vale a pena retraçar. * Três citações de tempos e autores distintos dão ideia das dificuldades que Gautherot tinha pela frente. Num trecho muito agudo, logo às primeiras páginas da Viagem pitoresca através do Brasil, J.M. Rugendas adverte que “as florestas nativas

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constituem a parte mais interessante das paisagens do Brasil; mas também a menos suscetível de descrição”, e isso por uma razão que toca os fundamentos de sua própria arte de pintor: Em vão procuraria o artista um posto de observação nessas florestas em que o olhar não penetra além de poucos passos; as leis de sua arte não lhe permitem exprimir com inteira fidelidade as variedades inumeráveis das formas e das cores da vegetação de que ele se vê envolvido.

Mais que a surpresa das espécies novas, a falta de um “posto de observação” dificulta o trabalho do artista europeu que, longe de conseguir tomar a distância habitual, vê-se ainda “envolvido” por uma vegetação que não se deixa descortinar: Para estabelecer uma comparação entre as florestas do Brasil e as mais belas e antigas do nosso continente, não basta ressaltar apenas a maior extensão das primeiras, ou o tamanho das árvores, faz-se imprescindível assinalar ainda, como diferenças características, as variedades infinitas das formas dos troncos, das folhas e dos galhos, além da riqueza das flores e da indizível abundância de plantas inferiores e trepadeiras que preenchem os intervalos existentes entre as árvores, contornam-nas e enlaçam--lhes os galhos, formando dessa maneira um verdadeiro caos vegetal.3 3. rugendas, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil, v. 1. Tradução de S. Milliet. São Paulo: Martins, 1940, p. 11. A primeira edição foi publicada em Paris entre 1827 e 1835.

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Algumas décadas mais tarde, em 1907, prefaciando o Inferno verde de Alberto Rangel, Euclides da Cunha faz eco à observação de Rugendas. As palavras e as imagens provêm agora menos das artes que das ciências – cujo triunfo, “ao fim de trabalhos incalculáveis”, Euclides não deixa de proclamar –, mas a observação de fundo a respeito da dificuldade de se penetrar e conhecer o ambiente tropical é, feitas as contas, a mesma. As obras dos cientistas permitem que se trave contato com as “infinitas faces, particularíssimas, da terra”, e à medida que se avança na empreitada, “vai-se-nos turvando, mais a mais, o conspecto da fisionomia geral”: Restam-nos muitos traços vigorosos e nítidos, mas largamente desunidos. Escapa-se-nos, de todo a enormidade que só se pode medir, repartida: a amplitude, que se tem de diminuir, para avaliar-se; a grandeza, que só se deixa ver, apequenando-se, através dos microscópios: e um infinito que se dosa, a pouco e pouco, lento e lento, indefinidamente, torturantemente...

Nem mesmo um herói euclidiano, o naturalista Walter Bates, escapou à dificuldade: depois de mais de um decênio rico de descobertas na estreita faixa litorânea “entre Belém e Tefé”, Bates não esgotara “sequer o recanto apertadíssimo em que se acolhera. Não vira a Amazônia” – visão esta que ficaria adiada para um “futuro remotíssimo”.4

4. cunha, Euclides da. “O inferno verde”. In Um paraíso perdido. Rio de Janeiro/ Rio Branco: José Olympio/Governo do Estado do Acre, 1986, pp. 200-201.

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Em 1928, 21 anos depois, um personagem em tudo diferente de Euclides acrescenta um terceiro elo à cadeia. Trata-se do belga Henri Michaux, descendo o Amazonas da cordilheira à foz e anotando suas impressões de viagem no que logo mais seria Ecuador, livro de 1929. Chegando a Belém, o escritor reflete: Estreitos e inúmeras passagens de um a dois quilômetros de largura, e só. Mas onde então está o Amazonas?, a gente se pergunta, sem nunca ver nada a mais. É preciso subir. É necessário um avião. Não vi, portanto, o Amazonas. Não direi, portanto, mais nada. Uma jovem que esteve a bordo desde Manaus, chegando conosco à cidade hoje pela manhã, passou pela praça central, aliás bem plantada, e teve um suspiro de alívio. “Ah, finalmente um pouco de natureza!”, disse ela. Ora, ela acabava de chegar da floresta...5

No tom de desaforo que lhe é peculiar, Michaux retoma a observação de Rugendas e Euclides sobre a quase invisibilidade de uma paisagem que, vasta como é, não se deixa capturar como tal, não se deixa ver por inteiro. A causa é, novamente, a impossibilidade de tomar distância. Rugendas se vê “envolvido” pelo objeto que gostaria de representar; Euclides não

5. michaux, Henri. Ecuador. In Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1998, pp. 232233. O trecho leva o cabeçalho “15 de dezembro, Pará”.

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c.f.p. von martius, árvores nascidas antes de cristo às margens do rio amazonas, c. 1840), litografia, 29,7 x 45,1 cm, incluída no volume i da flora brasiliensis (munique/leipzig: r. oldebourg, 1840-1906); instituto moreira salles.

encontra meio-termo entre o “microscópio” e a perspectiva vasta que se abrirá a algum século “remotíssimo”; e agora Michaux, viajando de canoa, quisera estar a bordo de um avião que lhe proporcionasse a desejada visão à vol d’oiseau. * Constatada a dificuldade, cada época e cada autor lançou mão de recursos e instrumentos diferentes para lidar com ela. Numa das pranchas de sua Flora brasiliensis, C.F.P. von Martius submete a floresta indevassável às “leis de sua arte” (para usar a expressão de Rugendas, seu compatriota),

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figurando-a de uma distância perfeitamente inverossímil naquele ambiente, desbastando-a de cipós e plantas rasteiras, abrindo espaço até que um trio de árvores gigantescas, “nascidas antes de Cristo”, ganhe a imponência de esculturas ou de colunas clássicas. O resultado logo faz pensar num cenário de ópera – e, nessa mesma linha, nas “arcarias de verdura” e nos “capitéis formados pelos leques das palmeiras” do primeiro capítulo de O guarani de José de Alencar. Trabalhando com

marc ferrez, floresta virgem, c. 1885, albúmen, 28,2 x 21 cm; instituto moreira salles.

um meio que o impede de simular a perspectiva distanciada da litografia de Martius, um fotógrafo como Marc Ferrez deve, ainda assim, fazer essencialmente a mesma coisa que seu antecessor alemão – no caso, buscando algum acidente geográfico que lhe faculte a distância necessária à visão. Pode ser uma clareira, que lhe permita dar a um grupo vegetal o relevo e o destaque de um grupo escultórico; mas pode ser também um dos mirantes que a topografia do Rio de Janeiro – nisso diversa da planura amazônica – oferece com fartura e a partir dos quais a “vontade panorâmica”6 pode se exercer e se saciar em 6. A expressão é de turazzi, Maria Inez. “A vontade panorâmica”. In instituto moreira salles. O Brasil de Marc Ferrez. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2005, pp. 16-55.

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moldes muito próximos das convenções paisagísticas europeias. Por fim, e na direção contrária dos exemplos anteriores, é possível ainda radicalizar a dificuldade: em vez de resolver o impasse decolando num avião real ou metafórico, Michaux abandona a figuração e parte para o grafismo quase puro nos desenhos de Arbres des tropiques, de 1942. Muito da vibração e do interesse da fotografia amazônica de Gautherot vem da força com que sentiu todos esses problemas e da originalidade das soluções compositivas com que se saiu. Não resta dúvida de que tinha consciência das dificuldades, como o prova uma tirada de sua autoria, recolhida pelo amigo Jacques Prévert nas primeiras páginas do livro Spectacle, de 1951: “No Brasil, tive vontade de derrubar uma floresta inteira para tirar o retrato de uma certa árvore de que gostei”.7 Boutade à parte, o fato é que, de sua formação em arquitetura na França, Gautherot derivara um sentido refinado da composição, do equilíbrio de linhas e volumes, num espaço pictorial ele mesmo rigorosamente tabulado. Não por acaso, tinha preferência por negativos quadrados, de 6 x 6 cm, e repetidamente recorreu a elementos retos, verticais ou horizontais (especialmente a linha do horizonte), para dividir e subdividir a imagem em partes simétricas. Esse pendor é particularmente notável quando o objeto fotografado é ele mesmo uma obra arquitetônica, e basta percorrer o vasto material em torno à construção de Brasília para que se note o encontro feliz, quase puramente gráfico, entre o olhar de Gautherot e as linhas de seu amigo Oscar Niemeyer. O mesmo viés não deixa de estar

7. prévert, Jacques. Spectacle. In Oeuvres complètes, v. 1. Paris: Gallimard, 1992, p. 320.

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marc ferrez, corcovado, c. 1886, rio de janeiro, negativo original em vidro, gelatina/prata, 30 x 24 cm; instituto moreira salles.


presente nas fotos da Amazônia e responde, entre muitos exemplos, pelo interesse voltado para a arquitetura vernácula das palafitas. Mas o fato decisivo é que, não tendo ele derrubado “uma floresta inteira”, o gosto de Gautherot pela composição clássica não só se viu obrigado a negociar, como, mais que isso, foi se deixando contaminar pela indistinção e pela instabilidade tropical, que se insinua por todo lado. Em vez de tomar ou simular distância, Gautherot foi no sentido contrário e flertou, à sua maneira discreta, com o caos. Veja-se, como exemplo, a imagem do teatro Amazonas, em Manaus [p. 27]. O edifício é um emblema da belle époque financiada pela borracha, a mesma que pagou pela pavimentação da praça em pedra portuguesa, bem antes da orla carioca. O desenho em pedra, porém, é capturado obliquamente, de tal modo que as linhas sinuosas da praça aos poucos se confundem, num efeito final de liquefação que é difícil não chamar de fluvial e que em tudo contrasta com a massa poderosa do teatro. O próprio rio Amazonas, dada a sua largura, também resiste a se enquadrar conforme o gênero paisagístico europeu. Quando fotografou um grupo de pessoas descansando à beira-rio, gozando das férias pagas instituídas pela Frente Popular na década de 1930 (Um domingo à beira do Sena, 1938), Cartier-Bresson pôde fazê-lo sem romper radicalmente com certas convenções praticadas por pintores como Monet, em À beira do Sena (1885), ou Seurat, em La Grande Jatte (1884-1886).8 Gautherot, por sua vez,

8. Ver, a respeito, galassi, Peter. “L’amateur professionnel”. In cartier-bresson, Anne e montier, Jean-Pierre. Revoir Henri Cartier-Bresson. Paris: Textuel, 2009, pp. 23-35.

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teve que se defrontar com um rio virtualmente sem margem oposta – um pouco à maneira do Borges que sentiu o fascínio das “ruas sem calçada do outro lado”, numa Buenos Aires em que o subúrbio e o pampa se confundiam. Suas ribeirinhas plácidas [pp. 44, 51], capturadas numa visada quase perfeitamente horizontal, que reduz o horizonte a uma linha tênue, parecem flutuar sobre a água, quase se confundem e se apagam contra a vastidão do rio – a mesma vastidão que torna mais débeis os cambitos sobre os quais se apoiam as palafitas [pp. 51-60].9 O gênero paisagístico almejava criar uma medida comum para o homem e a natureza, ao passo que as “marinas” de Gautherot, estudadas como são, insinuam desproporção e infinito. Gautherot percebeu, além disso, que a quase onipresença dos rios se traduz num traço anfíbio e por isso ambíguo da paisagem amazônica. O exemplo mais óbvio são os vaqueiros marajoaras navegando com seus búfalos [p. 99]; o contraexemplo quase anedótico é a mais “seca” das fotos, em que um trabalhador do porto de Belém serra um bloco de gelo, água enfim sólida [p. 129]. Entre um extremo e outro, o movimento das águas tanto propicia como conspira contra o bom enquadramento e composição; na obra de Gautherot, o “momento decisivo” nasce da conivência passageira entre o fotógrafo insistente, quase imóvel, e o universo que se esquiva. Numa bela tomada de Manaus com a “Cidade Flutuante” em primeiro plano [p. 33], a disposição diagonal dos elementos sobre a água 9. Vale, para fins de prova, comparar esse efeito com o arranjo mais clássico de frente e fundo na série dedicada aos profetas de Congonhas do Campo, publicada em gautherot, Marcel. Paisagem moral. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009.

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oleosa do rio Negro parece perfeita – e parece a ponto de se desfazer. O mesmo efeito de ordem emergente e desordem iminente se reproduz com as canoas dos mercados à beira do rio [pp. 39-41], as casas flutuantes dos bairros pobres de Manaus [pp. 35-37] ou as toras de árvores abatidas que formam padrões geométricos à flor d’água do lago Janauacá [pp. 46-49]. A ambiguidade do ambiente e a ousadia do fotógrafo chegam ao máximo na série dos igapós, realizada por volta de 1955, em que Gautherot chega ao coração de sua viagem pictórica [pp. 63-77]. Na floresta alagada, o já mencionado impasse de Rugendas chega ao extremo, mas Gautherot toma uma decisão corajosa (certamente instruída pela memória do impressionismo francês e, em particular, de Monet): avança, em vez de tentar recuar, mergulha com a câmara no emaranhado e se deixa envolver por galhos, cipós, ondulações e reflexos. Um tronco escuro, de ramos poderosos, se prolonga em sua sombra na água, tão imóvel e negra que por muito pouco não anula a distinção entre a coisa e seu reflexo. Algumas das imagens são perfeitamente reversíveis, e então o inventário documental cede lugar ao grafismo, ao jogo quase abstrato de luz e sombra, como também acontece nos crepúsculos e horizontes fluviais, que mais parecem uma tela não figurativa, dedicada a explorar texturas de branco, cinza e preto, sem contudo deixarem de sugerir uma confusão pré-bíblica entre as águas de cima e as águas de baixo [pp. 136ss]. Composições e efeitos como esses estavam na ordem do dia da arte brasileira da época – mas fora de todo ambiente ou paisagem natural, como fruto de deliberação formal soberana. Volta e meia, Gautherot se avizinha de seus contemporâneos construtivos, mais fortemente nas

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fotos de arquitetura e de Brasília, é claro, mas também em sua produção amazônica, na qual as configurações a um só tempo simétricas e instáveis de palafitas, troncos, barcos e canoas – para não falar nos dois pescadores da ilha Mexiana [pp. 100-101] – fazem pensar nos Metaesquemas de Oiticica. Veja-se, a essa luz, um dos pontos altos desse conjunto, a sequência no Ver-o-Peso, em Belém [pp. 110-127]. Gautherot desdenha a perspectiva mais trivial, que captura o casario do porto numa tomada panorâmica a partir do rio, dá as costas ao grande cartão-postal da capital paraense e se interessa quase exclusivamente pela dança geométrica, pelas variações em torno do triângulo encenadas por mastros, cabos e velas. Mas, dado o parentesco, vale uma ressalva importante: Gautherot não deixa nunca de cultivar uma atitude de paciência do olhar, de espera calada e de vínculo com o mundo sensível, atitude que por sua vez ilumina de modo instigante o desejo vanguardista de autossuficiência.10 Nisso havia muito de sua pessoa, contemplativa e taciturna por natureza, mas também havia um aprendizado da região, de seus ritmos lentos e mesmo lentíssimos nas décadas de estagnação econômica em que Gautherot viajou por lá, entre a euforia da borracha e o desenfreio dos anos 1970. Mas nisso ia também, finalmente, uma simpatia tácita pela gente

10. ono, Haruyoshi. Depoimento a Ana Luiza Nobre em 18.01.2001 (acervo do Instituto Moreira Salles): “Ele era muito observador, meticuloso e detalhista. Me lembro que ele levava muito tempo para fotografar [...] Montava o tripé, colocava o chapéu, preparava o equipamento e ficava muito tempo, mas muito tempo mesmo, no mesmo lugar, observando antes de fotografar. Enquanto isso, eu, com a minha impaciência, já tinha dado a volta toda, fotografado tudo e ele ainda estava ali no mesmo lugar.”

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que ia encontrando ao sabor das viagens e que retratou com um misto de distância e proximidade, ora de frente, ora furtivamente, mas quase nunca no registro das “raças humanas” e dos “tipos étnicos”, como pensava a Folha do Norte. A moça que gira com paciência uma pela de borracha [pp. 103-105], o barqueiro que se equilibra numa trave feito um bailarino [p. 107], os migrantes nordestinos na hora do rancho [pp. 93-97], o assurini que dança com um homem branco no convés de um navio [p. 88], os muitos personagens que Gautherot adora capturar quando estão fazendo a mesma coisa que ele, isto é, olhando, espiando, contemplando – todos eles valem por quem são, mas também como momentos em que o fotógrafo, mais que o ângulo, calibra a distância certa para ver as coisas. Nesse processo, nesse vaivém e nessa troca de olhares, Gautherot foi aos poucos temperando o olhar europeu, naturalizando a sensibilidade e descobrindo um jeito inédito de ver o Brasil. Milton Hatoum e Samuel Titan Jr.

marcel gautherot na ilha de marajó, pará, c. 1970


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portf贸lio


teatro amazonas, manaus, am, c. 1966

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igreja de sĂŁo sebastiĂŁo e monumento Ă abertura dos portos, manaus, am, c. 1942 [p. 29] teatro amazonas, manaus, am, c. 1942

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porto de manaus (ent達o conhecido como manaus harbour), am, c. 1944

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vista parcial da “cidade flutuante� no rio negro, manaus, am, c. 1944

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casas flutuantes no rio negro, manaus, am, c. 1944

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casas flutuantes no rio negro, manaus, am, c. 1944 [p. 37] casas flutuantes no rio negro, manaus, am, c. 1944

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mercado ribeirinho, manaus, am, c. 1944

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ab贸boras em mercado ribeirinho, manaus, am, c. 1944 [p. 41] mercado ribeirinho, manaus, am, c. 1944

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embarcações no rio negro, imediações de manaus, am, c. 1944

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na margem do rio negro, imediaçþes de manaus, am, c. 1944


toras de madeira no lago janauacรก, am, c. 1944

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toras de madeira no lago janauacรก, am, c. 1944

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palafitas nas imediaçþes de manaus, am, c. 1944

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palafitas nas imediaçþes de manaus, am, c. 1944


[pp. 63-77] igap贸s, am, c. 1955

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colheita de cana, abaetetuba, pa, s.d.

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serra pelada, regiĂŁo de carajĂĄs, pa, c. 1978

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garimpeiro, foz do rio tauari, pa, c. 1950 [p. 83] locomotiva, ferrovia tocantins, regiĂŁo do baixo tocantins, pa, dĂŠcada de 1940

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assurini, regi達o do baixo tocantins, pa, c. 1950

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grupo de assurini, regi達o do baixo tocantins, pa, c. 1950

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[pp. 88-89] grupo de assurini em embarcação, região do baixo tocantins, pa, c. 1950 [pp. 90-91] caçador de jacarés, ilha mexiana, pa, c. 1943

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rancho de trabalhadores, ilha de marajĂł, pa, c. 1967

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rancho de trabalhadores, ilha de marajĂł, pa, c. 1967

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pescadores, ilha mexiana, pa, c. 1943

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[pp. 103-105] mulher defumando l谩tex, ilha de maraj贸, pa, c. 1967

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barqueiro, ilha mexiana, pa, c. 1943

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porto, belĂŠm, pa, s.d.

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porto próximo ao mercado do ver-o-peso, durante o círio de nazaré, belém, pa, c. 1954

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mastros no porto próximo ao mercado ver-o-peso, durante o círio de nazaré, belém, pa, c. 1954 [p. 115] embarcações no porto em frente ao mercado ver-o-peso, belém, pa, c. 1954

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embarcações no porto próximo ao mercado do ver-o-peso, belém, pa, c. 1954

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embarcações no porto próximo ao mercado do ver-o-peso, belém, pa, c. 1954 [p. 119] homem descarregando juta no porto de belém, pa, c. 1954

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porto pr贸ximo ao mercado do ver-o-peso, bel茅m, pa, c. 1954

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[pp. 122-125] embarcações no porto próximo ao mercado do ver-o-peso, belém, pa, c. 1954

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embarcações no porto próximo ao mercado do ver-o-peso, belém, pa, c. 1954


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bar pr贸ximo ao mercado ver-o-peso, bel茅m, pa, c. 1954 [p. 129] homem corta gelo no porto pr贸ximo ao mercado do ver-o-peso, bel茅m, pa, c. 1954

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procissão do círio de nazaré; ao fundo, à esquerda, a catedral da sé, belém, pa, c. 1954

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corda do círio de nazaré, belém, pa, c. 1954

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alumiação, amazônia, c. 1940

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foz do rio tauari, parรก, c. 1950


amazônica. A pergunta essencial é: como transmitir a monumentalidade de uma floresta, tão densa que ela própria encobre a visão do observador? Para responder, os autores analisam como alguns viajantes europeus anteriores a Gautherot tentaram resolver esse paradoxo, e discorrem sobre a solução pessoal encontrada pelo grande fotógrafo que, se de nascimento é francês, por adoção é decididamente brasileiro.

nasceu em Paris, em 1910. Após trabalhar como projetista de móveis e arquiteto de interiores, ligou-se à equipe de fotografia etnográfica do Museu do Homem. Em 1939, veio para o Brasil pela primeira vez. Em 1940, após um curto período na África, por força das circunstâncias políticas europeias, voltou ao Brasil e radicou-se no Rio de Janeiro. Celebrizou-se pela documentação do patrimônio histórico brasileiro e, também, pelo registro de nossa cultura popular. Morreu em 1996. marcel gautherot

nasceu em Manaus, em 1952. Estudou arquitetura em São Paulo e ensinou literatura brasileira nas universidades do Amazonas e da Califórnia, em Berkeley. Estreou na ficção com Relato de um certo Oriente, seguido dos romances Dois irmãos e Cinzas do Norte, além da novela Órfãos do Eldorado e do livro de contos A cidade ilhada. milton hatoum

samuel titan jr .

nasceu em Belém, em 1970. É tradutor e professor de literatura comparada na Universidade de São Paulo. Em 2004, assinou com Milton Hatoum uma nova versão dos Três contos de Gustave Flaubert. Desde 2008, é membro do comitê editorial da revista serrote e coordenador cultural do Instituto Moreira Salles.


De sua formação em arquitetura, Marcel Gautherot derivou um sentido refinado da composição, do equilíbrio de linhas e volumes, em imagens elas mesmas rigorosamente tabuladas. No entanto, diante da floresta amazônica, ele se viu obrigado a negociar e, mais que isso, foi se deixando contaminar pela indistinção e pela instabilidade tropical. Em vez de tomar ou simular distância, o fotógrafo foi no sentido contrário e flertou, à sua maneira discreta, com o caos.

9 788586 707476


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