Na Estrada – o cinema de Walter Salles

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na estrada

o cinema de walter salles Marcos Strecker



na estrada

o cinema de walter salles Marcos Strecker


© 2010 Publifolha – Divisão de Publicações da Empresa Folha da Manhã S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a permissão expressa e por escrito da Publifolha – Divisão de Publicações da Empresa Folha da Manhã S.A. editor Arthur Nestrovski editores-assistentes Adriane Piscitelli e Thiago Blumenthal coordenadora de produção gráfica Soraia Pauli Scarpa produtora gráfica Mariana Metidieri projeto gráfico e capa Mayumi Okuyama revisão Maria Sylvia Corrêa e Ana Maria Barbosa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Strecker, Marcos Na estrada : o cinema de Walter Salles / Marcos Strecker. – São Paulo : Publifolha, 2010. Bibliografia isbn 978-85-7914-145-4 1. Cineastas - Brasil - Biografia 2. Filmografia 3. Salles, Walter i. Título. 09-11967 cdd-791.0981 Índice para catálogo sistemático: 1. Brasil : Cineastas : Biografia e obra 791.0981

A grafia deste livro segue as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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Sumário

Apresentação  8

1. Mudando o Olhar Sobre o Brasil  16 2. Filmografia Comentada  28 3. Uma Construção Coletiva  136 4. Caderno de Notas de Uma Biografia  184 5. Walter Salles, Wim Wenders e Road Movies  232 uma conversa e uma aula 6.  Os Navios Ancorados no Espaço  256 seleção de textos de walter salles filmografia  323 fichas técnicas  324 prêmios  326 bibliografia  331 créditos das imagens  333 agradecimentos  334 sobre o autor  335



Ao meu pai.


mudando o olhar sobre o brasil

Apresentação


Q

uando estreou, em 1998, o filme Central do Brasil tornou-se um

marco. Deu conteúdo a um cinema em fase de renascimento. Respondeu a uma nação desencantada com o futuro, imersa em crises sucessivas. Walter Salles enriqueceu o cinema nacional com influências ousadas e modernas — sobretudo de Wim Wenders e de Michelangelo Antonioni — e em comunhão com os mestres do passado — em especial Nelson Pereira dos Santos e Mário Peixoto. Fez a ligação entre o Cinema Novo (anos 60) e a geração da Retomada (anos 90), atualizando a representação do Brasil. Teve também um papel até hoje pouco divulgado de fomento a cineastas e exibidores. Conciliador, herdeiro do talento diplomático do pai, desde os anos 80 patrocinou discretamente o resgate da memória do cinema nacional. Deu projeção internacional ao cinema brasileiro contemporâneo. Como cineasta, produtor e líder natural, também modernizou e deu conteúdo ético ao debate cultural no país. Somados, os oito filmes que realizou — três em parceria com Daniela Thomas — levaram 26 milhões de espectadores


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ao cinema. Mais de 80% desse montante no exterior, mesmo que a temática dos longas fosse essencialmente brasileira — caso de Central do Brasil, que foi visto por 4 milhões de estrangeiros. É um dos cineastas mais bem-sucedidos da história do cinema nacional. Acompanho a carreira de Walter desde o início e compartilho com ele diversas influências. Fiz várias entrevistas com o diretor, desde a época em que ele preparava seu primeiro longa, A Grande Arte (1989). Todo esse material foi aproveitado neste livro, que reúne também vários depoimentos. Contei com a colaboração generosa e desprendida do cineasta. Esta obra, no entanto, foi escrita de forma independente. As opiniões e críticas não expressam necessariamente sua visão, ainda que eu tenha procurado também reproduzir fielmente suas declarações e manifestações. No começo, minha intenção era investigar este que é o principal diretor brasileiro contemporâneo — além de ser o mais prestigiado internacionalmente, desde que a geração do Cinema Novo criou e projetou uma certa imagem do Brasil nos anos 60. Ao analisar a produção de Walter e tecer a trama da sua história com os fios esparsos e sempre cuidadosamente reservados que compunham suas motivações pessoais — e também do papel de líder e formador que desde cedo exerceu —, me


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dei conta de que preparava um ensaio sobre o cinema humanista, da ética e da delicadeza. Sua obra ainda está em construção. Há títulos importantes em gestação, que devem exigir reinterpretações da sua filmografia. Por isso, resisto a ideias fechadas, totalizantes e definitivas. Investigo em especial como as motivações do cineasta se traduzem em sua arte e como ela dialoga com um momento particular e rico da história do país. Este livro, portanto, não se destina apenas a retratar uma história pessoal. É uma biofilmografia crítica, ou cinebiografia, que procura seguir a tradição do crítico francês André Bazin, patrono da cinefilia. Uma breve explicação sobre o percurso que o leitor vai percorrer: primeiro, em “Mudando o Olhar Sobre o Brasil”, analiso a importância de sua obra no contexto brasileiro. Depois, apresento seu projeto mais ambicioso até o momento, ainda em produção — On The Road —, e discorro sobre cada um de seus oito longas-metragens. Cada filme carrega a herança de suas ambições. Finalizados, eles adquirem vida própria. Procuro inserir cada longa no seu entorno criativo, investigar suas origens, discutir suas conquistas, apresentar suas dificuldades e, eventualmente, examinar os impasses que representaram para o diretor. Cada filme, a seu


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modo, representou uma conquista e tem um significado próprio. Seja pessoal, seja coletivo — para a história do cinema brasileiro. Não divido a filmografia do diretor em sucessos ou fracassos, mas não me furto a dis­cutir as dificuldades de algumas obras — como o próprio Walter faz, abertamente. Em “Uma Construção Coletiva”, examino a relação de Walter com alguns nomes que foram essenciais para a constituição da sua obra — como Mário Peixoto, Nelson Pereira dos Santos e Tomás Gutiérrez Alea — e outros que são parceiros ou se projetaram com seu trabalho — como Daniela Thomas e Sérgio Machado. Abordo seus documentários — sobre Frans Krajcberg e Socorro Nobre — e discorro sobre a série de textos em que compartilhou suas motivações com os leitores da Folha de S.Paulo, enquanto colunista da “Ilustrada”. Ainda nesse mesmo capítulo, na seção “Rede de Influências”, discuto três nomes essenciais, de gerações diferentes, que se ligam à obra de Walter: Michelangelo Antonioni, Wim Wenders e Jia Zhang-ke. Termino esse capítulo apresentando os “filmes de cabeceira” do diretor, segundo ele mesmo. “Caderno de Notas de Uma Biografia” apresenta desde sua formação de cinéfilo, em Paris, até a importância do pai — Walther Moreira Salles —, passando por aspectos pouco conhecidos de seu universo pessoal, como a paixão pela pilotagem.


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Na segunda parte desse capítulo, investigo sua participação na renovação da linguagem televisiva nos anos 80, durante a redemocratização, seus documentários musicais e, finalmente, os reveladores projetos desejados que nunca se concretizaram — como a história de Butch Cassidy e Sundance Kid na América do Sul.



Se me apaixonei por cinema, foi pelo que senti ao ver certos filmes na tela grande, mas também pelo fato de que não senti aquela emoção sozinho. Ou seja, também me encantei pelo aspecto coletivo do cinema. Poder dividir toda uma gama de sensações suscitadas por um bom filme com outros espectadores é um privilégio que só o cinema pode oferecer. Por isso, sempre achei que um filme deve dialogar com uma plateia, embora eu nunca tenha conscientemente me perguntado no meio de uma filmagem se aquele filme ia “dar público” ou não. Na filmagem de Central do Brasil, Fernanda se virava para mim e perguntava “meu filho, será que alguém vai vir ver esse nosso filme?” Não tínhamos a resposta. Detesto me sentir manipulado no cinema por filmes que tentam agradar a qualquer preço. Mais: defendo a unhas e dentes aqueles filmes que dialogam com poucos espectadores, mas fazem avançar a linguagem, experimentam com a forma e o conteúdo. Nesse momento, é palpável o desprezo de certas áreas no Brasil por filmes mais experimentais, enquanto se aplaude qualquer filme que dê bilheteria, independentemente de suas qualidades artísticas. É uma cobrança que soa anacrônica num momento em que a ideia do mercado como único parâmetro avaliativo é questionada até pelo mais ferrenho economista da escola de Chicago… No futuro, gostaria de alternar filmes mais “abertos” tematicamente, como Central do Brasil e Diários de Motocicleta, com filmes que venham a dialogar com um número muito menor de espectadores. Walter Salles


1. Mudando o Olhar Sobre o Brasil

Estudo fotográfico em Juazeiro do Norte (ce), trabalho preparatório para a realização de Central do Brasil


W

alter Salles expressa o Brasil desejado, mas distante. Sua trajetória

procura resgatar o país que fracassou antes de se realizar — a sociedade da conciliação, da cordialidade e do afeto perdido. Essa é sua contribuição. O cinema da delicadeza perdida. Essa expressão poderia definir a obra de Walter. Traduz uma imagem nacional de otimismo que teve seu auge nos anos 50 e 60 e se esfacelou. A ideia desse Brasil se confunde com a do Rio de Janeiro da Bossa Nova, de elegância e sofisticação. Naquele momento, a cidade representava o Brasil utópico — aquilo que a nação aspirava ser. A promessa desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitschek — com a efervescência romântica e idealista do debate cultural, político e acadêmico — se interrompeu nos anos 60 e foi retomada sob novas perspectivas, mais realistas, nos anos 80. No meio-tempo, essa idealização no imaginário nacional foi substituída pela decadência da cidade, após a mudança da capital para Brasília, nos anos 60. Depois, pela crise econômica após o esgotamento do surto desenvolvimentista dos anos 70 — e pela situação de guerra social não declarada que se seguiu.

Walter participou da renovação do ambiente cultural no Brasil que se redemocratizava em três frentes. Em primeiro lugar,


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na televisão, como pioneiro nas produtoras de vídeo independentes que surgiram nos anos 80. Na sua linha de frente estava uma nova geração, lutando pelos espaços que a redemocratização abriu — fora do âmbito da Embrafilme, não tributária do Cinema Novo. Hoje, a Videofilmes, de Walter e João Moreira Salles, é um bom exemplo do amadurecimento dessa produção independente nacional, que formou a imagem do país que se reconstruía. Em segundo lugar, contribuiu com a série de musicais dirigidos nos anos 80 e 90, que proporcionaram uma releitura moderna da música popular brasileira. A música sempre foi expressão artística exemplar do Brasil — inclusive no final do século 20. Nossa música popular dialogou de forma tensa e conflituosa com os excessos ideológicos da “hegemonia cultural da esquerda” nos anos 60 (conforme definição de Roberto Schwarz). Renovou--se nos anos de chumbo da década de 70 e refletiu a perplexidade diante das limitações reencontradas pela elite cultural a partir dos anos 80. Foi um momento de esgotamento, quando a abertura e a redemocratização trouxeram euforia, mas sobretudo decepção. O exemplo que melhor expressa esse papel renovador em sua obra é a música “Vapor Barato”, de Jards Macalé e Waly Salomão, cantada por Gal Costa em Terra Estrangeira. Trata-se de uma chave poética com a qual Walter se apropriou da fortuna estética da música popular. A partir dela, simbolicamente, os exilados


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políticos dos anos 70 tornam-se os expatriados econômicos e sociais dos anos 90. Em terceiro lugar, Walter contribuiu decisivamente para a área ao liderar a reconstrução do cinema brasileiro, nos anos 90. Desde os anos 70, o regime militar tinha uma ideia clara da importância do cinema como criador de uma identidade nacional. Por isso constituiu, de cima para baixo, a Embrafilme, significativo projeto estratégico governamental. Nos anos 80, o cinema encontrava-se pauperizado tecni­camente, esfacelado comercialmente. Sofria com brigas estéreis. Daí veio o choque do governo Collor (1990-92), que paralisou toda a produção. Para o renascimento, era importante que desse uma resposta moderna e não ideológica à degeneração social urbana nos anos 90 — que traduzisse um novo realismo. Walter participou desse processo, que se deu de maneira pulverizada, não centralizada, de baixo para cima. Central do Brasil foi o grande marco desse renascimento. Emprego o termo “Retomada” como um conjunto de filmes realizados a partir dos anos 90, que se seguiu a uma grande estagnação da indústria cinematográfica nacional, depois do desmonte da Embrafilme. Retomada tem conotação imprecisa. Dá a ideia de um movimento artístico coeso — tudo o que os cineastas queriam evitar após os excessos da discussão política e de produção engajada, que


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derivavam para uma visão afetada ou autoritária. Ainda assim a expressão é bastante útil para definir um movimento que, mesmo tendo produzido obras necessariamente desiguais, marcou um perío­do preciso do país e da sua produção cinematográfica. Walter liderou esse cinema — ainda que a posição proeminente tenha sido involuntária e não reivindicada. Para contextualizar sua importância, é fundamental analisar a produção do cinema nacional nos anos 80. Nessa época, quando se falava de cinema brasileiro, o paradigma ainda era o Cinema Novo. Desenvolvido na década de 60, ele ainda dialogava com os seus inspiradores europeus — a Nouvelle Vague e o Novo Cinema Alemão. Esses movimentos eram assinalados por propostas estéticas que os unificavam. Existia um sentido coletivo. Os filmes eram marcados pela ruptura com o cinema anterior, pela agilidade da câmera na mão (influência da televisão e do documentário) e pela fotografia preto e branco. Seus membros eram gregários, gostavam das declarações e frases de efeito; queriam dirigir o debate público. No Brasil, o mais brilhante deles, Glauber Rocha (1939-81), escrevia de maneira compulsiva e usava os textos e intervenções públicas como exercício de criação. Basta este pequeno trecho de Glauber Rocha para entender a enorme distância entre ele e Walter:


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Sabemos nós que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto, que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos de tecnicolor não escondem, mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.1

Um manifesto em tudo e por tudo diferente do que Walter fez, desde os anos 80. De fato, o cineasta não se declarou herdeiro do Cinema Novo. Mas aproximou-se, desde o início da carreira, de Nelson Pereira dos Santos, mestre precursor dessa corrente. Walter procurou, mais tarde, colocar-se como tributário do movimento. Mas realizou na verdade um percurso de outsider. Sua inspiração criativa deve mais a motivações pessoais e a influências externas ao Cinema Novo — como a diretores estrangeiros e a Mário Peixoto, de Limite (ver adiante, p. 144). Em Walter, por exemplo, não há traços da obra de Josué de Castro (1908-73), geógrafo e sociólogo pernambucano, inspirador de Glauber Rocha, pioneiro na “estetização” da fome, 1 Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Em-

brafilme, 1981; p. 31.


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que influenciaria o geógrafo Milton Santos (1926-2001), entre tantos outros. Também não há em Walter inspiração de Frantz Fanon (1925-61), o pioneiro do pensamento anticolonial que, em harmonia com nomes como o do filósofo Jean-Paul Sartre, defendia o papel político dos intelectuais, especialmente nos movimentos de libertação do Terceiro Mundo. Fanon foi um dos inspiradores da estética “da revolta” representada em A Batalha de Argel (1966), clássico de Gillo Pontecorvo. Sua obra foi referência em uma época em que as lutas de emancipação no pós-guerra levaram à afirmação nacionalista — favoreceram a expressão antiestrangeira. Walter faz um cinema sem filiação ideológica, em oposição ao excesso de experimentalismos, à carga teórica e política que evitava uma renovação do panorama cinematográfico nos anos 80. Está menos preocupado com uma atitude de ruptura, com a postura programática, discursiva, do ato proclamador, em ditar novas regras, e mais com a afirmação de conduta, ainda que a intenção não seja pronunciada claramente. Muitas vezes as expressões “ética” e “urgência” aparecem em suas declarações. Representou uma inovação, eliminando fronteiras, “estrangeirizando” a estética cinematográfica brasileira, recalibrando o discurso modernista nacional. Sua obra é uma reafirmação refinada


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da visão do nosso melhor crítico, Paulo Emílio Salles Gomes (1916-77): “Nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa desse mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em copiar”.2 O cineasta revê o espaço urbano (Terra Estrangeira, O Primeiro Dia, Linha de Passe) e rural (Central do Brasil, Abril Despedaçado) do Brasil contemporâneo pela perspectiva modernista de Sérgio Buarque de Holanda, que inspira a obra de Paulo Emílio. Mas se distancia da leitura nacionalista que se faz da obra de Paulo Emílio, uma defesa radical da produção doméstica. Seria inútil tentar inserir Central do Brasil dentro do debate que polarizou politicamente o cinema brasileiro no ciclo de 25 anos do Cinema Novo: a contraposição entre o estrangeiro e o nacional. Uma das chaves do seu sucesso é exatamente saber traduzir o problema básico do nosso modernismo, que antecede a radicalização ideológica dos anos 60. A obra de Walter contribui para a compreensão da cultura brasileira a partir de bases novas. Ajuda a estabelecer novas interpretações e valores para a identidade nacional. Traduz uma nova consciência social, uma sociedade contemporânea complexa. 2 Paulo Emílio Salles Gomes, Crítica de Cinema no Suplemento Literário. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1982; p. 88.


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