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caderno de quem Montesquieu chamava de “persas”. Descobrir esses costumes heterogêneos de outras civilizações foi um choque na época. É necessário dizer que entre as diferentes práticas corporais estabelecidas nas diferentes civilizações, nem sempre existe uma completa amizade entre elas porque, no fundo, as práticas corporais dos outros são sempre percebidas como bárbaras e, efetivamente, esta questão é muito delicada. Atualmente, a globalização do mercado e do capitalismo está começando a homogeneizar até as práticas do corpo, mas se vê que os sinais de antipatia entre os discursos causam ainda mais raiva. Quando se ouve falar da excisão das mulheres, quando se pensa nos pés atrofiados das chinesas durante séculos (isso acabou agora), quando se pensa no pescoço ou nos lábios de certas mulheres africanas, todas estas práticas corporais que tinham (e que por vezes ainda têm) por meta distinguir os corpos segundo o sexo, homem-mulher, treme-se do nosso lado; então, em nome do discurso hegemônico dos direitos do homem e do indivíduo, evidentemente torcemos o nariz. Mas, enfim, isso faz aparecer o fato de que há uma espécie de competição entre as regulagens corporais segundo os lugares e as épocas. O que Lacan dizia com uma fórmula muito impactante: ele falava do “racismo dos discursos em ação”. Isto não se aplica apenas ao corpo. Tomei alguns exemplos um pouco extremados, excisão, pés atrofiados, corpos deformados. Pode-se tomar um exemplo muito mais contemporâneo, muito menos dramático, ou seja, divertido. Reparem como depois do discurso do mestre se fala das histéricas. Eis aí dois discursos que se avizinham gentilmente em nosso mundo. Pois bem, fala-se da histérica, antes de tudo como uma mulher - em geral a coisa vem se sobrepor ao problema da não-relação - e depois, como de alguém que “dá show”, que não é confiável, uma chata (emmerdeuse, como se diz em francês). Clínica do racismo do discurso! Recíproco, no final das contas. Para resumir, cada discurso, como laço social ordenado, regula duas coisas: uma limitação de gozo e um gozo compensatório desta limitação que constitui aquilo que chamo de uma oferta do discurso, oferta de gozo presente em cada discurso. Aqui, um pequeno parêntesis. Vê-se bem a oferta do discurso que se diz capitalista. Ela consiste em tentar fazer entrar todos os gozos nesta máquina maluca da produção-consumo. Diz-se sempre, e com razão, que para a psicanálise não há inconsciente coletivo; é verdade, mas há modos coletivizados de gozo. E são esses modos coletivizados que se transpõem em todas as produções da cultura. Isso começa com as músicas que se canta numa cultura e chega até as produções mais elevadas da arte, aquilo a que chamamos de sublimações de gozo, que são modos coletivizados de gozo e que fundam o sentimento de pertencimento a uma nação, a um lugar, a um povo - há muitos nomes para designar aquilo a que se pertence. É uma questão bem inflamada hoje em dia na Europa. Isso funda o sentimento de pertencimento, mas também o sentimento de exílio quando se deixa sua cultura e seu país e que de alguma forma mergulha-se em outro banho, com outra regulagem.

nº 01 - maio 2010

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