Olhos Baixos

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estava quente e tinha vindo balançando pelo caminho, então espirrou para todos os lados e molhou os pés dele. O homem pulou para o lado, surpreso, e resmungou alguma coisa. Eu levantei as sobrancelhas e o olhei bem dentro dos olhos para me comunicar com a pessoa que ele era, independente do tempo e do lugar, a pessoa que sempre foi e sempre seria; depois virei as costas tranqüilamente e comecei a tomar meu guaraná. Continuei de costas para ele por uns bons quinze minutos, até que um ônibus finalmente parou e ele subiu, depois de me lançar um olhar de ódio. De novo: normalmente eu teria medo, até armado o sujeito podia estar, mas como é que vou explicar? O medo é uma promessa que raramente se cumpre, se você for pensar bem. 6. Cassius voltou a me procurar na sapataria. Sei o que ele queria: ter um caso regular. Depois de ter visto a família dele, era óbvio que seria esta a salvação, não por que ele precisasse amar ou ser amado, mas porque comendo alguém à tarde, uma vez por semana ou a cada quinze dias, ele se sentiria menos humilhado e suportaria melhor a mulher e a filha. Nada disso ele me disse, talvez nem mesmo pensasse ainda, mas eu já sabia, e aceitei para ajudá-lo. Mantive os encontros por uns dois meses. Ele foi mudando de semana para semana, ficando visivelmente menos infeliz e mais confiante. Íamos sempre a uma pizzaria na Praça Saens Peña – eu não comia, claro, já tinha comido minha batata. Ele falava muito sobre a concorrente, Toldos Machado, que oferecia pagamento dividido em vinte e quatro parcelas, mas que não trabalhava com um material da mesma qualidade da Bom Tempo, que podia parcelar em no máximo seis. Eu não podia imaginar como o mundo é duro, ele dizia, e como se joga baixo neste ramo dos toldos. E que vantagem tem em passar dois anos pagando por uma coisa? Dá tempo daquela coisa sujar, quebrar e ainda se está pagando. Eu assentia, bebia água, fazia perguntas sobre limpeza e conservação, para não deixar a conversa morrer. Cassius me olhava feliz e desconcertado, nunca tinha encontrado uma mulher tão interessada em seu trabalho. Neste meio-tempo eu perdi o meu. O tio de Marcele me dispensou sem maiores explicações, mas Bruna me disse que era porque eu demorava demais no almoço e tinha me metido com um freguês. Como ele ficou sabendo disso eu não sei. Talvez a mulher de Cassius tivesse mesmo voltado, afinal. Eu já tinha me acostumado a achar seiscentos reais muito, iriam me fazer falta. Não contei a Cassius da demissão, não queria que ele se sentisse culpado. Mas precisava resolver o que faria dali para frente. Tentava pensar nisso num final de tarde, enquanto ele cochilava. Chovia fino pela fresta da janela, mas não fazia frio. Uma bala tinha entrado e se alojado perto do teto do quarto, alguns dias antes. Não a vi entrar, simplesmente cheguei em casa voltando da Batata Inglesa


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