Time Lapse
Maria Helena Nascimento
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Time Lapse
1. Ele foi a única pessoa na minha vida que disse que não gostava do meu cheiro. Ali estava o aviso o tempo todo e eu não vi. Isso é biologia, contra isso não há nada. Pior, eu elogiei o relógio, para desconversar, e ele disse: “Toda mulher que elogiou esse relógio me fez sofrer muito.” Como é que eu pude ter levado aquilo adiante. Você acha que pode tudo, que pode observar tudo, mas não é assim. A pessoa sempre se queima. 2. Eu dançava com ele numa sala, quase sem me mexer, como se estivéssemos deitados um no outro. “Nossa, eu me sinto como se tivesse levado um tapa na cara quando te vejo. Todas as vezes é assim. Meu rosto arde.” Ele me puxou mais e disse que me conhecia melhor que eu, que gostava de mim muito mais que eu, e que eu era um território onde só ele podia passear. Deixa eu te falar sobre o poder do sexo. É uma descoberta importante na vida de uma mulher. Aquilo desloca o eixo da terra, você fica maravilhada por merecer aquela fonte de força sem ter feito nada, você carrega uma jóia no umbigo. O único senão é que
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depois você descobre que aquilo não era pessoal. Era da juventude, era de todas. Mas é bonito, mesmo assim, e necessário. Mas por que mesmo um pau e uma buceta podem derrubar governos, mercados? Esqueci. 3. Eu estava sentada em cima de uma pia que caiu. Ele me segurou pela cintura, eu me segurei nos músculos da perna, rimos muito e ficamos apavorados com o prejuízo. Depois, no almoço, recebo um formulário de casamento já preenchido e faltando minha assinatura. Segurando aquilo, tentando entender a confusão minha ou dele, tentando entender de quem era a confusão e, de repente, um vento curvo e quente, capaz de enfunar uma vela, arranca o papel das minhas mãos e vai jogá-lo na água negra e oleosa entre as cordas dos barcos 4. “A opala não traz sorte, madame. Não recomendo um anel de opala” Que tristeza então gostar tanto das opalas. Sendo assim, quem não consegue controlar o fato achar a opala a mais bonita terá um desvio incorrigível para a falta de sorte? Conseguirá disfarçar, mentir e tentar gostar de outra pedra? Outra que não seja como leite, que não tenha aquele brilho submerso? “Não, desculpe, mas a opala não traz mesmo sorte, madame.” Mas eu vou ficar com esse anel. 5. Mas quando não se ama mais é belo: Quando não se ama mais cai o mais belo silêncio sobre as coisas.
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E a única ordem que se ouve parte desse silêncio: descanse, não faça mais nada, não diga mais nada. Uma experiência de vida à altura da experiência da morte, crua, pura, celular, vida de tecidos. Preste atenção quando isso acontecer; poucas vezes você vai ter essa chance de ver o mundo tão inteiro. Isso é a paz que todo mundo diz que quer. 6. Isso que eu disse agora foi errado, extremamente errado. Por volta dos 30 anos era só mais uma frase de efeito acompanhada de um suspiro: sonho com o dia de me libertar da tirania do sexo. Fechando essa porta – que contém a densidade do mundo e ofusca a luz mais forte do mundo, nada menos - uma penumbra se instala, você acostuma os olhos e começa a enxergar os detalhes em volta. São tantos detalhes! E a liberdade de ter a libido nas mãos, indecisa como um coelhinho que não sabe para que canto do jardim correr. Não sei se ainda existe o jogo dos coelhinhos: eles ficavam no meio de um círculo de casinhas numeradas e você apostava no número para onde eles correriam, como uma roleta. O ser humano é capaz de apostar em qualquer coisa, é seu jeito de fazer as pazes com o destino. 7. Quero me penitenciar aqui por tantas vezes ter jogado baixo e usado o golpe do “estou triste com você porque você está triste comigo”. Perdão. Quanta inabilidade. 8. Minhas gengivas sangram quando eu como carne agora. 5
“Talvez a senhora precise pegar mais sol, há vitaminas que a gente só fabrica com o sol.” 9. Mas as pessoas são capazes de um amor, de um sentimento. Qualquer pessoa, você olha para elas andando na rua e não enxerga, mas elas são. Não é preciso ter uma estrela na testa, uma aparência especial. Você vê uma senhora gordinha, um homem feio de bigode falhado, que é capaz de dançar com uma filha doente como se ela fosse uma princesa, que é capaz de se deitar ao lado do cachorro que está morrendo. Por outro lado existe isso. 10. Quanto mais velha você fica, mais entende a continuidade do tempo. Você consegue entender a linha infinita sem nenhum tipo de interrupção, por exemplo: a primeira guerra está para a data do meu nascimento assim como o nascimento do meu primeiro neto está para hoje. São os mesmos vinte anos, foi outro dia. Eu ainda me lembro das roupas que tinha há vinte anos, dos pratos, das xícaras, das contas que eu pagava, tudo. Insisto, foi outro dia. Você entende o ininterrupto e nunca mais será capaz de reverter isso. Vinte eus atrás estávamos no final da Antiguidade, em 414, bem perto da queda do Império Romano, apenas vinte eus atrás. E assim por diante, sem limite. 11. Meus olhos se abriram, soltos, perdidos como se boiassem numa onda. “Mamãe?” Lembrei. “A senhora pode me dizer que dia é hoje?” 6
Senti um leve cheiro de vômito disfarçado com álcool. Minha imagem de felicidade tem a ver com janelas. Há uma respiração que entra pelas janelas, um hálito luminoso que mexe a cortina como uma pétala, com a indiferença doce das coisas verdadeiras. E a luz que começa e terminará com tudo, então não importa mesmo que dia é hoje. 12. Uma coisa é certa: você chega na vida exatamente onde disse que não queria ir e se transforma em quem disse que jamais seria. 13. Um dia ele me segurou pelos ombros e me sentou na cama. Você acredita que eu esperava por esse dia há trinta anos? Talvez eu tenha esperado por esse dia desde que me casei. Ele me sentou na cama e franziu a testa, cuidadoso, consternado. Eu posso jurar para você que não ouvi uma só palavra do que ele disse, porque já tinha as palavras daquela cena na minha cabeça: tinha chegado a hora de me deixar. De rebocar o velho navio para o estaleiro. Nosso casamento tinha tantos acertos, tantas glórias – ele pode mesmo ter usado a palavra glória? – não havia motivo para vergonha, eu seria uma espécie de sacerdotisa retirada e glorificada. (A glória de novo) Sou tirada de uma floresta de impressões confusas e fervilhantes para uma imensidão silenciosa de terra queimada pelo sol. 14. Quem está cozinhando afinal? Eu não sei o que é isso que eu estou comendo. “Frango a Kiev” Isso nunca será um Frango a Kiev. “A senhora cozinhava?” 7
É claro que não. Já tentei, mas sinceramente acho errado estar dos dois lados do processo. O bom de comer é receber a comida. Se você mesmo prepara fica meio sem sentido comer, eu acho. “Janta” e “brilhoso”. É difícil pra mim aceitar com tranqüilidade uma pessoa que diz janta e brilhoso. Vejo imediatamente que essa pessoa não terá um papel crucial na minha vida. Agora sou ao mesmo tempo muito pessimista e muito otimista. Doses iguais, igualmente fortes. 15. E finalmente me deixa te falar sobre a mulher velha: Lembra da Doutora Zira, do planeta dos macacos? Eu sou a Doutora Zira, magra, escura, escondida sob um peitoral de couro entalhado e uma capa. Couro humano? Talvez couro humano. Levemente curvada e com um andar engraçado. Um bicho com uma ciência. Eu ando por um planeta desconhecido. Não é preciso viajar pelo espaço, basta viajar pelo tempo, ficar velho, e o planeta será automaticamente desconhecido. Eu andei sobre a Terra.
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