Angústia - Drama em oito atos

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AngĂşstia Drama em oito Atos

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Angústia Drama em Oito Atos

Odeão de Herodes Ático, antigo teatro localizado ao sul da Acrópole de Atena, Grécia.

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© 2019, Sagitarius Editora

Impresso no Brasil/Printed in Brazil Impresso por Clube de Autores. Título: Angústia: Drama em oito atos E-mail: mstanojev@hotmail.com Depósito Legal: ISBN: 978-85-923404-3-8: Capa: Cerâmica grega retratando Édipo em frente à Esfinge, na tragédia “Édipo Rei”. CDU: 82-2

CDD: B869.92

1ª Edição – São Paulo - Outubro, 2019 5


Marco A. Stanojev Pereira

AngĂşstia Drama em oito Atos

SĂŁo Paulo Sagitarius Editora 2019 6


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Aos deuses do teatro, finalmente cumprida a promessa feita em Athenas.

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Sinopse

Qual o motivo de nosso sofrimento? Está a humanidade fadada inexoravelmente à angústia? Na presente obra, Teófilo desfia este pensamento, como Teseu desfiou o novelo de lã para salvar sua vida, e sair do labirinto que guardava o monstro que podia destruí-lo.

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Ato I

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Personagem Teófilo Ato I No Centro do palco, limpo de peças de cenários, ambiente escuro com uma luz negra sobre Teófilo. Cena I Teófilo em pé no centro do palco, vestido de branco, com expressão e voz angustiada, cogita consigo, olhando ora para os céus, ora para pontos do horizonte. Teófilo - Durmo, mas não sonho, - Respiro, mas não vivo - Ando, mas não chego, 14


- Vejo, mas não enchergo, - Aspiro, mas não sinto, - Tateio, mas não percebo, - Estudo, mas não entendo, - Retiro-me, mas não medito, - Apaixono-me, mas não amo, - Escuto, mas não ouço, - Qual o sentido da vida? Fim do Ato I.

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Ato II

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Personagem Teófilo. Ato II No centro do palco, Teófilo em pé, vestido de roupas casuais, ambiente escuro com uma luz tênue sobre Teófilo. Cena I Teófilo parado no meio de pessoas indo e vindo, chocando-se, desviando-se, em movimentos alucinantes de multidão indo ao seu sentido, começa o monólogo solitário dentro da multidão. Teófilo - Esta angústia de viver dia a dia como vencedor de um mundo de hipocrisia me 18


sufoca. Me sufoca como o ar pestilento da atmosfera da cidade. Atmosfera densa e asfixiante, que os desvairados e incautos despejam pela boca e pensamentos. Palavras e ideias que cultivam e florescem nos campos de suas vidas medíocres. Vidas que optam em viver, sem sonhar nem criar. Parentes…, amigos…, desconhecidos que somente dividem o espaço no mundo com a coletividade, e renunciaram sua individualidade para fazer parte de um curral. Pessoas que se satisfazem por orbitar como parasitas, em simbiose destrutiva ao redor de outros desvairados e incautos que idolatram. - Já eu, eis-me aqui. Tenho certeza que estou aqui. Se as velhas arcadas da universidade me ensinaram algo é que: “Penso, logo existo”! - Tenho certeza que nasci, não da hora que nasci. No ventre de minha mãe uma 19


eternidade se passou, e eu fui gerado solitário, mesmo com uma multidão ao meu redor. - Tenho certeza da morte, mas não de sua hora! Estarei rodeado por pessoas ou sozinho, mas não absolutamente sozinho, pois estarei cercado dos vermes que, de tocaia, aguardam dentro de mim a derrocada da vida, a falência da máquina corporal. Então só, embarcarei com Caronte carregando apenas a consciência, este juiz implacável. - Como é delicada a vida. Delicada como a teia que a aranha tece durante a noite. Resiste às intempéries da natureza, mas não as do ser humano, que com um dedo destroi a criação. - Só nascemos, só morremos. Somos solitários na multidão. É justo trazer um ser ao mundo? Estamos fadados à angústia e ao sofrimento? 20


Teรณfilo no centro do palco, com as palmas no rosto e cabeรงa baixa. Fim do Ato II.

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Ato III

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Personagens Teófilo Alecta Sólon Aspásia Ícaro, um jovem. Ato III Hora vespertina, um banco de praça no centro do palco.

Cena I Teófilo sentado na ponta direita permanece por 30 segundos em meditação, com as pernas abertas, as mãos entrelaçadas em seu meio e as costas levemente arqueadas para baixo. 24


Cena II Entra Alecta, com semblante angustiado e carregada de sacolas. Senta ao lado de Teófilo.

Alecta - Onde vamos parar neste mundo? Estou com meu limite estourado no banco e nos cartões de crédito. Este governo que é culpado! Não faz nada com os juros! Estou ainda no meio do mês e já não tenho dinheiro pra nada. Téofilo - É um caso sério! Diz Teófilo sem emoção alguma na voz, mergulhado em seus próprios pensamentos. - Talvez se a senhora controlasse seus gastos não ficaria tão aflita com as contas. 25


Alecta Sem ter tomado conhecimento do que Teófilo disse, ela continua a se lastimar. - Ah meu Deus! Porque não nasci em uma família rica! Comprar um sapato e uma bolsa é decreto de falência? Mas não quero nem saber, compro mesmo! E virando-se para Teófilo, pergunta procurando respaldo: - Certo? Teófilo - Sabe, tenho para mim que se sofremos, e hoje eu entendo bem isso, os motivos que nos fazem sofrer podem ser resumidos em duas possibilidades: aqueles que não dependem de nossa vontade e, aqueles em que somos diretamente responsáveis. E pelo que tenho visto nestes tempos, esta última é a responsável pela maior parte de nossas aflições. Isso porque, acredito, nossas 26


angústias nada mais são do que reflexo de nosso próprio caráter e do nosso modo de proceder e pensar. Alecta - Mas você está errado em resumir a coisa assim. Isso é ser muito simplista, e a vida é complexa. Teófilo - Pois vamos pensar na simplicidade, ao invés de na complexidade. Quantas pessoas a senhora conhece que se estrepam pela sua própria imprevidência? De seu orgulho e de sua ambição? Alecta - Nossa, várias pessoas. Tenho um amigo que é jogador inveterado, e já perdeu fortunas. Seu vício já lhe custou a família e amigos sinceros. 27


Teófilo - Pois bem, quantas uniões a senhora conhece que se desfizeram, e não falamos somente de casamento, mas sociedades diversas, amizades, por exemplo, porque resultaram de uma aproximação de interesse ou egoísmo, onde o bom senso e o respeito não foram chamados para compor a sociedade? E mais, quantas doenças e enfermidades, muitas levando ao túmulo jovens na flôr da idade, não são frutos da intemperança e dos excessos de todo gênero? Alecta? - É verdade. Minha avó casou-se por arranjo e sofreu a vida inteira, tadinha. Minha mãe dizia que meu avô chegava quase todo dia, tarde da noite, madrugada até, vindo da casa das amantes e dos cabarets. Morreu de 28


tuberculose aos trinta anos, e em seguida morreu minha avó, com vinte e cinco anos, também de tuberculose, deixando cinco filhos. Meu bisavô, que arranjou o casamento por causa de interesses comerciais que tinha com a família de meu avô, assumiu a criação de minha mãe e irmãs, e carregou a culpa por toda a vida. Teófilo - Vivemos em um mundo cada vez mais egoísta, e neste mundo, quantos pais sofrem a angústia de verem seus filhos perderem-se na vida, porque não lhes acompanharam na infância o desabrochar de más tendências, como a arrogância, o egoísmo, o desprezo pelas regras mais simples do sim-sim, não-não? Muitas vezes por egoísmo próprio e indiferença, afrouxaram os laços de família e permitiram 29


levianamente que o mundo escrevesse suas regras nos pequenos livros em branco que são as crianças. Regras estas que não são outras além do orgulho infundado, do egoísmo desmedido, da vaidade infrutífera, do desprezo pelo ser humano, que acabam por fazer florescer no coração a secura das emoções. E depois, na velhice, reclamam que seus filhos lhes tratam com indiferença, apontando a ingratidão deles? Alecta - Sim, isso que disse é uma verdade. Minha irmã vive reclamando isso de meu sobrinho. Mas também, pai e mãe sempre foram ausentes. Tinham seus compromissos e deixavam o filho sempre em segundo plano. Você acredita que ela colocava o Natal como 30


compromisso em sua agenda para passar com ele. E mostrava para todo mundo que daquilo não abria mão. Aniversário e outras coisas ele passava com a governanta. Teófilo - E agora, vamos refletir: Quantas pessoas que a senhora conhece intimamente não se arruinam, financeiramente falando, pois não possuem uma ordem, um autocontrole, uma disciplina, ou simplesmente por não terem sabido limitar seus desejos? Teofilo olha com censura, e encolhendo os ombros, aponta com os olhos as várias sacolas de Alecta. Alecta - E você quem pensa que é para me dar conselhos ou me censurar? É você quem 31


paga minhas contas? Como tem gente abusada neste mundo! Diz rispidamente e levanta-se furiosa. Teófilo - Desculpe, não foi minha intenção. Só queria ser útil. Alecta - Pode ser útil sim! Onde fica a Rua Direita? Téofilo - Siga em frente, próxima rua à direita. Teófilo volta para a posição de meditação, quando a mulher lhe vira as costas e sai asperamente. Ele ergue a cabeça e desafoga. - Sem saudações, sem despedidas. Sem atenções, sem medidas. No que está reduzida a humanidade? 32


Volta a posição de meditação inicial, com acentuada expressão de desconsolo.

Cena III Teófilo ainda sentado no banco, entra um homem com olhar furtivo, dirigindose a ele bruscamente.

Sólon - Quer óculos escuros? Teófilo - Não, obrigado! Diz sinalizando com uma das mãos no ar. Sólon - E cocaina? Pergunta após olhar para os lados, mostrando um pacotinho.

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Teófilo - Não, obrigado! Diz abanando a cabeça pausadamente. Acompanha com o olhar pesaroso o indivíduo se retirar devagar, despreocupadamente. Teófilo - Aí vai uma pessoa que padece do câncer que anda a corroer o tecido social de nossa civilização: O egoísmo! E ele nem sabe que sofre deste mal, que age sorrateiro e mina as têmperas do hospedeiro. Mas quem é que sabe que é egoísta, pois sua voz sempre é mais alta e sedutora que a da consciência. Pobre de nós! Cena IV Teófilo vê Sólon se afastar dele e se aproximar de uma mulher. Sólon, de 34


costas para Teófilo o aponta com o polegar. A mulher, fumando, se aproxima e, mantendo-se em pé, se dirige para Teófilo, que desconsolado exprime:

Teófilo - Será que eu não tenho direito a um minuto de paz? Aspásia - Olá coração. Está a fim de um programa? Temos uma Casa de Passes aqui pertinho. Teófilo - Não querida, obrigado. Estou a fim de ficar sozinho. Aspásia - Se você for estudante, dou desconto. Bolsista Capes, CNPq e Fapesp tem 35


desconto maior, pois sabemos que a situação de vocês tá pior que a nossa. Teófilo - Não! Não quero nada. Quero ficar com meus pensamentos um minuto. Aspásia fita profundamente Teófilo com olhar inquiridor e benevolente. Aspásia - Sinto que está angustiado. Se quiser falar tenho meia hora. É horário de meu almoço. Que se passa coração? É uma mulher, não é? O que ela fez com você? Ou deixou de fazer. Teófilo - Puxa, você é boa heim? Como sabe que é uma mulher? Você é médium?

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Aspásia - Que médium nada. Sou da vida. E a vida é uma escola aberta. A experiência de vida que temos coloca muito doutor no chinelo. Tem três profissões que fazem as vezes de psicólogos e psiquiatras para o povão, melhor que os formados: taxista, balconista de bar e, claro, nós. Mas diga lá, o que está te angustiando? Teófilo - Eu prefiro não falar, pois ainda não sei o que pensar. Não estou pronto para falar sobre o assunto com ninguem. Nem com meus pais, nem com meus amigos nem com psicólogos ou psiquiatras. Obrigado moça. Aspásia - Tudo bem coração, isso acontece. Mas olha, se a solução do problema estiver 37


em tuas mãos, se depender de você, chega nela e conversa. Uma conversa honesta, isenta, verdadeira é sempre a melhor forma de colocar os pontos nos ís. Se depender dela, a mesma coisa se aplica. Conversa com ela e pede para ser objetiva. Os dois precisam chegar em um consenso. Não pense somente em si, considere que ela também está sofrendo, e para resolver a situação sempre um tem que ceder. A paz começa sempre com a renúncia de uma das partes, que desarma o orgulho e se aproxima. Teófilo - Você tem razão. Vou pensar no assunto. Obrigado moça.

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Aspásia - Espero ter ajudado. Nossa, já passou minha hora de almoço. Tchau coração, se cuida. Teófilo pede para esperar, tira do bolso um dinheiro, e oferece para Aspásia. Teófilo - Olha moça, isso é pela consulta. Ofendida, Aspásia rejeita. Aspásia - Nem pense nisso. Sentei para conversar, para ajudar. Compre umas flores para ela com este dinheiro e comece a conversa. Flores são ótimas para isso, tanto se a culpa for sua como dela.

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Teófilo - Puxa, você tem mais princípios que muita gente. Obrigado e tchau. A Gente se vê.

Cena V Ainda sentado no banco, acompanha a aproximação de um jovem engraxate, carregando nos ombros sua caixa. Ícaro - Vai graxa? Teófilo - Não obrigado. Ícaro - Posso sentar? Teófilo - A Praça é pública! 40


Ícaro - Não depois das 9 horas. Este banco, por exemplo, pertence ao Marechal. Teófilo - Marechal? que Marechal? Ícaro - O Deodoro, quem mais? Aqui é a casa dele, a Praça da República. Você não sabia? Teófilo - Não sabia o que menino? Ícaro - Que ele proclamou a República, cacete! Teófilo Nossa! Deve ser bem louco este aí?

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Ícaro - Ele não é louco, ele está louco, tiririca da Silva, pelo que estão fazendo com a República dele. Você precisa ver os discursos que faz todas as sextas feiras. Teófilo - Por que sexta feira? Ícaro - Nossa, você não sabe nada de história! Todo mundo sabe que o dia 15 de novembro caiu numa sexta feira, e toda sexta feira ele tenta consertar. Sonhou uma coisa e realizou-se outra, coitado! Teófilo - Você é informado heim! Qual o teu nome?

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Ícaro - Puxa, nunca perguntaram meu nome. É Ícaro! Teófilo - E você Ícaro, sonha com o que? Em voar alto? Ícaro - Não tenho tempo para sonhar não moço, tenho que ajudar em casa, duas irmãozinhas para cuidar. Não vai graxa mesmo? Teófilo - Não, obrigado. Estou de tênis. Ícaro - Esse negócio de tênis está matando o meu negócio e dos parceiros. Hoje em dia até executivo para dar uma de descolado usa tênis. Aí inventaram o 43


sapatênis. Ridículo! Nossa sorte é que ainda existe o pessoal que trabalha em cartórios e os bancários, senão... Teófilo - E os noivos né? Afinal noivo que é noivo ainda entra na igreja com terno e sapato. Ícaro - Se vê que o senhor não está ligado com as paradas. Não sabe que é moda hoje em dia os convidados do noivo engraxarem o sapato dele? Teófilo - Não sabia! Que coisa! Por quê? Tem alguma crendice? Ícaro - Tem! Enquanto as convidadas da noiva se matam para pegar seu bouquet para 44


casarem rápido, os convidados do noivo disputam entre eles a posse dos seus sapatos, pois dizem que quem engraxa o sapato do noivo consegue adiar o próprio casamento. Teófilo - Que ideia! Por que será heim? Ícaro - Deve ser porque de sapato você pode ir para bem longe do altar. Nota que para chegar no altar tem que subir escadas, e para a forca também! Teófilo - Deve ser isso mesmo. Obrigado pela conversa. Me ajudou a desanuviar um pouco minha cabeça.

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Ícaro - É mesmo, o senhor parece angustiado. Que foi? Vai casar e não tem nenhum amigo ou parente que é noivo e vai casar primeiro para engraxar o sapato dele?

Teófilo - Não é isso! São uns problemas difíceis que apareceram. Ícaro - Bem, em questão de problemas o caso é o seguinte: se foi eu que procurou, tenho que resolver. Se não foi eu e puder resolver, resolvo. Se não tiver ao meu alcance resolver, faço o que minha vó falava: “O que não tem remédio, remediado está”, e paciência.

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Teófilo - Uma moça acabou de me dizer quase a mesma coisa. Mas a solução não é tão simples assim. Ícaro É sim, a gente que complica. Ficamos angustiados à toa, e acabamos com nossa saúde criando uma úlcera. Teófilo olha para o garoto, tentando esmiuçar o que ele está a pensar, enquanto este, distraído, arruma as ferramentas de seu ofício no interior da caixa. Ao terminar, se levanta, aperta a mão de Teófilo e vai embora. Teófilo acompanha com o olhar amargurado a pequena figura, a se dissipar na multidão solitária, e mergulha em pensamentos altos:

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Teófilo - Que é este pequeno? Qual a grande história de vida que estes singelos e sofridos olhos já registraram que os meus, com todos os anos que pesam sobre meus ombros nem cogitam divisar? Quantos sonhos diários já foram interrompidos pelo despertar preocupado não do porvir, mas da dura realidade que a nova aurora exigirá de sí para prover seus dependentes? Levanta-se do banco e caminha, pensativo e cabisbaixo para fora da praça. Fim do Ato III.

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Ato IV

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Personagens Ícaro Pai de Ícaro Mãe de Ícaro Duas meninas crianças Ato IV No interior de uma casa simples, uma mulher na espiriteira, rodeada por duas crianças cozinha em uma lata. No canto, um homem sentado em um caixote fumando. Entra Ícaro de cabeça baixa.

Cena I Com voz ameaçadora, o pai de Ícaro se levanta e se dirige ao menino.

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Pai de Ícaro - Moleque desgraçado, isso são horas de chegar. Me faz esperar de propósito, não é? Não sabe que tenho compromisso. Pega outro cigarro, acende-o e senta novamente na caixa. Ícaro - Não pai, atrasei porque estava trabalhando. E agarrei na conversa com uma pessoa que estava triste. Pai de Ícaro - E fala isso com esta cara? Não pensa nos teus pais e se preocupa com vagabundos na rua. Cadê o dinheiro de hoje? E é bom não esconder nada, que eu descubro e te arrebento. Ícaro - Tá tudo aqui, tome. 53


Pai de Ícaro - O que, só isso? Fica vadiando o dia inteiro na rua e só traz isso para casa. Moleque, vou te ensinar o que é respeito. Levanta-se da caixa onde estava sentado, agarra Ícaro pela camisa, rasgando-a, e quando ameaça agredi-lo sua mãe levanta-se do chão e intervêm. Ele solta Ícaro e começa a bater nela. Satisfeito em sua fúria, volta para a caixa, senta-se e conta o dinheiro, enquanto Ícaro e sua mãe abraçados choram sentados no chão. Pai de Ícaro - Devia ter tido uma filha ao invés deste maricas, pelo menos nesta idade rendia mais para nós. E olhou profeticamente para as duas meninas que choravam assustadas 54


devido a gritaria. Aponta para as meninas e diz malicioso: Pai de Ă?caro - Na idade certa, estas vĂŁo me dar lucro.

Fim do Ato IV.

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Ato V

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Personagens Teófilo Eurico Ato V Teófilo entra caminhando pela rua segurando uma lata de refrigerante.

Cena I Teófilo se aproxima de uma lixeira e principia em deita-la fora. Entra Eurico apressado com uma sacola de plástico na mão contendo algumas latinhas.

Eurico - Espere, não jogue no lixo.

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Teófilo - Tome! Eurico - Ainda bem que cheguei a tempo. Tenho nojo de pegar de dentro do lixo. Sabe, nem sempre fui assim, sou formado, tinha posição. Hoje moro na rua com alguns amigos que o infortunio juntou. Teófilo - O que aconteceu? O que deu errado! Eurico - Enquanto vencia como engrenagem da máquina financeira, falia como ser humano. Valorizei o ter, fracassei no ser. Teófilo - Olha, desulpe, eu não tenho tempo para conversar, preciso ir. 59


Eurico - Eu compreendo amigo, também não tinha tempo para mais nada. Minha meta de vida era ganhar dinheiro, para que eu pudesse mostrar para os outros que era um vencedor, não um fracassado. Sacrifiquei o que realmente amava, para ser respeitado por aqueles que seguem a mesma regra que seguia. Possuir por possuir o carro da moda, que meus amigos não tinham, era minha prioridade de vida. Com isso acabei por sacrificar a felicidade das coisa simples. Teófilo - E tua família? Sabem que você está assim? Eurico - As coisas simples que disse que sacrifiquei foi a minha família. Minha esposa e minhas duas filhinhas morreram 60


em um desastre neste carro que amava mais que elas. Elas morreram e eu sobrevivi. Compreende amigo, eu sobrevivi! Troquei e angústia do ganhar a todo custo pela dor do tudo perder. Eurico se abaixa, senta na rua e leva as mãos ao rosto, escondendo o semblante deformado pelo pranto copioso. Teófilo se curva e apoia a mão sobre o ombro de Eurico, consolando-o e sai, deixando Eurico solitário com seu calvário. Fim do Ato V.

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Ato VI

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Personagens Teófilo Vicente Ato VI Teófilo está sentado no Mosteiro de São Bento, olhando as figuras que decoram o templo.

Cena I Levanta do banco e começa a andar pelos corredores.

Teófilo - Quantos muros serão ainda necessários serem erguidos para mantermos o mundo exterior longe de nossa fragilidade? 64


Quantos no decorrer dos séculos preferiram a clausura destes muros ao invés de viver a angústia das escolhas? Quantos escolheram um senhor, ao invés do Outro, simplesmente porque preferem a escravidão do pensamento? Preferem que outros pensem por eles e renunciam alegremente a livre escolha, somente para não sentirem a angústia que a liberdade pode levar. Preferem cercarem-se das companhias ignóbeis ou insuportáveis, pois a auto-convivência é angustiante. Miserere nobis! Cena II Volta a sentar e acompanha a conversa que desenrola no confessionário. Vicente - Perdoe-me Padre, pois pequei! … - Pequei contra o mandamento de Deus. 65


… - Não Padre, esse não! Pequei não obedecendo a lei do “Não matarás”. … - Não Padre, não puxei o gatilho da arma, mas preciso do perdão de Deus pois sofro com o remorso de achar ter acionado o gatilho do fato que levou o infeliz ao ato de desespero. Matei o sonho de meu sócio e amigo, destruindo nele a confiança e a esperança, e como saída para a angústia que o devorava ele deu cabo a sua vida. … - Sim, tenho noção de que agi mal, por isso preciso do seu perdão. Tenho noção que a lei de deus é aplicada nestes casos, e sei ter parte da responsabilidade no que aconteceu como se o tivesse armado. … - Sim, estou arrependido. E por estar desesperado por paz de espírito, 66


angustiado, inquieto, agoniado e torturado pela culpa, preciso que o senhor me absolva, e que me diga que Deus me perdoa. Pago o dinheiro que for para cumprir a penitência. … - O que? Ir até a família dele e pedir perdão? Jamais farei isso! Sabe com quem está falando padreco? Dando-me lição de moral? Prefiro não fazer nada e deixar o tempo encarregar-se. Vou reclamar com o Bispo. Vicente sai, transtornado, enquanto Teófilo o acompanha com os olhos. Também se levanta e conclui: Teófilo - Pobre homem. A dor bate a sua porta, mas não quer deixar entrar em sua alma o bálsamo do remorso, logo o arrependimento que diz ter não passa de 67


desafogo artificial. Mais um dependente psiquico que espera que o outro resolva suas angĂşstias. Fim do Ato VI.

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Ato VII

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Personagens Teófilo Velha Ato VII Teófilo está no Metrô voltando para casa.

Cena I No vagão, em pé, observa o rosto das pessoas, e analisa suas prováveis aflições e sofrimentos, e medita sobre as angústias dos tempos modernos e sobre as próprias.

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Teófilo - Quantos indivíduos! Quantas ilhas rodeadas de mares de angústias e preocupações que, pela própria inércia em querer mudar, serão tragadas. Ali tem uma que transpira ânsia de algo que espera. A outra parece desesperada. Outro está apreensivo. O do lado parece ansioso. Este está inquieto. A outra no celular fala aflita. Aquele outro tecla no celular enquanto enxuga os olhos. Se alguem também estiver me estudando, como estarei sendo classificado? Rótulos! Ninguém sabe nada e todos julgam. Cena II Ainda no vagão, uma pessoa levanta e ele se senta. Ao seu lado uma velha, que puxa conversa, sorrindo. 73


Velha - Hoje está cheio né? (Sorrindo enquanto fala, procurando puxar conversa)

Teófilo - Pois é! (Fala secamente, dando a entender que não quer se prolongar em conversa) Velha - No meu tempo tínhamos somente o trem e os ônibus. Era um sofrimento virmos para a cidade. Teófilo - Imagino! Velha - Estou indo visitar minha filha e minha netinha, elas não têm tempo de ir me visitar, então quando estou com 74


saudades, e sempre tenho saudades (risos), consigo uma licença e vou ve-las. Minha neta, da última vez que liguei para elas, me perguntou se eu estava de mal com minha filha, pois estava demorando para ir visita-las. Disse que não, ora! Estas crianças tem cada uma. Teófilo - Licença? A senhora precisa de licença para ir visita-las? Velha - Bem, minha filha me pede para ligar antes de ir, mas a licença é no asilo onde estou. Não pode sair assim, tem que ter autorização. Teófilo - Nossa, que horror.

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Velha - Até que não é tão ruim assim. Lá temos segurança, horarios, atividades, enfim. Demorou um pouco para eu me adaptar, sabe, eu tinha uma vida muito ativa. Jogava carteado com minhas amigas, e não raro dormia depois das onze da noite. Hoje janto as seis horas e me recolho às oito da noite. Teófilo - Eu acho que não me adaptaria à esta rotina. Velha - Eu não tive escolha. Depois que meu marido morreu, e foi tarde aquele traste (risos), minha filha me pediu a parte dela na casa, pois tinha dividas que não tinha como saldar.

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Teófilo - E a senhora vendeu? Velha - Claro! Pela felicidade de um filho os pais fazem qualquer coisa. Você é pai? Não? Quando for pai verá o que estou dizendo! Teófilo - Mas valeu a pena? A senhora não ficou triste? Angustiada com a perspectiva do que lhe aguardava? Deprimida com a situação que a senhora se encontra? Velha - Não! Estou feliz. Opa, a conversa está boa mas preciso descer nesta estação. Tchau, seja feliz!

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Teófilo observa a senhora sair, com um olhar de profunda interrogação. Teófilo - É possível tamanho desprendimento? A alegria de ser pai e mãe é tão profundo assim?

Fim do Ato VII.

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Ato VIII

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Personagens Teófilo Pardal Ato VIII Já noite, Teófilo está na rua de sua casa, em frente ao seu portão. Cena I Teófilo pega seu celular, se apoia no portão e faz uma ligação.

Teófilo - Alô Beatriz, sim sou eu. Olha, eu pensei o dia inteiro e …, espera, calma…, desculpe! Estava angustiado com a notícia, pois fui pego de surpresa. … 82


- Não vai ser uma desgraça na minha vida não! Beatriz, não quero que faça aborto. Desulpe ter jogado o dinheiro, use-o para os exames. … - Claro, vou ajudar a criar a criança sim. É nosso filho. Amanhã conversamos, falaremos juntos para seus pais. … Também!

Cena II Entra em cena Pardal, um garoto portando uma arma.

Pardal - Aí play boy, perdeu, passa o celular!

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- Calma, não desarmado.

Teófilo fique

aflito,

estou

Pardal - Aflito o cacete seu merda. Passa a carteira também. Teófilo aproveita a aproximação do garoto para tentar rende-lo. Pardal se livra. Pardal - Ah seu herói de merda, agora vai morrer. Pardal atira em Teófilo, que tenta se levantar e, ajoelhado, ergue as mãos para o céu.

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Teófilo - E a morte chegou para mim, como chegará para todos. Nestes extertores possuo somente o peso da minha consciência, e vou desfalecendo enquanto meu ícor mortal se esvaí, envenenando o solo. Oxalá seja o fim das minhas angústias. Mas não será as do mundo. Teófilo cai morto. Pardal a segurar a arma, olha para Teófilo e desabafa, como a se confessar. Pardal - Satisfeitos? - Que esperavam que fizesse frente a audácia deste otário, que tombou sob meu poder?

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Levanta a arma para os céus e a admira. Baixa a mão e volta o olhar para o horizonte. Fala com deboche. - Vocês, deuses da atualidade, que assistem impassíveis do alto dos teus olimpos modernos o desenrolar da comédia do dia-a-dia, o drama da sobrevivência do gado simples que povoam as ruas e vielas, me julgam? Por acaso não sabem que fazem isso mesmo com outras armas? - Que fiquem com as suas angústias, e eu, fico com a minha, que acabei de criar. Fim.

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