A Alvorada

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Edições MASP © 2012, Marco Antonio Stanojev Pereira E-mail: edicoesmasp@hotmail.com Impressão: www.clubedeautores.com.br Título: A Alvorada ISBN: 978-85-913809-2-3 Depósito Legal: 580079/2012 1ª Edição São Paulo Agosto, 2012


Marco A. Stanojev Pereira

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São Paulo Edições MASP 2012


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Índice

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Introdução

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Parte 1 A Alvorada……………………………... Lívio…………………………………….. Fuga………………………………….…. A nova vida……………………………. Sobrevivência…………………………. Dracônia……………………………….. Henrique……………………………….. A Vida nova……………………………. Novos ares……………………………... Asilo La Gioia………………………….

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Parte 2 Maratona da alvorada………………. A organização da nova seara………. Tiros de guerra……………………….. Os quatro mosqueteiros da Sé……. Pontos nos ís………………………….. Águas passadas não movem moinho………………………………….. Alea Jacta est (a sorte está lançada)…………………………………. A procura………………………………. O resgate……………………………….. Construindo a obra………………….. Tudo converge………………………….

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O Observador

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Vou contar uma estória, que me contaram certa vez, sobre um homem que observava a cidade onde morava. Dissera-me, este que me contou, que o observador ia para seu trabalho de condução, onde tomava um ônibus na Avenida Ipiranga, próximo da Avenida São João, centro velho de São Paulo. Enquanto esperava, ele acompanhava com seu olhar de observador um senhor, que todos os dias passava por ele, sempre na mesma hora da manhã, e vinha descendo a Av. Ipiranga puxando três carros de ambulante. Certo dia o observador, que além de observador era curioso, decidiu acompanha-lo, à distância, para ver onde era seu ponto. Então, quando viu o homem vindo pela avenida, passou a segui-lo, furtivamente, acompanhando seu percurso que ia pela Rua 24 de Maio, depois virava a direita na Rua Dom José de Barros, depois na Rua Barão de Itapetininga, chegando na Rua Conselheiro Crispiniano, onde deixava sua carga.

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O observador começou então a imaginar o que tinha por trás daquele homem? Que estórias interessantes teria para contar? Suas alegrias, decepções, famíliares, enfim. Disseram que ele também observava as crianças que dormiam nesta mesma calçada, sobre suas camas improvisadas de papelão estiradas no chão, embaixo dos parapeitos dos prédios, a fim de se resguardarem de eventuais chuvas e do sereno paulistano da madrugada. Da mesma forma que com o caso anterior, imaginava o futuro daquelas crianças, e tentava captar seus pensamentos, suas alegrias, enfim, suas emoções e, talvez, as suas lamentações de brasileiros esquecidos. Assim foi também com um outro amigo, o Reynaldo, que contou para o observador sobre o “Asilo La Gioia”, onde internaram o bisavô de um conhecido seu. Naturalmente, atendendo seu instinto peculiar, o observador foi lá para ver a veracidade do fato. Para começar, ficou impressionado com uma janelinha do portão que dá para a rua, único contato dos internos com o exterior, cujas dimensões eram de 20cmx20cm. Um dos personagens que mais chamava a atenção do observador era Lívio, nome dado por ele à um dos

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meninos de rua, devido sua aparência transparente, com certeza de fome e desesperança, cuja estória de vida retrata nossa sociedade atual, e o drama que milhares de famílias passam com seus membros que se envolvem com substâncias quimicas. Mas também citou a estória de Padre Henrique que, segundo ele, é a estória de todos aqueles que acreditam, lutam e trabalham por um ideal. E assim começa a estória …

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Parte 1 A Alvorada

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Todo dia, com chuva lavando o asfalto ou o sol lambendo o corpo, lá ia João Cruz puxando os três carros de ambulante rumo a Rua Conselheiro Crispiniano, centro de São Paulo. Saía de sua casa, um quarto alugado em um cortiço da Rua Aurora, antigo centro da paulicéia, passava no boteco do Pimenta, um mineiro de rosto vermelho, para tomar seu pingado e comer um pãozinho com margarina e, rumava para um depósito onde guardava seu material de trabalho e de seus dois amigos, Carlinhos Luca e Bastião Negreiro. Carlinhos Luca, paulistano seresteiro, como costuma se apresentar, é um homem maduro e prá lá de experiente. É “um safo”, como se diz de alguém que sempre enfrentou as maiores e mais diversas adversidades da vida, e se safou de todas. Se ufana de dizer que compunha e tocava viola (pelo menos viola ainda toca) com os mestres seresteiros de São Paulo e que ajudou Adoniran Barbosa, na composição de “Trêm das onze” com seus arranjos.

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Agora, sem mais a São Paulo dos “bons tempos da garôa”, vive da banquinha de roupas da estação, juntamente com a aposentadoria de um salário mínimo que recebe do INSS. Bastião Negreiro é outro sobrevivente. Sua única fonte de renda é o que consegue vender em seu estabelecimento comercial de “produtos de época e souvenirs”, como costuma dizer. Contando com 72 anos de idade é um negro com traços fortes e marcantes. Sua principal característica é o grande e bonito sorriso que abre, independente do dia, da hora e das tempestades. Sempre está bem, tudo está bom e, todo fim de dia, quando toca as cinco badaladas da igreja da Consolação, ele tira seu bonezinho verde e branco do Palmeiras, faz o sinal da cruz e diz: -

Mais um dia ganho, com a graça de Deus, tá ruim mas tá bom!

Diz isso mesmo que não tenha vendido nada. Mora na periferia de São Paulo, no Bairro de Itaquera, junto com sua mulher, e todos os dias pega o ônibus e o metrô rumo à estação da República. - Graças à Deus inventaram este passe de idoso, diz ele sorrindo,

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agora posso ir para casa e vir para trabalhar sem gasto e com conforto. Antes tinha que levantar de madrugada, pegar o trêm, descer no Largo da Concôrdia e subir a pé até a República, muito cansativo.

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No feriado de Sete de Setembro, depois que assistiu o desfile cívico organizado pela subprefeitura do Bairro, foi tomar uma cerveja com os amigos no “Esfihinha”, onde a boêmia de Itaquera normalmente se reúne para discutir assuntos sociais, políticos e esportivos e, este último, era o assunto em pauta, desde que a FIFA indicou Itaquera e o futuro estádio do Corinthians para a abertura da copa do mundo de 2014. Quando ele chegou, os trabalhos de apreciação já haviam sido abertos pelo “Barba”, também conhecido como “Gauchita” pelos mais íntimos, devido seu gosto por esta caninha quando jovem. Respeitado lider comunitário, palmeirense roxo, ou verde escuro, sei lá, dizia que custava muito para ele, mas por Itaquera suportava a ideia de o clube construir seu estádio no bairro. - Não Barba, não pode ser assim, disse seu irmão que era Corinthiano. Veja bem, o pai era corinthiano e com certeza

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não ia ficar bronqueado se o Palmeiras construisse seu estádio aqui. - Já disse, só suporto por Itaquera. Nesta brecha, vira-se o Bastião para o Barba e pergunta se era verdade aquilo, se o pai dele era realmente Corinthiano. Contrafeito disse que sim e, se não fosse este o único defeito dele, poderia ser considerado um Santo na Terra. Claro que todos riram.

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João Cruz, com seus sessenta e um anos, é o mais nova da tríplice aliança, por isso ainda tem forças para arrastar os carros em sua via crucis diária. Todo dia puxa seu comércio e de seus amigos pela Avenida São João, entra a direita na Avenida Ipiranga, depois a esquerda na Rua 24 de Maio, a direita na Rua Dom José de Barros, entra na Rua Barão de Itapetininga, chegando na Rua Conselheiro Crispiniano, onde deixa seu carro e posiciona os de seus amigos nas vagas de ambulantes cedidos pela prefeitura, em frente ao Mappin. Dizem que a concorrência que Carlinhos Luca e Bastião Negreiro faziam ao Mappin era tão cruel que o fato da loja de departamentos mais antiga de São Paulo ir à falência, é atribuida aos preços e rapidez que os dois lançavam moda e

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disponibilizavam os artigos que o povo queria. É o que dizem! Os três começam a abrir seus negócios pontualmente às nove horas da manhã, e João Marreco, como é conhecido a muitos anos devido ao seu jeito peculiar de andar, não é do tipo que fala muito, diferente de seus amigos que são grandes conversadores. Contudo esta característica parece que o ajuda no seu trabalho de engraxate, pois seus clientes, e não são poucos, preferem seus serviços pois são de pouca conversa também. Carlinhos Luca, observando o companheiro, ri de seu jeito e costumava, agora não mais, questionar o porque daquele comportamento silencioso, o que João Marreco respondia: -

Se querem conversar, vão no salão do Cristovão barbeiro que lá tem assunto para todos os gostos. Aqui eu fico com meus pensamentos e o cliente fica com os dele!

E os dois amigos riam prá valer da acidez do companheiro. Além de seu trabalho semanal como engraxate, João também tem a permissão da prefeitura para expôr quadros de aquarela, pintados por ele, na feirinha da

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Praça da República e Sé. Sua habilidade em retratar paisagens do Centro Velho e temas rurais, chama a atenção dos turistas que passeiam pela feira a procura de novidades. Dizia que chegou a estudar Belas Artes mas, por motivo de doença, teve que desistir. Sempre que toca neste assunto cai em um profundo silêncio sepulcral, ficando cabisbaixo por horas, mergulhado em pensamentos indevassáveis.

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E assim era a vida e o dia-a-dia dos três amigos, de casa para o trabalho e, de retorno para a casa, quebrando esta rotina somente quando um dos três aniversariava, no Natal e Fim de Ano, onde costumavam rachar um generoso prato e uma rodada de cerveja no “Sopa Paulista”.

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Livio

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Depois de se envolver com drogas e ameaçar a mãe e o pai com uma tesoura, para conseguir dinheiro para o vício, Silvia foge de casa no auge de seus vinte e três anos de idade. Totalmente mergulhada no crack, se associa a uma turma de viciados para fumar a droga, praticar pequenos furtos e se prostituir, afim de conseguir fundos para suas necessidades. Fixa moradia na calçada da Rua dos Andradas, Centro Velho de São Paulo, e lá, freqüentemente, recebe seus clientes e faz uso de suas químicas. De origem da classe média de São Paulo, seus pais vivem em uma casa relativamente ampla em Pinheiros, cujo terreno ganharam quando se casaram. Estudou em escolas tradicionais da capital e tinha o sonho se estudar direito no Largo de São Francisco, sonho estimulado pelo pai, que era contador e pela mãe professora. Mas o sonho dos pais nem sempre se realizam em um mundo onde os desejos são impostos pelo meio, não construídos com prudência. Onde há um ditador poderoso que decide nossas vontades, diretrizes, pensamentos e gostos. Ditador

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implacável que abusa de imagens e sons para impor sua vontade e tendência. E o sonho desta típica família paulistana também naufragou, miseravelmente, frente aos prazeres da fumaça deste cristal que transfere superpoderes ficticios para seus seguidores. Diz a lenda que dentro do cristal de crack está preso um gênio cruel e autoritário chamado Frinquel, que é libertado sempre que a pedra é aquecida. Sendo liberado na forma de vapores, ele toma todo o ambiente onde estão os seus seguidores, prometendo-lhes poderes além da imaginação. Todavia, também conta a lenda que Frinquel foi aprisionado por um bom gênio, chamado Genquel. Este, cansado com as mentiras e falsas promessas de Frinquel, que levava a morte todos os seus seguidores que acreditavam que podiam voar, parar carros e trêns, e outras coisas fantásticas e sobrenaturais, o aprisionou em cristais para sempre. Mas, a curiosidade humana é maior que a prudência e, novamente, libertaram Frinquel para juntar mais seguidores e condena-los a morte. Depois de longos três anos de completa escravidão ao gênio cruel, Silvia

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aparece na casa de seus pais, que envelheceram muito nestes anos sem notícias. Sua fisionomia é a pior possível. Está magra e suja. Um cadáver ambulante de olhos fundos. E grávida de três meses. O sentimento de seus pais iam de alegria estérica até tristeza profunda, em um pequeno intervalo de tempo. A abraçavam e choravam, lembrando a passagem do filho pródigo. Os planos de seus pais agora eram outros. Receber a filha grávida, tratá-la, recompor sua antiga fisionomia e alegria, e se prepararem para receber o bebê. E assim foi nos meses seguintes. A rotina dos dois velinhos era visitar a filha na clínica de desintoxicação e acompanhar o desenvolvimento do netinho. Em uma destas visitas, os médicos advertiram os avós que, devido ao uso constante da droga, a criança poderia nascer com seqüelas irreparáveis: -

Seja o que Deus quiser, doutor. Do jeito que vier, vamos lhe dar muito amor!

E nasceu Lívio. Em uma tarde quente e seca de céu azul do inverno

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paulistano. Olhos negros, sem cabelo e, aparentemente, sem seqüela. Depois de um longo tempo de internação, os médicos deram alta parcial para Silvia, ou seja, ela dormia em casa e se apresentava na clínica para dar continuidade ao tratamento. Uma tarde, passados um ano e meio do nascimento de Livio, o telefone tocou e o pai de Silvia atendeu. Era da clinica, dizendo que a moça e o bebê não haviam chegado até aquela hora. Os dois velinhos ficaram desesperados. Ligando para o celular de Silvia só caia na caixa postal, até que atendeu um homem com voz ameaçadora e carregada de gíria pesada. -

Que é? Eu quero falar com minha filha, Sílvia, por favor! Este telefone agora é meu, ela me deu em pagamento de um barato que eu fiz, tá ligado?

Seu pai desligou o telefone imediatamente e os dois caíram em choro convulsivo. Soluçavam tanto que quem visse a cena choraria também, tal era a tristeza e emoção da visão.

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Passadas duas horas, Silvia chega com Lívio dormindo em seu colo, totalmente alheia a realidade e aos acontecimentos. -

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Filha, por onde andou? Eu estava visitando uns amigos. Fui mostrar o Livio para eles. Por quê? Porque eu estava ligando para o seu celular e ninguém atendia, até atender um sujeito que disse que você deu seu celular em pagamento por um “barato”. O que isso significa? Papai, mamãe, se preparem! Olha a surpresa que preparei para vocês!

Nesta altura do campeonato, os dois velhinhos se perguntavam se ainda tinham saúde para mais surpresas. Neste ínterim, Silvia puxa a camisa de Livio, mostrando seu peitinho com um círculo azul, e dentro dele os dizeres: “Amor de vovô e vovó”, tatuados em sua pele delicada. Seu pai se transformou. Disse coisas que estavam entaladas em sua garganta e, mesmo com protestos de sua esposa, continuava falando, dizendo que se não botasse para fora, iria morrer de infarto. Silvia também respondia. E dizia que somente tinha paz nas ruas, com seus

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amigos que não negavam nada para ela e, ao contrário daquele inferno que era sua casa, sempre que precisava de dinheiro era só conversar com seus amigos, fazer um programa e pronto! Seu pai, indignado com o que ouvia, se descontrolou e esbofeteou Silvia que caiu no chão. Levantando-se, o olhava com ódio, dizendo que ele iria se arrepender pelo que tinha feito. Deu de costas e trancou-se em seu quarto. Os dois velinhos se abraçaram, como último recurso de quem já não sabe mais o que fazer, e choraram a noite toda. E Livio dormia plácido, alheio a tudo. 24 24

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Fuga

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Passados três anos deste evento, a família continua sua vida. Silvia não fala com o pai, o que o deixa muito triste, contudo, Livio é sua alegria e seu companheiro de passeios. O avô carinhoso leva-o para baixo e para cima. O menino fala pelos cotovelos e tem papo para todas as ocasiões, de forma que seu avô tem que pedir para ele parar de falar, o que funciona por, em média, dois minutos, o qual uma vez passados, volta com carga total. Num destes passeios, seu avô o leva na feirinha da Praça da República para comer “tempurá” e ver os quadros e artesanatos expostos. Fica maravilhado com as cores e figuras, e diz que quando crescer vai ser pintor. Silvia, aparentemente recuperada e desintoxicada, volta para a faculdade, cursando artes. No auge de seus vinte e nove anos, se sente desmotivada e infeliz, e não adianta perguntar para ela a causa de sua infelicidade, pois nem ela mesmo o sabe. Chega o final de semestre de aulas, e a turma resolve alugar um sítio e organizar uma festinha. Foi o início do drama! Na festinha rolou de tudo, e durou todo um fim de

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semana, de sexta feira até domingo à noite. Silvia estava tão louca que não chegou em casa, seus amigos chegaram com ela. Silenciosamente entraram pelo portão e a deixaram sentada, no jardim de frente da casa de seus pais, totalmente drogada e fora de si. Com o barulho do arranque do carro, os dois acordaram assustados e foram ver o que sucedia. Ao abrirem a porta deram de cara com a filha, no mesmo estado de anos atrás. O gênio Frinquel novamente estava a solta e, pelo que parece, sedento. Desta vez, Silvia não queria mais ir à Clinica para tratamento, e as coisas começaram a acontecer na casa de seus pais. Brigas diárias, sumiço de objetos e dinheiro, tudo para alimentar o vício que voltou com força total. Quando o dinheiro e objetos para troca não eram mais acessíveis, começou novamente a se prostituir, até que um dia, saindo com Lívio sem o conhecimento dos pais, aproveitando uma distração de segundos dos dois, ela retorna sozinha para casa, com setenta e cinco reais em dinheiro e totalmente alucinada, fora da realidade.

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Inquirida sobre o menino, ela disse que “passou” ele, caindo desacordada em seguida. Não foi suficiente toda a polícia para localizar Lívio. Silvia não podia ajudar em nada pois estava morta, por overdose de crack, com apenas trinta e um anos de idade. Seus pais não tinham tempo de chorar seu infortúnio, pois guardaram todas as energias para vasculhar o centro de São Paulo, dia e noite a procura de Lívio, que sumiu sem deixar vestígios. E mais uma vez, o cruel gênio Frinquel fez outra vítima mortal. Freqüentemente os dois idosos eram vistos nas “bocas de fumo” e nos antigos locais onde sua filha se prostituía, e nada. Lívio como que havia se dissolvido no ar. Fotos foram distribuídas, espaços de anúncios em jornais comprados, postagens em redes sociais, tudo o que podia se imaginar fazer para localizar seu netinho, o sr. Alfredo e a dna. Judite fizeram, em vão.

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A nova vida

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Sem saber o que estava acontecendo, Livio passa de mão em mão, como um escravo da era moderna. Usado sempre como moeda, trabalhou para seus vários senhores como pedinte, lavador de janelas dos carros que paravam no farol e, vendedor de balinhas de iogurte em terminais de ônibus. Também era alugado como criança de colo para os mais diversos fins, além de passador de droga e outros serviços que a criatividade puder imaginar. Graças a sua inteligência precoce e boa aparência, pois possuía traços finos e delicados, foi vítima de todo o tipo de pilantra, masculino e feminino, que se aproveitavam de sua subserviência para ganhar dinheiro e produtos, passando para ele a comida mínima para não morrer de fome. Sozinho aprendeu a ler e escrever, e já contando com seus sete anos, conseguiu se livrar de seus antigos senhores. Isso aconteceu enquanto ele estava trabalhando como mensageiro para um gigolô, que agenciava garotas em um Clube Privê. Seu trabalho era simples, enquanto as meninas do gigolô atendiam

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seus clientes, Livio entrava no quarto do casal para subtrair o dinheiro da carteira do desavisado. Todas as meninas adoravam Livio e o tratavam como filho, atendendo suas mais pequenas vontades e caprichos, prestando ao pequeno a mais importante e básica das necessidades humanas, carinho e atenção. Uma delas, Domitila, a que mais tinha proximidade com Lívio, e ele à ela, não se conformava com sua sorte e planejava ajuda-lo a fugir. Quando dava banho nele, observava a tatuagem e perguntava à Livio o que era aquilo. O menino respondia, com resquícios de memória, que tinha um avô e uma avó e que sempre iam passear numa praça para comer “teturá”, mas não lembrava de mais nada, somente das tristezas e sofrimentos que passou. Numa tarde, enquanto Domitila atendia um cliente, Livio entrou em seu quarto e, orientado por ela, pegou o dinheiro da carteira e fugiu pela janela, ganhando a rua em pouco tempo. Começou então a nova epopéia de nosso pequeno herói, agora contando somente com ele, sua inteligência e sua experiência de criança de oito anos de idade.

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Nunca pensou em procurar a polícia, pois em suas recordações de pequeno infrator, tinha medo de ser acusado de roubo por um dos clientes do gigolô e ir para a cadeia. -

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Não - pensava ele - eu me garanto. Mofar na cadeia é que não vou.

Preferia dormir na rua e nos bancos da praça da Sé e República, sua nova casa. Com seus traços delicados e princípios de educação aprendidos com as meninas do Clube Privê, facilmente conseguia esmolar e arranjar comida. Certa vez, foi abordado por um casal de estrangeiros que estavam passeando na praça da República. A mulher aproximou-se dele e, curiosa, observava ele desenhar no chão caricaturas de pessoas que passavam. - Olá minha criança - disse ela com forte sotaque: - Oi! - Que está fazendo sozinho aqui no meio da rua? - Não estou no meio da rua, estou na calçada. Em seu pais não tem calçada?

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Claro que tem! Disse rindo da espontaneidade do menino. Qual o seu nome? Minhas mães me chamavam de “anjo”, mas o pessoal me chama de “cara”.

Sem entender o que significavam “minhas mães” e “cara”, ela continua a conversa, tentando conquistar a atenção de Lívio, que agora desenhava as paisagens. 32 32

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O meu é Mary. Como sabe que não sou daqui? Pelo jeito engraçado que fala. De onde você é? Da Inglaterra. Já ouviu falar? Sim, vocês tem uma rainha, não é?

Mary ficou desconcertada e impressionada com a inteligência e sagacidade do menino, que estava totalmente sujo, usando um sapato pelo menos três números maior e com roupas em estado de miséria. Ela estava deslumbrada com a criança e resolveu convida-la para ir para seu hotel, tomar um banho e principalmente comer. As duas primeiras propostas davam arrepios em Livio, mas a voz que ouvia do estômago vazio era mais alta e, por isso,

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acabou aceitando o convite imediatamente. E lá foram os três para o hotel, que fica na Av. Ipiranga, bem perto de sua “casa”. -

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Qualquer coisa estou perto de “casa”. É só fugir e estou à salvo pensava ele já traçando planos de fugas mirabolantes, que incluia, por exemplo, fazer uma corda com as toalhas de banho e sair pela janela.

Ficou no bem-bom durante duas semanas, até que acabaram as férias do casal e estes vieram com uma conversa nova. -

Meu anjo - disse Mary - nós gostamos muito de você e, este tempo que passamos juntos, eu e o John nos apegamos muito à você. Diga uma coisa, você não gostaria de ser nosso filho e ir para a Inglaterra com a gente?

Inicialmente, Livio gostou bastante do convite. Sentiu-se importante pois alguém estava demonstrando que se importava com sua sorte, e isso era inédito.

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Disse sim imediatamente, e todos se abraçaram felizes. Mary, enxugando as lágrimas, começou a arrumar as coisas para a viagem. Enquanto via os dois arrumando as malas, disse que ia sair e dar uma volta. Mary consentiu, pedindo para ele não demorar pois, naquela noite, iam comemorar. Livio estava radiante de alegria e foi para sua “casa”, dar a boa nova para seus amigos. -

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Pessoal, ganhei uma mãe e um pai e eles vão me levar embora, para outro país. Onde é isto? Perguntou Xicrete, um garotinho de mais ou menos seis anos, em estado pior que Livio de quando foi abordado por Mary. Ah, é longe! É lugar de Gringo! Disse Livio.

Foi quando apareceu Tião, surgido do meio de sua cama improvisada de papelão. Era um garoto de cerca de doze anos de idade, com uma grande cicatriz no rosto, resultado de uma briga entre sua mãe e seu pai. Como era o mais velho da turma, era o chefe, e todos, com exceção de Livio, temiam e respeitavam o que ele dizia.

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Isso é grupo! Disse rindo. Tão inteligente e esperto e não vê o que estes gringos querem de você!

Bravo com a desconfiança, Livio diz que é inveja e parte para cima dele, derrubando o gigante no chão. Contudo Tião continuou rindo de Livio, desdenhando de suas roupas novas e limpas, chamando-o de “mariquinha”, e “fresquinho”. Com grande força empurra Livio para o lado, rasgando sua camisa e sujando-o todo. 35 35

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Seu imbecil, eles querem te levar para a terra deles porque querem tirar um órgão seu, para o filho deles que está doente. Eu já ouvi um montão de estória deste tipo. Vai dizer que nunca ouviu? Eu já! Eu também! Eu também!

Todos os sete garotos da turma já tinham ouvido estórias assim e morriam de medo. -

Uma vez, eu estava ouvindo umas pessoas no ponto de ônibus dizerem que conheciam uma criança que teve um rim retirado, pois aceitou um sanduíche de estranhos que estava envenenado. Quando a

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criança acordou, viu que tinha uma cicatriz na barriga e não tinha mais um rim. Rim faz parte do corpo, não faz Tião? Perguntou Xicrete apavorado com a ideia de acontecer a mesma coisa com seu amigo. Sim, faz parte do corpo e é isso que eu estou tentando dizer para este burro.

Livio ficou pensativo o resto do dia e, próximo da hora de voltar para o hotel, pensou e repensou o que conversaram. Começou a desconfiar da proposta e resolveu averiguar a veracidade dos fatos, trazidos à tona pelos seus amigos. Chegando no hotel, naturalmente mudou a forma de tratar Mary e John. De falador, sorridente e espontâneo, agora se transformou em uma criança séria e fechada, nos cantos sempre pensativo. Preocupada com a mudança do garoto, Mary se aproximou dele e perguntou o que o estava preocupando. -

Nada! Disse Lívio entre dentes. Mas você não é assim, nós fizemos alguma coisa que você não gostou? Sem olhar para Mary, ele responde:

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Uns amigos me disseram que é comum gente de fóra vir aqui, pagar lanche para as crianças e roubar um órgão que o filho está precisando. Ai vão embora e deixa a criança morrendo. Eu sei que vocês também querem fazer isso comigo, por isso eu estou indo embora. Tchau Mary.

Virou as costas e foi embora, sem olhar para trás nem ver a reação de Mary. Novamente voltou para uma de suas casas, onde sentia estar seguro, a calçada da Av. Ipiranga, e nunca mais viu Mary nem John.

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Sobrevivência

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Cada dia de Livio era uma luta constante de sobrevivência. Nós que somente narramos a civilização que existe à margem da nossa, confortavelmente instalados em nossas poltronas como espectadores, não temos a menor ideia da vida que uma pessoa que vive nas ruas (e das ruas), seja por opção própria, seja pelas forças das circunstâncias, leva para sobreviver. O instinto mais fundamental do ser vivo é o da sobrevivência, e em determinadas condições de estresse, o ser humano já deu provas de que é capaz de tudo para a manutenção da própria vida ou de sua próle. Mas voltemos ao nosso amigo, Lívio, que com pouca idade, já era senhor de sí e, devido sua própria natureza curiosa, possuia uma cultura de causar assombro. Além do sapato grande, a camisa também era enorme, pelo menos três números maiores, o que era estratégico pois, segundo ele, servia tanto de abrigo para dormir, usando-a como um saco, como armazém, para estocar comida ou outra coisa qualquer. Esta “outra coisa qualquer” é que foi o motivo de sua guinada de noventa graus

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na vida que até então levava, junto com a turma de garotos de rua que vivia. No primeiro domingo de Maio, enquanto todos já estavam entrando no ritmo para as compras de dia das Mães (a segunda melhor data para o comércio), e as Ruas Direita, Barão de Itapetininga, 24 de Maio, 25 de Março e a Av. São João - caminho para quem segue em direção ao sonho de consumo de eletrônicos da Rua Santa Ifigênia - já estavam apinhadas de gente, o Tião veio com uma conversa de que era hora de atacar para garantir um bom dinheiro para todos. O Xicrete e o Bola, os dois menores da turma, iam aproveitar o domingo e atacar na Feirinha de Artesanato da Praça da República. O Cride e o Livio seguiriam para a Santa Ifigênia. O Fedô e o Luis iam para a Praça da Sé, e o Tião e o Vesgo ficariam entre as Ruas Direita e Barão de Itapetininga. Uma vez a estratégia definida, lá foi o batalhão ao ataque, cheios de confiança, como Napoleão em Waterloo. Chegando na República, os dois baratas tontas, sem a malícia e preparo adequados, começaram a furtar panos de prato, toalhas de renda, artesanatos em pedra, etc, sempre com sucesso. O produto surrupiado era levado para um mocó que todos conheciam, batizado de

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“caverna do tesouro dos piratas”, invenção do Lívio, que ouvia as estórias do livro “A Ilha do Tesouro”, lidas todas as noites pelas suas mães do prostíbulo antes de dormir. Tudo estava dando certo e, pelas contas de Xicrete, eles já tinha um tesouro que somava cento e cinquenta reais. Ai então o Bola, cheio de confiança insuflada pelo êxito, disse ao Xicrete que estava na hora de garantir alguma grana.

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- Aí meu, nóis vai guentá umas véia que tirá o dinheiro da bolsa prá pagá. Enquanto eu empurro a véia, você cata a grana, entendeu? - Entendi. Mas e depois? - Depois a gente se separamo, cada um prá um lado, para despistar se tiverem seguindo a gente e mais tarde, a gente se encontramo na caverna. Certo? - Certo! Disse Xicrete contagiado pela confiança do amigo. E lá foi a dupla de estrategistas de retormo para o campo, ou melhor, para a Praça. Chegando lá, começaram a andar pelas calçadas - onde os vendedores de artesanato dos mais variados tipos, montam suas barracas - estudando seus prováveis alvos.

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Miravam as mais procuradas, ou seja, as de objetos esculpidos em pedra sabão, madeira, rocha, cristais, tecidos, compotas, geléias e doces regionais, livros raros, moedas e selos antigos. Mas uma chamou-lhes a atenção pelo volume de pessoas e de dinheiro circulando: A barraca de comida japonesa, a mais requisitada pelos turistas. Uma vez fixado o sítio de ataque, passaram ao estudo do melhor alvo e, depois de alguns minutos, eis que lá estavam, em pé, um casal de idosos esperando para serem atendidos. Desde o sumiço de seu neto, o sr. Alfredo e a dna. Judite passaram a ir todos os domingos à Praça da República, na esperança e na fé de lá o encontrar. Pelo incrível capricho do destino, o casal era justamente o alvo escolhido pelos dois soldados, que devido as preocupações, nem imaginavam o que estava para acontecer. Chegou a vez deles serem servidos. Comeram seu tempurá, beberam seu caldo de cana, com toda a paciência e descontração de quem esta passando umas horas diferentes e, quando dna Judite abria a bolsa para pegar o dinheiro, um empurrão a jogou contra o balcão e um golpe tirou o dinheiro de sua mão, tudo ao mesmo tempo.

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Como haviam combinado, cada um seguiu para um lado, para despistar quaisquer perseguidor. Mas as perninhas dos pequenos guerreiros da sobrevivência não foram suficientes para ganhar distância e, embora o sr. Alfredo gritasse para não fazerem nada com o Xicrete, pois tinha esperança de ser seu neto, os gritos de “pega ladrão” e “pega o trombadinha” abafavam a sua voz, e a fúria da massa ressentida pelos seus problemas pessoais do dia-a-dia, descarregou-se no menino na forma de pancadas, levando-o a desmaiar, e só não mataram o pequeno lá mesmo pois chegou a guarda metropolitana e dispersou todos. O Bola chegou a ver que batiam no Xicrete, mas não teve coragem, e nem podia ter, pelo instinto de sobrevivência, de ir até ele. Deu meia volta, enfiou os vinte reias no bolso e rumou para a caverna. Chegando lá, desatou a chorar pela sorte do amigo pois, em sua cabeça, era o responsável por tudo o que aconteceu. Enquanto isso, o Cride e o Lívio, rumando para a Santa Ifigênia, decidiram seguir o caminho da Praça do Patriarca, atravessar a Liberó Badaró, entrar na 24 de Maio e tentar filar um sanduiche de calabreza na esquina da São João. De lá

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seguiriam direto para a Rua Santa Ifigênia. Chegando na porta da Lanchonete, por um daqueles milagres que ninguêm explica, talvez pela cara de esfomeados que os dois tinham, um casal que comia seu lanche no balcão saiu e perguntou se eles aceitavam comer algo. - Olha garoto - disse o homem lanche eu pago, o que quiserem, mas dinheiro eu não dou. Topam? - Topamos - disseram os dois juntos.

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Como não podiam entrar, pois o dono disse que os outros fregueses poderiam se incomodar, fizeram o pedido fora do estabelecimento e, pelo visto, sabiam muito bem pedir. - Eu quero um X-Calabreza, com vinagrete e uma Coca-Cola, disse o Cride já com água na boca. - Eu quero um X-Lombo, com tomate em rodela e um pouco de vinagrete, não muito, e uma Fanta. O casal riu da desenvoltura dos meninos e, conversando entre si, diziam que tinham mais ou menos a idade dos filhos deles. A mulher calou-se e

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emocionou-se, pensando que poderiam ser seus filhos nesta situação. Os dois fominhas devoraram o lanche, já de olho em outros, escritos no cardápio preso na parede, caso a generosidade do casal permitisse. E permitiu, saltou agora um Xburguer duplo completo e um X-baicon duplo, com bastante cebola. O casal se despediu dos garotos e Lívio, com toda a sua educação autodidata, agradeceu a gentileza, dizendo ainda para arrematar um: “Deus lhe pague”, o que causou mais assombro ao casal e ao dono da lanchonete que, quando estavam terminando de comer, saiu e perguntou aos dois, com um pacotinho de lanche na mão, se queriam trabalhar para ele como faxineiros. Os dois se entreolharam e Cride, com a voz empolada disse: - No momento não, agradecido, estamos tratando de outros negócios e no momento não podemos aceitar. O sr. ficou desconcertado e riu. – Outros negócios? Henrique escuta esta…

Esta

é

boa,

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E foi entrando novamente na loja, mas antes voltou-se rápido e disse que se mudassem de ideia e o “negócio” naufragar, o trabalho estava de pé. - Sai fora, trabalhar de faxineiro em uma lanchonete? Disse o Cride. - Sim, mas a gente teria uma grana, além de comer o sanduiche que quisesse. - Acorda, meu! Cê acha? E outra, depois de uma semana, você não aguentaria comer nem sentir o cheiro de sanduiche. Prefiro a vida aventureira que a gente leva. 46 46

Mas este convite ficou como um bichinho, como os piolhos, se mexendo na cabeça de Lívio. E estavam tão satisfeitos e com o corpo tão mole, devido ao banquete, que acharam melhor adiar o ataque à Santa Ifigênia, e voltaram para casa. Chegando em casa, se admiraram que o Fedô estava lá, encostado em um canto, chorando e encolhido, na posição fetal. Chegaram perto dele e ao tocar em suas costas, viram que estava todo sujo de sangue e, de uma grande ferida na testa saia sangue sem parar.

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Apavorado com a cena, Cride perguntou o que tinha acontecido e entre soluços Fedô disse que tinham seguido até a Praça da Sé, mas como estava apinhada de policia, decidiram seguir até a rua Tabatinguera e ir até o Brás, pela Av. Rangel Pestana. Quando foram passar por baixo do viaduto, foram cercados e acusados de intrusos, por outros garotos de rua, que começaram a bater nos dois. Era chute, soco e paulada sem parar. Quando viu, o Luis estava já no chão e um outro garoto batia no peito dele com um caibro. O Fedô deu um grito, conseguiu sair do meio dos outros meninos e voou contra o garoto. Mas como estava tonto, de tanto apanhar, cambaleou e o garoto aproveitou e acertou uma caibrada na cabeça dele, que desmaiou do lado do corpo do amigo, inerte. - Quando acordei, já não tinha ninguém perto, cutuquei o Luis pra gente aproveitar e fugir mas ele não respondia, então coloquei a mão no rosto dele e ele tava gelado. Tava morto. E começou a chorar, acompanhado de Lívio e Cride que começaram a chorar também, compulsivamente.

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Neste meio tempo chega o Bola e relata os acontecimentos com ele e a má sorte de Xicrete, reforçando a vontade de chorar de todos. Tempos depois, chega o Tião e o Vesgo, rindo e conversando alto das peripécias que passaram, e do total fracasso das investidas. Quando se deram conta do que estava acontecendo, emudeceram, principalmente o Tião, que segundo os vencidos, era o responsável pela estratégia desgraçada daquele dia. Naquele princípio de noite, começou uma discussão feia na caverna dos piratas. Os marujos que já haviam passado por tempestades terríveis antes, viram uma tempestade ainda maior e impiedosa desabar sobre suas cabeças, fazendo sossobrar o barco e, como resultado, a tripulação amotinou-se separando-se naquela noite.

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Dracônia

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Dracônia é um pequeno país muito, muito distante, localizado na Europa Oriental, cercado por montanhas altas e mistériosas, cujas lendas guardam estórias de civilizações perdidas, desenvolvidas no interior de cavernas com quilômetros de extensão, do período da Grêcia antiga, aliás, o próprio nome do país, dizem estas lendas, tem origem no nome do legislador grego Drácon, que seria o fundador da primeira comuna draconiana. Esta região era formada pelos feudos independentes do Duque de Dracônia, Barão de Grascovia, Duque de Trollia, Arquiduque de Monte Negro, Conde de Flosvia, Visconde de Floresta Negra, Marquesa de Liorsnia, Visconde de Argônia e Duque de Borsvia, que governavam politica, militar e administrativamente suas terras. Mas esta organização estava com os dias contados, pois uma unificação dos feudos era iminente devido um inimigo comum, os turcos otomanos, que já podiam ser vistos marchando contra a Romênia, de Vlad Teps. Preocupados com estas invasões e, conhecendo a história grega das Termópitas, na defesa da integridade da

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cultura ocidental, os senhores feudais se reuniram naquele que seria o inicio da organização do Reino de Dracônia, para discutir e traçar os planos defensivos da ameaça próxima. Em uma assembléia memóravel, onde os ínclitos defensores do Vale de Campos se reuniram e proclamaram o Duque de Dracônia como generalíssimo supremo dos exércitos dos feudos unidos, uma nova era estava iniciando-se. E assim, diante da Catedral de Floresta Negra, o cardeal de Monte Negro e o bispo de Floresta Negra abençoam os exércitos que, esperançosos na sobrevivência de sua cultura, identidade e família, partiam para o Campo de Batalha. Dias de marchas severas, não foram o suficiente para abater o moral das tropas que, entoando cânticos tradicionais, marcavam o passo de heróis anônimos, rumo ao “Deus sabe o que”. Já anoitecendo, o Duque de Dracônia resolve acampar em um local onde, segundo os seus espiões de vanguarda, distanciava poucos quilômetros do exército inimigo que, também segundo eles, era da proporção de três para um. O alto comando se reúne e traça seus planos de ataque. Primeiro a artilharia, com cargas de catapultas iria enfraquecer

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a linha de frente, seguida de flecheiros. Depois, ainda resguardadas por estes, a cavalaria atacava, abrindo caminho para a infantaria. Todos concordaram com o plano e com o ataque, nas primeiras horas do dia à nascer. Mas neste momento, quando todos já brindavam, entrou na tenda do Duque um homem de idade avançada, vestindo um hábito surrado, que todos reconheceram como sendo da ordem dos Franciscanos e, dirigindo-se à Felipe de Dracônia diz que o plano é bom, mas o ataque deveria ocorrer somente no dia seguinte ao acordado, dia de Santo Antônio, e saiu da tenda. Todos riam, menos Felipe, que correu atrás do frade mas não o encontrou. Pergunta para um, pergunta para outro e nada de alguém ter visto um tipo semelhante. Encontra o Bispo de Floresta Negra, que vinha de sua meditação habitual das 18 horas, e pergunta sobre o religioso. - Não veio conosco nenhum religioso que se enquadra nesta descrição, deve ter sido impressão de Vossa Excelência. - Então foi coletiva, pois todo o alto comando estava em minha tenda e viu-o e ouviu-o, vamos lá para o

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senhor ver que não é da minha cabeça.

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Chegando na tenda, todos confirmaram o acontecido, e o bispo ficou pensativo, chegando a conclusão que não era o demônio pregando peça, pois falou em nome do Santo, restando à todos seguirem com a orientação. E assim foi feito, no dia indicado pela aparição, enquanto estavam posicionando suas ostes para o confronto, o Duque viu uma gigantesca águia que refletia a luz do sol, assumindo um tom vermelho reluzente, em contraste com o céu de primavera, intensamente azul, voando livremente. Apontando para o lindo espetáculo e chamando a atenção de todos, disse tratar-se de um bom augúrio, confirmando a profecia anterior, cuja vitória seria certa. Todos bradaram com entusiasmo, elevando mais ainda o moral da tropa, e assim, Dracônia caiu com peso total de seus exércitos, animados com a notícia que seriam amparados por forças divinas, em cima dos exércitos agressores, que foram totalmente rechaçados, mesmo com superioridade numérica. Este dia foi 13 de Junho, que passou a ser comemorado como o dia da vitória da Batalha de Campos, dia em que Felipe

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de Neutrasdann foi aclamado rei Dracônia, como Felipe I.

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de

Brasão de armas de Dracônia. A cruz amarela em campo vermelho representa a aparição do frade, a águia vermelha coroada sobre campo verde o augúrio e esperança do dia da batalha, a espada sobre campo amarelo, a justiça e, o orbe sobre campo azul o céu daquele dia.

Felipe I havia recebido uma educação rigidamente militar, mas gostava muito de estudar filosofia clássica e escolástica e nesta, estudou a arte Quadrivium, aritmética, geometria, astronomia e música. Em seu reinado foi fundada a Universidade de Liorsnia, em homenagem a sua esposa, a Marquesa de Liorsnia, como presente de casamento ao povo. Também tinha ideias liberais, liberais demais para a época, e decide criar o Conselho Draconiano de Aprovações de Leis (CoDraProLe), constituído de

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delegados, que eram indicados pelas aldeias de todo o país e por representantes da aristocracia. Este conselho reunido tinha a função de relatar ao Rei as atividades políticas e sociais do país e juntos, discutir a necessidade de criação de leis e afins, bem como estudar propostas de interesse nacional sugeridos pelo povo, através das representações distritais. Alguns anos depois, é iniciada a construção do Palácio Real, com o Rei inspecionando pessoalmente a obra e, em uma das visitas diárias, enquanto estavam sendo escoradas as paredes do subsolo, ouve-se o alarme de desabamento, fazendo com que todos os trabalhadores abandonem o local imediatamente. Contudo na agitação, o Rei viu que um jovem ainda permanecia lá, preso pelas pernas por várias toras de madeira. Incontinente precipitou-se ao local, mesmo com as advertências de seu séquito, e foi sepultado vivo, sob toneladas de terras. Assim morreu Felipe I, sem filhos, e a rainha, que governaria na ausência do Rei, abdica em favor do primo de seu marido, o barão de Livariaste, que nesta altura morava na Inglaterra. É acionado o Conselho de Segurança Nacional, que decreta um regente,

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assumindo o Visconde de Floresta Negra, que governa até a preparação do novo rei. Coroado como Felipe II, o novo rei termina a construção do Palácio Real, inicia a reforma da Catedral de Floresta Negra e, devido sua estada na Inglaterra, inspirado pela organização política do país, decide criar vários conselhos de estado, descentralizando o poder local, cujos novos representantes seriam eleitos por voto direto e nominal. Decide também criar o dispositivo de primeiro ministro, que o próprio Rei escolhe, ratificado pelo Conselho Draconiano de Aprovações de Leis. Outra paixão sua era o mar, que via nesta estrada, a saida para novas terras, novas ideias, além da intensificação do comércio, fundamental para a economia do país que cada vez mais ele amava e se identificava. Baseado nestas ideias, começa a construção de um porto, que oferecendo vantagens diversas, atrai para o país diversos armadores, para lá mesmo construir seus navios mercantes e de guerra, iniciando assim sua armada. Com vistas ao futuro próximo, funda a Real Academia Naval, em Trollia, e o Real Observatório de Flosvia, vinculado à Universidade de Liorsnia, de onde sairiam os sábios para as ciências e o futuro almirantado de suas esquadras.

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Dizia sempre que a prioridade de seu reinado era a educação, as crianças e a saúde pública.

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- A primeira porque nós dá o caminho para saírmos de qualquer crise, a segunda simboliza o futuro e a terceira, bem, a terceira é a que nos dá condições de trabalhar. - E quanto à comida? Perguntava seu ministro. - A comida não entra em plano de governo, por que é principio e, todo principio é a causa primeira de ser cidadão. Se queremos que nossa nação seja grande, devemos respeitar, inclusive nós os governantes, o princípio. Com estas ideias liberais, herdadas de Felipe I, convoca os Estados Gerais, onde todos os cidadãos são chamados à participar, e começam a redigir a carta magna de Dracônia, com ítens como educação básica, saúde, dignidade e liberdade religiosa e de imprensa. Cada Província tinha sua representação e autonomia, e o governador era indicado pelo povo e ratificado pelo conselho distrital, composto pela aristocracia local, lideres comunitários e personalidades de classe,

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como advogados, artesãos, médicos, etc. Este conselho tinha a obrigação de avaliar o candidato quanto a competência para o cargo e sua vida moral. Qualquer nódoa em sua carreira era passível de impugnação, que deveria ser estudada pelo Rei. Assim foi preparada, apreciada e votada a redação final da constituição de Dracônia, com um ítem curioso, uma característica interessante de se anotar, é que a jurisprudência em Dracônia é isenta de sistema carcerário, não existe masmorras ou prisões e, os jovens infratores ficam sob tutela de famílias específicas, sendo dirigidos à escolas especialmente cadastradas para os receberem, principalmente de formação técnica, e que, mensalmente, enviam para o juiz da Vila um relatório do comportamento do pequeno. Os adultos são inscritos em frentes de trabalho de vários tipos, onde são incentivados a estudar em cursos profissoinalizantes e trabalhar, nunca confinados, inativos, ociosos. Os anos de reinado de Felipe II seguem em paz, mas o que é bom dura pouco, e uma epidemia de variola invade Dracônia que, mesmo com um grande amparo médico, graças às escolas de medicina e os estudos da farmacopéia,

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não consegue impedir a entrada de um invasor minúsculo, ceifando a vida de muitos, inclusive do jovem Felipe II, que morre sem contrair núpcias. É novamente acionado o Conselho de Segurança Nacional, que mantêm o primeiro ministro Visconde de Floresta Negra como regente, até que o tio avô de Felipe II, o Marquês de Coqueiros seja preparado e finalmente coroado como Felipe III. O governo de Felipe III pode ser considerado como a mais agitada e conturbada fase da história de Dracônia. Felipe III não gostava de pessoas dando palpites em seu governo, ou outras pessoas e instituições tendo liberdade demais para opinar, sugerir ou criar leis. Também não gostava do excesso de liberdade de imprensa, de forma que os jornais pudessem criticar o Rei e o governo, e também não era favorável à instrução ilimitada do povo, pois acreditava que muita informação na cabeça de despreparados, poderia causar a desorganização social. Assim, um dos seus primeiro atos foi a extinção de todos os conselhos, representações distritais e ministérios, ficando somente ativos o ministério da guerra, para cuidar da defesa e o da agricultura, para garantir a comida.

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Como era de se esperar, depois de tanta democracia e progresso, sentidos e apreciados pelo povo, iniciou-se uma onda de protestos e levantes, como a Guerra de Liorsnia, nome dado ao levante contra o fechamento dos principais pontos de imprensa e cultura, quando foi decretado o fechamento de vários cursos universitários. Outro levante foi a chamada Guerra de Faixas, liderada pelos representantes eleitos nos distritos, que eram identificados devido uma faixa vermelha presa no lado esquerdo do peito. Este levante era amparado pelo povo e lideres da aristocracia local, que foram preteridos de qualquer consulta na política. Este foi o levante mais perigoso, pois o povo viu que a monarquia liberal e democrática, que estavam acostumados, estava perdendo espaço para uma tirania despótica e, todos as conquistas sociais e políticas conquistadas estavam sendo perdidas. Neste tempo, o Conde de Flosvia termina a construção de seu palácio e organiza um grande banquete de inauguração. Convida toda a Côrte de Dracônia, o qual comparecem em peso, pois acreditavam transformar a festa em uma audiência coletiva, onde iriam apresentar para o rei a insatisfação

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popular. Na viagem de ida, Felipe III é consultado pelo seu ministro da Guerra, Arquiduque de Monte Negro, sobre a guarda real que pretende levar para sua segurança.

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- Somente minha guarda pessoal de honra, nada mais. - Mas Magestade, o clima político não está dos melhores, há levantes de insatisfação por todo lado. - O povo não me odeia Monte Negro, o povo somente não me compreende. O que estou fazendo é para o próprio bem deles. São como crianças, que foi dado uma grande responsabilidade para administrar, contudo não possuem a maturidade necessária para tal. Eu fiz um favor para todos, centralizando a responsabilidade em meu cetro. Felipe III era, como podemos ver, muito sistemático. Sabendo disso, Monte Negro não disse mais nada, reservando-se apenas ao ato de uma profunda reverência e saindo do gabinete real. Tomou então seu coche e, acompanhado de seis guardas de honra partiu para Flosvia. No caminho, ainda na floresta de Argônia, o coche para subitamente. O rei furioso abre a porta e

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vê que esta cercado por mais de 100 cavaleiros, que não consegue identificar.

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- Magestade, boa noite, por favor, saia do coche para conversarmos. - Como se atreve a falar assim comigo, maldito bandoleiro. - Eu não sou maldito, nem bandoleiro. Tenho uma família, mulher e filhinhos que eu amo e me preocupo com o bem-estar deles. Isto não é um pedido, é uma ordem em nome dos Estados Gerais e dos Conselhos de nosso país. - Quem é você? Qual seu nome? Identifique-se para seu rei e senhor. - Meu rei e senhor perdeu-se nas entranhas do cipoal da tirania, sou apenas um draconiano descontente e infeliz, que representa o sentimento de toda a nação. Neste momento, o rei saiu do coche e aceitou conversar com os atrevidos cavaleiros, que tinham a audácia de questionar os atos reais. Na verdade, ele queria era saber quem estava por trás daquela máscara. Desconfiava ser o Conde de Flosvia, que havia organizado o banquete apenas como subterfúgio de tal ato, mas não era verdade, o conde estava no castelo e, já preocupado com o atraso

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do rei, ordena uma tropa de honra para encontra-lo e escolta-lo. Começando a conversa, o grupo apresenta suas reinvidicações, a começar pela reabertura da universidade e o reativamento de toda a estrutura política, de divisão de poder. Felipe III era muito explosivo, e perdeu totalmente a paciência quando os revoltosos disseram que ou ele assinava, dando sua palavra de honra que realizaria as reformas, ou ele iria ficar prisioneiro deles para sempre. O Rei diante deste atrevimento tranfigura-se, e totalmente enfurecido, gritando e esmurrando uma mesa adaptada, morre, vitima de um derrame cerebral, tingindo de vermelho toda sua cabeça. Os revoltosos surpresos e atônitos, colocam ele na carruagem e despedem-se da guarda real, que participou de tudo como testemunha. Quando a tropa do Conde chegou no local, já não havia mais ninguém dos revoltosos, somente os guardas que apresentam um relatório do acontecido, cabendo apenas ao Conde dizer: - Assim é nossa vida, ou nos reformamos por amor, ou pela dor!

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E assim, foram passando os anos e os séculos, e a monarquia em Dracônia estava consolidada com a dinastia Neutrasdann e com sua política liberal e democrática de Felipe II.

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Henrique

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É durante o reinado de Felipe V que nasce o personagem de nosso interesse, Henrique Luis Duirdo Rischter. Henrique nasceu em Liorsnia, em uma linda tarde de outono, e desde muito cedo mostrou aptidões artísticas, retratando com muita naturalidade e perfeição as paisagens de sua cidade. Gostava de dirigir-se ao bosque do Carmo, que os Marqueses sempre preservaram com muito carinho e cuidado, e deliciavase na primavera e outono com os sons que o vento entre as árvores produzia, como os sons de órgão que aos domingos ouvia na catedral de Floresta Negra. - O homem repete em instrumentos o que a natureza faz voluntariamente - dizia o jovem Henrique aos seus pais. Seu pai era advogado e trilhando a carreira pública, chegou a magistratura da Real Côrte de Justiça de Dracônia. Sua mãe era professora primária, ocupação que lhe dava muito prazer e satisfação, pois dizia que sua maior paga era quando reencontrava seus antigos alunos, os quais havia ensinado a desenhar as primeiras letras, vendo-os transformados

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em honrados cidadãos, trabalhadores e respeitadores da família e do país, e que haviam aplicado as lições aprendidas nos livros e nas aulas, sobre o respeito à sí próprio e ao próximo, que o direito de cada um termina quando começa o direito do outro. Também dizia que o que ela mais adorava era quando um pequeno infrator era colocado sobre sua guarda, em sua casa e, recebendo carinho e atenção se transformava, como um fênix em um cidadão draconiano. Seu pai fazia muito gosto que seguisse sua profissão e a sua mãe, por sua vez, gostaria que Henrique fosse professor. Mas nem Henrique mesmo sabia o que queria ser, na altura de seus doze anos de idade. - Vou ser músico, tocar órgão e pintar quadros. - Ah, vai ser músico? Então começa a tocar as galinhas para dentro do galinheiro, pois já está ficando tarde, e aproveita e treina tua pintura na casa do Rafeiro (o cão sabujo que ele tinha) e com os postes da cerca – dizia sua mãe. Devido a este fato, toda a família começou a chama-lo de “artista”.

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Na hora de levantar para ir para a escola: - Ô artista, levanta logo para não chegar atrasado na escola. Para almoçar: - Francisco, chama o artista para almoçar. Quando fazia alguma traquinagem: - Pronto, tinha que ter a mão do artista. E assim seguiam os dias. Certa vez, presente em um dos concertos de órgão da catedral, foi abordado por um padre que lhe perguntou se não queria fazer a primeira comunhão. - Primeira comunhão? O que é isso seu Padre? - Você não sabe o que é primeira comunhão? - Não! - Você é católico? - Não sei, vou perguntar para minha mãe. Eu sei que sou Liorsniano, pois nasci lá. E o padre espontaneidade.

riu,

pela

sua

- Eu quero dizer, qual é a tua religião meu filho? - Ahhhh, somos cristãos, pois sempre quando estamos em família rezamos para Deus e Jesus e nosso anjo da guarda, para abençoar nossa

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família, nossa Dracônia, nosso Rei e todo o mundo. - Mas não sabe se é cristão católico, cristão protestante, cristão ortodoxo ou cristão espírita? - Não, isso eu não sei, por que? - É que sempre vejo você aqui, assistindo os concertos de órgão e pensei que fosse católico e, como nunca o vi nas aulas de catecismo, pensei em convida-lo. - Preciso falar com meus pais. - Isso, fale com eles e diga para virem falar comigo. - Está bem. Até logo padre. Qual é mesmo o teu nome, padre? - Estevão, e o teu? - Henrique. Voltando para casa, encontrou todos já sentados para almoçar, preparando-se para fazer as preces de agradecimento. - Demorou desta vez, Henrique! Por onde estava? - Na catedral ouvindo o concerto de órgão. Papai, o padre Estevão quer falar com o senhor. - Falar comigo? O que você aprontou? - Nada! Estava lá sentado, ouvindo o concerto e ele me perguntou se eu e

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meus irmãos não queriamos fazer primeira comunhão. - E o que respondeu? - Ué, que eu não sabia o que era primeira comunhão e que ia perguntar para o senhor e para a mamãe. O que é isso papai? Seu pai disse que depois do almoço explicaria para ele e, ato contínuo, foram para a sala, onde seu pai acendeu seu cachimbo e começou a explicar-lhe.

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- Entendeu Henrique? Nunca perguntamos para vocês pois eu e tua mãe decidimos que se quisessem fazer, seria por iniciativa própria, e minha teoria estava certa, eis você aqui! - Entendi! Quer dizer que somos cristãos, porque acreditamos em Deus e Jesus, mas não somos católicos, porque não fomos batizados. Quer dizer que estamos errados? - Como errados? - Não fazemos parte da Igreja. - Da igreja cristã fazem parte sim, não da comunidade católica. Para ser cristão, acreditar em Jesus e Deus não precisa ser católico, basta ser um bom cristão.

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- E o que é ser um bom cristão? - Muito bem Henrique, este é o ponto chave da religião. Para ser um bom cristão, precisa ter o templo de Deus e Jesus o mais limpo possível. - Então precisa frequentar um templo, uma igreja? - Não! E parou para olhar o fumo do cachimbo que se desfazia no ar. - Então, como é isso? - Precisa ter o coração puro e limpo. O coração é o melhor, maior e mais perfeito templo de Deus e Jesus.

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Neste instante Francisco, um garoto infrator de dez anos que estava instalado na casa do magistrado começou a chorar, e perguntado o porque do choro, disse que não tinha o coração puro, pois era mau, por ter roubado. O magistrado sentado em sua cadeira, comovido com a confissão do pequeno, colocou o cachimbo na mesa, estendeu a mão direita e chamou para seu colo o menino, que ficou lá sentado enquanto a conversa continuava. - E como eu tenho o coração limpo pai? - É ai que a porca torce o rabo, Henrique. - Por que?

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- Porque o único jeito de ter este templo puro, de forma que possa ser chamado de Cristão é amando o próximo como a sí mesmo. - Isso é fácil papai, eu amo o senhor, a mamãe e meus irmãos, a vovó e o vovô e os tios, os primos. - Estes não são os próximos que disse Jesus. O próximo é aquele que sofre e não é teu parente. O próximo é aquele que precisa de teu cuidado imediato e você nunca o viu mais gordo. O próximo é aquele que, sendo filho e criatura de Deus, precisa de sua ajuda. - Todo o mundo? - Todo o mundo! - As formigas também? - Também. - Nosso cavalo, o Caprichoso também? - Também! - Nossa papai, para ser cristão vai dar trabalho heim? - Você deve fazer o que estiver ao seu alcance, filho! Se cada um fizer o que estiver ao próprio alcance, o trabalho fica mais fácil. E Henrique passou o final da tarde de domingo a meditar o que ouvira de seu pai. Foi para seu lugar favorito no Bosque

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e caiu em um sono profundo. Quando acordou, o sol já estava quase se pondo e correu para casa, pois tinha novidades para seus pais.

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- Papai, mamãe, já me descidi, se permitirem, quero fazer a primeira comunhão. - Isso vai me dar muito gosto – disse seu pai que lia um livro de Contos de Fadas para suas filhas pequenas, Raquel e Nathália, que sentadas no sofá, uma em cada lado seu, ouviam a estória da Gata Borralheira. - E decidiu isso agora Henrique? – Perguntou sua mãe que pegava Francisco no colo para coloca-lo na cama, pois havia adormecido no colo do Juiz. - Sim, andei matutando o que papai me disse e decidi, vou fazer catecismo, e quero ser padre, pois tenho algumas ideias para colocar em prática. - Henrique, vai devagar. A coisa não é assim. A igreja tem uma disciplina rígida. - Tudo bem, vou tentar! O que pode dar errado?

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O que pode dar errado? Esta era a pergunta que Henrique sempre se fazia quando tinha que decidir por algo. Assim começou seu curso de catecismo e ficou um pouco decepcionado pois, o que aprendia no curso não era novidade, pois seus país já havia ensinado.

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- O amor ao próximo começa aí Henrique – dizia seu pai que o ouvia reclamar – Você pode conhecer, mas para maioria dos teus colegas é novidade a vida e obra de Jesus e dos apóstolos. Quer ver? Francisco, meu filho, venha cá por favor. - Sim pai! Toda vez que Henrique ouvia Francisco chamar seu pai de pai e sua mãe de mãe, um sentimento estranho, que ele não sabia traduzir, inundava sua cabeça. - Gostou da aula de catecismo? - Gostei muito. Fiquei emocionado quando aprendemos hoje o Sermão da Montanha. - Você nunca havia ouvido esta estória? - Nunca, e pelo que eu via nos rostos de meus colegas, nenhum também havia ouvido.

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- Que bom que está gostando, pode ir brincar. Ah! Francisco! já ajudou sua mãe a dar comida para as galinhas e recolher os ovos? Já? Então pode ir brincar! - Viu Henrique! Como você conhece alguma coisa, e está longe de conhecer tudo, você deve ajudar os outros, assim como você já faz na escola, ajudando os que tem dificuldade na matéria. Quanto mais ensina, mais aprende, pois nós aprendemos as coisas por repetição. 74 74

E Henrique entendeu a lição, mas fazia perguntas para o catequista cuja maioria delas ele não sabia responder. - É melhor perguntar isso para o Padre, Henrique, eu não sei responder! – Dizia o catequista humildemente e contrariado, pela situação que Henrique sempre o colocava. - O que foi agora Henrique? – Perguntou o Padre Estevão com muita alegria, pois via o progesso e inteligência racional do menino. - Padre Estevão, estou em pecado mortal.

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- Cruzes, o que aconteceu? – Disse sorrindo. - Contrariei a quinta lei de Deus: Não Matarás. - Você matou alguem? Perguntou o Padre, para a criança de 12 anos, cuja ingenuidade era patente. - Sim. Meu pai disse que deveríamos amar ao próximo como à nós mesmo, que é o resumo de toda a lição de Jesus. - Sim, e daí? - Bem, o sr. Afonso, na aula de catecismo de hoje disse da alma, que Deus é quem cria a alma. Logo, pensei, como Deus cria tudo, todos os seres vivos tem alma, pois todos foram criados por Deus. - Sim, e daí? - Bem, eu pequei contra a lei de Deus, que é de não matar, pois matei um ninho de formigas saúvas que estavam destruindo a plantação de rosas de mamãe. O Padre ficou atônito e desconcertado, mas graças ao seu jogo de cintura, contornou a situação. - Henrique, acalme seu espírito. Quando você fez isso, você não sabia, ignorava entende? Então não

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pecou! Mas agora você já sabe, não ignora mais. - Então eu não estou em pecado? Deus não está zangado comigo? - Não está, alías, Ele está contente, pois você entendeu a sua lei e sua criação. Tome, leia este livro. É sobre a vida de São Francisco de Assis e os animais. Você vai gostar.

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E saiu do gabinete do Padre mais leve, como se tivessem tirado de seu pequeno ombro um grande fardo, sendo seguido com os olhos perscrutadores e bondosos do Padre. E assim, depois de algum tempo e muitas perguntas e saias justas, termina seu curso e é convidado pelo Padre à integrar a equipe de coroinhas, que incluia um estudo teológico, estudo de canto coral e o que realmente despertou seu interesse, um curso de música prática e teórica, que incluia aulas de órgão. Falou com seus pais e estes não se opuseram, apenas perguntaram se não ia atrapalhar seus estudos no colégio. - Não papai, é depois do colégio, na parte da tarde. Tudo acertado, começou seus estudos que, depois de um certo tempo e

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muita dedicação e disciplina, os terminou com grande proveito, de forma que já dava seus primeiros concertos de órgão, fato que o possibilitou viajar por toda Dracônia, tocando no Real Teatro de Monte Negro, de Bólia, Trollia e arredores. Com o témino do curso no colégio, e já contando com 18 anos de idade, tocando perfeitamente piano, violão, cravo e órgão, comunicou seus pais de sua decisão para o futuro. Não seria nem advogado, nem professor, nem artista. Seria Padre. Queria dirigir uma Paróquia e instalar nela suas ideias, que não dizia para ninguém. Naturalmente seus pais ficaram contrafeitos, pois tanto o pai como a mãe já viam para o filho uma carreira magnífica, tanto na magistratura como na universidade. Quem sabe, poderia chegar até a ser Primeiro Ministro do Reino. Mas assim é, os pais criam os filhos para o mundo e, longe de lamentar sua decisão e, depois de uma longa conversa de amigo para amigo, somente restava para seus pais abençoa-lo e deixar que voasse para fora do ninho. E assim, partiu o jovem Henrique para o Seminário na Basílica do Arquiducato de Monte Negro, saindo de vez em quando para visitar seus país e irmãos.

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Fez grandes amigos, podendo até dizer, seguidores, graças à sua inteligência e facilidade de compreensão dos textos, o que sempre ajudava os colegas em seus estudos. Também seus professores o estimavam muito, mas sempre preocupados, devido as ideias liberais e reformistas que estavam sempre infestando sua jovem cabeça.

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- Se temos que dar de graça o que de graça recebemos, por que temos que cobrar os sacramentos da extrema unção, do batismo, do casamento? - Porque a Igreja vive destas colaborações. - Mas não são colaborações. Não fica ao critério da pessoa que solicitou estes serviços de dar o que pode. E lá ia novamente Henrique falar com o Prior do Seminário, que o fazia ver que a Igreja possui um regulamento, um sistema, que funciona bem por mais de dois mil anos. - Dois mil anos não, menos, pois estudamos no Ato dos Apóstolos que na “Casa do Caminho” todos eram recebidos, recebiam o pão e a água material e

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espiritual e, aqueles que queriam eram batizados e não se cobrava nada.

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Restava para o Prior punir Henrique, por arrogância e orgulho, à recolher-se em sua cela para meditar e orar. Acatava, mas não concordava, tanto é assim que volta e meia vinha ele com novas teses. Quando tocava o órgão do Seminário, lembrava de sua casa, do bosque, ouvindo os sons que saiam dos tubos como o movimento dos ventos nas árvores. Lembrava também dos camponeses tocando seus acordeões nas festas, e o povo a dançar as lindas músicas populares. - Uma música erudita, é uma música que nasce sistematicamente e academicamente, ou seja, é baseada em uma certa erudição, estudo e formação acadêmica para compô-la, mas não aprecia-la, pois qualquer pessoa pode senti-la e guarda-la. A música popular é uma expressão menos sistemática e acadêmica, nasce da emoção automática. Os pitagóricos eram eruditos, os camponeses são emotivos. – Pensava ele enquanto estudava e meditava.

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Os anos passam e Henrique termina o Seminário, sendo ordenado Padre. Dando continuidade aos seus estudos, começa o curso de doutoramento em Teologia e, como não podia deixar de ser, sua Tese de doutorado deixou seus professores de cabelo e barba brancos, e seu pai e mãe orgulhosos. O tema de sua tese era: “Apologia à Judas, o iscariotes”, aplicando o direito na defesa do discípulo traidor, por isso que seu pai ficou orgulhoso. Na introdução ele escreveu que desde criança via com tristeza e indignação a manifestação pública de “malhar o Judas”, na qual, no Sábado de Aleluia, bonecos feitos de pano eram amarrados pelo pescoço em um poste e as crianças, e alguns adultos, batiam com pedaços de pau e depois ateavam fogo. Ele não conseguia conceber esta demonstração de violência gratuita e desnecessária. Nas conclusões é ainda mais enfático, e mostra a superioridade espiritual de Jesus, apresentando a Tese no qual “Aquele que ensinou a perdoar setenta vezes sete, a dar a face esquerda quando golpeado na direita, a amar o próximo como a si mesmo e não julgar para não ser julgado, a guardar a espada para não morrer por esta, um Ser sublime e divino como é Jesus não iria condenar

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ao suplício e maldição eterna uma pessoa que comia e dormia com Ele, ouvia seus ensinamentos e foi o único a quem Jesus confiou a missão mais importante de seu apostolado, a missão na qual todas as escrituras e os profetas estavam sobre os ombros. Os ombros de um ser humano falível”. Terminando sua apresentação, passou-se à arguição, onde todos os componentes da banca elogiaram o trabalho e aprovaram sua Tese, com resalvas e várias sugestões de correções.

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A vida nova

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Assumindo a Paróquia de Argônia, reorganizou a catequese e fazia questão dele próprio ministrar o curso para as crianças. Argônia era a região mais carente de Dracônia e o trabalho a ser desenvolvido com a população era gigantesco. Transformou sua Igreja em escola para alfabetizar os adultos, realizando o sonho de sua mãe, e ajudava os camponeses a redigir petições para os representantes da lei, para gáudio de seu pai. Com os contatos que tinha, inclusive com membros da família real e alta aristocracia, que o apresentava aos empresários, conseguia doações de roupas, alimentos e brinquedos, que distribuia mensalmente para as famílias de sua Paróquia, e ainda ajudava outras Paróquias que se encontravam na mesma situação que a sua. Como era o filho mais velho, ajudava sua mãe na cozinha quando adolescente, o que lhe deu grande experiência e, aplicou-a na cozinha da Igreja, preparando a sopa que era incrementada nas proximidades do inverno, juntamente com algumas senhoras e jovens voluntários.

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Pelo menos uma vez por mês, transformava a nave de sua igreja em um grande salão, posicionando tábuas por cima de cavaletes, onde todos comiam juntos, com grande respeito e alegria, a sopa e o pão e, depois da visita do Cardeal de Monte Negro e da Rainha Bibiana, também passou a ter alguns assados no cardápio. A Rainha ficou impressionada com o jovem Padre, e passou a organizar chás beneficentes para arrecadar principalmente roupas para os recém nascidos e para os idosos. Mas também para levantar dinheiro, para a construção de um albergue e um asilo, junto a Igreja, pois quando ficou sabendo que o Padre abria as portas da Igreja para oferecer abrigo aos desamparados ficou desconsolada. - Mas Padre, onde eles dormem? – Perguntou a Rainha? - No chão, eu adapto cobertores ou colchões feitos de palha e eles dormem, ao abrigo das intempéries e de animais. - E não atrapalha os ofícios da Igreja? - Não, pois eles costumam acordar cedo, então em multirão me ajudam a arrumar tudo e a lavar o chão da Igreja. Pelo menos de sujeira e mal

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cheiro nunca reclamaram. Depois de assistirem a missa, tomamos um café da manhã, simples é verdade mas, Magestade, para muitos, é a única refeição do dia.

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Um ano depois, dois anexos já estavam construidos para abrigar os desamparados e os idosos, mas a refeição comunitária mensal na nave da Igreja continuou, isso Henrique fazia questão de manter e a rainha de comparecer, acompanhada por seu filho, o príncipe Felipe e pelo Cardeal. Aproveitando a amizade com a Rainha, pediu-lhe a ajuda para comprar um órgão, um piano e alguns violões, pois queria ensinar música às crianças, pedido que foi atendido o mais rápido que foi possível. Além de música, também organizou cursos de interesse local como práticas agrícolas, princípios de veterinária e saúde pública para os colonos. Foram dez anos de intenso e feliz trabalho. Quando corria a notícia que o padre artista - pois sua mãe havia deixado escapar seu apelido de infância daria um concerto de órgão, a Igreja era invadida por pessoas de várias regiões, lotando seu pequeno salão, e não era

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incomum ouvir junto aos acordes o choro discreto de alguns que, tomados pela emoção causada pelo soar dos tubos do instrumento, achassem que haviam sido arrebatados. Sua Paróquia iria completar 300 anos de fundação, então ele organizou um concurso nacional, com a ajuda da Corôa, de empresários e principalmente do povo, para comemorar a data. Era um concurso cultural de composição de música sacra, música popular e arte plástica, com o tema central os trezentos anos da Paróquia. Foi um sucesso a festa e as apresentações, que duraram todo o verão. Mas um dia chegou uma carta anunciando sua transferência. Seria transferido para uma cidade em um país muito, muito distante, que não conhecia bem, a não ser pelos jornais e televisão. Era a cidade de São Paulo, no Brasil. Tinha um mês para preparar-se e, neste tempo, um novo Padre seria designado para sua Paróquia. Explicou a situação para todos da cidade, e que, naturalmente, não ficaram felizes. O povo desconsolado uniu-se para escrever uma carta ao Bispo, solicitando que revisse a decisão, mas não foi aceito o pedido, pois o Bispo respondeu que não deveriam ser egoistas e que o Padre iria

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ajudar outras pessoas, mas o que haviam conquistado, isso era definitivo. Despediu-se de seus pais e de seus irmãos, pedindo para Francisco, que havia formado-se em direito, para cuidar de seus país e rumou sozinho para o Aeroporto, onde apenas uma pessoa estava para se despedir dele, a dna. Stael, ajudante de cozinha da Igreja, que o desobedeceu do pedido de ninguém comparecer na despedida.

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- O senhor falou para Ninguém comparecer, bem meu nome é Stael Algen, o que me dava o direito de vir. E os dois riram, se abraçaram e ela aproveitou e lhe entregou um cartão com o nome de todos que puderam assinar, para ele guardar de recordação. Entrou no avião e partiu, sem olhar para trás, pois a carne é fraca…

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Novos Ares Chegou em São Paulo em pleno novembro chuvoso e quente. Totalmente diferente de sua terra, que já estava nevando. Ficava confuso pois pela manhã fazia frio, a tarde um calor insuportável, depois chovia e esfriava, depois esquentava novamente.

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- Puxa, isso que é clima tropical. – comentava com seus novos paroquianos - O senhor não viu nada Padre. Espera chegar a temporada de enchente, que em certos casos é melhor ter barco e, o inverno, que o ar fica seco e difícil de respirar. Mas a primeira impressão foi boa. A Igreja era bem organizada, tinha uma creche e a comunidade parecia tranquila. Um mês depois de instalado, reorganizando tudo ao seu jeito, decidiu dar uma volta no centro de São Paulo, para conhecer o famoso Pátio do Colégio, onde conhecia a história da fundação da capital, pois havia lido as cartas de Anchieta no Seminário.

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- Está bem Padre, bom passeio. Mas tome cuidado, pois este teu jeitão de gringo pode atrair a atenção dos trombadinhas, e o centro da cidade está cheio deles. - Está certo Benedito, tomarei cuidado, mas a única coisa que podem me levar são minhas calças ou meus sapatos, pois dinheiro eu não tenho. - Mesmo assim tome cuidado.

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E lá saiu Henrique, rumo ao centro velho e lindo de São Paulo. Seu itinerário para aquele fim de semana era a Praça da Sé, pois queria conhecer a grande Catedral em estilo Neo-Gótico e principalmente o seu gigantesco órgão, já prevendo futuros concertos e, quem sabe, também organizar um curso de música nos mesmos moldes de sua distante Dracônia. Feito os contatos, saiu em direção à Praça da Sé e achou interessante algumas crianças brincando e nadando na fonte, rindo alto e forte. - Criança é criança em todo o lugar, basta o calor para acharem um modo divertido de refrescar-se – pensou sorrindo enquanto olhava.

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Parou para contemplar os antigos prédios que circundam a catedral e tomou o rumo para o Pátio do Colégio. Ficou maravilhado e muito surpreendido pelo tamanho e altura da cidade. A constatação superou a imaginação, dizia ele. Depois pegou a rua Direita e experimentou um sanduíche de Calabreza, no Rei da Calabreza da Quintino Bocaiúva. Riram quando ele pediu um Sande de salsicha de Calabreza.

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- Não se fala salsicha, é linguiça de calabreza. Salsicha é isso, olhe! - Ah, não sabia, na Europa chamamos de salsicha. Rindo junto com as pessoas na lanchonete. E começou a contar sobre seu país, o clima, a política, despertando o interesse dos ouvintes, que se achegavam próximo dele para lhe fazer mais perguntas. - Então vocês ainda tem rei? O Brasil tinha imperador, o último foi D. Pedro II. Se um dia o senhor for ao Rio de Janeiro pode visitar o Palácio Imperial da Quinta da Boa Vista ou em Petrópolis. - E aqui em São Paulo, não tem nenhum Palácio Imperial? - Claro que tem. O Palácio do Museu do Ipiranga. Foi mandado construir por D.

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Pedro I no lugar que ele proclamou a independência do Brasil. Também é muito bonito. Vi em um documentário que os jardins são uma réplica dos jardins de Versailles. Isso é na França não é? Te pergunto pois como é europeu deve conhecer. - Sim é em França, é um lugar muito bonito. - E você veio fazer o que no Brasil? Trabalhar ou estudar? - Vim trabalhar. Fui transferido para cá. Cheguei há um mês. - E trabalha em que? Banco? - Não, sou Padre. - Padre, que legal! E onde é que esta tua Paróquia? Ou é na Catedral? - Não, não é. Mas já fui até lá e vi que posso tocar o órgão. Se o senhor quiser, e gostar, quando for tocar eu posso lhe avisar. - Padre, honestamente, eu não sou muito destas músicas de Igreja. Prefiro um bom samba de raiz ou um baião. - Samba eu já ouvi alguns, mas o que é baião? - É música tradicional do norte do pais, que o pessoal ignorante chama tudo de baiano, mas cada região do Norte e Nordeste tem sua música regional.

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- E como se toca, digo, quais os instrumentos? - Tem a zabumba, o triângulo e o ponto alto, que só macho toca, como tocava o velho Luiz Gonzaga (tirando o chapéu quando falou o nome dele), o acordeão. - Igual a formação dos grupos folclóricos de meu país, com exceção de que também usamos violino. - Alguns grupos aqui também tem, mais para o interior de São Paulo e Minas, mas é chamado de Rabeca. - Então é igual, pois Rabeca é um tipo de violino, só que com o timbre mais baixo. Também toco acordeão e violão. - Então também é macho e agora sim, quando for tocar a sanfona, me chama que eu levo minha zabumba. E os dois novos amigos apertaram a mão e riram gostosamente. - Não Padre, o senhor está louco? É oferta da casa, hoje teu sande com salsicha de calabreza é por minha conta, como um presente de boas vindas. - Mas eu faço questão senhor José.

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- Faz questão nada! Padre, estou ficando ofendido e senhor José é o Pai de Jesus, eu sou o Zé Cristovão, seu criado. - Então Zé, aprende uma coisa! E ouvindo isso, com uma entonação grave que Henrique usava quando queria distinguir algo, Zé Cristovão parou de rir e, apoiando o cotovelo direito no balcão, se inclinou e fez uma expressão de atenção.

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- Não se fala sande ou salsicha de calabreza, é sanduiche de linguiça calabreza. E o Zé e os outros desataram a rir. -

Olha só que gringo abusado, chegou ontem e já está dando aula de português. Desculpa pelo gringo abusado Padre.

E voltaram a rir. Mudando de assunto, a cena da diversão das crianças no chafariz da Sé lhe voltou a mente, e Henrique comentou sua boa impressão com o amigo.

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- Vixê Padre, toma cuidado, são trombadinhas, bandidinhos que se bobear te levam até o Terço. - Trombadinhas, não compreendo. - São crianças criadas na rua e que tomam banho lá. Sempre estão em bando roubando, furtando, cheirando, fumando e o diabo a quatro, um terror. - Assim como Oliver Twist? - Não sei quem é este moço, mas estas crianças são um perigo, são más. - Seu Zé, não diga isso. São crianças e se estão nesta situação de abandono, temos que fazer algo, o que pudermos, o que está em nosso alcance. - Ah Padre, logo se vê que o sr. não conhece estas coisas. Eles são revoltados. Quando aparece um ou outro aqui pedindo dinheiro para os fregueses eu fico bravo e corro com eles, pois não querem dinheiro para comprar comida, que eles e eu oferecemos, querem dinheiro para comprar estas porcarias que vendem por ai e ficam muito doidos. - Coitadinhos seu Zé, imagine um filho ou parente teu nestas situações. - Eu penso, livra Deus, por isso eu ainda tento ajudar. Outro dia mesmo eu ofereci trabalho para um destes, ele podia dormir no depósito e tal. Não aceitou e sumiu, nunca mais o ví por aqui. Deve ter morrido ou ido para outro lado da cidade.

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E o padre, depois de ter ouvido tudo isso, ficou mergulhado em seus pensamentos, idealizando, com um sorriso curto nos låbios, e plasmando suas açþes futuras.

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Asilo La Gioia

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O Asilo “La Gioia”, funciona em um casarão adaptado no centro de São Paulo. Por fora, para quem olha, é uma visão terrível, com muros altos e portão sempre fechado é impossível ver o que acontece em seu interior, mas por dentro… Comporta quinze idosos, de ambos os sexos, e um deles é o sr. Hildebrando, dono da propriedade, avô de Reynaldo, cujo pai, senhor Pedro, é o responsável pela administração do Asilo. A ideia do Asilo começou quando o sr. Hildebrando viu que seus amigos, que envelheciam junto com ele, perdiam seus direitos de cidadãos, pagadores de impostos, pois os parentes achavam que, como estavam velhos, não podiam mais morar nas suas casas, onde viveram por décadas, criaram seus filhos, construíram uma vida. Em uma cidade grande como São Paulo, era perigoso morar sozinho e decidiam que, na melhor das hipóteses, iriam morar com eles, na casa do parente que se disponibilizasse. Assim, vendo a situação de seus amigos, convenceu seu filho e adaptou sua grande casa, recebendo-os como asilados sociais, políticos e de guerra.

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O sr. Hildebrando é de uma cepa paulistana que passou poucas e boas. Participou da revolução de 1924, 1932 e da Força Expedicionária, assim como seus amigos, o que fundiu esta amizade como uma verdadeira fraternidade, facilitando o convívio entre eles. Reynaldo cresceu ouvindo as estórias contadas por seu avô, e se deliciava com as aventuras narradas por ele e pelos outros. O que mais gostava de ouvir era sobre os bombardeiros dos aviões na cidade e das invenções dos soldados, como a matraca, que imitava tiro de metralhadora, e que os adversários se jogavam no chão quando a ouviam, fazendo-os rir muito. Gostava também de sair com ele pelo centro da cidade, onde iam parando no Mercadão da Cantareira para comer, e depois na Tabacaria Reys, para comprar seus charutos cubanos preferidos, que eram apreciados depois das refeições. Mas o Asilo era diferente, bem, Asilo é Asilo, mas era diferente… Bem, comecemos pela comida. Não era comida de Asilo. Para começar quem cozinhava, na maioria das vezes, eram eles próprios, que se revezavam, assistidos pelos cozinheiros contratados, e no menu não era incomum ter pernil assado no forno de lenha que havia no

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quintal. Também não era incomum ter vinho, acompanhando as refeições e um “digestivo”, como o sr. Euclides chamava sua vodka russa, que ele e seu filho compravam na adega da Av. João Mendes. O antepasto podia ser fatias de presunto Parma, pão de linguiça calabreza, que a dona Dorcas fazia, ou cebolinha em conserva no vinho tinto, que mandavam comprar na padaria “Italianinha”, na Bela Vista. A tristeza dos comensais era que não comiam como antes, satisfazendo-se com uma pequena quantidade, mas o importante era degustar, e isso eles não abriam mão. Este era o menu oficioso, pois quando algum parente inventava de os visitar, o Asilo se transformava, como a caverna do personagem de desenho animado da Hanna-Barbera, o “Urso do Cabelo Duro”. A transformação era cômica, digna de representação teatral, pois tinham que passar a ideia de um asilo tradicional, e o problema sempre era dispersar a fumaça de charuto e o cheiro de lasanha e costela assada que impregnava em tudo. A desculpa era sempre a mesma: Os vizinhos!

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Nas Festas também eram requisitadas suas imaginações, pois ao contrário do que seus filhos planejavam para eles, eles preferiam ficar no Asilo e comemorar com os amigos. Quando isso acontecia, já tinham tudo planejado, simulavam uma gripe ou diziam que queriam fazer companhia para o coronel Barbosinha, que como não tinha família ficaria sozinho e triste.

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- E tristeza mata, você sabe não é meu filho? Por sacrifício cristão, vamos fazer companhia ao Barbosinha, que está conosco o ano inteiro! Esta frase era dita por todos, cada um à sua família, e tudo certo. Depois de encerrados os horários de visita, preparavam tudo e comiam e bebiam o que quisessem, depois ficavam até altas horas jogando cartas e apreciando um charuto ou assistindo filmes na TV. O Asilo de velhos parecia mais uma república de estudantes, um absurdo! Mas ao contrário do que possa parecer, eles gostavam de seus parentes. Sempre quando perguntados diziam: - Família é família, insubstituíveis, mas não suporto a ideia de ser

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tratado como inválido e doente permanente. Não posso isso, não posso aquilo, tenho que dormir cedo, não posso beber gelado… Certa vez, o filho do Capitão Estanislau foi visita-lo para levar as roupas que iria utilizar no desfile de Sete de Setembro como ex-combatente, e admirou-se com a forma do septagenário.

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- Puxa papai, o senhor está bem. Corado, contente, e eu pensei que estava triste por não o ter levado para casa. - Sim estou bem, na medida do possível (deu uma tossidinha sem vontade), a sopa que fazem aqui é muito saborosa e as vezes tem até pedaços de cebola e carne, que escaparam do liquidificador. - É, mas cuidado, só falta se engasgar, Deus o livre. Sente muito a falta do conhaquinho e do charuto aos domingos? - Até que não, o chocolatinho quente que servem antes da gente ir dormir, às 18:30hs, substituiu-o muito bem. - Que bom, pai. Tem que cuidar da saúde, não é mesmo?

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- Sim. E aqui cuidam bem da gente – abrindo um sorriso maroto. - Estava conversando com a Francisca. Se estiver bem desta vez, gostaríamos de vir até aqui para comemorar seu aniversário. - Ué, e porque não na sua casa? - É que estamos reformando e o pó pode lhe fazer mal. - Vamos em um restaurante então. Tem uma cantina italiana ótima no Bixiga, e a pizza de calabreza deles é demais. - Pizza de calabreza? Até parece pai! - Até parece o que? Estou velho mas não morto. - Não, acho melhor não sair da dieta daqui. A mudança pode lhe fazer mal. - Sabe que tem razão? E sorria para o filho preocupado, que também abria um sorriso e o abraçava. Nas visitas de Natal, Ano Novo e afins era a mesma coisa, depois dos parentes irem embora a festa corria solto. Quando saia com seu avô, Reynaldo se realizava, mas antes ouvia a recomendação de seu pai, para tomarem cuidado e não darem mole nas ruas. E as duas gerações saiam para passear e fazer

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as compras encomendadas pelos seus colegas. - Vovô, eu ando com uma ideia e queria perguntar sua opinião. - Puxa, estou surpreso, alguém ainda quer minha opinião, achava que velho e pobre tinha que morrer! - Eu sempre escuto sua opinião, vovô, agora segui-la é outra história. E ambos riam e conversavam, enquanto andavam pela Rua Sete de Abril, rumo à Rua Santa Ifigênia 103 103

- Mas então, é o seguinte, eu conto suas estórias na escola para meus amigos e eles ficam muito interessados. Me invejam pois tenho um parente que lutou em guerras e está vivo para contar as aventuras. - Sim e daí! - Daí que pensei que poderia escrever suas memórias e de seus companheiros e publicar. Seria muito interessante o depoimento de verdadeiros combatentes. - Muito bom. - E o título provisório seria “Memórias de um sargento de milicias”.

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- Reynaldo, você vai ser processado por plágio, este título já existe, além do mais não sou sargento, sou capitão. - Então fica “Memórias de um capitão de Milicias”. - Melhor deixar o título para depois que para dar nomes você é um fracasso, igual meu pai. Minha mãe queria que eu me chamasse Rafael e meu pai me registrou como Hildebrando, veja se isso é nome. Quando criança eu já tinha nome de velho. Mas a ideia é boa e tenho certeza que o pessoal vai gostar de participar. - Também queria retratar com ilustrações a São Paulo daquela época, enriquecendo o livro. - Bom, isso é mais ou menos fácil. Tem vários artistas que expõe quadros e ilustrações feitos a mão livre na Feira da República, podemos ir até lá e você ver o que te agrada. Quem sabe algum deles não ilustra o livro para você. Questão de conversar. E Reynaldo ficou contente, com a promessa de ajuda de seu avô e, já na sua cabeça, as ideias fervilhavam.

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- Bom, está quase na hora do almoço. Quer ir em uma lanchonete horrível ou comer uma maravilhosa “Bisteca de Ouro” no “Sujinho” da Av. Ipiranga. - Bem, depois desta pergunta imparcial, posso escolher sem dúvidas a Bisteca de Ouro, “craro Cróvis”.

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Parte 2 Maratona da Alvorada

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Com o grupo disperso, cada um seguiu um caminho, um destino. Livio seguiu para a região do centro, atuando na Luz, na Consolação e Anhangabaú. Em uma certa altura do dia, o ditador estomacal exigia comida. Nestas horas, muitos garotos e garotas de rua utilizam outros meios, não muito ortodoxos para driblar a fome, como cheirar cola de sapateiro, por exemplo, ou queimar uma pedra de crack. Mas Livio tinha rudimentos de instrução, conseguida no Clube Privê e a auto didata, assim, assistindo TV, ouvindo rádio e lendo em jornais, sabia do grande problema que o consumo da cola e da pedra trazia, e o que lhe causava mais forte impressão, viu seus amigos morrerem devido a ação e reação delas, utilizadas para aplacar além da fome, o frio das madrugadas geladas de São Paulo, colocando na cabeça que não iria fazer uso disso. Mas certo dia, quando esmolar não foi suficiente para comprar comida e com as constantes negativas de seus pedidos de “Tio, paga um lanche”?, decidiu

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experimentar a cola e tentar um furto na Rua 24 de Maio. Fixou sua vítima e partiu com tudo para cima dela, puxando-lhe a bolsa que trazia pendurada no ombro. Gritos de “pega ladrão” e “trombadinha” eram ouvidos por toda as ruas próximas, e um grupo começou a persegui-lo. Meio alucinado, meio consciente, correu em sentido à Rua Conselheiro Crispiniano e em um ímpeto olhou para Bastião Negreiro, que respondeu o olhar, abrindo um alçapão de seu comércio, escondendo o menino da multidão. 108 108

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Cadê o bandidinho?

moleque?

Cadê

o

E as pessoas que o estavam perseguindo concentraram-se próximo a banca de Bastião, formando um círculo, pois haviam perdido seu rastro. - O senhor não viu um trombadinha passar por aqui? Ele roubou a bolsa desta moça e nós o estamos perseguindo para lhe ensinar uma coisa. - Não o vi bem, pois estava atendendo um cliente, mas vi que escorregou e deixou cair essa bolsa, levantou-se e continuou a correr em

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sentido a Rua Sete de Abril. Eu ia levar para o posto da PM. - Ai meu senhor, obrigada por recuperar minha bolsa. Dinheiro não tenho, mas está com todos os meus documentos e o senhor sabe a trabalheira que dá para tirar novamente a segunda via. - Não há de que. A senhora não está interessada em dar uma olhada em meus produtos? Não? E o senhor? O Senhor? Talvez o Senhor?

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Fez a mesma pergunta à todos, em uma tentativa de arrefecer os ânimos, até que começaram a debandar. Esperou mais um tempo e abriu a porta da banquinha, vendo uma criança toda engaferada que dormia desmaiada. Um sentimento de piedade invadiu a alma de Bastião, coisa que nunca tinha sentido, nem sabia explicar o que era. Teve os olhos rasos de água e, como resposta à perquirição de seus companheiros, somente disse: - O que querem que eu faça? Se soltar ele, o pessoal vai lincha-lo e, se isso acontecer, nunca mais teremos paz com nossas consciências.

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- Mas o que quer fazer Bastião? Perguntou Carlinhos aflito pelos acontecimentos. - Sei lá, vamos ver no que dá. Ele agora está dormindo, desmaiado. Quando acordar vamos conversar com ele, ver quem é ele, sei lá, não sou Deus para saber de tudo! - É perigoso! Não sabemos a índole deste moleque. Pode ser um assassino. Estas crianças de rua são fogo, você sabe. - O que eu sei é que temos que ajuda-lo, senti isso, não sei explicar. Vamos dar uma chance para o moleque. O que você acha João? - Não acho nada. Por um lado o Carlinhos tem razão, não sabemos quem é o moleque mas, por outro, creio que o Bastião agiu certo, pôde ajudar alguem em necessidade e fêz. Vamos esperar e ver no que dá. Se ainda estiver dormindo quando acabar o expediente, vamos leva-lo para minha casa, no cortiço, que lá é seguro e eu vejo o que acontece. Que acham? Com o consentimento geral, os três continuaram o trabalho e, de tempo em tempo, o Bastião abria a portinhola para

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sondar Lívio, que dormia profundamente, ou melhor, que profundamente desmaiado dormia. Horas depois, acordou confuso, com ânsia de vômito e com uma terrível dor de cabeça, mas estava aquecido, coberto por alguns edredons. Não reconhecendo onde estava, deu um salto da cama, ficando de pé ao lado do estrado, mas como ainda estava de rebordose caiu, sendo amparado por João.

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- Onde estou, quem é você? - Calma moleque, fica deitado ai e descansa um pouco. - Onde estão minhas roupas? Por que estou pelado? Quem é você? Me fala senão eu te mato! Mal terminou a frase e voltou a vomitar, mas como não tinha nada no estômago somente saia a bilis. - Por isso que está sem roupa, trazendo você para cá vomitou e se cagou todo dentro do nosso carro, onde o Bastião escondeu você da turma que queria te matar, por roubar a bolsa daquela moça. Você escapou de boa, tem que agradecer ao Bastião.

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Ouvindo isso e, principalmente, certificando-se não tratar-se de polícia, voltou para cama e dormiu, como fazia tempos que não dormia, quentinho e confortável, como nos tempos do Clube Privê. Dormiu a noite inteira, de vez enquando acordava João com suspiros e frases inintelegiveis que soltava. - Essa é boa, o garoto fala dormindo, estou bem arrumado.

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Na manhã seguinte quando acordou, viu que João estava de pé, em frente ao fogão preparando café, cujo aroma inconfundível ocupou todo quarto/cozinha. Sentou-se na cama e observava a figura curiosa que esperava o café coar, segurando em uma das mão a colher e a outra apoiada na cintura. - Quem é este cara? O que ele quer comigo? Por que está me ajudando? Perguntas que pairavam como redemoinho na cabeça de nosso herói e que deixava-o mais tonto. Até que de repente, cutucado pela intuição, João virou-se e viu seu hóspede, que o observava.

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- O café está quase pronto Oliver, se quiser pode ir tomar um banho e depois te dou umas roupas que meus amigos separaram para você, para quebrar um galho. Como hoje é domingo não trabalho e podemos conversar. - Não quero tomar banho, quero ir embora. - Pode ir, se quiser, mas antes espera o café, ai pelo menos você sai com alguma coisa no estômago. Eu disse para voce tomar um banho pois sei que se sentirá melhor, mas se não quiser, não toma. E voltou para seu coador, olhando de soslaio que Livio saiu da cama e se dirigiu para o banheiro. Ouvindo o chuveiro despejar água, formou um sorriso discreto no lábio. - Se obrigar, não faz! Pensou João que olhava o fio de café escorrendo na garrafa térmica vermelha frisada. Fechou a garrafa, foi ao armário e pegou uma toalha e as roupas, entregando ao menino que se divertia no chuveiro.

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- Olha, tem sabonete ali, e ali tem bucha, se bem que para tirar este cascão acho que vai precisar de creolina e caco de telha. Após o banho, Livio vestiu as roupas e foi seguindo em direção a mesa, surpreendendo-se com a visão de comida farta. Pão, leite, ovo frito, mel, café e pão de queijo, tudo a sua disposição, mas a lei da selva o havia ensinado a ser desconfiado e, realmente, a esmola era demais e o santo desconfiava. 114 114

- Senta ai, menino, pode comer que não tem nada envenenado. Toma, usa esta xicara e eu uso esta, deixa eu por o leite e café, ou você prefere chocolate? Café mesmo? Certo! Olha, toma o pão com ovo, vamos meu filho, pode comer, olha, eu também estou comendo e bebendo a mesma coisa que você. Disse isso e sorriu para tentar quebrar a desconfiança do garoto. E começou a comer, melhor, devorar com tanto ímpeto que João achou melhor dizer para ele ir com calma, que podia ainda lhe fazer mal, pois estava bastante tempo de estômago vaziu.

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- Está bom Oliver? - Por que me chama disso? - Porque te aconteceu igual um personagem de livro chamado Oliver Twist. - Meu nome não é Oliver, nem Twist. - Qual é teu nome? - Não tenho nome, minha turma me chama de Cara. - Quem tem cara é cavalo, vou te chamar de Oliver, é mais bonito. - Olha meu, qual é a tua heim? Me traz para sua casa, me deixa dormir aqui, me dá roupa e comida. 115 115

E João aproveitou a brecha aberta e começou a contar o que havia acontecido, em todos os detalhes, e como os três decidiram ajuda-lo, pois Bastião havia sentido aquele troço quando o olhou. - Você lembra de alguma coisa? - Não lembro de nada. - Você estava totalmente chapado. Você cheirou ou queimou? - Acho que cheirei, pois se tivesse dinheiro para comprar pedra, comprava comida, que estava com fome. - E você usa isso com frequência, digo, você queima e cheira?

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- Olha, nunca havia feito isso, estava com fome e para ter coragem para bater carteira, fui experimentar cheirar a cola. - Mas porque você não pediu para alguem te pagar um lanche? - Eu pedi, meu último recurso foi roubar para comer. Você não conhece a lei das ruas.

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E Livio passou a contar para João toda a sua experiência de homem das ruas de 10 anos de idade. Fatos que deixaram o velho e tarimbado João Marreco de cabelos brancos, e vez e outra a emoção era tanta que seus olhos ficavam mergulhados em lágrimas. - Mas eu sei ler e escrever, pois as minhas mães do Clube Privê me ensinaram, e depois fui aperfeiçoando na rua. E assim passaram a primeira metade do domingo, um conhecendo o outro, estudando-se mutualmente, os dois desconfiados. No almoço que João preparou, uma macarronada com frango, Livio esbaldouse, depois continuaram a conversar sobre o passado e o futuro, como dois adultos. João via naquela criança um adulto, que

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havia perdido uma grande parte de sua infância, e isso o entristecia, pois lembrava como havia sido feliz em sua meninice, brincando e aprontando de tudo.

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- E o que você pretende fazer agora Oliver? - Sei lá, ir embora e continuar minha vida, o que sei fazer, tentar continuar vivendo. - Olha Oliver, acho melhor você esperar um pouco, até as coisas melhorarem. Alguém pode te reconhecer e querer te pegar, embora ache que isso seja impossível, pois você está irreconhecível. - E o que tem em mente? Me prender aqui? - Meu, você é livre para fazer o que quiser. Se quiser ficar, fique, se quiser ir embora, é só ir, o que quero te dizer é que se quiser ficar aqui comigo, não tem problema, pois vejo que você não é mau, e esta era a minha preocupação. - E ficar aqui para que? Vou ficar fazendo o que? - Pode ajudar a gente nas nossas barracas. Bem que estamos precisando de alguém para nos

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ajudar com as mercadorias. Em troca de teu trabalho, nós te damos um dinheirinho, casa e comida. O que você acha? - Não sei, preciso pensar. Nunca fiquei em um lugar só, posso me sentir prisioneiro e não quero isso para mim. - Então pense e depois me fala. Pode fazer uma experiência de uma semana, e amanhã mesmo começa com a gente. - Este negócio de experiência é uma boa. Vou fazer isso. Mas eu não quero me sentir preso. - Então está certo. Outra coisa, aos domingos eu exponho meus quadros e desenhos na República. Se tiver a fim pode vir comigo. - Você pinta também? - Sim. E abriu uma caixa que tinha em um canto da casa, mostrando para o menino suas obras de aquarela e grafite. - Puxa, que bonito! Eu também sei desenhar. Costumava arranjar uma grana desenhando coisas no chão das ruas. - Que tipo de coisas?

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- Caras, árvores, carros, cachorro, o que dava na cabeça. Isso deu mais segurança para João, pois constatou, depois que pediu para Livio desenhar, que o menino era sensível, e mais, talentoso, pois havia desenhado com facilidade a fachada da catedral da Sé. - Para mim é fácil, pois lembro bem dela, costumava tomar banho no chafariz e dormir na escadaria da porta, quando chovia. 119 119

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A organização da Nova Seara

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Do outro lado da cidade, Padre Henrique estava empolgado. Tudo era diferente de seu país, com exceção das necessidades humanas, que são as mesmas em todo o mundo. Assumiu sua paróquia e já viu a enormidade de trabalho que tinha, e idealizou outros que gostaria de ter, fazendo planos para o futuro próximo. Sua paróquia era no subúrbio, no Bairro de Itaquera, região carente de meios materiais, mas rica em recursos humanos, exatamente igual à sua antiga paróquia em Argônia. Um terreno próximo de onde estava situada a igreja, era grande e servia de estacionamento e depósito de entulho. Não pensou duas vezes, organizou um mutirão e deixou-o limpinho, já imaginando construir um centro paroquial. - Aqui vou levantar um salão com vão livre. Em baixo fazemos festas, exposições e outras atividades e, em cima faremos uma creche e salas para aula de alfabetização e cursos gerais.

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O brilho nos olhos de Henrique contagiava até os mais céticos, que se dobravam frente sua alegria e esperança. Enquanto não possuia o prédio, utilizava a igreja para dar aulas de alfabetização de adultos e reforço escolar para as crianças, tarefa esta que depois foi incrementada com a ajuda de voluntários, o que dava-lhe tempo para outras atividades, como ensino de música, cujos instrumentos lhe foram doados por um empresário, que ficou sensibilizado com a proposta de ação social apresentada pelo Padre. Toda sua experiência adquirida em Dracônia aplicou no Brasil e, quando conversava com seus pais pela internet, estes viam e ouviam sua alegria, pois estava fazendo o que gostava. Em pouco tempo o curso de música estava definido e com matrículas encerradas, pois a procura foi maior que ele supunha, deixando-o bem contente. Além de música erudita, que ele dominava, também implantou estudo de instrumentos e músicas populares do Brasil, que descobriu que era um admirador, embora muitos destes conhecesse apenas na teoria musical e as presentes no acervo da Universidade.

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Na parte de assistência social também começou logo a colocar seus planos em ação, e logo a nave de sua igreja em Itaquera era uma reprodução fiel de sua antiga igreja em Dracônia, o que deixou as pessoas muito admiradas, pois nunca haviam visto nada igual. O sentimento que os paroquianos sentiam era confuso, não sabiam se gostavam da ideia ou não.

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- Isso é coisa de padre comunista! Dizia a dna. Bitoquinha. - Para mim ele quer é aparecer. Tanta coisa para fazer e ele fica colocando estes miseráveis na casa de Deus, vou reclamar para o Bispo! Confessava o sr. Altamirando. - Eu gostei da ideia. É verdade que no começo pensei que a igreja ia estar empesteada, com o cheiro deste pessoal, mas a verdade é que ela está sempre limpa para entrarmos. Eu gostei e estou pensando em falar com o Padre, para ver se precisa de ajuda na cozinha e na limpeza! Admitia a viúva Natalina. E das opiniões nasceram partidos, e dos partidos as querelas, e das querelas os terríveis melindres, que dividiram as missas e os paroquianos, de um lado do

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corredor sentavam os prós e, do outro lado os contras. Quando chegou aos ouvidos do Padre, ele ficou surpreso disto acontecer com um povo tão gentil, como aprendeu que eram os brasileiros. Sempre que iniciava uma campanha, seja para o inverno dos pobres, seja para mandar ajuda para outros estados atingidos pelas convulsões da natureza, sempre via a rapidez que seus novos paroquianos se organizavam e juntavam os donativos. Não teve dúvida, escolheu um mês e metodicamente, na hora do sermão, tocava no assunto do cristianismo e da caridade, do auxilio ao próximo, etc. No último sermão, quando os contra já estavam abalados e seus conceitos já estavam quase desmoronando, deu o golpe de misericórdia, trouxe uma imagem de uma criança atendida em sua paróquia que, em uma das mãos recebia um pedaço de pão e na outra, segurando a mão da dna. Emerenciana, depositava um beijo de gratidão. Vendo esta imagem, projetada em uma tela pelo projetor multimidia que de vez em quando o Padre usava para ilustrar seus sermões, começou-se ouvir um grande som de choros e lamentos. Nos dias seguintes a fila do confessionário sempre estava enorme, pois os contras

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haviam mudado de opinião e a culpa os consumiam. Depois destes acontecimentos, o número de voluntários aumentou tanto que o Padre teve que inventar um rodízio, para todos poderem trabalhar. E ele e seu rebanho estavam felizes e em paz novamente.

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Tiros de Guerra

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- Bem Reynaldo, o que você quer saber sobre os apuros que passei? - Ah, sei lá vô! Fala do começo, por que o senhor entrou na guerra? - Porque eu me apresentei como voluntário. A situação estava exigindo uma ação e quando tinha vinte anos, pedi a autorização de meu pai e me alistei nas forças que lutavam ao lado do Marechal Isidoro Dias Lopes. Depusemos o Governador Carlos de Campos, que era apoiado pelo presidente Arthur Bernardes, que não aceitava a reforma no sistema político e eleitoral. Queríamos um voto secreto, mas eles não. Começamos então a bombardear o Palácio do Governo, que antes era nos Campos Elísios, depois é que veio o Palácio dos Bandeirantes. Vendo que a coisa estava preta, ele se refugiou em Guaiaúna, na região Leste de São Paulo, que hoje é conhecida como “Carlos de Campos”. - Puxa, que legal. - Legal coisa nenhuma, um inferno! As tropas legalistas tinham mais homens e artilharia, além de aviões,

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e São Paulo foi bombardeada sem misericórdia. - Mas e ai, quem ganhou? - Em uma guerra ninguém ganha! Conquista-se algumas coisas, mas todos perdem. Não tem nada de glorioso. Depois veio a revolução de 1932, que tinha o objetivo de mostrar a nossa insatisfação sobre a ditadura Vargas e o respeito à constituição. Novamente fomos às armas para defender o que haviamos conquistado e, nesta época, São Paulo já se despontava como um grande pólo econômico, o que para o senador Cãndido Motta foi o real motivo dos ataques à São Paulo, não à eleição de Júlio Prestes. - E quem foi este senador e este Júlio Prestes. - O que? Não sabe? Mas o que raios você aprende na escola? Não vou explicar nada! Procure nos livros ou na internet. Quando tiver lido alguma coisa, ai voltamos a conversar. - Tá bem vô, não precisa ficar nervoso. Olha o coração. Mas e aí, o senhor matou muita gente? Via em quem acertava os tiros?

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- Olha Reynaldo, quando estamos no meio do furacão é dificil raciocinar. Parece que agimos mais com instinto do que racionalmente. É importante preservar a vida, e isso leva em consideração que é preciso matar. Claro que matei muita gente, mas não sei quantas, pois não ficava fazendo marquinha na coronha do rifle para cada um que acertava. Tenha dó né? - O senhor não gosta de falar sobre isso né vô? - Não, tenho tristes recordações. Me lembro de que o homem pode ser inferior a um animal, que mata apenas quando tem fome. - Depois o senhor foi para a II Guerra? - Sim. - E lá o senhor ganhou aquela medalha de mérito, que usa nos desfiles? - Sim, foi quando estávamos em Monte Castelo e vi alguns amigos em apuros, pois tinham sido atingidos, mas estavam vivos, ai eu me joguei no chão e fui me arrastando até eles, puxando para as nossas trincheiras. Um deles era o Barbosinha, que tinha levado uma bala na clavícula.

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- E o senhor não teve medo? - Claro que tive. Mas ouvia meu amigos gritarem de dor, e os “chucrutes” estavam descarregando a artilharia sobre nós. Então o nosso comandante começou a atacar com nossa artilharia e o fogo deles cessou, nisso eu aproveitei. - Puxa, meu avô um herói de guerra! Espera até eu contar na escola. Quando publicar no meu Blog vai ser um sucesso. Posso escanear as fotos e as tuas medalhas? Legal!

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Os quatro mosqueteiros da Sé

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- Bem Oliver, se estiver a fim, podemos ir até a Praça da República. - Sim vamos, preciso sair, não gosto de me sentir preso. Hum, então é neste lugar que você mora? Bem perto do Centro, isso é bom! Eu e minha turma costumávamos ficar no viaduto Santa Ifigênia, só filmando. - Sei bem, só filmando né? - É sim. Pelo menos eu com certeza. O que eu gostava era, de vez em quando, entrar no Mosteiro para ouvir os padres cantando. Acho bonito. Uma vez um dos padres me perguntou se eu queria comer, ai ele me levou para o jardim e me deu um prato de comida. Acho que ele ficou com dó de meu “olho de peixe morto”. Mas na maioria das vezes, tem um cara lá que me expulsa. - E o que você faz no dia-a-dia? - Ah, sei lá. Varia muito. Andava, ficava em frente as lojas assistindo TV, quando dava fome ficava perto das lanchonetes e restaurantes esperando aparecer qualquer coisa, jogava bola com outros moleques, enfim.

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- Que vida agitada heim? - Ô! Nem me fale. Teve uma vez que fui pedir um lanche para um cara e ele me ofereceu um emprego em sua lanchonete em troca da comida, disse que ia pensar! E nesta conversa, chegaram na Praça, onde acontece a feira de artesanato. Neste dia João decidiu não expor, pois tinha tirado o domingo para conhecer seu hóspede, além de ficar de olho nele, pois “o seguro morreu de velho”, como costumava dizer. 132 132

- Onde monta sua barraca? Aqui? Legal. - Olha Oliver, quero que experimente um negócio que é meu favorito aqui, chama-se tempurá, uma comida Japonesa. - Engraçado, mas este nome não me é estranho. Disse isso, enquanto seu cérebro vasculhava em suas células mneumônicas a palavra perdida nos anos. Até o sabor era familiar, mas claro, não se lembrava de nada. - Quero que me ajude aqui na feira, mostrando os quadros e tentando

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vender. Também quero te ajudar a aperfeiçoar teu dom, e também possa expor tuas obras. O que me diz? - E em troca? O que quer que eu faça? Sim pois ninguém neste mundo dá nada de graça. - Quero que você saia desta vida, que ainda vai te levar para o saco. Fica morando comigo e ajuda-nos nas nossas bancas de marrete e, nos fins de semana, a gente vem para cá. Não estou sendo bonzinho, quero um ajudante e acho que você é o ideal. O que te parece? - Vou pensar, depois te falo. - Esta certo. Vamos dar uma volta pela praça, se bem que com tua idade você conhece melhor aqui do que eu. Aliás, quantos anos você tem. Quando você nasceu? - Sei lá, mas no carnaval, que me levaram para o reformatório, me disseram que eu tinha dez anos. - É o que eu calculei. Depois do passeio, voltaram para casa e comeram a macarronada requentada, acompanhada de frango assado, que João comprou na padaria. Após o lauto almoço, conversaram mais um pouco, assistiram um pouco de TV e

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foram dormir, com uma avalanche de pensamentos inundando a cabeça de Livio e João. No outro dia, logo cedo, os dois já estavam de pé, e João preparava o café, enquanto Livio arrumava as camas, sem João pedir, o que o deixou contentemente espantado. Tomaram o café e lá foi João, puxando os três carros pelas ruas de São Paulo, agora ajudado por Livio, que ia empurrando na retaguarda. Quando passaram pela Rua Dom José de Barros, alguns lojistas cumprimentavam João e, um deles ainda comentou sobre a nova ajuda, que ele dizia ser seu sobrinho. - Ora, Ora, quem é este ai João? - Quem é? Não o está reconhecendo? É nosso novo ajudante, que foi salvo por Bastião. Por falar nisso Carlinhos, cadê o Bastião, já era para ele estar aqui e montar sua barraca. - O Metrô esta fazendo operação tartaruga, hoje ele chega tarde. Nossa menino, o que é um banho e roupas limpas heim? Você está irreconhecível. - E o gozado quem é? Perguntou Livio com a cara fechada.

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- Eu sou Carlinho Luca, paulistano seresteiro, seu criado – fez uma mesura, oferecendo a mão para Livio, que correspondeu. - Então, gostou das acomodações na residência de João? Vejo que está usando o calção de minha coleção. Gostou? - Para falar a verdade está um pouco apertado na perna, mas dá para o gasto. E caindo na risada, Carlinhos se projetou em frente à Livio, abraçando-o. 135 135

- Que moleque abusado, gostei do jeito dele, parece eu quando criança. E então Zézinho, vai ficar com a gente. - Meu nome é Oliver, não é João? E o carrancudo dificilmente se via o dentes, abriu um orgulhoso por Oliver batismo, confirmando a

João Cruz, que branco de seus grande sorriso, ter aceitado seu pergunta.

- Oliver é bonito – disse Carlinhos já administrando sua barraca - então vamos começar a trabalhar. Além de empurrar os carros, o que você vai fazer? João, não podemos

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esquecer de certos assuntos legais. Se vier o Juizado ou o Conselho Tutelar…, precisamos fazer alguma coisa, combinar alguma coisa. É óbvio que o Oliver não tem documento nenhum, precisamos acertar isso, e nesta hora as crianças estão na escola, que ele não pode ir pois não tem certidão de nascimento, e voltamos ao começo. - Vamos esperar o Bastião chegar e conversar nós três. -Três não, quatro! Eu sei contar! - Quatro, que seja. Mas precisamos esperar uma semana, foi o tempo que Oliver me pediu para decidir se quer ficar com a gente. - Bem, está certo, mas isso não impede de ir-mos até o Poupatempo e ver como faz para registra-lo. Podemos dizer que não foi registrado pois aconteceu qualquer coisa. Sei lá, depois vemos isso. Neste interim, Bastião chega carregando uma grande sacola. Novamente os dois olhares se encontram, e os olhos do grande e bondoso negro logo enchem-se de lágrimas, abraçando Livio e levantando-o do chão, que sem entender o que estava acontecendo e quem era aquela pessoa, olha para João.

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- Oliver, este é teu salvador, o Bastião. - Salvador não, que só temos um, com a graça de Deus – perseguinando-se – Sou teu amigo meu filho. - Olá, obrigado por me ajudar. Nesta vida que levo nunca fui ajudado por ninguém, exceto pelas minha mães. E Bastião virou-se para João com olhar interrogativo, que respondendo disse tratar-se das moças do Clube Privê que tomaram conta dele. 137 137

-

Oh meu filho, agradecer nada.

não

precisa

E Bastião começou a falar que chegando em sua casa, disse para sua mulher o ocorrido, que ficou sensibilizada também e preparou a sacola que carregava com roupas limpas. Moravam sozinhos em seu apartamento na Cohab I, pois seus filhos já eram crescidos e queriam que Oliver fosse morar com eles. - Espera ai um pouco, por enquanto vou ficar com o João, que mora aqui perto e qualquer coisa estou em

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casa (a rua) novamente. Sei lá onde fica este lugar. - Calma Oliver! O que o Bastião está falando é verdade. Lá você pode estudar e continuar vindo para cá, para trabalhar com a gente, é questão de acertar. - Olha, outra coisa, estava falando com a Lurdes e, com certeza, ele não tem documento algum, então eu e minha mulher vamos registralo como sendo o filho de nossa filha, aquela que morreu no Ceará. Vamos dizer que como ela estava doente não pode registrar o menino lá, então fomos busca-lo para morar com a gente, pois lá estava sendo jogado de um lado para o outro. Que tal? - Estavamos justamente conversando sobre isso antes de você chegar. A ideia parece boa, que você acha Oliver? - Que negócio é este de ir para a escola. Eu já sou esperto, sei ler e escrever, não quero saber porra nenhuma de escola. - Acontece que se aparecer o Conselho Tutelar aqui, eles podem te levar para o reformatório ou para um orfanato, aí meu filho, é baubau! É outra coisa que terá que

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pensar nesta semana. Enquanto isso, é melhor ele ficar em casa e vir para cá somente depois da uma da tarde, que é a hora que as crianças saem da escola. Todos concordaram, inclusive Lívio, que ficou pensativo todo o resto do dia.

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Pontos nos ís

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Depois do sermão, os ânimos se acalmaram e os trabalhos aumentaram, pois a novidade espalhou-se e os carentes foram atrás da boa nova. A maioria era de passagem, vinham, comiam, dormiam e no outro dia já ganhavam a estrada novamente. Henrique estava contente, um pouco preocupado com o aumento dos gastos, mas logo que as oficinas de artesanato, carpintaria e tecelaria começaram a dar os primeiros retornos, as finanças equilibraram-se novamente. Sem contar com os donativos que chegavam para incrementar a sua Obra Social, vindas de empresários nacionais e estrangeiros e, principalmente, da comunidade. - Padre Henrique, gostaria de pedir sua ajuda em um caso muito delicado. Como eu sei que o senhor é entendido de leis, quero que me oriente. - Pois diga lá, Bastião! - Bom, como o senhor sabe, eu trabalho de camelô com mais dois amigos, o caso é que nos três temos um filho adotivo, e queremos registrar ele.

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- Como é que é? Não entendi, cada um de vocês tem um filho adotivo? - Não Padre, peraí! E então Bastião começou a explicar o caso para o padre Henrique, timtim por timtim.

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- Bastião, meu filho, estou muito feliz por teu ato cristão, exemplo prático da Parábola do Próximo. - Ah, Padre, está bom, senão vou começar a chorar. - Bem, neste tocante ainda não estou familiarizado com as leis do Brasil, mas vou inteirar-me, pois o assunto vale. Outra coisa, certa vez você me disse que um dos teus amigos é músico, e o outro é pintor, bem, gostaria de conversar com eles. - Sim, o Carlinho é seresteiro, toca violão e cavaquinho como ninguém. O pintor é o João Marreco, mas não chama ele assim que ele não gosta, pinta quadros de paisagem muito bonito. O Oliver mora com ele, Oliver é o nome do menino, nosso filho. - O nome dele é Oliver? Que coincidência, porque tem um livro que narra a estória de um menino com a mesma característica.

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- Ah não Padre, este nome foi o João que deu, ele também leu este livro, o menino não tem nome, ele disse que chamam ele de Cara.

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Balançando a cabeça, o Padre explicou para Bastião o que queria com Carlinhos e João. Suas próximas ações seriam em organizar um conjunto de câmara de cordas e sopro e precisava de professores de outros instrumentos que não dominava. Também uma oficina de pintura e artes plásticas, pois via que o brasileiro tinha uma sensibilidade muito boa para ser explorada, e queria incrementar sua feira de artesanato. Assim, despedindo-se do Padre, Bastião voltou para casa, contando as novidades para sua mulher, que queria saber de uma coisa apenas, quando é que iria conhecer Livio. Já tinha seu quarto pronto e nas gavetas do armário algumas roupas que comprou, nas medidas que Bastião havia passado. - Bastião, vê se traz o menino este fim de semana. Vai ter a festa da Cerejeira em Flôr no Parque do Carmo, e eu quero ir lá fazer piquenique como todos os anos. Ele vai gostar. Aposto que nunca foi em um piquenique.

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- Vamos ver, vamos ver! Talvez o João tem outros planos para ele. Preciso conversar com ele primeiro.

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E Lurdes, até remoçada, fazia planos em cima de planos para Oliver. Há muitos anos adotar um filho era o sonho dela. Lurdes era aquele tipo de criatura cujo coração sempre cabe mais um. Na época que a Cohab era “barra pesada”, havia se engajado em uma equipe, da Liga das Senhoras Operárias de Itaquera, cujo objetivo era dar atendimento as famílias carentes da região, organizando Bazares, Festas e tudo mais que podia para receberem doações como roupinhas de recém nascidos, material escolar e comida, que distribuiam para as familias cadastradas e acompanhadas por Assistentes Sociais. A vinda de Padre Henrique para o Bairro veio a calhar, para ambos, pois o conhecimento de um complementava o do outro, além de que, com Lurdes, o Padre ganhou ajudantes de valor e experiência.

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Águas passadas não movem moinho No La Gioia, as nuvens de preocupação formavam-se, envolvendo a todos, deixando os internos muito abatidos, pois o coronel Barbosinha caíra doente, diagnosticado derrame. Tentaram localizar seu único filho, mas a notícia que conseguiram, dado pelo seu último patrão, é que havia se mudado para Tocantins.

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- Então o Barbosinha tem um filho? Pensei que ele não tivesse ninguém. - Sim, depois que a mulher morreu, ele casou-se novamente, mas a mulher não queria saber de criar filho de ninguém, então fez a cabeça dele para matricular o menino em um internato no estrangeiro. Pelo que parece o menino não queria, e agora não quer ter nem contato com o pai. - Mas e a megera? - Morreu três anos depois, de acidente de carro. - E o garoto, continuou no internato? - Não, pois foi a época que ele completou 18 anos, então saiu pela idade, mas não quis morar com o

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pai, foi morar com amigos enquanto fazia a universidade, ih, olha, é um rôlo. Depois de um tempo no hospital, Barbosinha voltou para casa, com uma pequena sequela na mão, sem afetar profundamente os movimentos.

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- Oh, Barbosinha, seja bem vindo novamente. O que quer fazer para comemorar. - Bom, quero assistir um filme. Alguém reservou a sala de vídeo para esta tarde? - Eu reservei, vou assistir a Noviça Rebelde! - Ah não Dorcas, filme de cantoria eu não aguento, já estou doente novamente. Quero assistir “Os Canhões de Navarone” e “A águia pousou”. - De novo? Eu que não aguento mais os teus filmes de guerra e de ficção. Aquele outro dos “Contatos imediatos do caramba” também. De tanto ver os mesmos filmes você até já decorou as falas, e vai falando junto com os atores, e o DVD já até furou. - As falas já decorei, mas algumas coisas do cenário não, por exemplo,

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não lembro se são dois ou três ratinhos de mentira que o David Niven coloca para distrair os nazistas. Outra coisa, não lembro o nome do personagem dele. E tem outra, é “Contatos imediatos do terceiro grau”. - Era do terceiro grau quando você assistiu a primeira vez no tempo dos “Alfonsinhos”, agora deve ser do milésimo quinto grau. Você é doido e está gagá, e vou deixar você assistir isso ai somente porque está se recuperando. 147 147

E todos riam, principalmente Barbosinha, que fazia cara de “sotiquinho” e “sal cisne” enquanto a dna. Dorcas esbravejava. Na verdade ninguém a enfrentava diretamente por duas razões: A primeira era que como filha de romanos, era muito forte e podia bater neles. A segunda, e mais importante, é que era ela e a esposa do capitão Vitinho quem temperavam o pernil e fazia o pão de calabreza. Se contrariadas, podiam não fazer mais nada, nem a massa do macarrão, e isso era impensável, uma calamidade pública. - Barbosinha, tentaram entrar em contato com seu filho, mas parece

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que ele se mudou para o Tocantins. Você sabia? - Sabia, nós temos conta em um site social, e ele publicou no mural dele que estava indo trabalhar em uma usina. Sabem que ele é engenheiro? Pois é, este é o único meio que ele permite que eu participe de sua vida, através de publicação de mensagens de duas linhas em sites sociais, mas eu mereço.

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O silêncio tomou conta da sala de estar do asilo, quebrado abruptamente quando entrou Reynaldo, falando alto, do modo das crianças alheias ao que está acontecendo. - Oi coronel Barbosinha (batendo continência, como seu avô havia ensinado), bem vindo de retorno ao quartel. Ainda bem que não morreu, pois o senhor é o próximo a dar o depoimento de antigo combatente. - Reynaldo, isso é lá coisa que se diga? Vamos desculpe-se com o Barbosinha! Que falta de respeito é esse menino? - Puxa vô, eu não falei por mal. Desculpe coronel. - Não foi nada Reynaldo, vamos, engole este choro. Você está certo,

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eu não podia morrer sem antes te dar meu depoimento. Seria pior que deserção, e eu estaria condenado a Côrte Marcial por isso. Deixa eu assistir o filme inédito “Os Canhões de Navarone” e depois conversamos. Já assistiu este filme? NÂO! Tá vendo Dorcas, mais um motivo para eu assistir, divulgar coisa boa para as novas gerações. - Nestas e noutras vocês vão me enrolando, daqui a pouco nem minhas novelas poderei mais assistir aqui, ai terei que ir para o meu quarto e assistir lá. 149 149

E assim lá foram assistir mais uma vez, e não seria a última, os dois filmes, acompanhados de uma enorme garrafa de Coca-Cola e uma bacia repleta de pipocas, enquanto Dorcas, feliz com o retorno do amigo, seguia para seu quarto assistir sua novela.

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Alea jacta est (a sorte está lançada) Livio sabia que não tinha escolha. Ou aceitava as condições dos três mosqueteiros ou voltava para a rua e, a frase que João lhe disse: “Vai para o saco”, não lhe saia da cabeça, pois sabia ser verdade. Lembrou da sorte de seus amigos Luis e Xicrete e não queria isso para ele, assim, no outro dia quando acordou já estava resolvido.

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- Bom dia né Oliver? Quem entra é quem deve cumprimentar os outros. - O quê? Ah, bom dia João. - Xi, tá estranho heim. O que aconteceu. Teve pesadelo? Ouvi você falando a noite inteira. Vem tomar o café logo. Já se “escovô”, se “lavô”, se “pentiô”? Então vai, depois vem. - João, já decidi, vou ficar com vocês. Pensei direito e quero dar um jeito na minha vida. Tá certo que gosto da liberdade que a gente tem nas ruas, mas não quero acabar como o Luis e o Xicrete. João o interrompeu e perguntou quem eram e o que havia acontecido com

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os dois, então Livio começou a narrar a estória toda, e João a chorar, vendo o quão cruel é o mundo lá fora que as crianças de rua enfrentam todos os dias.

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- Mas eu quero ficar aqui, com você, pois além de tudo você ficou de me ensinar a pintar quadros. - E a escola, o que você decidiu? - Que tudo bem, tem que ir né? -Então vamos providenciar as coisas. O Bastião me disse que um padre amigo dele, já está vendo os papéis de sua adoção, ai dá para tirar uma certidão de nascimento e o resto dos documentos. Assim foi feito, e Bastião orientado por um advogado e pelo padre Henrique conseguiu registrar Livio como sendo filho de sua filha, adotando o nome Oliver Negreiro. Na sequência trataram de seu batismo, que deveria ser seguido por uma festa de batismo-aniversário, o que deu início a outro problemão: Quem seria o padrinho, o padre Henrique ou João? O impasse foi resolvido pelo próprio padre, que disse ser João o padrinho, alías, não era por falta de padrinho, pois Oliver contava com vários e, no dia de seu batismo a igreja ficou pequena, pois

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estava lotada de curiosos que queriam conhecer o pequeno herói. Livio assistia tudo aquilo bestificado, sem entender o porque de tanta algazarra. Será que nunca haviam assistido um batizado - pensava ele - enquanto olhava para vários rostos que nunca havia visto.

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- Esta surpreso Oliver? - Estou né Padre, de vir o João, o Carlinhos e o Bastião e o seu pessoal tudo bem, mas e este povo todo? - São amigos e confrades de Bastião, que trabalham com ele aqui na paróquia, todos sempre ouviram falar de você, de suas aventuras e outras coisas que Bastião contava. Ele gosta muito de você e fala das coisas que você faz com muito orgulho, como um pai. - Também gosto muito dele, assim como do João e do Carlinhos. - Sim eu sei. Agora que tem os documentos ele disse que vai matricula-lo em uma escola e, como você já é alfabetizado, vai tentar coloca-lo em classes mais adiantadas. - Assim eu espero, não quero ficar junto com um bando de crianças aprendendo a ler e escrever.

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- E você não é criança, Oliver? - Não, sou adulto, este negócio de criança é para chorão. - Bom, então não vai querer a festa de aniversário-batizado que seus três pais querem fazer, não é? - Nada disso, isso é outra coisa. Festa é festa. Lembro que sempre via os outros festejando Natal, Ano Novo, dia da Criança e aniversários e sempre pensava que um dia ia querer isso para mim também. Via as crianças rindo e brincando e… comendo coisas gostosas, e lambia a testa. Certa vez, decidi que íamos ter uma festa de Natal em nossa caverna, era o local onde a gente se escondia sabe? E conseguimos algumas comidas e bebidas. Foi muito legal. E o Padre ia ouvindo as confissões inocentes daquela criança que era, naquele momento, a personificação dos anseios, desejos e esperanças de todas as crianças que moram na rua, verificando que o pensamento de ser feliz é comum à todos, independente de sua origem. Ficou contente por ter participado deste momento.

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- Oliver, que é isso em seu peito,uma tatuagem? - É, tenho ela desde criança. Minhas mães disseram que quando eu fui para o Clube Privê, eu já tinha. - “Amor de vovô e vovó”. Uma coisa é certa, ou foi teus pais que tatuaram isso ou seus avós. Você lembra de algo?

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Com a negativa de Livio, o padre teve certeza da antiguidade da tatuagem, dando-lhe o gérmem da ideia de usar isso para tentar localizar sua família, ou alguém que pudesse dizer algo sobre o caso. Como gostava de fazer, já tinha um plano bolado. Depois do batizado, todos passaram para o salão paroquial, onde os amigos de Bastião haviam preparado uma grande festa, para comemorar a mais nova ovelha retirada da boca de lobos, também conhecida por selva, lama, sarjeta ou esgôto.

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A procura

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Passados alguns dias, o padre havia mandado fazer alguns panfletos com a fotografia da tatuagem de Oliver, pedindo para quem tivesse informações, ou conhecesse aquela tatuagem, deveria entrar em contato com ele. Tratou de distribuir por todas as paróquias da diocese, esperando que, em pelo menos uma delas, alguém aparecesse. Enquanto isso, o mais novo cidadão da civilização brasileira levava sua nova vida, estudava pela manhã e seguia para o comércio de seus pais a tarde. Devido a peculiaridade de seus modos, era muito popular na escola onde passou a estudar, o Colégio “Alvares de Azevedo”, em homenagem ao grande poeta paulistano. A garotada reunida no páteo gostava de o ouvir falar, mais ainda quando dizia que ele e sua turma brincavam de pirata e tinham até uma caverna, onde escondiam seus tesouros. - Sei bem que tesouros são estes, tudo roubado por você e pela sua gangue de trombadinha. Disse o Juvenal, um garoto de treze anos, maior que Lívio, e que se incomodava com o prestígio deste na escola.

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- O que você falou, seu mané? - É isso mesmo! Porque, vai me encarar?

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Livio não viu mais nada, se jogou em cima de Juvenal e logo ambos estavam na diretoria, acompanhados de uma comissão “Pró Livio”, que defendiam sua situação de agredido. Os pais foram chamados e a situação resolvida sem grandes acontecimentos, exceto um olho roxo em cada personagem. A coisa ficou assim, Livio morava durante a semana com Bastião e sua esposa em Itaquera e, nos finais de semana com João, onde dava seguimento em suas aulas de pintura e venda dos quadros na feira da República. Numa sexta-feira, depois de chegar da escola, disse à João se podia dar uma volta, pelos antigos lugares que vivia. -

Vai ué, mas lembre-se, toma cuidado. - Para mim você vai falar isso? E saiu sorrindo rumo às antigas paisagens. Nesta altura, ele já contava com 15 anos de idade e já não tinha mais nenhum vestigio facial de antigamente. Indo em direção à Santa Ifigênia, decidiu

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que iria até a Rua Aurora, ver se ainda existia a Zona onde fora criado. Qual sua surpresa o prédio ainda estava lá, em situação de miséria, mas ainda muito frequentado. Entrou, olhou ao redor, teve sua atenção despertada por uma bíblia, que estava apoiada em cima de um aparador, aberta na passagem “Bem Aventuranças”. Continuou andando até ser detido por uma garota, que lhe perguntou se estava procurando trabalho ou prazer. Mostrando frieza e calma para a solícita moça (fato que lhe chamou a atenção pois os garotos, quando lá iam, ou ficavam ruborizados, ou suando ou gaguejando, ou as três coisas juntas), perguntou se lá trabalhava uma pessoa chamada Domitila, pois queria falar com ela. - Sim, trabalha, mas está com um cliente. Vai ter que esperar. É só com ela, é tesudinho? - É sim, vou esperar então. - Senta ai. - Não, prefiro esperar em pé – disse Lívio altivo. Depois de quase uma hora, apareceu uma mulher bastante castigada, mas ainda guardava um frescor de beleza juvenil. Foi direto para Livio, que distraido

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lendo uma revista masculina, não a viu aproximar-se. - Que você quer? - Oi Domitila, já faz tempo, mas será que eu mudei tanto assim? Domitila pegou uns óculos que guardava em seu bolso, colocou-o e começou a analisar as feições daquele garoto, que a príncípio ela achava que era uma nova cantada para conseguir um abatimento. Olhou, olhou… - Não é possível! 160 160

Puxou a gola da camisa, até aparecer a tatuagem, certificando-se. - Anjo, é você! E chorando abraçou-o fortemente, como uma mãe que depois de muitos anos sem notícias de seu filho, de repente o vê em sua frente. E as duas almas reunidas trataram de colocar o assunto em dia, ele falando de suas aventuras, tristezas fome, etc, etc e ela, contando sua vida. - Mas meu filho, porque não voltou e me procurou. Sim, eu entendo que

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estava com medo do que pudesse te acontecer, mas eu rezei tanto por você e agora me aparece aqui, lindo, um homem já. Então está bem? Que bom que Deus colocou esta gente na tua vida Anjo. - Mas Domitila, meu nome agora é Oliver. Como eu não tinha nome certo, as pessoas que me criam como filho me registraram como Oliver Negreiro. Tenho até identidade agora.

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Sem conter as lágrimas de alegria, Domitila o abraçava e beijava, em meio às explicações do que ela sabia sobre ele, ou seja, quase nada. Livio saiu de lá contente, com a promessa que sempre que pudesse viria visita-la. Depois tomou o rumo da caverna dos piratas pois, depois que falou sobre suas aventuras para seus colegas de escola, caiu em estado de nostalgia, querendo reencontrar seus antigos amigos, que não via há anos. - Será que vão lembrar de mim? Perguntava de si para consigo. Depois de algum tempo, chegou às suas antigas paragens, aproximou-se e ouviu um rumor. Respirou fundo e

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entrou. Todos tomaram um grande susto com a invasão do santuário, e a primeira impulso foi partir para cima do intruso. Dois agarraram em cada um de seus braços e um outro garoto se aproximou dele pela frente, desferindo um forte soco no estômago, derrubando Livio. -

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Isso é para você aprender, mauricinho de merda, que não pode ir entrando na casa dos outros sem ser convidado. - É isso mesmo - gritaram as outras sete vozes –, que vamos fazer com ele, vamos dar um pau nele e jogar no terreno baldio? - Não, eu tenho uma ideia melhor. A gente pega estas roupas de mariquinha dele e deixa ele pelado. Quero ver ele ir para a mamãezinha dele assim, chorando. E todos cairam na gargalhada. Neste interim, Livio recuperou o fôlego e se levantou, dizendo que só foi derrubado porque o pegaram na trairagem. Isso mexeu com o brio do moleque que o socou, desafiando-o para uma briga de vale tudo, e Livio aceitou. E começou o pau entre os dois. Ora Livio caia com a boca sangrando, hora o menino ia ao chão com o nariz borrado de

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sangue, mas nenhum dava sinal de desistência, até que o menino acertou um soco no rim de Livio, que caiu ajoelhado. - Aí Luis, mostra pra ele o que é lutar! Ouvindo aquele nome, Livio se recuperou e levantou, fazendo sinal que não ia mais lutar, enquanto os outros garotos comemoravam a vitória. - Luis? Pensei que tinha morrido por causa da gangue. 163 163

Quando ouviram aquilo, todos pararam e olharam uns para os outros, para ver se alguem tinha entendido alguma coisa. - Quem é você? Como sabe desta parada? - Você é o Xicrete, não é? Então conseguiu escapar do reformatório? Pessoal sou eu, o Cara. E todos pararam e começaram a olhar aquele garoto, bem vestido, com o cabelo penteado, limpo (depois da briga não mais), com uma grande interrogação na cabeça.

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O primeiro a quebrar o gelo foi Xicrete que, reconhecendo o antigo amigo e mestre, correu para abraça-lo. - Cara, é você mesmo, achamos que tinha morrido. E cercado por seus antigos amigos, que se desculpavam pela acolhida calorosa, começou a contar o que havia acontecido, desde sua tentativa frustrada de furto.

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- Sempre achei que você era um fracasso para roubar. Mesmo se fosse uma velhinha, cega e de cadeira de rodas você ia acabar falhando. - Puxa Cara, então você arranjou uma mãe e pai, e como é heim? E Livio descreve sua vida atual. As aventuras na escola, os amigos do bairro, a vida em casa, os jogos de futebol, o curso de pintura, as festas de Páscoa, de aniversário, de Natal, os presentes, etc, etc. Mas a narração de Livio provoca um sentimento em seus colegas que não esperava, a tristeza - não pela sorte dele, mas a de cada um deles. Livio os via como seus irmãos, sua família, afinal, tinham

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passado todos os sentimentos que uma familia passa: alegrias, tristezas, conquistas…, fome…, frio… Achava que tinha que ajuda-los de alguma forma e teve uma ideia. Conversou com eles e, com o aceite de todos, despediu-se voltando triunfante para casa de João, com a roupa toda estropiada e com a ferida na boca. - Oliver, pelo amor de Deus, já passam das seis, estava preocupado. E esta roupa, o que te aconteceu menino? 165 165

Acalmando João, começou a lhe dizer o que tinha feito, por onde tinha ido e com quem havia falado e brigado, o que tirou fortes gargalhadas de João. -

Tá vendo, agora você é um boyzinho, não é mais garoto de rua, e tem outra, para mim não tem nada de Anjo, para mim você é Oliver. - Eles me pegaram de surpresa mas, depois que me recuperei, ai eles viram com quem estavam mexendo. Eu também gosto de Oliver, mas você não disse que um artista pode assinar com outro nome? Pois é,

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vou assinar como Anjo os meus quadros. - Prefiro Oliver! Arrematou o novamente carrancudo João Marreco.

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E Livio explica para João, suas intenções de falar com o Padre sobre seus irmãos. Diz que tocou no assunto superficialmente com eles, pois não queria plantar falsas esperanças. João o ouve com atenção e alegria mal disfarçada, aconselhando-o a antes de tomar qualquer iniciativa falar sim primeiro com o padre pois, o pouco que conhece de sua índole, vai querer ver com seus próprios olhos a situação.

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O resgate Na semana seguinte, Livio chega na Igreja do Padre Henrique e pede para lhe falar. -

Diga lá Oliver, o que está acontecendo. Você está com olhos de que aprontou ou vai aprontar uma boa. - Nada disso Padre! Bem eu tive um fim de semana bastante movimentado. Sim esta ferida na boca tem a ver com o que quero falar com o senhor. 167 167

E começa a discorrer para o atônito padre suas visitas e seus planos, que consistia em albergar na paróquia crianças de rua que quisessem o abrigo, mas aplicando o sistema de João, que havia funcionado com ele. Repetiu o que havia dito para João, e o conselho deste de primeiro falar com o padre. - Sim, fez bem de primeiro vir falar comigo. Oliver, estou sem palavras. - Fiz mal de ter falado isso para eles? - Não meu filho, fez bem!

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Na verdade o experiente padre, que já havia passado poucas e boas, que pensava que nada mais o surpreendia, estava surpreso com a naturalidade com que Livio tratava o caso. - Podemos ir lá amanhã Oliver? - Não, amanhã não dá, tenho prova e não vou sair de casa para estudar. Podemos ir na quarta feira? - Sim, que hora? Depois da escola então. Você passa aqui e vamos juntos de carro. - Melhor ir de Metrô, a gente chega mais rápido. 168 168

E acertado o encontro, Livio foi para sua casa e o padre para a casa de dona Quirina, uma senhora que certa vez lhe disse que gostaria de abrir um orfanato, para atender crianças de todas as idades. Possuia uma casa grande com quintal também amplo e arborizado e, como não podia ter filhos agasalhava este sonho. Depois do relato completo do Padre, dona Quirina ficou maravilhada, era Deus que tinha escutado suas preces, segundo ela. - Não importa padre que são crianças de rua. Se querem sair destre antro por vontade própria, pode dizer a

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eles que aqui vão ter um lar, com o amor que eu puder dar. Sim, entendi o funcionamento, uma casa aberta, para eles não se sentirem presos, enjaulados.

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E pronto, nascia a Casa de Amparo Santa Ana, em homenagem a avó de Jesus, característica que ela se enquadrava devido sua idade. Seria a vovó Kika, como era conhecida, para seus futuros filhos do coração e contaria, naturalmente, com o amparo do padre. No dia marcado, partiam os dois rumo a caverna dos piratas, onde já estavam no aguardo toda a tripulação. Ouviram novamente Livio e depois o Padre, que disse que ficariam em uma casa, com muro baixo e grande quintal. Que seriam registrados, assim como Livio, e poderiam ir para uma escola. Alguns deles, devido a idade avançada, teriam que fazer alfabetização e supletivo na igreja. - Então não precisamos ir para escola? Perguntou o Fedô, preocupado com o que ouvia falar sobre escolas. - Terão que ir para a escola da igreja, pois não podem ir para uma escola normal, estão muito grandes.

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Tudo acertado, por unanimidade, resolveram participar desta nova experiência: morar em uma casa, tomar banho todos os dias e, principalmente, ter Natal e festa de aniversário, igual o Livio. Mas a transferência não foi tão simples assim, confiavam no padre e no Livio, mais no Livio que no Padre, pois o conheciam bem, então propuseram que fosse tirada a sorte e o perdedor iria sozinho, ver como era tudo, e depois voltava para fazer um relatório.

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- Se voltar, falamos com ele sozinhos, se não voltar, sabemos que é armadilha. Pegaram gravetos, deixando todos do mesmo tamanho, menos um, que era a sorte. Um por um foi tirando, sem revelar, quando todos tiraram, cada um mostrou o seu, caindo o azar para o Vesgo, que tentou protestar, mas sorte é sorte, disseram. E assim foi o Vêsgo para o incerto. Passado uma semana de experiência voltaram os três, para apresentar o tão esperado relatório. Estranharam o Vêsgo, assim como estranharam o Livio. Todo bem vestido, limpo e o mais extraordinario, estava de óculos, parecia

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um cientista louco, pois seus cabelos crespos sempre estavam de pé. E começou a fazer o relatório para a turma. A casa, o quarto com beliches (que ele dormia em cima), o banheiro, o quintal com um campinho de futebol, enfim, por ele já estava decidido, mesmo que eles não quisessem, ele voltaria.

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- E você saía e ía onde queria Vêsgo? - Sim, mas a vó Kika, que vai tomar conta da gente, disse que haveriam algumas regras. Como o mundo está muito perigoso, até parece né pessoal? Disse que era para eu estar em casa até as sete da noite, para eu poder tomar banho e jantar. - Mas fala o que você fazia durante o dia? - Bom, eu acordava cedo, igual o que a gente faz aqui, mas dormia em uma caminha gostosa que dava uma preguiça danada de levantar. Quando acordava, a vó Kika já estava de pé, fazendo café, dá pra imaginar eu, sentado numa mesa, tomando café com leite, pão e manteiga ou mortadela. Ai eu ficava conversando com ela um pouco. Depois ela me pediu para arrumar minha cama, enquanto ela lavava

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os copos e as coisas do café. Quando terminava, ela disse que eu podia dar uma volta e conhecer a redondeza. Meu, perto da casa tem um puta campo de futebol, ai eu fui lá, falei com o presidente, um tal de Amaury, que parece o Papai Noel. Falei para ele que eu e meus amigos estávamos de mudança para a Vila e se podiamos jogar futebol no campo. Ele disse que podíamos entrar na equipe de Juvenil - sei lá o que é isso - e que depois de uns testes tudo certo. E isso é tudo. - E você teve que ir para a escola? - Não, mas a vó Kika disse que ia me dar umas aulas de alfabetização, para quando for para a escola do Padre pelo menos eu saber o básico. Sabem como é né? Não quero parecer burro. - Isso é que vai ser difícil - disse o Xicrete e todos cairam na risada. Depois do relato, pedem para o Padre sair, pois teriam uma reunião fechada e, o Padre não fazia parte do clube. Discutiram, brigaram, sairam no braço, mas depois de uma hora e vinte minutos chamaram o Padre de volta, pois tinham chegado numa decisão.

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- Bom padre, nós aceitamos ir com o senhor para a casa desta tiazinha. - É vó Kika, disse o Vêsgo bravo. - Que seja, vamos fazer esta experiência e ver no que vai dar, mas fique sabendo que se a gente não gostar, vamos embora. - Tudo bem, eu concordo, mas acho que devem dar uma chance para vocês mesmo e outra coisa, por favor, vão desarmados. - Ninguêm aqui tem berro padre. - Estou falando de outra coisa, vão desarmados de desconfiança e violência gratuita. A dona Quirina é uma senhora muito boazinha, por isso, não a decepcionem. Se tiverem algum problema de adaptação, qualquer problema na verdade, falem comigo, desabafem comigo, estamos acertados? Outra coisa, por favor, ajudem ela no cuidado do Albergue, por enquanto ela é sozinha, então façam um acordo entre vocês e ajudem ela lavando a louça, arrumando as camas, enfim, perguntem para ela como vocês podem ajudar, isso vai facilitar muito a adaptação entre vocês. Lembrem-se, vocês não são coitadinhos e acredito que nem querem ser tratados como tal.

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Com o consentimento de todos, ficou marcado para a pr贸xima semana, quarta ou quinta feira, para o come莽o da nova vida.

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Construindo a obra Depois de assistido o filme, começou a conversa e o depoimento do coronel Barbosinha que, embora saído de um AVC, estava muito lúcido.

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- Sabe Hildebrando, acho que o derrame foi até uma boa, minha memória está melhor agora que antes. - Aé? Então me diga, onde estão teus óculos? - Meus óculos? E caiu na risada. Bom, mais um motivo que estou bem pois, nunca lembro onde os coloco, e continuo não lembrando. - Eu sei onde eles estão coronel, no banheiro! O senhor deixou eles lá, junto com o jornal que leva para ir lendo enquando pensa. Disse Reynaldo enquanto ria. - Mas me diga uma coisa meu filho, terminando a entrevista comigo quem será o próximo? - O capitão Vitinho. Meu avô disse que ele não participou de guerras, mas como capitão da aeronáutica fez muitas coisas interessantes. - É verdade. Peça para ele narrar os trabalhos que fazia junto às aldeias de índios do Amazonas. Também

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sobre os irmãos Vilas-Boas, já ouviu falar? Não? Isso é triste, pois foram verdadeiros heróis nacionais. Ele tem estórias incríveis, mas de vez em quando corta ele pois, assim como o Tolstoi, ele é muito detalhista. No outro dia, com seu caderno de notas pronto, foi procurar o capitão Vitinho para o depoimento.

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- Bom dia dna. Prica, onde está o capitão? Queria começar a colher o depoimento dele. - Hoje vai ser difícil. Aquele impiastro saiu e volta somente mais tarde, mas eu aviso ele para te esperar amanhã, nesta hora, está bem? Reynaldo concordou, balançando a cabeça positivamente e retornou no outro dia e, na hora marcada, lá estava o capitão Vitinho, com o cabelo parecendo do Einstein, sentado na mesa da cozinha tomando café e aguardando o interrogatório. - Oi meu filho, tudo bem? O Hildebrando e minha esposa disseram que você quer meu depoimento para teu trabalho.

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- Sim, o senhor pode fazer capitão? - Claro, embora a Prica diga que esteja gagá, eu lembro de tudo o que interessa, o que não interessa eu finjo que não lembro ou não lembro mesmo. - Certo! Então queria que o senhor falasse sobre seus contatos com os índios e com os irmãos Vilas-Boas, pode ser? - Vamos lá. Bem, começando do começo, ingressei na força aérea em 1961 e, por serviços prestados em missões especiais cheguei a patente de capitão. Um dos objetivos destas missões era integrar as equipes de apoio que seguiam para as bases, instaladas em vários locais no interior do Brasil, então, os gigantescos aviões Hércules eram carregados com todo o tipo de material que você puder imaginar, e partíamos para as aldeias dos Tapajós, Xavantes, Bororós, Carajás, Ianomâmis, entre outras. Chegando lá, montávamos as barracas de campanha, onde fazíamos atendimento médico, odontológico e aplicávamos as vacinas, nos índios e demais trabalhadores, além dos estudos de reconhecimento de fronteira. Nestas viagens é que tive o prazer de conhecer de perto os irmãos Vilas-Boas e ver o trabalho que faziam com os índios. Se ainda tivesse tempo e paciência, eu escreveria um livro sobre eles.

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De noite, comíamos e ficávamos próximo das fogueiras se não estivesse chovendo, caso contrário, dentro das malocas dos índios, ouvindo eles contarem suas estórias e eles ouvindo as nossas. A cultura deles é muito forte e antiga, sabe Reynaldo? Mas infelizmente, ou felizmente, eles são muito curiosos e, seus jovens, assim como os nossos, preferem as culturas de outros povos, fazendo-os ao longo do tempo esquecerem das deles. Como não conhecem a escrita, suas tradições são passadas via oral, dos mais velhos para os mais novos. Uma das atividades dos Irmãos Vilas-Boas era justamente a convivência pacífica entre os brancos e índios, preservando suas tradições, mas sem necessidade de coloca-los em redomas de vidro. Hoje em dia é comum ir em uma aldeia embrenhada na selva, acessar a internet e ver o “Kuarup”1. - Que incrível seu Vitinho! - Pois é, tem uma passagem que me divirto muito quando lembro, pois vê-se que são inocentes, e mostra a importância da comunicação verbal na manutenção das suas tradições e cultura. Bem, estávamos sentados perto da fogueira, observando um dos velhos sábios da tribo 1

Dança ritualística dos povos indígenas da região do Xingú, que tem o objetivo de homenagear os mortos ilustres.

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explicar para os curimins e adultos, sentados próximo dele, o fenômeno das fases da lua. A conversa atraiu a nossa atenção e eu me virei para também participar da aula. Para ele, a lua era como uma fruta redonda mordida e, conforme ela girava, via-se um formato diferente. Note-se, ele admitia a lua esférica e girando. - Incrível! - Quando terminou sua explanação, eu fui falar com ele, explicar o porque das fases da lua e etc. Menino, quando eu acabei de falar ele chorava e estava transtornado, sabe porque? Porque todos estes anos estava ensinando para sua tribo uma coisa errada. Então toca consertar as coisas, disse para ele que ensinava o que sabia, o que tinha aprendido com os antigos. Agora aprendeu uma coisa nova, bastava ensinar. Mas também aprendíamos muitas coisas com eles, por exemplo o trato de doenças utilizando a fauna e flora; o sentimento de propriedade que não há, tudo é de todos; a responsabilidade com os curumins, onde toda a tribo participa de sua educação e cuidados, enfim. Tenho muitas saudades deste tempo. Por falar em trato das doenças, você já ouviu falar em Xamãs, não é?

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- Não Capitão, o que é? - Os Xamãs são os sacerdotes indígenas, e o mais interessante é que alguns estudiosos utilizam sua existência para a explicação da ancestralidade asiática dos povos indígenas das Américas, já que existem elementos semelhantes entre índios de diversas etnias. Os Xamãs brasileiros são conhecidos pelo nome de Pajé e reúnem as características de sacerdote dos deuses, curandeiro e conhecedor dos mistérios da cura. Por estarem sempre em contato com os espíritos protetores da aldeia, são chamados também de conselheiros e videntes. - Maravilhoso. E o senhor já os viu em ação? Como é? - Bem, normalmente a receita dos remédios vem em sonho, ou quando eles entram em êxtase, depois de consumir uma bebida especial. - É aí que ele gosta, Reynaldo! Sei bem que bebida especial é esta! É Cana! Disse dna. Prica e todos caíram na risada, inclusive ela, que admirou-se com a forma com que disse aquilo. - Que cana que nada! Sim Reynaldo eu os via em ação. É impressionante. Por exemplo, certo dia acompanhei um que tratava um curumim que estava com dor de barriga e chorava muito. Ai, todo

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apetrechado, ele passava as mãos sobre a barriga da criança e da mãe, passava em uma e depois na outra, como que se transferindo o mal da criança para a mãe. De repente, ele se levantou e se embrenhou na mata. Aproveitamos este instante para chegar mais próximo da mãe e do pequeno, para lhe dar o remédio que tínhamos. Mas a mãe não aceitava, pois dizia que o Pajé estava para voltar com o remédio. De repente ele voltou, saindo da mata com o passo apertado e segurando uma cuia com um líquido. Chegou na mãe e lhe deu a beberagem. Pouco tempo depois a criança começou a vomitar um líquido verde, da mesma cor que a mãe havia bebido, e no meio do vômito uma semente de tucumã. Depois disso a criança não chorou mais e melhorou. Eu fiquei impressionado, e fui falar com o Pajé. Ele estava ainda em êxtase, mas me explicou que por ser muito pequeno, a criança não podia beber o remédio, então ele transferiu a doença para a mãe, que bebeu o remédio e fez efeito nele. Como o que a mãe tinha era espiritual e passageiro, o remédio não fez efeito nenhum, mas fez efeito na criança, que estava ligado à ela. - Cruzes, que incrível.

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- É incrível, mas eu testemunhei. A criança melhorou instanteneamente. Mas isso não é nada, eles também conseguem agir na agricultura, em casos de infertilidade humana e de animais e, o mais maravilhoso, com a ajuda dos espíritos que eles chamam de elementares, eles podem modificar as condições do tempo. - Ah não Capitão! - Certo dia, eu queria sair pela floresta para coletar amostras vegetais, mas uma chuvinha chata e fina atrapalhava meus planos. Estava com a mão apoiada na porta da Maloca e deixei escapar um comentário, dizendo que Tupã podia me ajudar para eu poder trabalhar. O Pajé que ouviu eu dizer aquilo, aproximou-se e me disse que os meus espíritos eram bons e, Tupã permitiu ele de me ajudar. Bom, o Pajé saiu e ficou no meio do terreiro olhando para as nuvens e, com um biquinho, as assoprava bem devagar. Eu olhava aquilo com olhar de pesquisador, tentando captar seus pensamentos. Reynaldo, depois de dez minutos que ele parou de assoprar, a chuva parou e feixes de sol já podiam ser vistos por entre as nuvens. Se foi coincidência eu não sei, só sei que a chuva parou e, depois de um tempo que terminei a coleta, ela voltou, igual a antes.

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- E lenda Capitão? Conta uma lenda que o senhor ouvia eles contarem. - Bem tem uma muito divertida. É sobre o Boto. Sabe o que é um boto, não sabe? - Sei, é um golfinho do Rio Amazonas. Já ouvi falar sobre esta lenda. Mas pode contar esta mesma. - Bom, esta lenda é divertida pois, apesar de fantástica, as pessoas acreditam nela. Segundo a lenda ele aparece nas festas juninas, quando as populações ribeirinhas fazem as festas em comemoração aos Santos. Nestas noites o Boto se transforma em um belo jovem, finamente trajado de branco e com um chapéu, que usa para disfarçar o orifício de respirar. Toda a sua roupa ele transforma com a ajuda de outros animais do rio. Conta a lenda que o Boto consegue fazer isso pois foi encantado por Dinahí, a índia que Jaci transformou na Mãe D’Água. - Mãe d’Água eu também conheço, é a Yara, não é? - Não, a Yara é outro ser. A maioria faz confusão, mas a história das duas eu conto outra vez. Bem, uma vez transformado, ele sai da água e vai a procura de moças para seduzir. Como ele é muito bonito e bem vestido, elas caem na sua conversa e pronto, o mal está feito.

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- Que mal Capitão? Ele devora elas? - De certa forma. Quantos anos você tem? - Doze anos. - Já ouviu falar sobre abelhas e flores? - Não! O que é? - Deixa para lá, teus pais ou teu avô te explicam. Mas continuando, depois de fisgada sua eleita ele fica com ela até a alvorada e, pouco antes do sol nascer ele precisa voltar para o rio, pois o encanto termina.

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E as coletas dos depoimentos continuavam, engrossando cada vez mais a obra imaginada por Reynaldo, que deliciava-se com as narrativas de seus amigos. No inicio, seus colegas de escola não entendiam porque ele preferia ficar no asilo, ouvindo “papo de velho”, ao invés de sair com eles para passear no shopping ou jogar video-game, mas depois, lendo alguns trechos das narrativas e vendo algumas fotografias que ele postava em seu site, começaram a respeita-lo, e novas publicações eram esperadas impacientemente. Seu site ficou tão popular que eles criaram um fórum de discussão sobre os temas abordados por

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Reynaldo, que eram utilizados na escola, enquanto estudavam História do Brasil.

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- É Reynaldo meu garoto, parece que tua ideia era boa, afinal de contas. - Sim vô, na verdade eu nunca duvidei, pois sei que as pessoas querem saber quem são, de onde vieram. Querem saber sobre seus antepassados. O senhor sabia que muitos de meus colegas estão entrevistando seus tios e avós para saber sobre sua família? Ai publicam também em sites. - Engraçado este negócio de internet, né? As pessoas preferem ler coisas na internet, do que ler em livro. Outro dia vi no ônibus um rapaz lendo um livro em um computador do tamanho de minha mão. - É um e-book, um livro digital, você pode gravar nele milhares de livros, é muito legal. - Pode ser, mas eu que sou da antiga, prefiro passar os dedos nas páginas de papel. O conflito de gerações não passava disso, pois Hildebrando gostava e usava a internet frequentemente, coisa que certa vez lhe deu um susto daqueles, pois pagaram o abastecimento de gasolina com

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um cart達o com seu nome, pois haviam clonado seus dados, obtidos da internet. - Contratempos da era moderna dizia ele calmamente ao seu filho que cuidava de sua contabilidade.

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Tudo converge Passados um ano, tudo estava correndo parcialmente bem, mas o Cride e o Tião, depois de não aceitarem a orientação da vó Quirina, de chegar antes das sete horas em casa, decidiram ir embora, sem avisar ninguém, exceto Xicrete, que se opôs a decisão dos amigos.

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- Vocês estão errados, não tinham que ter saído sem avisar a vó Kika e o pior, chegaram de madrugada. - O show acabou tarde, depois ficamos azarando umas minas. Olha, nunca ninguém me disse o que fazer, não vai ser agora. - Mas nós concordamos. Vocês concordaram respeitar as regras. - É, mas mudei de ideia. Amanhã vamos embora desta FEBEM falsificada. E foram mesmo, não levando nada, além das roupas do corpo. Contudo, passados dois meses estavam de volta, com cara de cachorro abandonado. Primeiro bateram na igreja, para falar com o padre, na esperança de serem desculpados pela atitude e poderem voltar para casa.

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- Meninos, não é para mim que devem se desculpar, mas para a dna. Quirina, que ficou chorando a sorte de vocês como se tivesse perdido um filho. Foram dois meses cruéis para ela. - É mas agora estamos arrependidos. Por pior que pareça para nós a casa, é melhor que a rua. O sr. sabe que quase fomos mortos por uma gangue. Acordamos a tempo de fugir, pois ouvimos eles se aproximando da gente, dizendo que enquanto um jogava álcool, o outro acendia os fósforos. - Bem, e que querem agora? - Que o senhor fale com a vó, para a gente voltar. - Eu? Eu não! - Mas padre! - Não! Vocês foram homens para decidir sair de casa, sejam homens para pedir para voltar e reconhecer que erraram. Eu já disse para vocês que não são coitadinhos. E engolindo seco, preparando a coragem, experimentavam um sentimento que eles nunca imaginaram sentir, então, achando que estavam prontos, foram falar com a vó Kika e pedir pinico para voltarem para casa. Mas qual foi a grande

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surpresa deles quando a dona Quirina, vendo-os entrar na cozinha, largou a colher de madeira que mexia o feijão e correu para abraça-los e, entre soluções e lágrimas de alegria, disse que eram benvindos, que tinha certeza que voltariam, que a vovó estava feliz, pois todos os seus filhos estavam juntos novamente. Mal terminou a frase e os dois também começaram a chorar, talvez pela vergonha, talvez pela acolhida inimaginável, talvez pelo carinho sincero, não sei. E mais dois pratos estavam sobre a mesa, como antes, para receber a comida simples, mas com o tempero fundamental que transforma nações – o amor. A iniciativa do Padre, de distribuir a foto da tatuagem de Livio, não deu o resultado esperado, e o caso foi esquecido. Enquanto isso, Oliver já expunha seus quadros na mesma banca que seu protetor. Adotou a linha paisagista, como de seu mestre, mas também fazia retratos em grafite e aquarela. - Olha vovô, este menino faz gravuras exatamente como eu quero, para por em nosso livro.

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- Fala com ele então. Explica o trabalho que está fazendo e se ele topa participar. E Reynaldo foi falar com o jovem pintor, expondo o que queria. Livio ficou encantado com a ideia de suas gravuras serem publicadas em um livro.

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- Olha, vamos ver! Mas eu aceito sim. Depois precisamos conversar sobre pagamento e o principal, me dá um modelo do que escreveu, para eu saber o que terei que retratar. - Quanto a isso não se preocupe, vou te dar algumas fotos que meu avô tem em seu arquivo e você reproduz. Agora, quanto ao pagamento…, isso é difícil pois não tenho dinheiro, o que posso te prometer é rachar com você o que ganhar das vendas dos livros. Topa? E Lívio topou, e praticamente todos os sábados e domingos, enquanto expunha seus quadros e os de João, desenhava as gravuras para o livro, que depois eram escaneadas e anexadas no manuscrito. Seus esboços de São Paulo antiga começaram a chamar a atenção das pessoas, que queriam comprar as que estava reproduzindo, mas ele negava

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vender, explicando que eram para ilustrar um livro, que um escritor havia encomendado especialmente para isso. No início, João ficou contrariado com a posição de Lívio pois, para ele, era melhor vender de uma vez, já que tinha alguém que queria comprar. Corria o risco de as pessoas irem embora e nunca mais voltarem, contudo, viu que as negativas de Livio agiam ao contrário do que imaginara. Os turistas achavam coerentes as explicações do garoto, e acabavam comprando outras gravuras, desde que assinadas “Anjo”. 191 191

- Vai saber né? Estes artistas num dia são incógnitos, no outro estão aparecendo na TV, famosos. Vamos comprar enquanto é barato. Com a aglomeração que os curiosos faziam, a atenção de um repórter - que fazia uma matéria sobre as novas obras do Metrô da República - foi despertada, aproximando-se da multidão. -

O que está acontecendo aqui? É este menino pintor. E o que tem isso de fabuloso. Ele não vende as gravuras que está fazendo agora, tá vendo? Pois foram

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encomendas por um escritor, que vai utiliza-las para ilustrar um livro. - E quem é este escritor? - Isso eu não sei, pergunta para o moleque.

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E assim, pedindo a autorização de filmar os quadros da dupla, ele inicia a entrevista e Livio começa a falar. Normalmente os jornalistas precisam espremer os entrevistados para conseguir algo de bom, entretanto, para a surpresa do jornalista, o menino falava com bastante desenvoltura. Disse quem era e de onde viera. Quem era João, etc, e como foi contactado para ilustrar o livro, escrito com o depoimento de velhos combatentes, colhidos por um garoto. Esta conversa lhe dá a ideia de fazer outra matéria, mais completa, com a participação dos dois meninos, abordando a nova safra de escritores e artistas juvenis, que sabem o que querem e se viram. - Desta vez eu ganho o prêmio de Jornalismo! Pensava ele enquanto enrolava o cabo do microfone. Assim foi feito, ambos compareceram no estúdio. Reynaldo acompanhado pelo

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sr. Hildebrando e, Livio acompanhado por seus pais, João, Bastião e Carlinhos. Lívio começou sua narrativa, de garoto de rua, que passou fome, frio e várias vezes quase morreu. Depois encontrou seus pais que lhe deram uma oportunidade, e agora lá estava ele, dando entrevista na televião.

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- Mas Anjo, ou prefere Oliver? - Tanto faz. Fui registrado pelos meus pais como Oliver, mas reencontrei minha mãe, que trabalha até hoje na vida, e ela me disse que eu me chamo Anjo, então, um ou o outro eu atendo. - Está bem, Anjo então, pois é teu nome artístico. Junto com seu nome, você desenha também um círculo, que não dá para ler bem o que está escrito. Do que se trata? - Ah, aquilo é uma marca que eu tenho. Uma tatuagem que me fizeram quando eu era pequeno. Sabe, quando eu era criança, minha mãe Domitila me disse que eu era usado como moeda, então acho que pode ser uma marca de um dos meus antigos donos. Esta afirmação causou espanto e choque em todos da produção, que nem

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imaginam a vida que os sobreviventes levam à margem da civilização. - Você pode mostrar esta tatuagem? Produção? Pode! Ok.

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E Lívio levantando a camiseta, deixa a tatuagem visível para a lente da câmera, onde todo o desenho é capturado em grande zoom e, como ele cresceu, a figura também ampliou-se. Naquele dia, muitos televisores estavam ligados neste canal para ver as notícias da cidade. Muitos sintonizaram no momento exato da entrevista de Livio, perdendo as apresentações. Uma destas pessoas foi o sr. Alfredo, com seus 85 anos e a dna. Judite, contando 83 anos. - Meu velho, o que é isso que estou vendo! Foi a única coisa que conseguiu dizer, pois desmaiou, amparada rapidamente pelo marido. No dia seguinte, muito cedo, ligam para a emissora para pedir informações, sendo direcionados para a sala do repórter, que escuta atento a explicação pausada e rouca do octagenário. Novamente a lâmpadinha da ideia se acende, e ele pergunta para o seu colega se o Nobel abriu inscrições.

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Entra em contato novamente com Livio, e lhe diz que quer fazer outra entrevista, mas agora em um programa de auditório que a emissora tem, onde querem ouvir sua estória e mostrar seus quadros. Livio aceita e marcam para o próximo domingo a entrevista, o que lhe dá tempo de divulgar para todos os conhecidos sua aparição na TV, inclusive Domitila. E chega o dia, ele e seus três pais rumam para o estúdio, carregados dos quadros selecionados pelos dois artistas. O apresentador faz a abertura e chama Livio, Bastião, João e Carlinhos para o palco, que já se encontra todo decorado com suas pinturas e gravuras. Começa a entrevista com Livio, que mais ou menos repete o que havia dito na outra vez. - Então Oliver, primeiro fale de sua família. - Claro, minha família são meus três pais e minhas duas mães, meu padrinho, o Padre Henrique, minha avó Kika, que cuida de meus irmãos, o Xicrete, o Bola, o Cride, o Fedô, o Luis, o Tião e o Vesgo. - Que turma para sua avó cuidar heim? E eles eram teus companheiros quando morava na rua.

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- Como eu disse, são minha família. - Olha Oliver, não foi apenas para te ouvir e ver teus quadros, queremos te mostrar algumas fotos. - De São Paulo antiga? Sim é a minha especialidade e de meu pai João retratar paisagens antigas. - Produção, pode projetar a primeira! Conhece esta moça Oliver? - Claro, é minha mãe Domitila. Ela cuidava de mim quando era criança e morava na zona da Rua Aurora. Sabe, ela que me ensinou a falar, andar, a ler e escrever. Amo muito ela e, de vez em quando, a visito. - E esta com a criança no colo? - Não! - E a criança com estes dois velinhos? - Também não! - E esta da criança na banheirinha? - Que brincadeira é esta? É um desenho parecido com o que eu tenho tatuado no peito. - Produção, dá zoom na tatuagem! - Virgem Nossa Senhora, é igualzinho a tua meu filho - Disse o Bastião, já com os olhos como rios que transbordaram, acompanhado de Carlinhos e João, que imediatamente levantou a camisa de Livio, comparando os desenhos.

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- Oliver meu filho, é você bebezinho disse entre soluços João Marreco Como pode ser isso? E todos os olhares voltaram-se para o apresentador, que também muito emocionado, pediu que entrasse o casal que aguardava na coxia. - Oliver, estes são seus avós, que te reconheceram na entrevista graças a tatuagem que tem.

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E os dois velinhos, nesta altura amparados por enfermeiros e sentados em cadeiras de roda, mostraram para todos que coração de avós, que são duas vezes pais, era forte e aguentava qualquer coisa. Posicionados no canto do palco esperavam, com os braços abertos, o abraço de seu netinho, julgado perdido neste mundo de Deus, como costumavam dizer. E uma nova fase da vida, não apenas para Lívio, mas para todos os personagens aqui descritos, estava apenas começando. Mais uma etapa, com acertos e erros, conquistas e perdas, alegrias e tristezas, aguardava nossos heróis neste palco gigantesco do drama da vida real. _____________________

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