"Coimbra no continente Gelado"

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cérebros

NO LIMITE DO CONTINENTE GELADO

especial

DOIS INVESTIGADORES DA UC ESTIVERAM DOIS MESES NA ANTÁRTIDA A ANALISAR A DIETA DE DUAS ESPÉCIES DE PINGUINS. PROVA DE QUE PORTUGAL PODE TER UM PAPEL IMPORTANTE NA CIÊNCIA MUNDIAL

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cérebros

especial

Pinguins, bases na Antártida e quatr MARCO ROQUE

ANTÁRTIDA é sinónimo de gelo e neve. Mas

será que se limita a isso? "Estar lá é indescritível. As cores são diferentes: o azul é mais azul e o branco é mais branco, não consigo explicar melhor. Todos os dias, quando abria a porta, ficava pasmado a olhar para tudo, a ver uma luz diferente todos os dias". Quem descreve assim o "continente gelado" é José Seco, estudante do Mestrado em Ecologia, na Universidade de Coimbra (UC), que acabou de passar dois meses, de dezembro a fevereiro, a fazer trabalho de campo na ilha de Livingston, na Península Antártica. Nesta sua primeira viagem ao continente, José Seco acompanhou o português que mais vezes foi à Antártida. José Xavier, biólogo marinho do Instituto do Mar da UC, esteve na região pela sétima vez. "A primeira foi em 1999, mais a norte. A minha reação é sempre de fascínio, porque é um continente a transbordar de vida", conta

José Seco (na foto) fez a sua primeira viagem à Antártida

José Carlos Caetano Xavier

José Xavier, destacando que "não é só gelo e neve, há grandes concentrações de animais". Mesmo depois de tantas viagens, há sempre coisas diferentes, uma nova aventura todos os dias. "Continuo totalmente fascinado", diz.

DATA DE NASCIMENTO

OS BIÓLOGOS estiveram a analisar a dieta

à lupa NOME

30 de abril de 1975 NATURALIDADE

Vila Franca de Xira RESIDÊNCIA

Coimbra

AUTOR FAVORITO

Alain de Botton

BANDA FAVORITA

Stone Roses HÓBIES

Surf, bodyboard, BTT, natação e... namorar

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de duas espécies de pinguins, os gentoo e os chinstrap, uma investigação do Programa Polar Português PROPOLAR, intitulada Projeto PENGUIN, que inclui colaborações com Reino Unido, França, Espanha, Bulgária, Estados Unidos e Brasil, além de Portugal. "Estamos a tentar perceber como é que o oceano Antártico funciona e como é importante para o planeta, ', em particular, ao nível das alterações climáticas", explica José Xavier. "Fomos para uma das zonas onde as mudanças foram mais drásticas, a Península Antártica, estudar animais que fossem elementos chave desse ecossistema e perceber se se estão a adaptar". E é aí que entram os pinguins. "Os gentoo es-

tão distribuídos mais a norte e os chinstrap mais a sul, mas têm áreas de intersecção, como a Península Antártica. Queremos perceber como é que estas duas espécies, representativas do ecossistema marinho da região, estão a competir por comida", explica o investigador. Aaltura do ano foi escolhida devido ao facto dos pinguins se estarem a reproduzir, o que faz com que os indivíduos não se desloquem

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viagens à Antártica José Xavier é o português que mais vezes foi ao continente. A viagem anterior tinha durado nove meses

muito na hora de procurar alimento (estima-se 15-30 km da colónia). Para além disso, as colónias estavam em pontos opostos de uma baía (South Bay), o que permitia boas condições

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Leia as peripécias da viagem em http://cientistapolarjxavier.blogspot.com/

uatro passagens de ano base búlgara, mesmo em frente ao glaciar Pimpirev, foram recebidos, não só por búlgaros, mas também por investigadores do Japão e da Mongólia. Depressa se entra no espírito familiar destas bases: a alcunha do chefe da base é "Daddy", 'papá' em português. Mas familiaridade anda de braço dado com ciência. Christo Pimpirev, o mesmo que deu nome ao glaciar, também esteve na base. Alojados numa casa triangular ao estilo dos Alpes, as refeições tinham "ementas diversificadas com um padrão: o pequeno-almoço são torradas com manteiga e chá/café, o almoço é salada e sopa, e o jantar começa uma salada, seguido por um prato de carne com batatas cozidas...e muito pão bem acabado de fazer com manteiga".

Reconhecimento nacional depois do internacional O CURRICULUM de José Xavier é extremamente extenso no que diz respeito à Antártida. Para além de ser investigador do Instituto do Mar da Universidade de Coimbra, é doutorado pela Universidade de Cambrige e faz parte não só do Progama Polar Português, mas também da Britsh Artic Survey. Recebeu, no ano passado, o Martha T Muse, um dos maiores galardões internacionais para este tipo de pesquisa. Este ano vai receber um Seed of Science. Contudo, tem os olhos no futuro, em particular na educação dos mais jovens. No ano Polar Internacional, paralelamente ao ProPolar, " criámos também um programa educacional, o Latitude 60, que permite explicar nas escolas e ao público em geral a importância das regiões polares". Em suma, levar a ciência aos jovens portugueses.

ço nas bases este ano, e planear tudo para aproveitar o tempo ao máximo", conta José Xavier. Cria-se um plano científico tão detalhado, que "quando se chega lá as condições atmosféricas são a única incógnita".

A DUPLA de investigadores saiu de Lisboa em

direção a Madrid e, daí, para Buenos Aires. Depois de uma noite na capital argentina, desceram até Ushuaia, a cidade mais a sul no planeta Terra. À boleia de um barco espanhol, o Las Palmas, chegaram à ilha de Livingston. No blogue da expedição, José Seco não escondia a excitação. "Como será o ambiente? Como será a base? Como será a viagem? Como será lidar com algumas espécies que só estou habituado a ver na TV? Ainda não consigo responder a nenhuma destas perguntas, mas está para breve", escreveu, ainda em Ushuaia. A chegada demonstra a complexidade de uma iniciativa desta envergadura. Dois portugueses, num barco espanhol, tinham de ir para uma base búlgara, a S. Kliment Ohridski, a casa dos investigadores durante os meses seguintes. Para se chegar à base, utilizam-se lanchas, que passam por entre mini-icebergues. Na

T

"Estamos a tentar perceber como é que o oceano Antártico funciona e como é importante para o planeta, o nível das alterações climáticas"

MAS É A investigação que está sempre na mente de todos. "Recolhemos três tipos de informação para perceber como os pinguins estavam a competir por comida: as fezes (o que comeram hoje), sangue (o consumido na última semana) e penas [o que comeram no último ano, porque os pinguins mudam de penas depois da reprodução", ex-

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é fácil. "Planear uma expedição normalmente demora dois, três anos, e exige um forte apoio financeiro. Esta última não foi normal, demorou apenas seis meses. Neste caso, tivemos de coordenar com os vários países, para ter espa-

Neste projeto, foi analisada a dieta de duas espécies de pinguins: os gentoo e os chinstrap

EN ÇA S

CONTUDO, preparar uma ida à Antártida não

espécies de pinguins

DIFE R

para a análise.

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Pinguim-gentoo, Pygoscelis papua

S Os gentoo são a ave mais rápida da terra debaixo de água e têm uma caraterística mancha branca na cabeça e o bico laranja. Os chinstrap são reconhecidos pela linha preta na cabeça branca, tendo o bico preto.

Pinguim Chinstrap Pygoscelis antarcticus

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cérebros

especial

OS ENIGMÁTICOS

pinguins não têm medo de humanos, daí a enfâse dos investigadores em preservar o ecossistema e proteger os animais durante a investigação

plica José Xavier. Não foi fácil chegar aos objetos de estudo. "Estávamos baseados na base búlgara, que ficava a 45 minutos de barco [dos pinguins]. E também precisávamos do barco espanhol, que estava noutra base [Juan Carlos I] a 10 minutos", lembra o biólogo. Uma vez por semana, pegavam nos mantimentos e iam. Se o tempo ajudasse, claro. "Logo na primeira vez, fomos ter com os espanhóis e começa a chover, depois começa a nevar e as ondas cada vez mais fortes. Eu a pensar 'vamos ter de abortar. Mas não disse nada'", conta José Xavier. Felizmente, "chegámos lá e ficou sol… Foi um grande dia de trabalho". Nas colónias, passavam seis horas a recolher sangue, que ficava congelado na base espanhola, penas, e fezes, analisadas durante o resto da semana na base búlgara. O trabalho "é duro, mas tudo vale a pena quando vemos um pinguim a sair das nossas mãos a andar e a seguir a sua vida como se nada se tivesse passado", escreveu José Seco. Biólogo que é biólogo não tem medo de ser sovado por um pinguim.

para ti, mas só podias responder uma semana depois…", conta José Xavier. José Seco lembra que "na base búlgara só havia um telefone de satélite, que custava cerca de seis euros por minuto". Por isso, quando a namorada de Xavier ligou, "eles foram logo à minha procura e ela pagou 30 euros por quatro minutos – dois deles só para me encontrar", lembra. As 24 horas de sol por dia também não aju-

NOME

José Sérgio Maurício Seco

Tudo vale a pena quando vemos um pinguim a sair das nossas mãos a andar e a seguir a sua vida como se nada se tivesse passado

DATA DE NASCIMENTO

5 de maio de 1989 NATURALIDADE

Vila Nova de Foz Côa

daram muito. "Tínhamos de tapar as janelas, o corpo não deixava dormir", contam. E tinham sempre de ligar para a base espanhola às 08H30. "Nos sábados à noite, o Daddy vinha e dizia 'pessoal, amanhã podem descansar... Só têm de ligar às nove'", lembram.

ESTAR NUM dos sítios mais longínquos do

mundo traz problemas. "Não tens email. Só na base espanhola, ao frio, quando voltávamos. Era copy paste, a correr. Eles criavam um email

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à lupa

NA BASE búlgara, os portugueses tiveram oportunidade de participar num momento único. "Ajudámos a construir a igreja, posso ir

RESIDÊNCIA

Coimbra

AUTOR FAVORITO

Cherry-Gerrard

BANDA FAVORITA

Coldplay HÓBIES

Ski, futebol, BTT e cinema,

16FEVEREIRO 2012


A Península Antártica é dos locais mais afetados por alterações climáticas

As casas triangulares da base búlgara

Na hora de fazer medições, os pinguins lutam por se libertar

ASSIM, O regresso surgiu de forma rápida,

já depois de parte da equipa da base (Daddy

incluído), também ter saído. Passaram pela ilha King George, por Punta Arenas, no Chile, Santiago e Madrid. De regresso a Portugal, embora a grande parte das análises ainda não esteja concluída, é possível avançar algumas conclusões. Através da análise de fezes, os investigadores descobriram que as duas espécies estão a comer exclusivamente o mesmo tipo de alimento. "Estavam a alimentar-se só do krill, do camarão do Antártico, com o mesmo tamanho", revela José Xavier. Isto representa um problema. "Uma das espécies vai começar a diminuir, a ficar menos competitiva, com menor capacidade reprodutiva", o que pode levar a estas populações de pinguins a ter problemas de reprodução (e se continuar afetar a sua sobrevivência no futuro). Por agora, resta esperar pelo resto dos resultados. Contudo, este trabalho é também impor-

tante porque "estamos a aprender métodos e técnicas, que embora estejam a ser usados na Antártica, podem ser aplicadas cá". Assim, ao perceber, como "é que os pinguins lidam com estas alterações pode ajudar a perceber como é outros animais podem reagir em noutras áreas do planeta, incluindo em águas portuguesas". POR ENQUANTO, José Xavier afirma não

querer aumentar já o seu recorde de viagens à Antártida. José Seco explica: "não se pode abusar muito, não se podem acumular muitos dados sem os tratar, depois ficam desatualizados, tem de se encontrar um equilíbrio entre este trabalho de campo e as análises”. Apesar disso, a primeira resposta do jovem investigador à questão "é para voltar?" foi bem mais emotiva. "É já para amanhã?", conclui sorridente.

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Os investigadores estavam alojados na base búlgara tendo de se deslocar de lança (os zodiac) para chegar às colónias de pinguins, que estavam situadas nas pontas de South Bay. A viagem era dependente do estado do tempo e os pinguins davam luta. "Apesar de terem um ar muito amistoso e de animal muito querido, quando se sentem agarrados, lutam com todas as suas forças para se libertarem", conta José Seco.

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Palmer (USA)

De zodiac por entre os mini-icebergues

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lá daqui a 50 anos e ainda sabem quem somos", conta José Xavier. Seco acrescenta: "deixamos lá o nosso nome escrito num pilar, ninguém apaga". O Natal e a Passagem de Ano foram passados na base. Por entre a base búlgara e a espanhola, foi uma época festiva internacional. A passagem de ano foi celebrada… quatro vezes, na hora da Bulgária, Polónia, Portugal e Livingston, contam no blogue. A contribuição portuguesa para as festividades? Bitoques, Deolinda e Xutos e Pontapés. "Porquê bitoque? Porque não?", justificam-se. Os meses passam sem se dar por eles. "Não te apercebes que vais voltar. É como nas férias grandes, passam três meses de repente. Aqui é a mesma coisa", conta José Xavier.

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Os investigadores recolheram penas, sangue e fezes

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O Projeto PENGUIN contou com a participação de vários países

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