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Imagem 18 Localização da Av. Domingos Olímpio no mapa de Fortaleza Imagem 19 Trecho da Av. Domingos Olímpio no qual acontece o desfile oficial das agremiações carnavalescas

Nos processos de patrimonialização de bens culturais imateriais consideram-se, portanto, todos esses elementos como agentes da patrimonialização. Ao mesmo tempo se analisam seus efeitos por meio dos inventários e relatórios analíticos, que apontam propostas de estudos de impacto cultural e recomendações de salvaguarda de bens culturais.

2.2 Maracatus de Fortaleza: patrimonializando identidades e tradições

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Ambientados nas questões que orbitam a patrimonialização de bens culturais de natureza imaterial, retomamos a análise dos maracatus cearenses, de modo a contemplar os agentes de patrimonialização, bem como analisar como se desenvolvem as tensões acerca dessas questões no jogo das identidades e tradições. Neste viés, podemos iniciar com a menção da relação dos maracatus com o carnaval, momento ápice dos desfiles e das barganhas que legitimam suas articulações políticas e tradições. Para os maracatus de Fortaleza, o desfile na Avenida Domingos Olímpio70 representa algo além da participação no concurso e da exposição do trabalho de seus artistas, mas também a contrapartida para a obtenção dos apoios financeiros advindos dos editais públicos de incentivo ao carnaval.

Imagem 18: Localização da Av. Domingos Olímpio no mapa de Fortaleza. Fonte Google Maps.

70 Local onde é montada a estrutura da passarela onde se realiza o desfile oficial das agremiações carnavalescas em Fortaleza, na altura do bairro José Bonifácio e bairro de Fátima.

Imagem 19: Trecho da Av. Domingos Olímpio no qual acontece o desfile oficial das agremiações carnavalescas. Fonte Google Maps.

Nestes editais, a prefeitura e o governo do estado71 liberam recursos aos grupos para a realização de suas ações durante o período carnavalesco e para projetos a serem desenvolvidos no prazo de um ano. No seio desses projetos está a continuidade das atividades artísticas dos maracatus, através das oficinas de dança e percussão; confecção de adereços e fantasias; corte e costura etc. Alguns grupos, como o Nação Iracema, desenvolvem ações ligadas à profissionalização de jovens da comunidade onde está situada a sua sede (CRUZ, 2011), ou grupos como o Nação Fortaleza e Nação Solar, que captaram recursos através de políticas de pontos de cultura (BEZERRA, 2014). A já citada socióloga Danielle Maia Cruz tem se ocupado em estudar a política de editais municipais de fomento ao carnaval, promovida pela Prefeitura de Fortaleza72 , abordando os chamados pré-carnavais, onde desfilam, principalmente, grupos de samba, na

71 Trataremos da questão dos editais e do concurso carnavalesco no capítulo seguinte. 72 Destacamos os seguintes trabalhos: CRUZ, Danielle Maia. Ressigificando Fortaleza: politicas culturais de fomento a apresentações carnavalescas. VI Enecult: 25 a 27 de maio de 2010 – Facom-UFBA – Salvador-BahiaBrasil. Salvador, 2010a.; CRUZ, Danielle Maia. Políticas Culturais em Fortaleza: a experiência dos editais municipais de fomento ao carnaval. Políticas Culturais: teoria e práxis. Casa de Rui Barbosa, 22 e 23 de setembro de 2010. Rio de Janeiro, 2010b.; CRUZ, Daniell Maia; RODRIGUES, Lea Carvalho. Tempo de Carnaval: políticas culturais e formulações identitárias em Fortaleza. Revista Proa, n°02, vol.01, 2010c. Disponível em http://www.ifch.unicamp.br/proa.

região da Praia de Iracema, e os grupos de maracatu, ligados ao concurso no domingo de carnaval. O fomento a esses grupos que desfilam no pré-carnaval e aos maracatus é estudado em uma perspectiva de se compreender como são afetadas as tradições no carnaval da cidade. Para Danielle Cruz,

Pressupõe-se que, subjacente a essas ações promovidas pela Prefeitura, esteja o interesse em redimensionar as identidades culturais em Fortaleza, em promover Tempo de Carnaval: políticas culturais e formulações identitárias em Fortaleza, em promover imagens relacionadas às manifestações culturais, de modo que se institua uma cidade não vinculada somente às belezas naturais, como as praias (CRUZ, 2010, p. 3 - 4).

Dessa forma, os maracatus, ao receberem os investimentos provenientes dos editais, são incentivados a exercerem seus alcances culturais e sociais no período carnavalesco e em outras épocas do ano, conectando-se ainda mais com a comunidade de brincantes e exercendo a transmissão dos saberes e a solidificação de tradições. Consideremos, nesse momento, que a relação dos maracatus com os brincantes acontece de maneira partida: no carnaval aparecem diferentes tipos de brincantes, ocasião em que, de um lado, estão aqueles que participam do maracatu todo o ano, vivendo próximo ou frequentando a sede do grupo ou casa religiosa que a este se vincule; e do outro, aqueles que apenas participam do desfile oficial, seja em papéis de destaque ou personagens comuns. Aqui, voltamos a utilizar o pensamento de José Jorge de Carvalho, quando versa que nas culturas e tradições populares afro-brasileiras há uma gradativa apropriação de setores de classe média (brancos em geral) com os elementos das culturas populares afro-brasileiras, em “uma tentativa de performar para si mesma que aquela cultura popular lhe pertence” (CARVALHO, 2004, p.7). Assim, reiteramos que, fora do período carnavalesco, os maracatus proporcionam espaços de representação e de identificação para a população mais atuante nas suas comunidades de origem, através de atividades de menor alcance performático e de maior representação social.

O Maracatu é um clã, então, por exemplo, nasceu a filha do rei, a Luna, que é minha afilhada né, que agora eu sou padrinho, ou melhor “madrinho” que é uma mistura de padrinho com madrinha, e o batizado dela vai ser na Igreja do Rosário, então, se houver um casamento também vai ser na Igreja do Rosário. Então, tudo nosso é de família sabe, então a pessoa entra e participa daquela família. Realmente é uma nação e tudo funciona ao redor dessa questão, as pessoas respeitam hoje em dia, algumas pessoas, por aqui ser um bairro bastante católico né, e as pessoas no começo não terem entendido que o maracatu era católico, algumas pessoas passavam e diziam olha a macumba, e tal, não sei o que... agora elas vem, elas participam dos terços que nós fazemos aqui né. Eu sempre faço terço aqui em casa, sobretudo depois que minha mãe faleceu, ela era muito devota de nossa senhora

também, e nós fazemos terços que não só vem a comunidade do maracatu como também é aberto, vem quase a rua toda, sabe! E natal, a gente faz natal aqui, a gente faz ano novo, então a comunidade, o maracatu ele se insere totalmente com relação a questão da comunidade , porque, o maracatu ele, a associação cultural tem o nome de Associação Cultural Maracatu Rei do Congo, só que não é só o maracatu, abrange muito mais coisas (RODRIGUES, Rodrigo Damasceno. Entrevista concedida ao autor, 16/05/2014).

Nesse momento, o pertencimento ao brinquedo visto no carnaval perde força, ficando restrito à comunidade de detentores, que passa a se fechar em basicamente três aspectos: localização do maracatu nos bairros e delimitação dos vínculos comunitários; classe social dos partícipes das atividades promovidas pelos maracatus; capacidade do maracatu de se apresentar em eventos artísticos. Esses três elementos, quando bem observados, revelam como se estruturam os maracatus fortalezenses e como se dá a sua inserção no tempo e nos espaços da performance e do espetáculo. Assim, quando o maracatu dispõe da mínima estrutura para manter atividades perenes ao longo do ano, a exemplo das oficinas de percussão, maiores as chances de vê-lo em eventos que tenham o maracatu cearense como atração cultural. Por outro lado, o alcance desses maracatus nesses eventos depende também de como eles se vendem – lembramos aqui a ideia de como os grupos de maracatu se permitem tornar-se atração e apresentar o maracatu em configurações limitadas, que não permitam a apresentação completa das personagens nem do auto da coroação. Nesse ambiente que situa os maracatus no carnaval e no cotidiano dos cidadãos fortalezenses, podemos problematizar o desdobramento do reconhecimento e pertencimento que motivam a vinculação do maracatu cearense enquanto expressão da cultura popular, com a construção de um patrimônio cultural imaterial para a cidade.

[...] A cultura popular não é, num sentido “puro”, nem as tradições populares de resistência a esses processos, nem as formas que as sobrepõem. É o terreno sobre o qual as transformações são operadas. No estudo da cultura popular, devemos sempre começar por aqui: com o duplo interesse da cultura popular, o duplo movimento de conter e resistir, que inevitavelmente se situa no seu interior. (HALL, 2003, p.248-249)

Pra isso, é necessário pensar o maracatu cearense como elemento contido em uma festa maior que é o carnaval, e que, em função disso, recebe os efeitos do momento de exceção e da transposição do individuo ocasionado pela festa, como bem nos apresenta Ricardo Luiz Souza, ao afirmar que “o cotidiano do povo é incorporado à esfera cultural que

precisa por sua vez, existir, afirmar-se como separada do cotidiano, remetendo a outros tempos, criando personagens, inventando suas normas” (SOUZA, 2005, p. 102). Na esfera cultural, o maracatu incorpora peças do cotidiano das pessoas tais quais: a religiosidade; assuntos de relevância na cultura do Ceará, transformados em temas (enredos) dos desfiles; a musicalidade; os papéis sociais; a pluralidade étnica, através da representação das etnias indígenas e negras formadoras da população do Estado; entre outros elementos que podem ser detalhados. Porém, esse isolamento do cotidiano dos sujeitos no maracatu, quando ambientado na festa do carnaval, pode ainda ser entendido sob outro prisma, considerando

que

A festa opõe-se ao cotidiano, mas não pode ser pensada como uma atividade autônoma em relação a ele. Ela liga-se ao cotidiano e reitera dele os elementos que a estrutura, mas faz isto de forma estilizada, transfigurando-os em um cenário que é a própria negação das carências e necessidades cotidianas (SOUZA, 2005, p.102).

O comentário de Ricardo Souza é pertinente ao assumir a festa (carnaval) como expressão da cultura popular a partir das inúmeras apropriações cotidianas que essa possa agregar, do mesmo modo que a festa se insere no cotidiano dos indivíduos, proporcionando as trocas de elementos culturais em um sentido dialético e dialógico. Também se estendem aos maracatus cearenses essas trocas. Seguindo essa lógica, também entendemos os maracatus como elemento presente, sob os diferentes aspectos, no cotidiano da cidade. Cabe-nos, portanto, questionar como a existência dos maracatus no carnaval e fora dele contribui para a manutenção na contemporaneidade da sua leitura e assimilação como patrimônio cultural. Nessa perspectiva, convém considerar essa construção através dos brincantes, acadêmicos e apreciadores, fazendo uso dos dispositivos de preservação do patrimônio cultural para ratificar a titulação do maracatu como bem cultural de natureza imaterial, seja municipal ou nacional. Para isso, convém notabilizar os modos pelos quais se permitem chegar, na atualidade, a chamar o maracatu de patrimônio, e não somente de cultura popular, ou mesmo de uma forma de expressão com representação no cotidiano da cidade, e não somente no carnaval.

Como ponto de partida, voltamos aqui ao ponto que norteia nosso estudo: a solicitação de abertura do processo de registro do maracatu cearense como patrimônio cultural imaterial brasileiro. O pedido de registro se deu através da articulação de membros da Associação Cultural Maracatu Rei do Congo, que se mobilizaram em agosto de 2011. Representados pelo

seu presidente Rodrigo Damasceno, apresentaram a candidatura à Secretaria de Cultura do Estado, à Secretaria de Cultura de Fortaleza e ao Iphan. Tal medida teria sido pensada como recurso capaz de promover a valorização, o reconhecimento e a preservação dos maracatus no âmbito das políticas públicas culturais de Fortaleza, bem como dos dispositivos jurídicos na esfera estadual e federal.

Imagem 20 – Ofício da Associação Rei do Congo solicitando ao Iphan para a abertura do processo de registro dos Maracatus do Ceará como Patrimônio Cultural Brasileiro

Cada órgão acionado pela Associação Cultural Maracatu Rei do Congo respondeu e apresentou tratativas diferentes frente a este pedido de registro. No caso específico do Iphan, através da Superintendência do Ceará que realizou o atendimento inicial da demanda, foi divulgado, através da nota técnica nº 026, de 25 de abril de 2012, que a documentação apresentada pelo Rei do Congo “não atendeu à legislação” em diversos pontos, com amparo legal no Decreto nº 3.551/2000 e na resolução Iphan nº 01/200673 . Em virtude desse não atendimento às exigências da documentação, o Iphan iniciou os procedimentos administrativos para conduzir a complementação dessa documentação por parte do solicitante do registro, promovendo encontros na sede da Superintendência do Iphan no Ceará, oportunidade em que foram revelados interesses em acompanhar mais de perto a movimentação dos detentores por meio da solicitação de um bolsista para o Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural , que iniciou as atividades em setembro de 2012.

A partir da inserção do bolsista em campo, a Superintendência passou a acompanhar mais de perto o ambiente externo por onde se falava nos processos de registro municipal e nacional para os Maracatus do Ceará. Na Superintendência do Iphan no Ceará, realizaram-se encontros com os representantes do Maracatu Rei do Congo e ainda de outros maracatus como o Axé de Oxóssi, Rei de Paus e Filhos de Iemanjá, a fim de elucidar a finalidade da política do Registro do Patrimônio Cultural Imaterial e de conhecer também as demandas dos maracatus.

O pioneirismo do Maracatu Rei do Congo em reconhecer a promoção e salvaguarda nas políticas públicas de preservação do patrimônio cultural, desencadeou o discurso do maracatu como patrimônio cultural na cidade. É pretenso afirmar que o debate se estenda a grandes proporções, contudo, tornou-se conhecido pelos maracatus, pelos gestores dos órgãos de cultura do governo municipal e estadual, e também no meio acadêmico, de modo a suscitar novas leituras sobre essa manifestação cultural. Assim, é possível posicionar o Rei do Congo como um maracatu atuante e dinâmico, que possibilita a integração do maracatu cearense em diferentes frentes: carnavalesca, artística, religiosa e política. No entanto, seu posicionamento tradicionalista e a sua atuação na representação dos outros maracatus nos pedidos de registro nas diferentes instâncias, é visto

73 A referida Nota Técnica seguiu anexada aos ofícios nº 278, 279 e 281-2012/GAB/IPHAN/CE, respectivamente aos senhores Rodrigo Damasceno Rodrigues (Maracatu Rei do Congo), Calé Alencar (Maracatu Nação Fortaleza) e Francisco Aderaldo de Oliveira (Maracatu Vozes da África).

com ressalva pelos outros grupos. Invariavelmente o Rei do Congo exerce um papel cultural, político e social para os seus brincantes, para o bairro e para a cidade.

2.3 Dia 25 de março é Dia do Maracatu

A Prefeitura de Fortaleza mantém, em seu calendário oficial de efemérides, a data de 25 de março como o dia oficial do Maracatu no município. O Dia do Maracatu, instituído em 05 de dezembro de 1984, através da Lei nº. 5.827 (anexo I), é coincidente com a Data Magna do Estado do Ceará, onde se comemora a abolição dos escravos na província, ocorrida no ano 1884.

A Emenda Constitucional nº 72, que instituiu o feriado estadual do dia 25 de março, foi aprovada pela Assembleia Legislativa, em 01 de dezembro de 2011, sendo promulgada e publicada no Diário Oficial do Estado em 06 de dezembro de 2011. No dia 25 de março, a Prefeitura de Fortaleza e a Associação Cultural Das Entidades Carnavalescas do Estado do Ceará – ACECCE promovem a comemoração oficial do Dia do Maracatu, em um evento que reúne os grupos de maracatus da cidade de Fortaleza, bem como alguns grupos de afoxé (o que se tornou frequente nas celebrações mais recentes). A comemoração, comumente, se configura em cortejo pelas ruas do centro de Fortaleza, saindo da concentração dos grupos na Praça da Liberdade (também conhecida como Praça das Crianças), de onde se segue contornando ruas principais do centro de Fortaleza, passando pela Igreja do Rosário e chegando ao término no adro da própria Igreja (como na celebração de 2013) ou na Praça do Ferreira (celebração de 2014). No ano de 2013, na ocasião do Dia do Maracatu, utilizou-se o adro da Igreja do Rosário e parte da Praça General Tibúrcio na cerimônia de aclamação aos maracatus, contando com a presença de representantes de diferentes movimentos artísticos-culturais, como de terreiros de Candomblé e Umbanda; lideranças e brincantes de outras agremiações carnavalescas, sobretudo afoxés; políticos, como o Vereador Iraguassu Teixeira; o carnavalesco Izidoro Santo. homenageado do carnaval daquele ano; e representantes da Igreja Católica. Com o final do desfile dos maracatus pelas ruas do centro de Fortaleza, as Rainhas se prostraram sobre um palanque – pequeno elevado do nível do piso –, esperando os pronunciamentos oficiais do Secretário de Cultura de Fortaleza, Magela Lima, e de representantes dos maracatus. O momento ápice da cerimônia era conduzido, nesta ocasião,

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