Construções subjetivas em manifestações carnavalescas: a micareta de Feira de Santana

CONSTRUÇÕES SUBJETIVAS EM MANIFESTAÇÕES CARNAVALESCAS: A MICARETA DE FEIRA DE SANTANA Allison Carvalho Silva1 Ana Rita Queiroz Ferraz 2 Paulo Roberto Leal Bispo Júnior3 Resumo: Este artigo objetiva traçar um rascunho da produção de subjetividades na Micareta de Feira de Santana-Bahia, desde as diversas manifestações e estruturas experimentadas. Como uma pesquisa-experimentação, integra a dimensão corporalsubjetiva na implicação radical com o fenômeno visado, um modo de dar a conhecer e criar realidades enquanto na pesquisa. A relevância do estudo está na discussão sobre o conceito de subjetividade e suas implicações com a cosmovisão carnavalesca vivida na Micareta.

Palavras-chave: micareta, carnavalização, subjetividade.

A experimentação do espaço-tempo festa O substantivo feminino “festa” é utilizado para designar comemorações, cerimônias e festejos. Possui um conjunto de adjetivações muito próprias quando se analisa o contexto em que insere. Aqui, o enfoque será dado às festas de rua, especificamente a Micareta, diretamente associadas ao que é apontado em Bakhtin (1987) como polo das imagens que constituem o princípio da vida material e corporal: corpo, comida, bebida, necessidades naturais e vida sexual.

A partir das impressões coletadas por nossas vivências na Micareta de Feira de Santana, maior cidade do interior baiano, situada a 116 km de Salvador, pretendemos traçar um panorama acerca do que significa celebrar ritos dentro de uma vivacidade que 1

Discente do curso de graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Feira de Santana. Membro do Grupo de Pesquisa e Extensão Artes do Corpo: memória, imagem e imaginário (UEFS). E-mail: allisonacsnoa@hotmail.com.

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Psicóloga pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutora em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana. Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Artes do Corpo: memória, imagem e imaginário (UEFS). E-mail: atovivo.uefs@gmail.com.

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Discente do curso de graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Feira de Santana. Membro do Grupo de Pesquisa e Extensão Artes do Corpo: memória, imagem e imaginário (UEFS). E-mail: paulojuniordionisio@hotmail.com.

escapa aos padrões de moralidade pré-estabelecidos socialmente, em uma festa caracterizada pela cosmovisão carnavalesca, na qual os pudores e rigores da vida cotidiana cedem espaço a tudo que é vivo, fértil, capaz de produzir regenerações, deslocando e produzindo subjetividades através de relações e sistemas semióticos e linguísticos próprios.

A organização da festa reflete modos da organização social, política e econômica. Isso fica evidente quando se observa a ocorrência de três movimentos distintos na Micareta de Feira de Santana, igualmente presentes no carnaval de Salvador: blocos, camarotes e pipoca, cujas dinâmicas serão abordadas posteriormente.

Esses modos de efetuação dos poderes estão bem demarcados na obra de Bakhtin (1987) – A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais –, destacando que na cultura cômica popular, ou na cosmovisão carnavalesca das praças públicas medievais e renascentistas, anulavam-se, provisoriamente, barreiras hierárquicas entre as pessoas, culminando com um encontro a um só tempo ideal e real, incapaz de ser estabelecido na vida ordinária. Podem-se encontrar ressonâncias entre essa configuração e a dimensão folião-pipoca, na qual a ausência de cordas e estruturas que delimitam o dentro-fora, o que pertence e o que não pertence, típicas dos blocos e dos camarotes, permite a mistura de etnias, cores e classes, sempre temporariamente, como escape à dinâmica cotidiana da vida social.

Todavia, a segmentação da Micareta em camarotes, blocos e pipoca pressupõe uma divisão simbólica entre quem tem maior poder aquisitivo e quem é menos abastado financeiramente. Somando-se a isso, as relações de poder são instituídas desde a organização estrutural do evento: de um lado, o circuito oficial – Circuito Maneca Ferreira – que tem lugar ao longo da Avenida Presidente Dutra, por onde circulam os trios elétricos, os blocos, a pipoca e onde estão situados os camarotes; por outro, em vias transversas, ou mesmo em bairros mais distantes da oficialidade, grupos quilombolas espalham-se como símbolo da resistência negra que, conforme aponta Castro Júnior (apud MIRANDA, 2014), ainda carregam as marcas do “açoite” do colonizador.

Salientamos que as análises aqui empreendidas não devem ser generalizadas, considerando a impropriedade do pensamento universal abstrato quando nos referimos

ao riso carnavalizado, imanente e histórico por princípio. Trata-se, pois, de leituras ou perspectivas ativadas por nossas afetações quando na festa, assim dito, pesquisaexperimentação (FERRAZ, 2013). Logo, a experimentação das tensões e movimentos criados pelos espaços-tempos da Micareta de Feira de Santana são o que tomarão aqui a feição de uma cartografia dos modos utilizados na produção de subjetividades, a partir de micropolíticas muito distintas daquelas que usualmente são produzidas nas teias do cotidiano. Também, será objeto da nossa apreciação a experiência da polifonia, da multiplicidade de lógicas e modos de ser com o outro, que devem, segundo Bakhtin (1987), resultar numa fraternidade universal própria da vida coletiva e, por continuidade,

na

modelização

de

subjetividades

que

não

prescindem

do

entrecruzamento de forças e formas heterogêneas. É nesse atravessamento que é forjado o que Miranda (2014) entende por “corpoterritório”: um corpo não se resume ao substrato biológico típico da espécie; mas é um território que pressupõe, sobretudo, um conjunto de saberes, mitos, valores e símbolos sem os quais as relações intra e intergrupais não seriam possíveis. Isto significa dizer que “o corpo nunca pode ser reduzido a um conceito posto que é território da cultura, portanto, locus da experimentação. [...] ao mesmo tempo, significa e é significado, interpreta e é interpretado, representa e é representado”. (OLIVEIRA, 2007 apud MIRANDA, 2014, grifo do autor). Assim, atravessado por fluxos de intensidades distintas, é produzido e produz-se como subjetividade.

Este estudo, na qualidade de uma pesquisa-experimentação (FERRAZ, 2013), exigiu, pois, participarmos da festa-micareta, a fim de vivermos as intensidades que perpassaram os vários espaços-tempos em curso. Experimentar, nesse caso, significou pôr à prova a nossa capacidade de abertura para sermos afetados e nos modificarmos conforme as tensões circulantes; produzirmos acontecimento ao tempo em que nos diferenciávamos como corpo-território.

Micareta: festa de entremeio Entender como surge a Micareta possibilita destacar a relevância sócio-histórica de um povo diverso – resultante de trocas interculturais – que carrega, em seu sangue, heranças das etnias negra, indígena e branca. A cidade de Feira de Santana nasceu

quando a região se tornou um importante entreposto comercial graças a sua localização estratégica: no agreste baiano, entre o sertão e a zona da mata. Sendo um ponto de parada e também de escambo e comércio, permitiu a formação do Arraial de Santana da Feira, no qual ocorria uma feira livre no primeiro dia da semana. De arraial, tornou-se vila e, com a crescente expansão da atividade comercial que caracteriza a cidade até hoje, finalmente constituiu-se como município no século XIX4.

A palavra “Micareta” vem do francês Micarême e significa “meio da Quaresma5”, numa alusão ao período de ocorrência do evento. A festa, que acontecia na França desde o século XV, no Brasil tem sua origem no início do século XX, na cidade de Jacobina, estado da Bahia. De acordo com Santos, citado por Oliveira (2006), a pequena cidade – essencialmente agrária e caracterizada por diferentes matrizes étnicas, sociais e culturais – já trazia de forma evidente, nessa festa, uma divisão territorial entre setores sociais contrastantes.

Os referidos setores sociais, ainda de acordo com esse autor, consistiam basicamente em dois grupos: de um lado, duas sociedades filarmônicas – “2 de Janeiro” e “Aurora” – que eram formadas pela elite burguesa e aristocrática e festejavam em clubes fechados; do outro, grupos populares que usavam máscaras e sofriam o rechaço das classes dominantes pelo fato de serem formados por negros, pobres e as chamadas “mulheres de vida livre”. Oliveira (2006) pontua que tal divisão está associada a um compromisso tácito implícito, estabelecido entre o conjunto social, sobre os limites de convivência.

A transição do nome “Micarême” para “Micareta” ocorreu após um plebiscito realizado em Salvador pelo jornal “A Tarde”, em 1935, e sua incorporação pela comunidade jacobinense fica evidente nesta publicação do jornal “O Lidador”: Despertai, foliões, para o delírio que impolga. Erguei-vos, jacobinenses, em êxtase de alegria e vinde com as “Sertanejas Alegres” festejar o “Bicarnaval”, “Micareta”, “Refolia”, ou “Mi-careme”, que a 28 do corrente reinará sob louco enthusiasmo, espancando tristezas e dissidências. A cousa vai ser da outra vida e não haverá quem resista a tentação.

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Disponível em: <http://www.feiradesantana.ba.gov.br/noticias.asp?idn=14454>. Acesso em: 5 maio 2016.

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Período de quarenta dias de penitência do calendário católico, subsequentes à quartafeira de cinzas.

Em 1937, aconteceu a primeira Micareta de Feira de Santana em decorrência da não realização do Carnaval de Salvador naquele ano, por conta das fortes chuvas que atingiram a região. A origem da Micareta em Feira de Santana é anunciada nas produções artísticas da festa, cabendo, aqui, fazer menção à primeira estrofe da música “Acorda Cidade” de autoria do cantor e compositor baiano Gerônimo: Já é carnaval, cidade / Acorda pra ver (bis) / A chuva passou, cidade / E o sol brilha aê (bis). Nascia ali, portanto, um festejo carnavalesco fora da época consagrada pela tradição que viria a se tornar o evento anual que ocorre até os dias de hoje, não mais restrito à Bahia.

Assim é que, no tempo dedicado pela Igreja Católica à penitência, nos intervalos, Feira de Santana acorda e recebe centenas de foliões vindos dos mais diversos territórios de identidade da Bahia e mesmo de outros estados. Acorda, como outrora, lugar-tempo/encruzilhada, para as celebrações da vida profana onde o diabólico – o que separa e é múltiplo –, em contraposição ao simbólico, que implica síntese e unificação, é encarnado como o baixo alegre, ambíguo e festivo, atualizando uma utopia universal.

Hierarquia e elementos espaciais da micareta de Feira de Santana: a invenção de uma subjetividade-pipoca A Micareta de Feira de Santana, como já ressaltado, inspirou-se no carnaval de Salvador. Este, por sua vez, é uma das maiores manifestações culturais do Brasil e, por assim se firmar, despojou heranças valiosas nos diversos outros recarnavais que o sucederam, desde a hierarquia social dentro da festa até a evolução dos diversos elementos que a integraram em diferentes épocas.

A vida festiva que se estabelece no lugar da vida ordinária e corriqueira durante a Micareta – e qualquer outra festa em que se produzam elementos de uma cosmovisão carnavalesca – acontece de maneira não hierárquica e espontânea, considerando que é a própria vida que se atualiza em práticas sociais eventuais, borrando fronteiras. Sem cenário, sem palco, sem atores, sem espectadores, ou seja, sem atributos específicos de um espetáculo teatral, a carnavalização torna-se outra forma livre de experimentação do

si mesmo, isto é, o seu próprio renascimento e renovação sobre melhores princípios (BAKHTIN, 1987).

Forma-se, então, um mar de gente, um mar vivo que se movimenta livremente sendo perceptível a performance que se sucede dentro da festa: o movimento de um desencadeia o movimento do outro, antes desconhecido, agora vivos num só corpo – o povo. É isso que Bakhtin faz ver na obra de François Rabelais: O indivíduo parecia dotado de uma segunda vida que lhe permitia estabelecer relações novas, verdadeiramente humanas, com seus semelhantes. A alienação desaparecia provisoriamente. [...] Em consequência, essa eliminação provisória, ao mesmo tempo ideal e efetiva, das relações hierárquicas entre os indivíduos, criava na praça pública6 um tipo particular de comunicação, inconcebível em situações normais. Elaboravam-se formas especiais de vocabulário e do gesto na praça pública, francas e sem restrições, que aboliam toda a distância entre os indivíduos em comunicação, liberados das normas correntes da etiqueta e da decência. Isso produziu o aparecimento de uma linguagem carnavalesca (BAKHTIN, 1987, p. 9).

O narrado vai para além da dança que eclode no circuito da Micareta. Outras relações que se estabelecem se dão na antítese empatia versus antipatia; a violência, por exemplo, arrebenta o mar vivo e forma um enorme buraco, e logo se pode perceber não um auxílio ao outro, mas uma mudança física no espaço como um corpo único que se movimenta à procura de uma homeostase7.

Se, por um lado, é vista uma subjetividade festiva que não instala a hierarquia e produz-se como movimento vivo e encarnado, a política econômica destroça, em parte, a natureza carnavalesca, impondo limites e hierarquizando a festa. O caráter popular é intrínseco à própria natureza do carnaval, que por sua vez se dá como uma segunda vida do povo. Perguntar-se-á, então, até onde a Micareta de Feira de Santana se consolida como festa do povo para o povo. A nítida separação de classes sociais que ocorre nos camarotes – usufruídos, em sua maioria, por pessoas de classe média alta – já chegou ao ponto de organizar a folia em torno das enormes estruturas de ferro erguidas sobre o circuito por onde transitam os foliões e os trios.

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Em Bakhtin, a praça pública medieval e renascentista se consagra como o primeiro local do carnaval vivido pelo povo da Idade Média.

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Termo utilizado para fazer referência à tendência ou busca pelo equilíbrio.

Não seria prudente, entretanto, negligenciar, nesta análise, as forças que atravessam os altos dos camarotes e os baixos da rua. Vale salientar que, conforme apontamos anteriormente, ser espectador não significa apenas assistir à festa, pois todas as pessoas que ali estão vivem a Micareta, o carnaval. Trata-se, apenas, de modos distintos de experimentação de corpos-território num mesmo fenômeno. O eixo central da questão é a saída da vida ordinária e experimentação de uma segunda vida (BAKHTIN, 1987).

Não obstante, a Micareta ainda se mantém como festa popular de imenso valor cultural para a região graças aos elementos que formam sua identidade e, sobretudo, às forças livres que não deixam de corromper as organizações e estruturas oficiais que se realizam como modos de produção do capital, criando estratégias para contenção da variação das mesmas estruturas que produz.

A pipoca configura um desses elementos que vazam, um acontecimento carnavalesco que alarga o mar vivo, já citado, derramando-se pelas transvias e compondo ritmos e expressões para além do previsível – toma a dimensão de um “grande corpo social e cósmico”, nas palavras de Bakhtin (1987). Podemos metaforizála fazendo uma analogia semântica à transformação do milho em pipoca: imerso em óleo quente, este se agita (a água que há na semente torna-se vapor, criando uma grande pressão interna no grão, que age em sentido contrário à dureza da casca até rasgá-la). O amido guardado na semente (sua fonte de energia) forma bolhas que se solidificam, criando o novo alimento, muito maior, irregular, particular e ao mesmo tempo geral: a pipoca. São necessárias, pois, duas forças que, no caso, atuam em sentido contrário: uma de expansão e outra de contenção. A pipoca é resultado de forças de expansão que venceram.

O que acontece no Circuito não é diferente: os diversos estímulos carnavalescos, as forças e intensidades livres que circulam e se produzem, criam tensões que corrompem as estruturas, possibilitando deslocamentos na vida ordinária, razão pela qual se pode dizer que o folião-pipoca vive uma segunda vida enquanto brinca o carnaval: irregular, desordenada e assimétrica, pondo à prova a própria identidade; particular, posto que é um acontecimento excepcional; e geral, porque é um grande corpo único e diferenciado, que encanta e desperta desejo e sedução.

É necessário, contudo, atentar para a ambiguidade própria da carnavalização: as novas formas, as novas forças, os novos movimentos só acontecem pelas tensões produzidas no encontro com a casca dura ou as duras estruturas. A pipoca traz à cena um corpo que se transforma alegremente, que estoura em composições singulares ativadas pela energia do coletivo, modo de realização dessa segunda natureza, no jogo tenso de forças. A música, a dança, a premência dos baixos e as trocas, sobretudo corporais, na agitação da grande massa que vai atrás de blocos e trios, sacudindo-se freneticamente,

esfregando-se,

brincando,

experimentando-se

em

movimentos

inusitados, são a fonte de energia calorífica que maximiza tensões na direção do novo, do si mesmo, de uma subjetividade que não é egocentrada, mas invenção e resistência aos modos de assujeitamento que se efetuam nas práticas sociais. Uma subjetividadepipoca é, por tal maneira de pensar, um movimento político, ético e estético.

Os blocos são outro elemento que ora são vistos como estruturas hierárquicas, ora como fenômenos do tipo pipoca. Os limites nessa ala são claros quando se percebe a atuação dos cordeiros8. Os blocos costumam ser bem homogêneos, pois quem adquire os abadás9 costuma compor, na maioria das vezes, os blocos com que mais se identificam, seja com os estilos musicais ou com os artistas que os “puxam”. É possível verificar que a maior parte dos blocos não alcança a alegria e o delírio característicos da massa dos foliões-pipocas (com algumas exceções, a exemplo dos blocos afros). Nesta formação, dois pontos se contrapõem: a necessidade do capital para participação dos blocos e, por outro lado, a presença ativa dos foliões na festa, no chão e seguindo o trio elétrico. O trecho abaixo exemplifica a ideia duma possível hierarquia socioeconômica na Micareta de Feira.

A rigor, o carnaval baiano sempre foi dividido assim. Os camarotes representam o retorno dos clubes, ainda que tornados mais próximos da festa de rua, debruçados sobre ela; se a conquista popular das praças e avenidas marcou significativamente a folia baiana, vencendo uma resistência séria e até, em certos momentos, uma forte repressão (como sucedeu outrora com os afoxés e as batucadas dos pretos, da gente pobre), o espaço carnavalesco da 8

Termo utilizado para fazer referência aos trabalhadores que controlam o fluxo de entrada e saída dos foliões de blocos, visto que esses são locais restritos aos indivíduos que adquiriram o uniforme típico, intitulado abadá.

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Vestimenta comum nos carnavais e nas micaretas que funciona como identificação para a entrada de blocos.

cidade continua disputado; a festa reflete e reproduz clivagens que marcam de modo expressivo uma sociedade profundamente desigual. Mesmo nas avenidas [...] prevalece, hoje, uma ocupação foliã por parte das classes média e alta (esta, de preferência, se repimpa nos camarotes) (TRINDADE-SERRA, 2009, p. 11).

Outro elemento que corrobora os anteriores, mas que também merece ser analisado separadamente, é o fenômeno trio elétrico. Este surgiu pela primeira vez em 1950 como um pequeno carro Ford do ano de 1929 que levava Dodô e Osmar10, que apresentavam mais uma invenção: os paus elétricos (guitarra baiana ou guitarra elétrica). O carro foi a base fundamental que passou por diversas transformações até se instituir como o grande palco móvel de diversas festas tal como conhecemos atualmente.

Este componente da festa [trio elétrico] acabou por dominá-la. A invenção tecno-musical e cenológica que comporta foi decisiva. E o modelo de carnaval ainda vigente em Salvador se estriba no desempenho desta máquina pop. Depois de revestir-se de um aparato técnico soberbo, o trio prontamente se tornou um meio hábil – o mais hábil no campo carnavalesco soteropolitano, quiçá no Brasil todo – de atração imediata de foliões em multidão; logo seu palco móvel foi aperfeiçoado e abriu espaço para o protagonismo de pop-stars que se especializaram nesse desempenho (TRINDADE-SERRA, 2009, p. 15, grifo do autor).

O trio elétrico funciona metaforicamente como um grande eletroímã que se utiliza da distância como variável imprescindível para o folião: quanto mais próximo do palco móvel, mais intensa se torna a experiência da segunda vida carnavalesca. O vapor quente que sai de baixo do trio elétrico é como um gás sedutor que incita e potencializa a vivência do brincar o carnaval. Enquanto ele rasga a avenida e o mar vivo, cumpre seu objetivo primário de provocar a dança de quem está próximo (TRINDADESERRA, 2009), e aí se arrebentam mais uma vez as fronteiras camarote-blocos-pipoca e tudo vira festa. A sedução, por sua vez, é o ápice do encanto do grande “eletroímã”, pois arrasta, puxa e convoca todos para seguir seu grande desfile pelo circuito.

Vimos, assim, operar a produção de modelizações de subjetividades não egocentradas, ou centralizadas no indivíduo, mas produzidas na materialidade do coletivo, este sob o signo da festa: polifônico, parcial, heterogêneo. De acordo com Guattari: 10

Dupla de axé baiano que fundou o trio elétrico baiano.

De uma maneira mais geral, dever-se-á admitir que cada indivíduo, cada grupo social veicula seu próprio sistema de modelização da subjetividade, quer dizer, uma certa cartografia feita de demarcações cognitivas, mas também místicas, rituais, sintomatológicas, a partir da qual ela se posiciona em relação aos seus afetos, suas angústias e tenta gerir suas inibições e suas pulsões (GUATTARI, 2012, p. 21-22).

Sendo assim, uma cosmovisão carnavalesca seria oportunidade para provocar rasuras na forma-sujeito produzida pela cultura histórica que confere ao indivíduo uma identidade dada por modelizações produzidas a partir de organizações invariantes e unívocas.

Realismo grotesco: subjetividade e vida material O realismo grotesco, de acordo com Bakhtin (1987), refere-se a uma concepção estética que se relaciona diretamente com a cultura cômica popular, na qual o lugar da festa é também do risível. Aí, corpo e vida material não estão indissolúveis; isto significa dizer que a Micareta se torna o espaço de rebaixamento para as partes baixas de um corpo que é material – os órgãos excretores e genitais –, onde ocorre a produção do escatológico e também o sexo. Mais ainda, o rebaixamento ocorre em direção à terra, que se torna junto com o corpo uma só unidade, abstrata e ideal (BAKHTIN, 1987).

Não nos referimos, portanto, a um corpo individual, que se encerra em si, mas a um corpo coletivo e popular, passível de ser generalizado. O rebaixamento puro e simples não produziria tensões suficientes para provocar mudanças, entendidas como deslocamento das classes de suas posições da sociedade nos dias ordinários – o lugar de privilégios da elite e de exclusão das minorias –, assim como não concorreria para invenção de subjetividades produtoras de potência. O rebaixamento opera no sentido de destronar as grandes verdades, o abstracionismo, apontando o retorno à materialidade para a coroação do novo, num ciclo ininterrupto. Rebaixa-se, segundo Bakhtin (1987), para regenerar, relativizando a existência.

Abundância

e

universalidade,

características

do

realismo

grotesco,

correspondem ao clima de festa, à concepção utópica do mundo, à vida material. Assim, a corrosão das barreiras hierárquicas, anteriormente mencionadas, e a produção de novas possibilidades e produções subjetivas são potencializadas pelo clima festivo do

mundo material e todos os elementos que dele fazem parte: bebida, comida, sexo e imagens corporais, fartamente encontradas na Micareta de Feira de Santana. É importante registrar, contudo, em acordo com Bakhtin (1987), que o sujeito em si é uma abstração. Enquanto acontecimento, todavia, efetua-se na materialidade das práticas sociais (a festa uma delas), produzindo-se como potência em variação e desde a experimentação, ou seja, enquanto corpo-território. Abandonamos, assim, o sujeito dado a priori, subjetividades “cristalizadas em complexos estruturais” (GUATTARI, 2012, p.

17), para imergirmos no campo dos acontecimentos quando as demarcações sujeito e objeto, como instâncias produzidas pelo pensamento binário dicotômico, diluem-se, e a vida material tem premência na produção de subjetividades coletivas [...] o que não significa dizer que ela se torne por isso exclusivamente social.

Com efeito, o termo “coletivo” deve ser entendido aqui no sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica de conjuntos bem circunscritos (GUATTARI, 2012, p. 20).

Considerações finais A experimentação da Micareta de Feira de Santana possibilitou-nos, finalmente, uma cartografia preliminar, um rascunho, das forças e fluxos que concorrem para a produção e circulação de sistemas de modelização possíveis numa festa na qual elementos da cosmovisão carnavalesca se fazem presentes de modo a criar tensões entre o controle da variação das formas e a heterogeneidade e polifonia da vida material.

A micareta é festa, celebração, mistura, domínio de produções artísticas, mas também um motor de produção semiótica que denuncia as formas de organização de uma sociedade que, ordinariamente, segrega, aponta e condena e, sobretudo, não cessa de produzir subjetividades identificadas a um “eu” racional e autocentrado. Na micareta, tivemos a experiência da vida coletiva e corporal, ainda que a tarefa (de pesquisar) muitas vezes nos tivesse colocado na posição de espectadores, denotando a força da cultura histórica. Mas é justamente esta experiência de afetos não programados que nos leva a pensar sobre os modos como a festa, enquanto acontecimento político e estético, ainda que circunscrito ao calendário, possibilita-nos interferir nos sistemas de modelização que nos afetam e dos quais sequer nos damos conta no cotidiano.

Estiveram à prova as nossas disposição e capacidade para afetar e sermos afetados pelo conjunto, esta foi a consigna inicial. Nos momentos de comunhão foi possível a experiência de um corpo intensivo, por excelência, e de uma segunda vida, como dito por Bakhtin (1987), que nos deslocou para novos modos de pensar, de agir; e de: sentirmo-nos expandidos e potentes, como pipocas; limitados pelas cordas dos blocos; com a perspectiva dos altos, nos camarotes. Podemos dizer, afinal, que a novidade do encontro se fez, despertando-nos para novas enunciações dramáticas, com um corpo que é sensual, plurissignificativo, narrativo, múltiplo em expressões, territorializado, territorializante e intersubjetivo.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 4. ed. São Paulo: HUCITEC, 1987.

FERRAZ, Ana Rita Queiroz. Variações da forma na cena educacional: experimentação e corpos (im)possíveis. 2013. Tese (Doutorado em Educação e Contemporaneidade) – Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2013.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2012.

MIRANDA, Eduardo Oliveira. “O negro do Pomba quando sai da Rua Nova, ele traz na cinta uma cobra coral”: os desenhos dos corpos-territórios evidenciados pelo Afoxé Pomba de Malê. 2014. Dissertação (Mestrado em Desenho, Cultura e Interatividade) – Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2014.

OLIVEIRA, Valter Gomes Santos de. Impressões urbanas: Narrativas fotográficas de Jacobina em um contexto desenvolvimentista. In: ANAIS DO III ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA: PODER, CULTURA E DIVERSIDADE – ST 02: HISTÓRIA E IMAGEM, 2006, Caetité. Anais... Jacobina: Universidade do Estado da Bahia, 2006. p. 1-12. Disponível em: <http://www.uesb.br/anpuhba/artigos/anpuh_III/ valter_gomes_santos.pdf>. Acesso em: 5 maio 2016.

PREFEITURA MUNICIPAL DE FEIRA DE SANTANA. Site oficial. Disponível em: <http://www.feiradesantana.ba.gov.br/casadotrabalhador/arq/Momento_Historico.pdf>.

Acesso em: 5 maio 2016.

TRINDADE-SERRA, Ordep José. Rumores de Festa: O Sagrado e o Profano na Bahia. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2009.