Samba de roda, patrimônio
imaterial da humanidade Carlos Sandroni
E
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2004, trabalhei para o Ministério da Cultura, mais especificamente para
o Iphan, como coordenador da candidatura do samba de roda do Recôncavo (BA) à III Proclamação de Obras-Primas do Patrimônio Imaterial da Humanidade (instituída pela Unesco). Neste artigo, proponho-me a refletir sobre essa experiência, situando-a inicialmente no quadro das políticas públicas para o patrimônio imaterial, e concentrando-me, em seguida, nos problemas suscitados pelo “plano de salvaguarda” do samba de roda (exigido pela instituição internacional) e sua implementação. “Salvaguarda”, termo cujo significado espero esclarecer ao longo do texto, é uma das palavras-chave das políticas internacionais para o patrimônio imaterial (em inglês, “safeguard”, em francês, “sauvegarde”); por isso, é possível que o caso aqui debatido tenha alguma pertinência mais geral.
O samba de roda O samba de roda é um tipo de música e dança praticado sobretudo por afro-brasileiros no Estado da Bahia. É particularmente importante na região do Recôncavo, a faixa de terra que fica em torno da baía de Todos os Santos, na entrada da qual situa-se a capital do Estado, São Salvador. Não posso fornecer aqui uma descrição detalhada do samba de roda; bastará sublinhar dois pontos em que ele difere do samba carioca (por generalização, “brasileiro”). O primeiro é a organização da dança, na qual a posição circular não é circunstancial, como nas “rodas de samba” comuns em muitas capitais brasileiras, mas intrínseca à definição do gênero: samba de roda. O segundo é o tipo de canto, que adere melhor ao modelo “responsorial” de canto coletivo, tantas vezes associado à música tradicional africana e afrodiaspórica. Os praticantes de samba de roda são chamados de “sambadores” e “sambadeiras”, e não “sambistas” como nas demais localidades do país.1
Patrimônio imaterial no Brasil, avant la lettre Para a compreensão do processo de patrimonialização do samba de roda, pode ser útil recordar dados básicos sobre a trajetória das políticas patrimoniais no Brasil. As políticas da Unesco para o patrimônio imaterial não chegaram ao Brasil como um raio em céu azul, mas se conectaram com ideias e políticas locais para as culturas populares, ou o folclore, que remontam pelo menos aos anos 1930. O primeiro anteprojeto, redigido em 1936, para a criação de uma instituição pública de proteção ao patrimônio cultural (de autoria de Mário de estudos avançados
24 (69), 2010
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