31/01/2015
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O Malandro e o Direito: um estudo sobre as relações entre direito e música Filosofia Âmbito Jurídico
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Revista Âmbito Jurídico
Filosofia
Filosofia O Malandro e o Direito: um estudo sobre as relações entre direito e música Gisele Mascarelli Salgado Resumo: Este artigo busca levantar algumas concepções do malandro na música popular brasileira e relacioná‐la com a concepção hegemônica de Direito, positivismo jurídico. O objetivo do artigo é ressaltar alguns problemas na visão hegemônica e propor que o Direito seja entendido como instituição imaginária social. Palavras‐chave: Filosofia do direito, instituição imaginária social, malandro, música popular brasileira, samba, Castoriadis Sumário: Introdução, 1. A figura do malandro na música popular brasileira, 1.1. O malandro de Noel Rosa, 1.2. O malandro de Chico Buarque, 1.3. O malandro de Bezerra da Silva, 1.4 Outros Malandros, 2. Significações imaginárias do Direito, 2.1. Positivação Legal, liberdade negativa e as lacunas, 2.2. A Tipificação, sanção e aplicação, 2.3. Pluralidade de ordenamentos jurídicos, 3. Malandro e o crime, 4. Malandro, a vantagem e as leis, 4.1. A vantagem e o “jeitinho”, Considerações Finais, Bibliografia. Introdução A música é uma das diversas esferas sociais que possibilita, tomando a parte pelo todo, entender a sociedade. O direito pode‐se beneficiar dessas representações da música, para ajudar a entender algumas figuras e especificidades de cada sociedade. A figura do malandro está presente em diversos textos literários, mas é principalmente nas músicas que o malandro se eterniza no imaginário brasileiro. O objetivo desse artigo é estabelecer relações entre o Direito e a música, para entender a figura do malandro na sociedade brasileira e como este malandro estabelece um diálogo com o Direito. É também objetivo do texto apontar como o malandro denuncia algumas limitações do Direito, como a questão das lacunas e da aplicação das normas. Entende‐se o malandro como uma significação imaginária da sociedade brasileira. Com isso, evita‐se uma ou outra definição específica de malandro, admitindo‐se diversos malandros, mas tentando estabelecer algo que une essas figuras. O malandro não é aqui tomado como um mito ou como um tipo social, no sentido de Weber. A instituição imaginária da sociedade é um conceito de Cornelius Castoniadis. O filósofo entende como instituição: “uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se combinam em proporções e em relações variáveis um componente funcional e um componente imaginário”[1]. A imaginação não tem uma função, ela é desfuncionalizada, indo além do instrumental, mostrando uma outra dimensão da sociedade que geralmente é esquecida pelos estudos funcionalistas e que buscam um sistema. Essa imaginação é radical a medida que cria o novo e modifica a sociedade constantemente, escapando da determinação e construindo o novo a cada momento. As instituições que são formadas por um mar de significações, não explicam como a sociedade funciona, mas o que a sociedade é, dando uma dimensão do social em um tempo e espaço. A sociedade brasileira tem como uma de suas significações imaginárias o malandro, que é uma figura que explica um pouco o que essa sociedade entende como boa‐vida, como lida com a questão do trabalho, como se relaciona com as leis e o poder, etc. Como significação o malandro não é um objeto acabado, pois ele está em conexão com a sociedade que também se transforma, e desse modo o malandro também não é estático, nem uno, mas um magma de significações sociais. A relação entre uma significação imaginária que é o malandro e outra instituição imaginária da sociedade que é Direito, pode ajudar a perceber que o direito não pode ser mais definido como algo reduzido somente à normas ou a conjunto de normas ou mesmo a sistema normativo. As significações do malandro levam a um mundo em que esse conceito de direito é desafiado. Primeiramente, o artigo procura‐se mostrar o malandro no imaginário social a partir da música popular brasileira, em especial em três compositores de épocas diferentes: Noel Rosa, Chico Buarque de Holanda e Bezerra da Silva. Em um segundo momento busca‐se desvendar a noção de direito tradicional e suas limitações, na qual trabalha o malandro. Em um terceiro, trata‐se de estabelecer ligações do malandro com o crime, que é uma das esferas do Direito (no conceito tradicional), que é a sancionatória. Por fim, aborda‐se a questão da vantagem, do malandro e da aplicação da norma. 1. A figura do malandro na música popular brasileira O malandro é uma das figuras sempre presente em diversas músicas brasileiras, em especial nos sambas. O malandro pode ser tido como uma figura mítica, presente no imaginário nacional. Ele faz parte de uma das definições do que é ser brasileiro, com sua malemolência, gingado e com o “jeitinho brasileiro”. O malandro representa uma espécie de herói brasileiro, que é valorizado por sua maneira de bem viver e de gozar das boas coisas da vida, sem necessariamente trabalhar ou seguir as normas sociais. A figura do malandro está presente em toda a cultura brasileira e tem representações importantes nas esferas da arte e da religiosidade. O malandro é uma das figuras da Umbanda e do Catimbó, que mistura religiosidades indígenas, africanas e cristãs. Zé Pelintra, Zé Pretinho e o Malandro da Camisa Listrada são entidades reconhecidas por sua malandragem, por buscar a caridade e o progresso da humanidade. O terno branco de linho e o sapato branco são marcas dessa figura religiosa, assim como a malandragem e a desconstrução da ordem estabelecida para a criação de uma nova ordem autônoma. O malandro foi apontado por Antonio Candido como figura nacional, no romance “Memórias do sargento de milícias”, como um mediador entre a ordem e a desordem ou ausência de ordem[2]. António Candido fala de uma dialética da malandragem. Na sociedade retratada no romance as regras sociais e jurídicas são o tempo todo relativizadas, e é o malandro na figura de Leonardo Pataca, que é desprovido de virtudes, porém é leal a seus amigos. O autor entende que o personagem é um malandro e não um pícaro ou outro aproveitador, pois pratica a astúcia pela astúcia[3]. Zé Carioca, o papagaio brasileiro representado nos quadrinhos da Disney, personifica o malandro. Essa figura sofreu uma enorme transformação devido à modificações na forma da sociedade de incorporar o malandro. Há pelo menos duas fases nas histórias: uma em que Zé Carioca é trabalhador e está na cidade de Patópolis e outra em que personifica o malandro vagabundo e caloteiro, que não respeita as leis[4]. O antropólogo Roberto Damatta coloca o malandro como figura nacional, que ajuda a compreensão do que é ser brasileiro. O malandro não é apenas um personagem ou algumas pessoas, mas faz parte do que identifica o brasileiro. Assim, não é apenas o malandro, mas a malandragem e o “jeitinho” que interessa a Damatta, pois o está em jogo é a relação entre público e privado, entre casa e rua, entre o meu e o teu. Para o antropólogo a malandragem é uma forma de navegação social. “(...) não há no Brasil quem não conheça a malandragem, que não é só um tipo de ação concreta situada entre a lei e a plena desonestidade, mas também, e sobretudo, é uma possibilidade de proceder socialmente, um modo tipicamente brasileiro de cumprir ordens absurdas, uma forma ou estilo de conciliar ordens impossíveis de serem cumpridas com situações específicas, e – também – um modo ambíguo de burlar as leis e as normassociais mais gerais”[5]. A figura do malandro está distante daquele que trabalha para sobreviver. Malandro não é o escravo, nem o operário, nem o senhor, nem o patrão. O malandro se apresenta como figura de resistência ao sistema imposto pela sociedade. Na impossibilidade de ser senhor, nega‐se a ser escravo. Esse traço do malandro se relaciona com a figura do capoeira pela recusa ao trabalho. É isso o que afirma Fabiana Lopes, no seguinte trecho: “O malandro segundo Maria Ângela Salvatori, em sua tese Capoeiras e malandros, teria sua origem ancestral, principalmente no que diz respeito à vestimenta, em outro personagem urbano anterior (de fins do século XIX), o capoeira. Desse modo, o malandro seria proveniente de uma tradição popular que procurava preservar uma margem de autonomia e de deliberação sobre sua própria vida. Essa tradição, segundo a autora, teria se originado de um regime no qual o trabalho se apresentava de forma negativa e marginalizada, a liberdade representava algo mais que a condição de cidadãos livres. A liberdade simbolizava principalmente o “viver sobre si”, o não submeter‐se a uma disciplina de trabalho. Estes personagens, quando foram envolvidos por um contexto de valorização da moral do trabalho e logo em seguida da exaltação da figura do trabalhador, foram rotulados como vadios e relacionados com a violência urbana”[6]. Para viver a margem da sociedade o malandro não pode simplesmente negar a sociedade e suas regras, mas tem de aprender a negociar, acatando algumas e renegando outras. Assim, o malandro não se torna um párea, mas não pode ser considerado um indivíduo que está plenamente incluído socialmente. Sua recusa de seguir as normas impostas por uma burguesia e sua recusa de trabalhar o diferencia do escravo/proletário. O malandro não é o revolucionário, que busca modificar as estruturas sociais. É figura de resistência porque quer estabelecer suas próprias regras, a partir de seus valores, para gozar a vida que considera boa. O malandro quer viver a autonomia, por isso o malandro é figura política. A música popular brasileira apresenta diversos tipos de malandro. Todas essas referências ao malandro têm em comum, salientar a relação do malandro com as normas, sejam elas sociais ou jurídicas. Elas formam um magma de significações, que fazem parte da cultura brasileira. Assim, a figura do malandro faz parte da cultura brasileira, e respalda em grande parte o “jeitinho”. O malandro se torna um grande negociador de conteúdos normativos, respaldado pela sociedade. A difusão da música sobre o malandro ajuda a manter esse imaginário social vivo. 1.1. O malandro de Noel Rosa O malandro é retratado por Noel em diversas músicas, muitas delas tendo como gênero o samba. “Capricho de rapaz solteiro”, “Bom elemento”, “João Ninguém”, “Malandro Medroso”, “Escola de Malandro”, são algumas composições de Noel Rosa com essa temática. Noel fazia uma diferença entre o sambista e o malandro, que vivia
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