Nós somos batutas: uma antropologia da trajetória do grupo musical carioca Os Oito Batutas e suas ar

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condições e sem receber123. Donga e China encontram Vampré e Deodato desolados pela situação e, ao tomar conhecimento, Donga teve a idéia de levar o livreto da peça para Pixinguinha que de pronto escreveu novas composições para Flor Tapuya.124 Estas narrativas não têm uma marcação temporal para que se possa saber em que momento da peça deu-se a mudança nas suas composições musicais e quais as avaliações que foram dadas sobre isto. A partir dos fragmentos jornalísticos por mim encontrados, nada neste sentido pôde ser percebido, além de chamar a atenção o fato de que, no geral, os jornais continuam anunciando a opereta como musicada por Luis Quesada até o último dia, como mostra o J. do Comércio de 30 de julho de 1920, um dia antes da apresentação final. Em relação a estes eventos, temos uma narração articulada em que se destacam particularidades dos personagens Donga e Pixinguinha, o primeiro como articulador administrativo e o segundo o artista genial. Esta dicotomia informa algo em relação a uma concepção de arte em que o seu produtor, o artista, está alocado no plano da inspiração, da Donga fala em seu depoimento: “Atuamos nessa peça e tal e de repente, depois de um espaço de meses de apresentações, aquela coisa toda, foi caindo o negócio. Foi caindo e era preciso uma renovação ou uma coisa qualquer para ganhar força.” (Donga, 1969). Isto é transcrito em Fernandes (1970: 87) como: “Atuamos durante muito tempo, foram meses de apresentações. (...) Ocorre que depois de um período de decréscimo de afluência, fato que motivou uma renovação no espetáculo, a peça foi suspensa de repente.” 124 Cabral (1978, 1997, 2007) complementa sua narrativa sobre este evento, enfatizando a admiração de Donga por Pixinguinha como gênio, citando a fala de Donga que teria dito: “eu acho o Pixinguinha um gênio. Não é por exibição não, pois não sou erudito, mas aconselhei muito Pixinguinha. Outros também aconselharam”. Esta transcrição é exatamente a que está editada em Fernandes (1970), o que, portanto indica a fonte usada por Cabral. No entanto, o que ouvi na gravação do MIS-RJ deste depoimento é um pouco diferente: “eu acho o Pixinguinha um gênio. Gênio! Não é por erudição não, não é que ele seja erudito não. O Pixinguinha nunca... Eu aconselhei, outros aconselharam. Porque nós nos queremos como irmãos, de modo que eu disse ao Pixinguinha numa ocasião que eu me lembro bem. Tinha o Fausto, flautista que ganhou prêmio e medalha de ouro e tal e eu disse: Você podia procurar o Fausto que ele já me falou que tinha vontade que você se aperfeiçoasse e tal. Ele foi lá, deu duas aulas e não foi mais!” (Donga, 1969). Estas re-articulações de termos podem indicar coisas diferentes. Na primeira versão da narrativa, é Donga que se reconhece como “não erudito”, mas que mesmo assim aconselha Pixinguinha a estudar. Na segunda narrativa (a que eu escutei), Donga salienta que Pixinguinha nunca foi “erudito” e que sua genialidade não advém disto. O que é importante é que temos aqui termos que irão qualificar Pixinguinha como gênio. Mas omitir da narrativa de Donga a negação de Pixinguinha como músico erudito – este termo indicando entre outras coisas o acesso ao mundo da escrita musical – possibilita construir a persona deste como conhecedor do saber erudito, ainda que adquirido de modo espontâneo e não acadêmico e de quebra, Donga é remetido ao não-erudito. Infelizmente não pude precisar quem seria o tal Fausto que Donga cita. 123

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