Nós somos batutas: uma antropologia da trajetória do grupo musical carioca Os Oito Batutas e suas ar

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

IZOMAR LACERDA

NÓS SOMOS BATUTAS: Uma antropologia da trajetória do grupo musical carioca Os Oito Batutas e suas articulações com o pensamento musical brasileiro.

Florianópolis 2011

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IZOMAR LACERDA

NÓS SOMOS BATUTAS: Uma antropologia da trajetória do grupo musical carioca Os Oito Batutas e suas articulações com o pensamento musical brasileiro.

Dissertação submetida ao Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em Antropologia Social. Orientador: Prof. Dr. Rafael J. de Menezes Bastos. .

Florianópolis 2011

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL NÓS SOMOS BATUTAS: Uma antropologia da trajetória do grupo musical carioca Os Oito Batutas e suas articulações com o pensamento musical brasileiro. IZOMAR LACERDA Orientador: Prof. Dr. Rafael José de Menezes Bastos

Dissertação Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em Antropologia Social Banca Examinadora ________________________________________ Dr. Rafael J. de Menezes Bastos (PPGAS/UFSC – Orientador) ________________________________________ Dr. Samuel Mello Araújo Júnior (PPGAS/UFRJ) ________________________________________ Dra. Carmem Silvia Rial (PPGAS/ UFSC) ________________________________________ Dr. Rafael Victorino Devos (PPGAS/UFSC) ________________________________________ Dr. Luis Fernando Hering Coelho (UNIVALI SUPLENTE)

Florianópolis, 28 de fevereiro de 2011. 5


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AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a minha esposa Laura. Você é meu maior incentivo. Sem seu amor, carinho, respeito, apoio (moral e financeiro) e paciência, eu não conseguiria passar por mais esta fase. Também aproveito para me desculpar pelo período de ausência, mau humor e ranzinzisse, que foi sempre combatido por você com bom humor e alegria, regado a jantarzinhos, violãozinho, patezinhos, vinhozinhos, cervejinhas e boas risadas. Te amo negrita. Contigo eu sou bem melhor do que costumava ser! A meus pais: Dona Anna e Seu Alcides, por toda a força e incentivo, além do amor incondicional que venho recebendo desde meu nascimento. Nos momentos mais difíceis, tenho em vocês meu portoseguro, onde encontro alento. Tomem este trabalho como uma homenagem e uma pequena retribuição. Amo vocês. Aos meus irmãos, em especial ao compadre Helinton, que tenho certeza, torceu e comemorou comigo todos os passos desse período, mesmo que a distância. Valeu! Ao meu orientador Rafael J. de Menezes Bastos. Não tenho palavras para agradecer a oportunidade de conviver com esse sujeito de tanta sabedoria, generosidade, paciência e elegância. Seus ensinamentos têm sido a melhor parte de meu trabalho como aprendiz de antropólogo e espero ainda contar contigo por muito tempo. Muito obrigado. Aos demais professores do PPGAS-UFSC, com quem venho convivendo, tanto em disciplinas como pelos corredores e que certamente contribuem em muito para meu desenvolvimento acadêmico. Agradeço, sobretudo, a Theóphilos Rifiótis, Carmen Rial, Vânia Cardoso, Sonia Maluf e Oscar Calávia. A coordenação e a secretaria do PPGAS-UFSC, em especial a Karla e Adriana. Agradeço a CAPES pela bolsa de mestrado. A todos os colegas e amigos do MUSA-UFSC, pelas várias conversas interessantes que as reuniões do núcleo sempre fomentam. Em especial gostaria de agradecer a Luis Fernando Hering Coelho, por aceitar participar de minha banca de projeto de dissertação e também como suplente da banca de dissertação, além de tantas conversas que

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contribuíram significativamente para a realização deste trabalho; a Tereza Franzoni, por várias leituras cuidadosas e inteligentes de meus textos; e Vânia Müller, pela indicação da moradia tão especial no Rio, no bairro da Lapa, de onde pude realizar meu trabalho de campo. No Rio de Janeiro agradeço em especial a Lygia Santos, pela gentileza de me receber tão bem em sua casa, em agradáveis e longas conversas, bem como pelo seu papel de anfitriã em eventos do “mundo do samba”. Também agradeço a Maurício Carrilho, Luciana Rabello, Samuel Araújo, Henrique Cazes, Felipe Barros, Maria Moura, Ilmar de Carvalho, Flávio Silva e Ricardo Cravo Albin. Aos funcionários das várias instituições de pesquisa que me ajudaram, em especial, Antônio de Almeida no MIS-Lapa e D. Clara na BN. Agradeço ainda aos moleques da república da Lapa, onde me hospedei durante meu trabalho de campo, sobretudo, Marcelo, Felipe, Seba e Gabriel. Agradecer aos amigos é sempre difícil e injusto, pois pessoas muito importantes acabam sendo esquecidas por motivos quase sempre inexplicáveis. Portanto, aos que não forem citados nominalmente, fica a minha gratidão e sinceras desculpas pelo possível esquecimento. Primeiramente, agradeço aos meus compadres: Kaio Hoffmann (Kaiera), pela convivência desde a graduação, sempre com muita conversa, reflexões de fundo de sala, risadas e cachaçadas que sempre rendem reflexões fantásticas. Vinícius Possebon (Moskão), nosso grande mestre Jedi, que além das conversas e das cervas, conseguiu me reabilitar várias vezes das dores da coluna e do stress do mestrado com seus indispensáveis reikis. Maurício Guedin (Gordo), por sempre conseguir trazer uma piada nova e uma bela página do cancioneiro popular sertanejo (ou um belo funk proibidão!), diminuindo e fazendome esquecer dos perrengues. Aos meus colegas e amigos da turma de mestrado (2008) pelas inúmeras trocas intelectuais e pelejas interessantíssimas que de intelectuais tinham muito pouco. Em especial a Taty Dassi, pela grande amizade desses anos, as boas conversas e cervejas tomadas, as correções de meus textos, além de ser minha tradutora particular (um dia eu te pago!). Aos M. Colombianos (Carlos, Marcela, Amaru – brasileirinho -, Carol e Violeta) pelos cafés Juan Valdez, por compartilharem momentos

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importantes comigo. Ao Ari, por suas frases decisivas, seu dote churrasqueiro e, (...) enfim! Também a Juliana, ao Tiago e a Anelise. Agradeço também a prazerosa convivência com a turma das pelejas musicais, cantorias, conversas e risadas, que me fez voltar a tocar e cantar com vontade. Além da Lalita, nos vocais, agradeço em especial: ao Marcelo (da Tati!) na cachacinha, pandeiro e cajón; a Tati por namorar o Marcelo e oferecer sua casa para as pelejas; a Fernanda, pelo xilofone, arranjos vocais e as “sociedades complexas”; ao Marcel (da Fer!), pelo bem tocado violão – nas milongas ou quando tem vontade – e pelo comando do Yellow Submarine; Taty, pelo violoncelo, as vozes e o controle do Ari quando começam as caretas; e ao Kaio - que logo trocará as cordas da guitarra -, pelo Tim Racionais e o Jorge Benjor. Valeu Jogadô! Ao Victor (Baiano) e a Sandra por vários momentos compartilhados, pelas deliciosas tapiocas e grandes noitadas de patezinhos que renderam boas risadas. A Rita e Kurt, pela amizade e os livros/xeróx emprestados.Valeu. Aos vizinhos: Denise, por boas cervejadas, canções sulinas e pelo abastecimento de tabaco Amphora, que garantiram a fumaça do cachimbo e belas reflexões nas madrugadas de escrita; e Josué, por várias discussões pertinentes sobre tudo (o mundo em geral!), em estados etílicos geralmente interessantes. Ao Bloco Carnavalesco Universtárias Peludas, que me proporciona a morte e renascimento a todo sábado de carnaval, me fazendo manter assim um pouco de sanidade mental durante o restante do ano. Em especial ao Disma, Karla, Bruno, Cunha, Camilo, Graci, e aos Forquilhinhas: Marcão (o que não gosta de pizza congelada, nem de vinho), Rodrigo (Dicona) e Mano (Demétrio). Obrigado Nação Peludense! Agradeço a minha fiel escudeira e companheira fiel que me acompanhou todas as madrugadas, minha cachorra Pretinha. Por muitas vezes, jogar sua bolinha foi a única saída possível das angústias que me travavam na escrita solitária. Agradeço por fim: a Ambev, ao Google, a Concha y Toro e aos bons alambiques da grande Florianópolis.

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RESUMO Este trabalho apresenta um estudo antropológico sobre o ambiente artístico-musical carioca do início do século XX, sobretudo na década de 1920, tendo como chave de entrada narrativas e eventos relacionados ao grupo Os Oito Batutas, cujo espaço simbólico ocupado na memória da música brasileira tem lugar de destaque. A partir de um trabalho de campo realizado no Rio de Janeiro, a narrativa etnográfica se baseia em minha experiência de rastrear e mapear categorias numa varredura de fontes primárias em arquivos, principalmente jornais da época. Os temas são confrontados com dados de outras narrativas constituintes desta história (jornalísticas, biográficas, memorialistas, historiográficas e musicológicas), salientando as transformações e os arranjos diferenciais destas composições, buscando contribuir para a compreensão de dinâmicas constitutivas do pensamento musical brasileiro, bem como aspectos fecundos da construção da brasilidade.

Expressões-chave: a) Batutas b) Música Popular Brasileira c) Antropologia da Música d) Mito e História e) Pensamento Musical Brasileiro.

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ABSTRACT The present work introduces an anthropological study about the artistic and musical scene in Rio de Janeiro in the beginning of the XX century, especially during the 1920. The outsets for the analyses are the narratives and the events related to the group Os Oito Batutas, a group which holds a prominent place in the symbolic space of the Brazilian musicâ€&#x;s memory. Starting from the field work, which took place in Rio de Janeiro, the ethnographic narrative is based in my own experience of tracking and mapping categories by examining primary sources in archives, particularly newspapers from that period of time. The themes here are confronted with data from other narratives (journalistic, biographic, personal recollections, historical and musicological) which constitute the history of the group as a way to point the transformations and differential arrangements of these compositions. The aim of this exercise is to contribute to the comprehension of the dynamics of the Brazilian musical though as well as to point fruitful aspects to help us think about the constitution of the brasilidade.

Key-expressions: a) Batutas b) Brazilian Popular Music c) Anthropology of Music d) Myth and History d) Brazilian Musical thought

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SUMÁRIO Agradecimentos_______________________________________ 7 Resumo______________________________________________ 11 Abstract_____________________________________________ 13 INTRODUÇÃO ________________________________________17 Um flaneur entre arquivos._________________________________19 Sobre o trabalho de campo. ________________________________ 23 Uma inspiração mitológica. ________________________________27 Latour e Bourdieu: rastreando associações e explicitando hierarquias.___________________________________________ 32 O contexto republicano e sua capital irradiante.__________________34 CAPÍTULO I – GÊNESE DO GRUPO

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1.1 - Os Oito Batutas – nome e número para o Cine Palais – O GRUPO ____________________________________________________39 1.2 – “Organizar o que? Ta tudo organizado. O senhor que vê aí!” _________________________________________________41 1.3 – Chega a Semana Santa. _______________________________50 1.4 – Benjamim Costallat, um defensor dos Batutas______________52 1.5 – Período pré 1ª viagem – 15 de outubro de 1919, um dia atípico! _________________________________________________56 CAPÍTULO II – PRIMEIRAS VIAGENS – A Busca de um Brasil interior._________________________________________________64 2.1 - As viagens e o Acervo Almirante. ________________________64 2.2 – Breve pausa no Rio____________________________________84 2.3 - BAHIA E PERNAMBUCO – A busca das origens... ________99 2.4 – Novamente à Capital._________________________________101

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CAPÍTULO III – SETE HOMENS E UM DESTINO: PARIS___111 3.1 – A poucas horas de PARIS._____________________________117 3.2 – Notícias no Rio da estréia de Les Batutas em Paris. ____________________________________________________131 3.3 – Les Batutas em PARIS_______________________________136 3.4 – De volta a terra natal _________________________________140 3.5 – Nacionalizando a companhia BA-TA-CLAN_____________147 3.6 – Celebrando o CENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA______151 CAPÍTULO IV – ARGENTINA E SUL DO BRASIL: CONSIDERANDO O QUE “NÃO TEVE IMPORTÂNCIA”_____157 4.1 – Experiências de campo em festas da “tradição”__________158 4.2 – “Isso não teve importância!”________________________162 4.3 – Prévias para a Argentina_______________________________165 4.4 – Seguindo os músicos transeuntes________________________166 4.5 – Cotubas, Batutas e Batutas_____________________________181 4.6 – Pixinguinha X Donga: pólos do cisma____________________192 4.7 – Últimos rastros e ações________________________________200 PICCOLO FINALE_____________________________________204 Referências Bibliográficas_______________________________208 Anexos_________________________________________________219

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INTRODUÇÃO

“Os Oito Batutas fizeram nome no paiz, depois esse nome atravessou os mares!(...)”1

Este trabalho busca compreender os significados envoltos na articulação da frase acima. O que se pode aprender ao se interrogar sobre o processo de “fazer o nome” e sua conseqüência de fazer este nome “atravessar os mares”? Pensando nisto, buscarei neste trabalho realizar uma antropologia histórico-estrutural (Sahlins, 2003, 2006, 2008)2 do ambiente artístico-musical carioca do início do século XX, sobretudo na década de 1920, tendo como chave de entrada narrativas e eventos relacionados ao grupo Os Oito Batutas, cujo espaço simbólico ocupado na memória da música brasileira tem lugar de destaque. A análise é embasada em meu rastreamento3 e mapeamento4 de categorias

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Fala atribuída a Donga, em uma série de entrevistas feitas pelo O Jornal (Rio de Janeiro) em 1925 com as principais personagens da música popular ligados ao mundo carnavalesco de então – âmbito muito importante para os cronistas deste periódico -, com o título de “Os Reis do Choro e do Samba”. Esta série envolveu 23 entrevistados, entre os quais cinco Batutas: Donga (24/01/1925), Pixinguinha (27/01/1925), China (29/01/1925), Aristides de Oliveira (10/02/1925) e João Thomas (14/02/1925). 2 Sahlins propõe uma perspectiva dialética da evolução cultural pautada por um caráter analítico essencialmente processual que busca integrar à dinâmica cultural o seu caráter constitutivo de simultaneidade entre a continuidade e a mudança. Mais do que compreender como os eventos são ordenados pela cultura, é pensar como a cultura é reordenada neste processo, ou seja, “como a reprodução de uma estrutura torna-se a sua transformação?” (Sahlins, 2008: 28). A história é ordenada culturalmente conforme suas categorias culturais, assim como os esquemas e categorias culturais são historicamente ordenados, mas, sobretudo há nestas dinâmicas uma reavaliação dos esquemas culturais na ação criativa dos sujeitos, o que pode suscitar uma transformação estrutural dentro de uma mudança sistêmica. A estrutura como relações simbólicas de ordem cultural é tratada como objeto histórico. (2008 e 2003) 3 Latour (2008) advoga em nome de uma “sociologia das associações”, retomando o sentido original do social. O social não é um domínio especial – “coisa” – mas um movimento peculiar de re-associações em sentido amplo. 4 Wacquant (2005) numa leitura de Bourdieu se refere ao “mapeamento” do “campo artístico” como ferramenta de abordagem sociológica à estética, sendo necessárias três operações analíticas: 1- localizar o microcosmo artístico em relação a um campo de poder (âmbito institucional de circulação de poderes dominantes); 2 – traçar a topologia da estrutura interna do campo, buscando hierarquias entre agentes e instituições na busca por legitimidades; 3 -

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em fragmentos de notícias, numa varredura de fontes primárias em arquivos do Rio de Janeiro, principalmente jornais da época, que fornecem temas que serão confrontados com dados de outras narrativas constituintes desta história (jornalísticas, biográficas, memorialistas, historiográficas e musicológicas), salientando as transformações e os arranjos diferenciais destas composições. Como lembra Mauillaud, a produção, circulação e interpretação de discursos midiáticos, como dos jornais, devem ser pensados como dispositivos próprios de ordenamento dos acontecimentos, que são transformados em notícias. Fazer uma leitura crítica analítica – “da forma ao sentido” – envolve estar atento à dinâmica deste ordenamento em suas estratégias, pensando na “desconstrução e reposição de sentidos” que o discurso midiático põe em prática, contextual e historicamente localizado. A produção do acontecimento implica em operações que vão de um fato enquanto experiência em si – recuperada apenas no sonho positivista – a enunciados em relação ao acontecimento, passando pelo âmbito técnico, burocrático, político e ideológico do jornal. Estes jogos de enunciados compõem as fontes jornalísticas, sendo um discurso emaranhado em um amplo conjunto enunciativo (Mauillaud, 2002). Portanto, não se trata aqui de uma colheita de dados, ou de conteúdo, pois o texto (jornalístico) está sempre em relação a um “dispositivo”, uma matriz que impõe formas aos textos em dupla operação, de ordenamento dos enunciados e de preparação para o sentido. Desta forma, vale apontar os jornais para além de fonte de pesquisa, mas como objeto de estudo, uma vez que constituem por si sós realidades que fornecem termos a partir dos quais se organizarão as narrativas em suas composições em torno dos Batutas. Este estudo se insere num projeto de maior dimensão, em que se inscrevem outros trabalhos que intentam esforços para compreender as trajetórias do grupo Os Oito Batutas e suas implicações em suas passagens por outros contextos como: Paris (Menezes Bastos, 2004, 2005); Argentina e Sul do Brasil (Coelho, 2009)5. Neste sentido, o impulso inicial desta pesquisa foi orientado em função de questões construir as trajetórias sociais dos indivíduos em concorrências no campo, buscando explicitar a constituição do habitus. 5 Trabalhos resultantes de pesquisas de pós-doutorado e de doutorado em antropologia, respectivamente. Menezes Bastos é o orientador do trabalho de Coelho e também orienta este trabalho.

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levantadas nas pesquisas anteriores. Isto não quer dizer, nem que seja uma atitude de continuação delas, nem um processo acumulativo de informações (numa lógica de quanto mais dados, mais próximo da verdade), nem que estas ditem os rumos do que apresentarei, mas sim, num horizonte maior, há convergências iniciais que informam e dão contornos aos passos da pesquisa, fornecendo de certa forma, diálogos que perpassaram o trabalho de campo e a escrita etnográfica. Dito isto, tento caracterizar e apresentar algumas estratégias, métodos e inspirações gerais de que aqui lanço mão. Um flaneur entre arquivos. Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas da saúde (...) É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas. Do alto de uma janela (...) admira o caleidoscópio da vida no epítome delirante que é a rua (...) (João do Rio, A alma encantadora das ruas.)

Esta estratégia de flânerie, comum ao pensamento sobre a cidade posta em aceleração com os processos da modernidade do século XIX, poeticamente utilizada por João do Rio, cronista carioca do início do século XX, me forneceu uma imagem do que foi meu caminhar por entre os arquivos, minha procura por fragmentos congelados do passado em arquivos jornalísticos, bem como as articulações e relações posteriores em narrativas específicas. No campo, meu percurso foi o de um perambular com inteligência, vadiando e refletindo sobre o

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“caleidoscópio da vida no epítome delirante” que foram, nem tanto as ruas como para João do Rio, mas sim as narrativas que me absorviam. O trabalho de campo e a escrita etnográfica, neste sentido, me colocaram defronte ao que Lévi-Strauss apontou como a especificidade do fazer antropológico, que conduz a “fazer da subjetividade mais íntima, meio de demonstração objetiva” (Lévi-Strauss, 1993: 23). LéviStrauss (1993) trata do campo da antropologia escrevendo que Mauss ao pensar a “integralidade do objeto” (“fato social total”) através de uma “intersecção de duas subjetividades”, contribui decisivamente para apontar uma originalidade da antropologia social: “ela consiste – ao invés de opor a explicação causal e a compreensão – em descobrir um objeto que seja ao mesmo tempo, objetivamente muito longínquo e subjetivamente muito concreto” (1993: 17). Ao tratar da busca de apreensão do fato social em sua totalidade, a antropologia tem a proeminente especificidade de “apresentar sob uma forma experimental e concreta esse processo ilimitado de objetivação do sujeito”, sendo que sua análise “por mais objetivamente conduzida, não pode deixar de reintegrá-los – a série ilimitada de objetos – na subjetividade” (LéviStrauss, 1974. p. 18), ou seja, é uma objetivação da própria subjetividade, onde a experiência etnográfica impõe um re-pensar sobre o eu e o outro6. Pensar um trabalho de campo etnográfico imerso em arquivos já é lugar consolidado nos estudos antropológicos, bastando citar como exemplos, trabalhos de ampla contribuição para a disciplina, como os de Dumont (1992), Sahlins (2003, 2006, 2008) e Geertz (1991)7. De minha parte, acredito ser interessante assinalar algumas especificidades deste trabalho de campo que contém obviamente diferenças em relação ao trabalho de campo clássico idealizado por Malinowski. Penso que a “A experiência etnográfica constitui uma investigação experimental de alguma coisa que lhe escapa. Se soubesse perfeitamente o que sou, não teria necessidade de ir procurar-me em aventuras exóticas.” (Lévi-Strauss, 1990: 215) 7 Para uma discussão mais pontual sobre debates envolvendo a relação da antropologia e arquivos e sua legitimidade, conforme Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 36, julhodezembro de 2005. Também Coelho (2009: 182-185), em sua “viagem a Trobiands de papel” buscando vestígios do Os Oito Batutas pela Argentina e Sul do Brasil, traz uma boa articulação da questão, contribuindo para definições pontuais sobre o estatuto dos documentos históricos, sobretudo em relação ao formato jornalístico impresso, sua principal fonte de pesquisa. Ver ainda Barros (2009) que, inspirado nas discussões da crítica pós-moderna, reflete também sobre a utilização de fontes documentais arquivísticas em trabalhos etnográficos, em sua análise sobre o acervo etnográfico de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo. 6

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atitude experiencial que propõe uma das condições específicas para a antropologia traz uma dimensão específica para um trabalho como o presente, uma vez que tomo meus interlocutores, assim como os textos e narrativas, como constituídas em e constitutivas de um plano relacional, onde me incluo também. Neste sentido, vale tecer algumas breves considerações sobre a escrita etnográfica. Para Clifford (2002b), o que a etnografia faz é traduzir a experiência em texto, por diversas formas e com múltiplas implicações, tanto políticas como éticas. O autor discutirá estes pontos fornecendo a idéia de “alegoria etnográfica”, como histórias articuladas dentro de outra história maior, com sentido moral. Portanto, a escrita etnográfica é tomada como alegórica, tanto em conteúdo (o que se diz sobre a cultura e suas histórias) quanto em sua forma (as implicações de seu modo de textualização). A idéia de alegoria torna visível um “nível de significação” (ou vários níveis) que orienta o sentido. Perceber o sentido alegórico na escritura etnográfica é dar-se conta de várias implicações do processo de escritura (uma moral na história, de outras morais de histórias), postulando que “como leitores e escritores de etnologia, lutemos para confrontar e assumir a responsabilidade sobre nossas sistemáticas construções sobre os outros e sobre nós mesmos através dos outros” (Clifford, 2002b: 96). Por sua vez, ao pensar as representações como fatos sociais, Rabinow (1999) relaciona a produção do saber (antropológico) em termos de resultados, criticando Clifford e Geertz (1989), sobretudo em relação às suas propostas de analogia textual para o estudo das culturas. Para Rabinow, é necessário por em evidência a construção social das representações – epistemológicas, econômicas e outras – historicamente determinadas, para além da hermenêutica textual, com estudos das relações de poder, pensando o modo pelo qual as “comunidades interpretativas” estabelecem em cada período a legitimidade dos enunciados8. Em Clifford e Geertz, por exemplo, as condições sócio-institucionais com base nas quais se produz o conhecimento antropológico não estão incluídas em suas investigações. O que gostaria de reter é que as representações (e os significados) se constituem no bojo de suas práticas subjacentes, envoltas em seu corpo conceitual teórico, ou seja, a construção do pensamento (antropológico)

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Nestes termos, vejo uma ligação entre Rabinow, Boudieu, e o conceito de “campo de poder”.

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está alocada neste conjunto de práticas socais historicamente localizadas.9 Para caracterizar meu trabalho antropológico, aponto para o seu duplo deslocamento constitutivo: 1- no tempo, através de uma exaustiva varredura e imersão em arquivos históricos do início do século XX (leitura de periódicos, jornais, fotos, gravações, revistas e livros) e das narrativas de décadas posteriores referentes aos anos 1920; 2- no espaço, de Florianópolis, região litorânea do sul do Brasil, para o Rio de Janeiro de 2009, o que compreendeu - além da pesquisa hemerográfica -, a vivência em um lugar específico, onde situações – ainda que em tempos distintos - me levaram a pensar toda a temática em questão, o que de certa forma constituiu um filtro por meio do qual as relações com as fontes foram se estabelecendo. Neste sentido, buscarei explicitar, na medida em que seja significativo para a inteligibilidade dos argumentos, de onde estou vendo, lendo e construindo minha narrativa, buscando contextualizar experiência e construção analítica, intrinsecamente ligadas. Vale destacar que algumas características de estudos historiográficos contribuem de forma pertinente para pensar minha pesquisa. Ginzburg ao fazer uma ampla digressão apresentando exemplos que remontam aos escritos do imperador Marco Aurélio, Maquiavel, Montaigne, Voltaire, chegando a Tolstoi e Proust, explora a função heurística das idéias de “distância” (no tempo e no espaço) e de “estranhamento” como recurso literário. Retomar estas idéias seria, para Ginzburg, extremamente fecundo ao trabalho da historiografia, uma vez que, “(...) compreender menos, ser ingênuos, espantar-se, são reações que podem nos levar a enxergar mais, a apreender algo mais profundo (...)” sendo que para o autor, "o estranhamento é um antídoto eficaz contra um risco a que todos nós estamos expostos: o de banalizar a realidade" (Ginzburg, 2001: 29 e 41). Portanto o straniamento em Ginzburg surge como um dispositivo capaz de desmobilizar o familiar e articular outras possibilidades ao des-conhecido, proporcionando reordenações da percepção para além da banalização do vivido pelas pré-percepções do sujeito investigador. Por sua vez, na antropologia, Chamo a atenção para o fato de que Lévi-Strauss em “Tristes Trópicos” (1986) já apontava questões sobre as problemáticas da etnografia – escrita e trabalho de campo – e de suas implicações morais e políticas. Isto geralmente é esquecido por certa “antropologia crítica” que anuncia suas inovações. 9

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Sahlins considera que como na própria etnografia, uma antropologia da história exige que se esteja “fora da cultura” em questão para poder conhecê-la melhor. O autor traz à baila a questão da “autoridade etnográfica” discutida por Clifford (2002a) como característica epistemológica pertinente da prática antropológica. Se certamente é importante apreender o ponto de vista do nativo (ou os pontos de vistas dos nativos), para isso é imprescindível o que Sahlins retoma de Bakhtin, como uma “compreensão criativa” do olhar externo antropologicamente bem informado. Nestes termos, a noção de “exotopia” de Bakhtin, como ponto de observação externo à cultura, torna-se ferramenta fecunda para a compreensão da cultura para Sahlins, pois em últimos termos, “é preciso outra cultura para conhecer outra cultura” (Sahlins, 2006: 13). Sobre o trabalho de campo Meu trabalho de campo (o “estar lá” de Geertz) compreendeu um período de aproximadamente quatro meses (de setembro a dezembro de 2009), dividido por uma pausa de duas semanas em que deixei o Rio e voltei para Florianópolis, onde pude, além de amadurecer algumas impressões iniciais deste primeiro período, assistir à defesa de tese de meu colega Luis Fernando Hering Coelho (2009), que trata da passagem dos Oito Batutas por Buenos Aires e sul do Brasil. No primeiro período de campo me dediquei às consultas aos arquivos e acervos10, bem como participei de alguns eventos acadêmicos sobre música popular11. Nesta fase senti as primeiras dificuldades da pesquisa ao me dar conta da falta de experiência para lidar com os acervos e arquivos. Não somente do ponto de vista do material em si, mas do próprio cotidiano de realização da pesquisa, da parte prática de se chegar a uma instituição e aprender suas regras específicas. Um 10

Consultei os acervos da Biblioteca Nacional, Museu da Imagem e do Som (Praça XV e Lapa), Instituto Moreira Sales, Centro Cultural Banco do Brasil (Acervo Mozart Araújo) e Arquivo Nacional. Infelizmente não pude ter acesso ao Centro de Documentação e Informação em Arte da Funarte (CEDOC) e ao Arquivo Histórico do Itamaraty, ambos fechados para consulta no período. 11 Entre eles, palestras e debates que fizeram parte do 47º Festival Villa-Lobos, da série “Jornalistas Escritores e a Realidade Brasileira”, na Biblioteca Nacional, e o Seminário “Música Popular, Literatura e Memória” na PUC-Rio. Nestes eventos consegui me aproximar de sujeitos e personalidades do mundo da música popular carioca, conseguindo com eles os contatos de outros sujeitos pertinentes à pesquisa.

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exemplo disto foi meu primeiro dia de pesquisa no setor de periódicos da Biblioteca Nacional. Cheguei ali todo empolgado e disposto, em um dia de muito movimento de pesquisadores, e passei por algumas horas o desconforto de não conseguir auxílio ou informações nem mesmo para iniciar o processo de preenchimento dos formulários necessários para pegar os rolos de microfilmes e usar as máquinas leitoras, de cuja forma de utilização eu não tinha a menor idéia. Senti-me angustiado e incapaz de entender aquelas modernidades todas e fui me refugiar no bar Amarelinho do outro lado da rua, na Cinelândia, onde tomei um chopp e pensei um pouco sobre tudo aquilo, pois, eu teria que voltar! Por sugestão de alguns colegas e professores, eu tinha em mãos algumas cartas de apresentação de minha universidade que usaria como estratégia de chegada nas instituições. No entanto, desisti de usá-las quando percebi que, se de um lado, elas me empoderavam institucionalmente, de outro, pareciam me caracterizar como esnobe. Mudei então minha estratégia e notei ser mais rentável ficar amigo dos funcionários das instituições, ou seja, usar de uma postura mais informal e pessoal surtia mais efeito em relação ao atendimento e acesso às instituições. Foi assim que no segundo dia na BN tive mais proveito, sendo atendido por uma funcionária – agora mais solícita com minha postura informal - que me iniciou na arte de pesquisar no setor de periódicos da BN, me indicando os formulários (vários), como manusear e quais as melhores máquinas, quais os melhores horários para determinadas demandas, enfim, toda uma série de procedimentos e conhecimentos que no decorrer dos dias fui internalizando e que foram se tornando tão normais que passaram a ser automáticos. Rapidamente eu estava na máquina, girava a manivela et voilà! A informação. Parecia uma colheita num jardim de notícias! Foi quando me dei conta de quão fácil é perder a dimensão do processo da pesquisa, do contexto, de como cheguei, com que interesse estava ali. Nesse sentido, penso que ter em mente o processo pelo qual eu consegui as informações me ajudou a situar minha reconstrução narrativa posterior12. Na segunda etapa do trabalho de campo, além de continuar consultando os acervos institucionais, passei a conversar com alguns interlocutores: “pesquisadores” e “acadêmicos”. Dentre os principais estão: Lygia dos Santos, advogada, museóloga, pesquisadora em cultura 12

As anotações em diários de campo me ajudaram a pensar tanto sobre as notícias nos periódicos, como também minha experiência cotidiana no Rio de Janeiro.

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popular e integrante permanente do júri do "Estandarte de Ouro" premiação promovida pelo jornal O Globo para os melhores do carnaval -, bem como filha de Donga, um dos principais integrantes do Os Oito Batutas; Ricardo Cravo Albin, escritor, pesquisador de música popular, jornalista, historiador e produtor musical, responsável dentre várias ações no âmbito da música popular, pela idealização e execução do projeto dos “Depoimentos para a Posteridade” do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, pelo Instituto Cravo Albin e pelo Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira13; Maria Moura, narradora de contos ligada ao mundo afro no Rio, sendo uma das participantes do projeto “Ação Griot”, promovido pelo Centro Cultural Cartola com o objetivo de fomentar a tradição da transmissão oral de conhecimento; Maurício Carrilho, Luciana Rabello e Henrique Cazes, músicos e pesquisadores do gênero musical choro, sendo o último, o autor de Choro: do quintal ao municipal14, livro de grande circulação no meio musical e referência para discussões sobre o gênero. Ainda tive diálogos com sujeitos com uma postura acadêmica em suas pesquisas sobre música popular, entre eles: Flávio Silva, musicólogo e membro da Academia Brasileira de Música; e Samuel Araújo, etnomusicólogo da UFRJ. Oliveira (2009) pesquisando a música sertaneja faz uma distinção entre modos discursivos de “pesquisadores” e “acadêmicos”. Os primeiros seriam sujeitos com grande inserção no universo pesquisado, onde o trabalho adquire um tom discursivo que passa pelo “eu sou de lá”, de onde vem sua autoridade. Os “acadêmicos” por outro lado, além da intenção de produzir um trabalho direcionado para o público acadêmico-universitário, seriam sujeitos que buscam se aproximar do universo pesquisado, mediados por teorias, sendo a autoridade discursiva advinda do “eu estive lá”. Esta distinção me ajuda a diferenciar os sujeitos interlocutores, assim como as narrativas com as quais trabalharei no decorrer do trabalho. Em sua maioria lidei com “pesquisadores” em meu trabalho de campo, sendo suas narrativas (ouvidas ou lidas por mim) muito mediadas pelas suas experiências vividas, tornadas eventos privilegiados para se contar a história, no caso, da música popular brasileira. De fato esta autoridade experiencial 13

Site: http://www.dicionariompb.com.br. Este dicionário recebeu versão impressa com o título de Dicionário Houaiss Ilustrado - Música Popular Brasileira (2006). 14 Cazes (1998, 2005).

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advinda do convívio com músicos e personagens da história narrada constitui uma especificidade peculiar do campo constitutivo do pensamento musical brasileiro, sendo os biógrafos, sujeitos muito valorizados e com legitimidade para contar sobre a história da música popular brasileira, o que perpassa sempre sua posição de testemunha ocular da história ou pelo menos o contato próximo com os que a testemunharam. Já os “acadêmicos”, mesmo que tenham proximidade em relação ao mundo estudado, tendem a um pretenso “distanciamento objetivo” na pesquisa, mediados por teorias específicas15. De minha parte, penso que fui localizado em campo primeiramente próximo dos “acadêmicos”, mas sendo no decorrer do tempo, deslocado também a “pesquisador”, na medida em que ia conversando e convivendo com alguns dos sujeitos inseridos no mundo da música carioca, proximidade que também passava a me legitimar como pertencente àquele mundo e digno de atenção16. Nesta posição o trânsito entre os interlocutores era mais fácil, mas, no entanto, de um ponto de vista analítico, me forçava a uma auto-vigilância constante em relação à minha perspectiva nas diversas situações em que me encontrava, assim como uma atenção em relação às minhas estratégias de inserção em campo17. Meu andar a esmo pelos arquivos, buscando mapear e rastrear o que ficou incrustado em folhas amareladas (ou microfilmadas) sobre o 15

Deixo clara a dimensão analítica e modelar desta distinção dicotômica, uma vez que, na prática, um biógrafo (“pesquisador”) pode ter uma intenção objetivista para seu trabalho – e de fato geralmente eles têm, beirando a positivismos e buscas pelas “verdades”. 16 Depois de algum tempo, percebi que citar os nomes com os quais já tinha conversado me facilitava a aproximação. No entanto, tive que pesquisar um pouco e ser perspicaz sobre as disputas internas no campo da música popular carioca, pois, alguns dos sujeitos com quem mantive contato tinham verdadeiro asco em relação a outros, e eu não poderia cair no erro de citar alguém na hora errada. 17 Um momento em que me senti inserido no mundo dos “pesquisadores” se deu quando mostrei a D. Lygia algumas fotos e recortes de jornais dos anos 60 sobre Donga e Pixinguinha, que consegui comprar de um senhor vendedor de jornais e revistas antigas (eu freqüentava assiduamente os sebos e conversava com ambulantes de revistas nas ruas). Quando mostrei o material, ela me disse: “você foi mordido pelo bicho da pesquisa e não vai mais conseguir parar. Bem vindo, filho!” Me dei conta então de como o processo de colecionar material de arquivo (fotos, jornais, discos) é valorizado, sendo os detentores de acervos, sujeitos poderosos. Os próprios músicos, como Donga, mas, sobretudo, Almirante e Jacob do Bandolim, souberam se utilizar deste recurso, tornando-se “pesquisadores” legítimos e o acesso a seus acervos algo disputado. Sugiro que os conteúdos de acervos podem ser entendidos de um lado, como atores (Latour, 2008), uma vez que, em suas relações, podem imprimir mudanças e ensejar efeitos sobre outros atores; de outro, por sua vez, elemento de distinção (Bourdieu, 2002, 2008) e fonte de poder nos âmbitos (campo) de disputas simbólicas.

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que foi dito em relação aos Oito Batutas e sua trajetória, pressupunha a arte de flanar, pois, perambular com inteligência. Devido ao período relativamente curto para a empreitada, lancei mão de algumas estratégias metodológicas, que envolveram uma pré-seleção de episódios citados em narrativas anteriores, a partir de obras que fizeram alguma tentativa de sistematizar fontes importantes do ponto de vista da busca de reconstituição da trajetória do grupo18. Neste sentido, fiz um quadro comparativo das citações de sete trabalhos: Cabral (1978, 1997, 2007); Silva & Oliveira Filho (1979); Cazes (1998, 2005); Menezes Bastos (2004, 2005); Bessa (2005); Martins (2008) e Coelho (2009). A partir deste quadro, acabei focalizando momentos “quentes” de ênfase em determinados eventos, lugares com contornos relevantes para a discussão proposta, que se tornaram pontos de investimentos no exercício de rastreamento, de acordo com o que foi se constituindo no aprofundamento da pesquisa de campo. Neste sentido, foram enfatizados, sobretudo a partir dos periódicos cariocas, o momento de gênese do grupo e os períodos antecedentes e posteriores às viagens ao interior do Brasil, a Paris e à Argentina19. Uma inspiração mitológica. Ao confrontar meus dados de campo com as narrativas que buscaram pensar a trajetória do Os Oito Batutas, comecei a perceber alguns modos pelos quais as organizações e disposições de fragmentos narrativos constituem um sistema de representações que apontam para a história do grupo. Apesar de se referirem e buscarem re-construir uma mesma história, na medida em que fui internalizando as narrativas em questão, cada vez mais me deparava com os processos seletivos, as escolhas e renúncias, as ênfases e os hiatos implícitos e explícitos em suas elaborações. Isto me lembrou Lévi-Strauss, quando salientou o caráter seletivo do fato histórico, afirmando que “a história nunca é a história, mas a história-para” (2002: 286). Neste sentido, é possível

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Não se trata de uma pré-conceitualização, pois, selecionei a partir das próprias narrativas constitutivas da história do grupo e, portanto, fui orientado pelo próprio tecido da rede de associações que rastreava. 19 Segui em média três meses anteriores e três meses posteriores aos eventos, confrontando informações de vários jornais sobre os mesmos, o que se demonstrou rentável aos propósitos da pesquisa.

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pensar na dimensão narrativa da própria historiografia20, o que, entre outras implicações, minora distinções de oposição rígidas entre história e mito. Os estudos de Lévi-Strauss vêm sendo acionados como possibilidade fecunda em relação a um repensar dos conceitos de história e historiografia, onde suas análises em relação aos mitos aparecem como ponto estratégico21. Gow (2001), por exemplo, vai nesta direção ao apontar o mito (conforme Mitológicas), como objeto histórico, sendo este recurso ativado pelo autor para pensar seu campo etnográfico. lf we accept that myths are operating to obliterate time, we can look to the very myths themselves to tell us what historical events and processes they might be seeking to obliterate. If the myths are indeed seeking to come to terms with history, and seeking to reestablish equilibrium at the level of the system, it is in that equilibrium that we might begin to look for the history that we seek.(Gow, 2001: 19).

Goldman (2006: 149) em sua teoria etnográfica da política também chama a atenção para a rentabilidade analítica do método de análise dos mitos de Lévi-Strauss como recurso apropriado para tratar da história de Ilhéus, ainda que tal proposta não seja levada a cabo 20

Dentro do campo disciplinar da história, estas questões também repercutem. Nova comenta sobre a revisão epistemológica da história, apontando uma guinada a partir do entendimento da escrita da história como “discurso”, onde Paul Veyne, por exemplo, nega o estatuto de ciência da História, que seria apenas uma “literatura bem informada”, ou seja, um discurso narrativo de mesmo estatuto que as demais formas que se reportam ao passado (ficção, mito, memória, etc.). (Nova, 2000: 151). Esta corrente historiográfica se difunde a partir da segunda metade da década de 1980 por diversos países, por exemplo: Roger Chartier na França; Hans Medick na Alemanha; a “Linguistc Turn” nos E.U.A. (com inspiração na antropologia interpretativa de Gueertz) e Carlo Ginzburg na Itália. Segundo este último: “uma maior conscientização da dimensão narrativa não implica uma diminuição das possibilidades cognitivas da historiografia, mas, antes, pelo contrário, a sua intensificação. E é precisamente a partir daí que deverá começar uma crítica radical da linguagem historiográfica” (Ginzburg, 1989: 196). 21 Sobre estes acionamentos da obra Lévi-Straussiana, conforme Saez (2000, 2002, 2008), Goldman (1999, 2006) e Gow (2001). Também Sahlins (2003, 2006, 2008) aciona LéviStrauss, acentuando o interesse nas relações entre história e estrutura, porém enfatizando uma dimensão praxiológica. Terei oportunidade adiante de me deter mais pontualmente em relação a esta abordagem.

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formalmente pelo autor. Apenas para remarcar esta possibilidade, vale citar a indicação sugestiva do próprio Lévi-Strauss. Não ando longe de pensar que, nas nossas sociedades, a História substitui a Mitologia e desempenha a mesma função, já que para as sociedades sem escrita e sem arquivos a Mitologia tem por finalidade assegurar, com um alto grau de certeza – a certeza completa é obviamente impossível –, que o futuro permanecerá fiel ao presente e ao passado. Contudo, para nós, o futuro deveria ser sempre diferente, e cada vez mais diferente do presente, dependendo algumas diferenças, é claro, das nossas preferências de caráter político. (Lévi-Strauss, 1978: 63)

Considerando estes apontamentos, sugiro que para uma abordagem antropológica sobre a história dos Oito Batutas, considerando o tipo de material etnográfico com o qual me deparei, penso ter valor heurístico uma abordagem com o auxílio do método estrutural, compreendendo as narrativas constitutivas desta história como versões de mitos, em suas séries de transformações. No entanto, não pretendo aqui uma transposição e aplicação mecânica da análise mitológica Lévi-Straussiana para meu campo. Penso antes na possibilidade de mantê-la como inspiração narrativa, que pode apontar algumas alusões pertinentes às discussões empreendidas. Nesse sentido, explicitar as relações de termos nas narrativas míticas de meu campo em suas transformações é indicar articulações conceituais sobre o referido mundo experiencial, ou sobre sua “teoria nativa”. Uma mitologia Batuta diz mais sobre uma conceitualização sobre o mundo em que este é formulado (em que, como veremos, é cara as questões do nacional e seus símbolos correlatos) do que propriamente (ou somente) sobre o grupo musical em si. Por sua vez, minha narrativa não pensa somente sobre as narrativas “outras” e seus “mitemas” articulados (os fragmentos jornalísticos e de entrevistas), mas com as narrativas, pois estas se apresentam como sendo “boas para pensar”22. Retenho apenas

Vale lembrar a inspiradora idéia de Lévi-Strauss ao apontar justamente que os “sistemas totêmicos” (Lévi-Strauss, 1975) e o “Pensamento Selvagem” (2002) são antes de tudo, 22

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mais um ponto desta inspiração mitológica para este trabalho, no que diz respeito ao que Lévi-Strauss chamou de “mito de referência”. Lévi-Strauss (2004) afirma que a idéia de chamar o mito Bororo do Brasil central (aquele do desaninhador de pássaros) como fio condutor ou “mito de referência” é a princípio uma escolha arbitrária. A razão deste procedimento não se localiza no fato de que este seja mais ou menos completo ou arcaico, sendo a causa da eleição uma atitude largamente contingente. Contudo, isto não exclui uma condição estratégica do ponto de vista analítico. De fato, o mito bororo, doravante designado pela expressão mito de referência, não é – como tentaremos demonstrar – senão uma transformação mais ou menos elaborada de outros mitos, provenientes da mesma sociedade ou de sociedades próximas e afastadas. Teria sido legítimo, portanto, escolher como ponto de partida qualquer representante do grupo. O interesse do mito de referência não reside, nesse sentido, em seu caráter típico, mas, antes, em sua posição irregular no seio de um grupo. Pelos problemas de interpretação que coloca, ela é, com efeito, especialmente apropriada ao exercício da reflexão. (Lévi-Strauss, 2004: 20)

A inspiração nesta atitude - contingente, mas estratégica -, me levou a tomar uma versão narrativa da história Batuta, como “mito de referência”. Este faz parte de um pequeno livro infantil organizado por Rabaça (1999: 35-65), que é uma biografia do ilustre flautista Pixinguinha, chamada “Pixinguinha para crianças: uma lição de Brasil”23. Se para Lévi-Strauss em As Mitológicas o mito bororo do desaninhador de pássaros ocupa lugar estratégico pela sua posição no conjunto dos mitos ameríndios que “articula dois sistemas que, respectivamente, dizem respeito às relações verticais e às relações horizontais, ou seja, às relações entre alto e baixo, terra e céu, natural e sistemas classificatórios com valor operatório formal, onde se articulam semelhanças e diferenças entre natureza e cultura. 23 O livrinho conta com ilustrações em caricaturas muito coloridas e um disco – produzido por Henrique Cazes - com 12 gravações de composições de Pixinguinha. O projeto é patrocinado pela Petrobrás.

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sobrenatural, de um lado, e, de outro, às relações entre próximo e distante, concidadãos e estranhos” (1990: 173), a narrativa do livrinho que tomo como “mito de referência” informa um lugar específico dentro do conjunto das narrativas, em sua condição de narrativa para criança, que intenta facilitar o acesso à história narrada, contada de cima para baixo, numa relação adulto-criança. Ela também condensa e promulga em si algo daquilo em que se crê como condição mínima necessária para a formação da pessoa enquanto brasileiro, afinal, ali está de forma facilitada e resumida, “uma lição de Brasil”. Esta narrativa abrirá os capítulos de minha narrativa etnográfica e ainda que, como já enfatizei, não vá realizar uma aplicação formal do método de análise de mitos, ela aparecerá (assim como as outras “versões”) articulada em minha metanarrativa, ela mesma mítica, como Lévi-Strauss poderia dizer. Ainda que o leitor não veja validade analítica em minha inspiração mitológica, imagino que essas narrativas de abertura possam servir como pequenas introduções à temática tratada no item em que se apresentam, deixando o leitor em condição de decidir se está interessado em prosseguir ou desistir da leitura. Ao leitor que acompanhe meu rastrear e mapear das relações no ambiente artístico musical do Rio de Janeiro, anseio apontar possibilidades de compreensão sobre a trajetória do grupo Oito Batutas e os significados negociados e disputados em torno destes. Optei por uma exposição cronológica dos eventos apenas por uma questão de sistematização narrativa, o que certamente não é uma busca por verdades ou uma exposição dos fatos como eles ocorreram, nem mesmo correspondendo ao modo pelo qual eu mesmo fui lendo estes eventos, pois ao mesmo tempo em que estava buscando informações de 1919, isto estava se relacionando com meu conhecimento prévio sobre toda a carreira do grupo, as relações estabelecidas por vários autores que trataram da temática e minha experiência de campo. Este artifício narrativo de retórica linear dos acontecimentos faz parte do modo pelo qual se constituem as narrativas com as quais estou lidando, sendo, portanto também uma questão de similaridade lógica de disposição das idéias que tomo como princípio organizador também de minhas próprias. No entanto, espero que a linearidade narrativa que de certa forma adoto não obscureça, senão que explicite o caráter descontínuo, seletivo e controverso pelo qual toda a narrativa em si é construída, ao mesmo tempo em que constrói seu narrador enquanto sujeito histórico.

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Latour e Bourdieu: rastreando associações e explicitando hierarquias. De pronto gostaria de deixar claro que não sou nem Bourdieuano e nem Latouriano. Aproprio-me de sugestões de ambos os autores, como heuristicamente relevantes para meu contexto etnográfico e minha proposta narrativa24, mesmo tendo consciência que, do ponto de vista discursivo dos próprios autores, suas teorias sejam concebidas uma como o antídoto da outra e, portanto, incompatíveis. Esta posição de incompatibilidade - posta de forma veemente por Latour quando estabelece a oposição entre o que ele chama de “sociologia do social” (ou a “sociologia crítica”) e sua proposta de uma “sociologia das associações”, numa visão epistemológica paradigmática e um sentimento de ame-o ou deixe-o -, me parece residir muito mais no âmbito concorrencial de busca por autoridade e legitimidade no domínio acadêmico-científico do saber sociológico, do que propriamente um debate estritamente epistemológico (se é que isto possa existir nestes termos). A forma discursiva de Latour, ao impor sua posição como novo projeto, desqualifica e invalida as posições “outras”, através de uma interpretação particular e redutora sobre elas, deixando-as congeladas em suas críticas, num passado de erros. Latour se refere a Bourdieu (e à teoria crítica) como racionalista, em que um objetivismo paralisante impõe categorias aos sujeitos a priori (campos, habitus, capital), destituindo-os de suas capacidades de ação e reflexão, reduzindo-os a simples arquétipos do social. Em contraposição, Latour propõe inspirado em Gabriel Tarde e na ANT (Actor-Network-Theory) -, seguir os rastros dos próprios atores25 nas associações em suas redes de conexões, para compor uma tradução (não uma explicação) atenta às

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Um trabalho inspirador para encarar o desafio de conciliar propostas analíticas tidas como inconciliáveis é o de Feld (1990). Em seu estudo entre os Kaluli da Papua Nova Guiné, buscando estudar o som enquanto sistema cultural, Feld propõe como heurístico para seus propósitos analíticos compatibilizar as abordagens: estruturalista de Lévi-Strauss, para a análise mitológica; a descrição densa e interpretativa de Geertz, para pensar como os símbolos ativam a atividade significante; ambos conectados pela perspectiva da etnografia da comunicação de Hymes, que aborda os meios comunicativos e os fins sociais, organizando as minúcias lingüísticas e musicais, amarrando a problemática cultural. 25 Para o autor, o ator (digno de ação) é tudo o que imprime diferença e “existir es diferir; la diferencia en un sentido es el lado sustancial de las cosas, lo que más tienen en común y lo que las hace más diferentes” (Latour, 2008: 33).

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controvérsias e à performaticidade26. Neste sentido, o autor aponta que “hay que restituirles [aos atores] la capacidad de crear sus propias teorias de lo que compone lo social. La tarea ya no es imponer algún orden. (...)”, senão que, “tratar de ponerse al día con sus innovaciones a menudo alocadas, para aprender de ellas en qué se há convertido la existência colectiva en manos de sus actores, (...)” (2008: 28). Mas além de seguir os ordenamentos do mundo pelos atores, é necessário também estudar os meios pelos quais os atores estabilizam as controvérsias. Guardadas as devidas ressalvas em relação às críticas de Latour, penso que a praxiológica de Bourdieu não pode ser reduzida a uma tendência que toma os sistemas simbólicos pelo óculo da reprodução, uma vez que eles também apontam para os âmbitos da “concorrência” e do “conflito” nos “campos”, que engendram por sua vez também “mudanças”. O próprio conceito de habitus em Bourdieu não se reduz a um reflexo das condições do “campo”, mas à internalização de estruturas objetivas articuladas com a trajetória de vida do sujeito que pode engendrar “acúmulo de capital”. Isto aponta para a possibilidade de mudanças e não exclusivamente a incorporação da estrutura como reflexo. Nestes termos, para Bourdieu, a prática não é uma reação mecânica, mas o produto da relação dialética da situação e o habitus (os “sistemas de disposições duráveis”). Só podemos explicar essas práticas colocando em relação à estrutura objetiva que define as condições de produção do habitus (que engendrou essas práticas) com as condições do exercício desse habitus, i. é, com a conjuntura que, salvo transformação radical, representa um estado particular dessa estrutura. (Bourdieu, 1972: 65)

Bourdieu (1994), portanto, historiciza o conceito de habitus, colocando-o como produto e produtor de histórias e práticas (individuais e coletivas). Supõe o sistema de disposições como princípio de continuidade e regularidade (atualização de práticas estruturadas) assim

Latour explica sua sociologia: “Metodologicamente, trata-se de seguir as coisas através das redes em que elas se transportam, descrevê-las em seus enredos” (Latour, 2004: 397). 26

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como princípio de transformação, engendrado na relação dialética entre as disposições e a conjuntura27. Para os propósitos de minha narrativa etnográfica, Latour me fornece um ferramental metodológico interessante, ao indicar a prática do “rastreamento das associações”, a partir do mundo conceitual dos atores, recuperando o caráter dinâmico e provisório dos grupos sociais. Contudo, isto não dá conta das relações hierárquicas e de poder que podem se estabilizar na prática. A efemeridade das associações não exclui momentos de estabilização e certo grau de reprodução de relações de poder. É Bourdieu quem me fornece o recurso analítico para explicitar este potencial residual no âmbito das transformações, onde atua a acumulação de capital simbólico, num campo complexo concorrencial. Se as “controvérsias” me fornecem um ponto de partida para cartografar as conexões sociais - a formação e desagregação dos agrupamentos sociais – permitindo visualizar os “rastros” (Latour), são nos momentos em que estas formações encontram-se estáveis, que explicito analiticamente as “relações de poder” (Bourdieu). O contexto republicano e sua capital irradiante. Desde pelo menos 1808 com a transferência da sede da monarquia portuguesa de Lisboa para o Brasil e a conseqüente consolidação do Império em 1822, o Rio de Janeiro transforma-se em uma cidade central de intenções políticas e ideológicas, sendo o baluarte do ideal imperial, que impôs esforços nesta direção, incluindo empreendimentos arquitetônicos, urbanísticos, comerciais, artísticointelectuais (como a Academia de Belas Artes e a Biblioteca Nacional), 27

Ortner (1984) pensa a problemática de como os interesses se transformam em prática e como esta molda a estrutura, - ou seja, a mudança pela ação e a produção da prática -, apontando dois modelos analíticos de “mudança sistêmica”. O primeiro, de Bourdieu, (em um âmbito “doméstico”), onde os comportamentos são adquiridos e realinhados na prática; e o segundo, de Sahlins (em âmbito “público”), onde a mudança se dá quando as estratégias tradicionais vacilam diante dos novos fenômenos sociais. A autora por sua vez propõe partir do sujeito como categoria de análise, inserindo a noção de agência e subjetividade, sugerindo uma teoria da prática que leve em conta as configurações de poder e resistência, numa interpretação das condições e conseqüências (as implicações) da ação, ou seja, as regras não explicam tudo, sendo necessária a inserção das vontades e subjetividades no processo. Portanto, tem-se a noção de motivação como uma dialética entre o sentido, a ação e o sistema.

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entre outros. Isto já aponta para a centralização do governo, através de um arcabouço político-jurídico-burocrático-intelectual, numa tensão que irá buscar minar as posições das províncias, num processo de inferiorização do provinciano frente ao habitante da capital (Costa, 1994). São esforços de homogeneização defronte a uma missão civilizadora, com intuito de inserir o país no sistema das nações (Motta, 2004). Pensando o regime da primeira república - instituída em 1889 Chalhoub (1986) traz contribuições importantes para buscar esboçar o cenário dos anos iniciais do século XX28. O autor trata dos mecanismos de controle social do projeto político burguês no processo de constituição do capitalismo, e sua dinâmica em relação às estratégias de resistência da cultura popular no Rio de Janeiro. Para este autor, o projeto político mais urgente deste regime republicano era a transformação do homem livre (ex-escravo ou imigrante) em trabalhador assalariado, projeto já desenhado desde meados do século XIX, na transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Neste sentido, no final do século XIX é imperativa uma redefinição do conceito de trabalho, tendo como foco principal os egressos do regime escravista, os libertos. No regime escravista se impunha formas de controles sociais pelo castigo ou pelo paternalismo senhoril, que garantiam a força de mão-de-obra. Com a ruína deste regime, foi preciso incorporar uma nova concepção de trabalho que continuasse garantindo a mão-de-obra. É neste momento que o trabalho passa a ser idealizado como valor essencialmente positivo, ligado aos conceitos correlatos de ordem e progresso, rumo à civilização. Mas esse princípio deveria passar por uma reformulação que implicava um controle não apenas do tempo e do espaço estritamente do trabalho, mas avançava para a condição de que os “homens de bem”, ou seja, trabalhadores, exigiam um enquadramento específico nas atitudes familiares e sociais, justas ao ideal de indivíduo integrado ao espírito da nação. Nesse sentido, “a vigilância „espiritual‟ do agente social expropriado que deveria se tornar trabalhador se completava, no cotidiano, pelo exercício da vigilância policial.” (: 30) Ou seja, tem-se um controle social que age na totalidade do cotidiano: controle do tempo e do espaço na ordem do trabalho; normatização das relações pessoais e familiares e por fim a vigilância 28

Ver também Sevcenko (1983).

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contínua dos espaços de lazer públicos populares (a rua, o quiosque e o botequim)29. O trabalho de Chalhoub fornece um viés analítico historiográfico que atenta para o âmbito dialético que compõe a cultura, perpassando a visão das vivências cotidianas30. Neste sentido, vai além de uma análise simplista de vincular lazer popular; formação do mercado capitalista e do mercado de trabalho assalariado; e repressão policial, mas sim, mostra que esta dinâmica é, nas palavras do autor, (...) resultado da dialética – antagonismos e reconciliações – entre as normas e os valores burgueses que se desejam impor às classes populares „de fora para dentro e de cima para baixo‟ e as normas e os valores criados pela própria classe trabalhadora na sua prática real de vida. Mais do que isto, pretende-se mostrar que havia uma cultura popular relativamente autônoma, vigorosa e criativa na cidade na época e que, apesar de o projeto de sociedade das classes dominantes cariocas querer se implantar de cima para baixo independentemente da natureza da resposta social a este projeto, o fato é que na prática política real das classes dominantes não puderam escapar às contingências impostas por uma classe trabalhadora que resistiu tenazmente à tentativa de destruição de seus valores tradicionais. (Chalhoub, 1986: 172).

Uma vasta historiografia demonstra a complexidade do processo de transição do Império à República no Brasil do século XIX31 com relação às participações ativas das províncias, havendo, contudo ênfase ao eixo RJ-SP-MG. Por outro lado, Cabral de Mello (2001) A categoria de “vadio”, por exemplo, é apontada por Chalhoub como o rótulo de que lança mão o aparato controlador social de vigilância a todo indivíduo que se encontra na rua ou no botequim e que não consegue provar sua condição de trabalhador, o ideal imposto para o indivíduo como seu maior projeto de vida. 30 Destaco também os textos organizados em Sevcenko (2006). 31 A queda das instituições imperiais é concomitante à emergência das Forças Armadas como força organizadora, tendo o “Generalíssimo” Deodoro da Fonseca e o “Marechal de Ferro” Floriano Peixoto, como seus expoentes. Os jogos de interesses regionais são atuantes neste contexto (Cardoso, 1989). 29

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chama de “a outra Independência”32, pensando as insurgências de Pernambuco de 1817 a 1822 como constitutivas da emancipação do Brasil33, ou seja, é uma historiografia para além da emancipação política reduzida à construção de um Estado unitário em torno do eixo Rio-SPMG. Vale reter que todos estes espíritos (monarquistas, republicanos, federalistas, regionalistas, nacionalistas e as resistências populares) estão em ebulição nas primeiras décadas do século XX, com implicações significativas para os projetos de construção da nação brasileira. É um período pós-escravidão, com um crescente capitalismoindustrial, onde se inicia de forma acentuada a migração para as cidades. O contexto nacional neste período é o do desafio de constituição de um país unificado sob a proposta republicana. Vários discursos e projetos político-ideológicos se voltam para um imaginário de civilização e modernidade, ao mesmo tempo em que forjam memória e tradição, com a intenção de promover a unidade nacional. São tensões sobre a constituição de uma nação diferente da que se buscou consolidar sobre a égide do Império, no entanto permeada por seus resquícios. A capital da república, o Rio de Janeiro, aparece como o lugar do cosmopolitismo, elo irradiador do processo de civilização, onde a idéia de nação se baseia num ideal europeu (ou norte-americano); além de ser também lócus referencial para o sistema de representação que define as regiões como províncias (lugar da tradição e do passado)34. Neste âmbito, se impõem processos de modernização, que compreendem revitalização urbanística, fomento a novos estilos de vida – valorização do esporte, do lazer e do consumo -, ao mesmo tempo em que se impõe uma higienização social associada a retóricas sanitaristas35 (Sevcenko, 2006; Motta, 2004). Como bem observa Sevcenko (2006), os novos padrões de consumo introduzidos no país, sobretudo nas duas primeiras décadas do século XX, são estimulados por uma nascente mas agressiva onda 32

Uma leitura dos textos de Frei Caneca reunidos por Cabral de Mello (2001) traz evidências deste processo. 33 Até mesmo o fortalecimento das Forças Armadas é uma implicação das insurgências bélicas contra posições de sedes concorrentes do país, como Pernambuco. Eventos como a Revolução Farroupilha (1835-1845) em relação ao Império, Canudos (1896-1897) e o Contestado (19121916) em relação à República se inserem neste contexto, caracterizado por retóricas pautadas pela unidade da federação. 34 Entre vários estudos sobre estes processos, sugiro Oliveira (1990) e Ortiz (1985). 35 Situações como a Revolta da Vacina no Rio de Janeiro advêm das implicações destes processos.

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publicitária, articulada por um extraordinário mecanismo cultural que põe em interação as modernas revistas ilustradas, a difusão de práticas desportivas, o nascente mercado fonográfico e a popularização do cinema. O âmbito de luta pela legitimidade de representação nacionalista e regionalista também é tema importante para caracterizar o período de início do século XX. Neste sentido, ainda que num viés um tanto reducionista em torno do eixo Rio-São Paulo-Minas Gerais36, Motta (1992) lembra de forma significativa: No início dos anos 20, nacionalismo e regionalismo prenderam a atenção dos intelectuais envolvidos na busca de uma nova identidade nacional que conciliasse os valores da modernidade e da brasilidade. O tema regional foi retomado nesse momento, como uma via de acesso ao nacional. (Motta, 1992: 79).

Neste cenário estão inseridos músicos como os integrantes d‟Os Oito Batutas que, nos anos 20, participam ativamente das negociações na direção da consolidação do que é ser brasileiro, em consonância a – e através de – seus símbolos nacionais. Estamos no ambiente da gênese do samba como gênero musical, que posteriormente se consolidará como expressão máxima da brasilidade (Vianna, 2008), concomitantemente a outros processos similares em outros lugares, sobretudo na América Latina.

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As forças de outros pólos concorrenciais pela constituição regional e nacional são significativas, sobretudo pensando os movimentos de Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul.

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CAPÍTULO 1 1.1 - Os Oito Batutas – nome e número para o Cine Palais – O GRUPO

Atchim! Cadê os músicos? Em 1918, o Rio de Janeiro foi atacado pela epidemia de gripe espanhola. Morreu muita gente. Faltava professor, faltava bombeiro, pintor, cozinheiro. E faltava músico. Os patrões andavam desesperados em busca de gente para trabalhar. Um desses patrões era o senhor Issac Frankel, gerente do cinema Palais. Os instrumentistas que costumavam se apresentar na sala de espera do cinema tinham sido derrubados pela gripe. E, naquele tempo, não podia existir um cinema sem música na sala de espera. Que fazer? Era carnaval. E o Sr. Frankel saiu pelas ruas, observando os grupos que tocavam. Até que viu o coreto dos Tenentes do Diabo, um bloco famoso da época que desfilava no centro da cidade. Em cima do coreto quem tocava? Pixinguinha e seu grupo. No grupo estavam também Otávio – irmão de Pixinguinha, mais conhecido como China – e Donga, amigo de infância. O Sr. Frankel já conhecia Pixinguinha, Donga e China, que costumavam tocar na sala de projeção. E não teve dúvida. Convidou o músico e seu conjunto para fazer os espetáculos da sala de espera do Cine Palais. Convite feito, convite aceito. E o conjunto passou a ser conhecido como Os Oito Batutas. (Rabaça, 1999: 36 - 37)

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Esta narrativa poderia ser apócrifa que manteria sua qualidade de verdade, ou seja, apresenta em sua história uma codificação em síntese suficientemente possível do que seria o nascimento dos Oito Batutas. Ainda que este fragmento específico que abre este capítulo seja atribuído como ingenuamente para crianças, ele aponta para aquilo que seria uma provável teoria nativa. Ela explicita elaborações constituídas como “uma lição de Brasil”37. Resolvi levar a sério esta narrativa, tomando-a como “narrativa de referência”. Meu esforço geral será caracterizar parte do processo pelo qual se construiu esta marca (ou rótulo), Batutas. Aqui, meu olhar estará voltado às relações de termos e associações que constituem o grupo como categoria que se mantém mesmo com a própria variação de seus integrantes. Como se verá no trabalho como um todo, tudo de certa forma é variável, o número de integrantes, formação instrumental, repertório, sujeitos participantes, tudo flutuará, sendo o rótulo (ainda que com variações nominais como Les Batutas, Jazz-band Batutas, Batutas e outros) resistente como uma espécie de símbolo que constitui significados sempre atualizados.

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O livrinho foi editado pela Multiletra em formato de livro de bolso e acompanha um CD com gravações de 12 faixas, com produção musical de Henrique Cazes, que em conjunto com Carlos Rabaça (também organizador) idealizou o projeto. Conta com ilustrações muito coloridas de Guto Nóbrega, edição e redação de Rosa Amanda Strausz, co-edição e pesquisa de Glória Regina Rabaça e revisão de Sérgio Cabral. Foi patrocinado pela Petrobras como parte da série "Leia Brasil", inicialmente com uma tiragem de 5000 cópias que foi logo estendida, com o intuito de serem distribuídos solenemente em escolas das parcialidades chamadas de “comunidades carentes”. O lançamento ocorreu em 14/10/1999 no Rio, com uma festa que contou com músicos do projeto e a narração de episódios da trajetória de Pixinguinha, por Cabral e Cazes, conforme informa João Máximo em anúncio no O Globo, onde se lê: O título do volume resume tudo: „Pixinguinha para crianças - Uma lição de Brasil‟. Livro e CD têm por objetivo levar Pixinguinha aos jovens e, ao mesmo tempo, envolver toda a família, fortalecendo nossa cidadania a partir de grandes personagens. (...) Rabaça e Cazes concordaram logo num ponto: não adianta chorar sobre o leite derramado da falta de memória do brasileiro. É preciso „fazer essa memória‟. (O Globo, RJ, 14/10/1999). Em São Paulo também se anuncia o livro em termos semelhantes, completando: “Pixinguinha para Crianças resgata para as novas gerações do País a trajetória de sucesso do autor do clássico Carinhoso. „Por onde ele passou, deixou seu rastro de brasilidade‟, diz Glória Regina Rabaça.” (O Estado de São Paulo, SP, 13/11/1999). Em Anexo 1 está a capa do livro.

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1.2 – “Organizar o que? Ta tudo organizado. O senhor que vê aí!” Esta frase que abre minha narrativa é atribuída a Pixinguinha (1966) no momento em que buscava recuperar na memória as circunstâncias sobre a criação do grupo Os Oito Batutas em 1919. Ela seria uma suposta resposta a Isaac Frankel (gerente do Cine Palais), quando este lhe pediu para organizar um grupo para tocar na sala de espera do elegante Cine Palais38, após assisti-los numa apresentação de outro grupo, o Grupo de Caxangá. Neste sentido, a criação do novo grupo seria também uma questão de necessidade de dimensionar o número de integrantes em função de uma nova atividade profissional, sendo que os elementos do antigo grupo ficaram condicionados a possíveis acionamentos posteriores como músicos substitutos.

Sala de espera do Cine Palais (Revista da Semana, Rio de Janeiro, s.d.)

É uníssona nas narrativas a dissidência dos Oito Batutas em relação ao Grupo de Caxangá, conjunto musical carnavalesco liderado por João Pernambuco que desfilava com grande sucesso pelas ruas centrais do Rio, ornamentados com vestimentas que buscavam representar o sertão brasileiro, lembrando, sobretudo o nordeste do país, atitude consonante com um interesse nos temas folclóricos e

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De acordo com o site http://www.historiadocinemabrasileiro.com.br, (de onde consegui a foto acima) este cinema ficava na Av. Rio Branco 145/149 e chamava-se anteriormente Cinematógrafo Pathé. Era um ponto de encontro elegante da cidade e funcionou de 16/07/1914 até 03/12/1926, quando virou uma loja de roupas.

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nordestinos, em voga desde finais da primeira década do século XX39. O nome veio inspirado pelo grande sucesso da música “Cabocla de Caxangá” e no carnaval formou-se o grupo, sendo o ano deste acontecimento variável nas narrativas, entre 1912 (Leal & Barbosa, 1982), 1913 (Vianna, 2008 e Bessa, 2005) e 1914 (Cabral, 2007; Silva e Oliveira Jr., 1979 e Almirante, 1963). Nos primeiros anos o grupo era constituído por oito integrantes, conforme revista O Malho de 28/02/1914, citada por Silva e Oliveira Jr. (1979) que dá a seguinte formação, por sinal a mesma citada por Almirante: Guajurema – João Pernambuco; Zé Vicente – Donga; Mané Francisco – Henrique Manoel de Souza; Zé Portera – Nola; Mané do Riachão – Caninha; Chico Dunga – Pixinguinha; Inácio da Catingueira – Osmundo Pinto; e Zéca Lima – Palmieri40. Mas o número de integrantes variava sendo que no carnaval de 1917, em meio ao sucesso do samba “Pelo Telefone”, o grupo contava entre 10 a 15 integrantes, somando-se àqueles, outros futuros Batutas, como Nelson Alves e Bonfiglio de Oliveira. A passagem do Caxangá para os Oito Batutas é narrada geralmente de duas formas que por vezes se complementam. A primeira teria como motivação o sucesso alcançado pelo Caxangá, mas que devido ao seu grande número de integrantes, selecionaram-se oito deles para as apresentações na sala de espera do Palais. A segunda aponta as conseqüências da proliferação da gripe espanhola no Rio que diminuiu o número de músicos na cidade, sendo necessária a criação de novas atrações, o que teria motivado Frankel a chamar alguns dos rapazes do Caxangá, que prontamente aceitaram e fundaram os Oito Batutas. Porém, há incompatibilidades de informações em relação à compreensão de quem foi o responsável pela criação do grupo, escolhendo os músicos e concebendo a idéia. Segundo alguns relatos – os mais difundidos – Pixinguinha foi procurado pelo diretor do Cine Palais. Atendendo ao pedido, ele reuniu os oito integrantes e foram tocar na sala de espera. Porém, há outras narrativas que falam na participação de Pixinguinha e 39

Almirante (1963: 14), buscando caracterizar esta moda nordestina no meio intelectual, cita a publicação de vários livros sobre a temática na primeira década do século XX, entre eles: “Cantos Populares do Brasil” de Silvio Romero em 1897; “Festas e Tradições Populares do Brasil” de Mello Moraes Filho em 1901; “Cancioneiro do Norte” de Rodrigues de Carvalho em 1903; “Folclore Pernambucano” de Pereira de Mello em 1908 e “Cantigas das Crianças e do Povo” de Alexina Pinto (1911). 40 O instrumental seria de acordo com a citação: duas flautas, três violões, um cavaquinho, um pandeiro e um ganzá. Os quatro nomes que destaquei serão integrantes dos Oito Batutas.

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Donga na composição do grupo41. Em seu depoimento ao MIS em 1969, Donga declara que foi ele quem registrou o nome do grupo na Junta Comercial, dizendo ter concebido a idéia. Não vem ao caso saber quem fez o que, mas ver como isto aponta para possíveis divisões de trabalhos, bem como perceber que a história se abre a incongruências interessantes, que sugerem questões pertinentes para este trabalho. A meu ver, Pixinguinha e Donga, no decorrer das narrativas sobre o grupo, vão se constituindo como nós distintos e com implicações diferenciais dentro de um pensamento sobre a música popular brasileira. Neste sentido, esses apontamentos levam a pensar sobre dicotomias – que sugiro não serem meras antinomias, mas pares de posições hierárquicas - como arte/indústria, artístico/mercado, gênio criativo/sujeito moderno produtivo, criador/administrador, enfim, vários termos em relação que demarcam conjunturas específicas na trajetória do grupo. Vale apontar que estes termos já se constituem como relacionais dentro das narrativas sobre o grupo42 desde o período de sua criação. Os Oito Batutas têm sido retratados em sua história por diversos autores, com distintos horizontes conceituais, no entanto há questões muito convergentes no que diz respeito às temáticas em jogo no cenário de gênese do grupo. A questão do contato do mundo popular com o mundo aristocrático; o fato de músicos “negros” (que de fato eram a metade dos integrantes do grupo) tocarem em um local reservado à cultura aristocrática “branca”, e a conseqüente ênfase para o “grande escândalo” e as “acaloradas discussões” sobre o evento (calor que aumenta na medida em que acontecem os episódios das viagens, sobretudo a ida do grupo a Paris em 1922). Neste sentido, minha impressão inicial (dentro de um primeiro período de trabalho de campo) era de que estaria em contato com uma profusão de notícias acaloradas em torno das primeiras apresentações do grupo, notas apoiando e outras denegrindo sua estréia e assim por diante. Mas com o decorrer do trabalho de campo, em contato com os jornais de época, verifiquei que as coisas não se davam nesta medida, o 41

A primeira formação dos Oito Batutas era a seguinte: os irmãos Pixinguinha, Alfredo da Rocha Viana (flauta) e China, Otávio Viana (violão e canto); Donga, Ernesto dos Santos (violão); Nelson dos Santos Alves (cavaquinho); Luís de Oliveira (conforme Cazes (1998) Luis Pinto da Silva) (bandola e reco-reco); José Alves de Lima (bandolim e ganzá) e os irmãos Raul Palmieri (violão) e Jacob Palmieri (pandeiro). 42 Retomarei esta discussão à frente de forma mais detida.

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que chegava a me dar certo desapontamento de não encontrar aquele debate tão citado (e esperado). Na medida em que ia lendo os vários jornais do Rio de Janeiro próximos ao período da estréia do grupo, em abril de 1919, ia aumentando minha decepção por não encontrar nada sobre o grupo no tão falado Cine Palais43. Nem mesmo nos anúncios publicitários ou nas programações dos cinemas eles figuravam como atração na maioria dos jornais por mim pesquisados44. A primeira citação a Os Oito Batutas que encontrei em 1919 foi uma nota nos anúncios comerciais, na última página do jornal Correio da Manhã45 do dia 07 de abril46, onde se expunham as atrações dos vários cinemas e teatros da cidade47. A propaganda era da “Agência Geral Cinematográfica Claude Darlot”, administradora dos cinemas Palais e Parisiense, sendo que o espaço reservado a estes era de destaque ao fim da página, com fotos das protagonistas dos filmes anunciados, “Meu Ídolo” com “Miss Edna Goodrich” no primeiro e “A Estrada Real” com “Marian Irvayne” no segundo. No canto direito do quadro do Cine Palais está a referência aos Oito Batutas, nos seguintes termos:

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Já se iam três dias que eu acompanhava as notícias de 1919 nos jornais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e nada de meus nativos! Neste período estava em contato com outros colegas em trabalho de campo que passavam por situações de, ao chegarem a campo, não encontrar mais os movimentos ou grupos que iriam estudar a princípio, o que despertava em meus colegas o sentimento de perda dos nativos, o que parecia muito com meu sentimento nestes dias iniciais da pesquisa hemerográfica. Estes sentimentos são interessantes na medida em que nos colocam frontalmente a uma desconstrução da pré-conceituação do campo. Aqui a noção de “rastreamento do social” de Latour (2008) foi inspiradora. 44 Em alguns dos jornais consultados não consegui encontrar referência nenhuma aos Oito Batutas em todo o ano de 1919. 45 O Correiro da Manhã foi um jornal carioca diário e matutino fundado em 15 de junho de 1901, por Edmundo Bittencourt e extinto em 8 de julho de 1974. Foi durante grande parte de sua existência um dos principais órgãos da imprensa brasileira, tendo-se sempre destacado como um jornal de opinião, caracterizado como oposicionista. Em 1919, o jornal apoiou mais uma vez Rui Barbosa à presidência, combatendo a candidatura de Epitácio Pessoa. Diante da vitória deste último, o Correio capitaneou a oposição a seu governo. Durante a campanha da Reação Republicana, que, no momento da sucessão de Epitácio Pessoa, promoveu a candidatura de Nilo Peçanha em oposição a Artur Bernardes, o Correio colocou-se ao lado do primeiro, declarando-se decididamente antibernardista. Cf. (DHBB-FGV, acessível em http://cpdoc.fgv.br). Segundo Martins e Luca (2008: 101), o Correio com duas edições diárias tinha uma tiragem de 40 mil exemplares, o que era um número expressivo para o Rio da época. 46 Neste mesmo dia o jornal A Notícia anuncia a fundação do Partido Republicano Nacional, como uma “nova via de valor nacionalista”. Neste jornal não há menção à estréia dos Batutas, talvez por que o Palais não fosse seu anunciante. 47 Confesso que senti certo alívio ao encontrar tal anúncio!

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Convidamos V. Ex. a vir ouvir no salão de espera do Cine Palais a orchestra típica dos „OITO BATUTAS‟. Última novidade do mundo artístico carioca, no seu admirável repertório de música vocal e instrumental brasileira: maxixes, lundus, canções sertanejas, corta-jacas, batuques, cateretês, etc. (Correio da Manhã, RJ, 07/04/1919)

Este anúncio, nos mesmos termos, foi encontrado também no jornal O Paiz48 na mesma data, com a diferença de ser menor e não contar com as fotos das atrizes dos filmes em cartaz. Estes anúncios se repetem em ambos os jornais até dia 9/04/1919, sendo que do dia 10 até o dia 13/04/1919, os dois jornais mudam da mesma forma, chamando a atenção para: “Em franco sucesso a orchestra dos Oito Batutas, com seu repertório típico de música brasileira” (Correio da Manhã e O Paiz, Rio de Janeiro 10/04/1919). Estas duas notas devem ser pensadas como fragmentos muito pequenos no contexto das programações de apresentações nos cinemas e teatros do período, sendo textos produzidos com a única intenção de divulgar a estréia do grupo. Como as notas têm textos iguais, mudando no mesmo dia nos mesmos termos, isto pode apontar para uma préformatação, ainda que não se possa precisar por quem foi realizada. O que importa aqui é deixar claro que não se trata de uma declaração, crônica ou debate provocado pelo evento da estréia, mas uma chamada publicitária, provavelmente com espaço comprado nos jornais, chamando o público para o hall de entrada do Cine Palais. É nestes termos que estas notas são lidas de modo mais rentável neste trabalho. O que temos de informação sobre a estréia, portanto é o dia (07 de abril de 1919) e que o apelo utilizado pelo texto caracteriza o grupo como “orchestra típica”, salientando sua novidade no mundo artístico do Rio de Janeiro, sobretudo em relação ao seu repertório, que já é relacionado a um conjunto de possibilidades musicais que indicam o nacional. Vemos a retórica da novidade se articular a uma forma de arte 48

Jornal carioca diário de caráter situacionista, fundado em 1º de outubro de 1884 por João José dos Reis Júnior. Marcando sua atuação por um situacionismo que muitas vezes o levou a ser acusado de realizar reportagens em troca de negócios vantajosos para a direção. A identificação de O País com toda a estrutura política da República Velha fez com que sua sede fosse saqueada e empastelada após a vitória da Revolução de 1930. Conforme (DHBB – FGV, http://cpdoc.fgv.br).

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que busca expressar justamente o típico nacional, o que acena para um traço característico de uma ideologia moderna49. Esta articulação será presente no decorrer da trajetória do grupo, sendo importante perceber que os próprios músicos são os organizadores deste repertório, ou seja, eles estão se colocando como tal, buscando um espaço dentro do campo concorrencial da arte popular no momento em que se colocam como novidade. O repertório composto de “maxixes, lundus, canções sertanejas, batuques, cateretês, etc...”, aponta já para uma flexibilização, ainda que relativa, em relação às musicalidades em jogo, já que os maxixes50 e lundus remetem a um imaginário citadino ou urbano (popular) e as canções sertanejas, os batuques e cateretês, apontam mais ao imaginário interiorano, assimilado de uma maneira indiscriminada ainda neste período51. Há também a implicação religiosa de uma música como o batuque, pois vale lembrar que Donga, Pixinguinha, China e Nelson Alves, integrantes da primeira formação do grupo, eram freqüentadores assíduos dos batuques, ainda que em trânsito entre a sala do choro e a capoeiragem do terreiro52. De qualquer forma, desde sua criação há a associação da musicalidade do grupo apontando para uma música brasileira, o que de fato deveria soar muito ruim para uma parcela da população que estava em consonância com os modismos europeus, mas 49

No sentido de Dumont (1992), como sistema de idéias e valores característicos das sociedades modernas. 50 O maxixe é um gênero de música de dança de pares, estabelecida no Rio de Janeiro, com sua gênese remetendo ao final do século XIX no âmbito do bairro da Cidade Nova - bairro popular de concentração operária, com grande densidade populacional a partir da segunda metade do século XIX, conforme Moura (1983: 36). Como apontam Menezes Bastos (2007, 2007a) e Sandroni (2001: 62-83), sua musicalidade é resultante de uma série de transformações a partir do lundu em suas relações com outros gêneros musicais como a polca, a valsa, o tango e a habanera. 51 Como aponta Oliveira, no Rio de Janeiro – centro irradiador dos discursos sobre a música popular no Brasil – até fins da década de 30, as músicas do interior do país eram indistintamente classificadas como música sertaneja. Neste rótulo se enquadravam desde cateretês do interior do centro-sul às emboladas nordestinas. A partir dos anos 30, Oliveira aponta um processo de divisão do interior nas representações da música popular, sendo que o rótulo de “música caipira” passa a referenciar a música sertaneja do interior do centro-sul do Brasil, o que se consagra nos anos 40, resultando em uma separação entre as músicas do Nordeste e do interior do Centro-Sul, como universos musicais particulares. (Oliveira, 2009). 52 Donga era filho de Tia Amélia, que realizava em sua casa festas onde as três musicalidades conviviam: do choro, do samba e da capoeiragem, conforme o próprio Donga declara em seu Depoimento ao Museu da Imagem e do Som RJ em 1969. Moura (1983) apresenta uma descrição de festas deste tipo.

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para outros, possivelmente em maior número como se verá mais a frente, isto era um ponto positivo na busca de uma caracterização do nacional. O primeiro anúncio que apresentei provavelmente seja o comentado por Cabral (1978: 30; 1997: 45; 2007: 51), que não cita sua fonte. Este mesmo autor cita outras duas notas no A Rua53, uma sem mencionar a data e a outra no dia 10/04/1919, mas infelizmente não consegui encontrá-las mesmo depois de uma cuidadosa leitura dos jornais. Estas notas são importantes na medida em que compõem a narrativa de Cabral54 sobre o debate estabelecido entre favoráveis e descontentes em relação aos Batutas estarem tocando em um dos mais elegantes cinemas da cidade. Acredito ser relevante citar as passagens da narrativa de Cabral. É claro que houve protestos. Além de tocar música popular e de apresentar os seus integrantes trajando vestes sertanejas, o conjunto tinha quatro negros: Pixinguinha, Donga, China e Nelson Alves. Um dos críticos mais azedos foi o compositor, maestro e pianista Julio Reis, responsável por uma coluna de música no jornal A Rua, que se confessou „envergonhado‟ com a presença dos Oito Batutas no Cinema Palais, que considerava „um escândalo‟(...) (Cabral, 1978: 30; 1997: 45; 2007: 51).

Em seguida Cabral contrapõe a este descontentamento, uma grande nota da Revista da Semana55(s.d.), atribuída a Xavier Pinheiro, 53

Jornal fundado em 1889 pelo jornalista abolucionista e republicano Pardal Mallet. Entre seus diretores estão Olavo Bilac e Raul Pompéia. De acordo com Sodré (1999), a circulação deste periódico entre 1914 e 1927 foi marcada por uma postura intensa de caráter político. 54 Vale lembrar que os livros de Cabral, em suas três edições (1978, 1997, 2007) constituem, juntamente com as duas edições de Silva & Oliveira Filho (1979, 1998), as principais referências para o que foi escrito sobre Os Oito Batutas e Pixinguinha, tornando-se as grandes narrativas míticas de ambos os personagens da música popular brasileira. Os livros fizeram parte de um concurso de monografias sobre a história de Pixinguinha promovido pela FUNARTE em 1977, onde Cabral recebeu o primeiro prêmio e Silva & Oliveira Filho menção honrosa. Martins (2009: 34-41) ao contextualizar historicamente a realização deste concurso, aponta-o como parte de um renascimento do choro dos anos 70, com vários eventos neste sentido. 55 Revista fundada em 1900 por Álvaro de Tefé, com participação de Medeiros e Albuquerque e Raúl Pederneiras. Até 1915 tinha vínculo com o Jornal do Brasil, sendo depois comprada

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em que este desqualifica os argumentos de Julio Reis, chamando-o de “defensor de nossa sociedade aristocrática”, incapaz de compreender o valor dos “morenos” que “têm sido apreciados pela nossa finíssima sociedade, não têm escandalizado, têm obtido ruidoso sucesso (...)” (Revista da Semana (s.d.) citado por Cabral, op. cit.). Logo em seguida, vem a segunda nota do A Rua, supostamente de 10 de abril de 1919, que para Cabral registra “o êxito dos Oitos Batutas”, nos seguintes termos: O cinema Palais tem apanhado, desde trasanteontem, colossais enchentes. É que o choro de Pixinguinha lá está a executar o seu interminável e bem escolhido repertorio, deleitando o auditório, que não se cansa de dizer bem do excelente conjunto (Cabral, 1997:46; 2007: 52)56.

Silva & Oliveira Filho (1979: 39) também articulam a narrativa sobre a polêmica instaurada na estréia dos Batutas, através da relação entre a nota de Júlio Reis no A Rua (sem citar data) e Xavier Pinheiro na Revista da Semana (s.d.), sem se utilizar da última nota de A Rua de 10/04/1919, mais ou menos como Cabral faz em sua edição de 1978. A idéia geral é a mesma, de apontar a polêmica instaurada na imprensa (ou a “grita” como escreve Orestes Barbosa em 193357) em relação à estréia do grupo no Cine Palais. Lendo o jornal A Rua deste período, encontrei poucas colunas assinadas por Julio Reis58 e nenhuma se refere nominalmente aos Oito Batutas. O que há de fato nos discursos de Reis é uma divisão muito comum nas notas sobre arte em geral em vários jornais, entre o que poderia ser exprimido como alta cultura e baixa cultura (ou a

pela Companhia Editora Americana, contando com novo maquinário de impressão com recursos tecnológicos modernos, onde o emprego de fotografias e ilustrações garantia um diferencial em relação às edições da revista, veiculando, sobretudo atualidades sociais, políticas e policiais. Para mais sobre a Revista da Semana, Cf. Marinho e Taboada (2004). 56 Esta nota de 10 de abril de 1919 (que não encontrei) não faz parte da primeira narrativa de Cabral de 1978, somente das edições seguintes de 1997 e 2007. 57 Farei uma breve apresentação desta obra de Barbosa em relação aos Oito Batutas mais a frente. 58 Sua coluna no A Rua chama-se “Notas e Pausas” e é dedicada a comentar os espetáculos e obras de música erudita. Porém, em abril de 1919, só encontrei uma nota intitulada “Aristocracia da Arte – Trio Beethoven” no dia 23/04/1919.

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“aristocracia da arte” que supera o “momento de modas, sambas e maxixes” nos termos de Júlio Reis), sendo as músicas populares pertencentes a esta última. Porém, este modo de ver o mundo das artes é realmente muito presente no contexto pesquisado59 e neste sentido, Julio Reis faz sua avaliação da arte popular e seu público que, “(...) em sua grande maioria, propenso mais para freqüentar os recintos onde a banalidade, ainda que pomposamente enroupada, é compreendida, porque para isso não se exige o menor esforço intelectual (...)” (A Rua, Rio de Janeiro, 02/05/1919). Além de perceber o caráter operatório da distinção alta cultura/baixa cultura presentes no discurso de Reis, é interessante aqui perceber como os temas fragmentados dos jornais se articulam e criam uma realidade nos anos 70, especificamente direcionada aos Batutas. Ambas as narrativas, de Cabral e Silva & Oliveira Filho, criam um mundo narrado no qual os sentidos estão em consonância mais aos contextos históricos do momento de criação da narrativa (ou seja, o das narrativas épicas60) do que ao momento dos eventos narrados. Neste sentido, minhas impressões anedóticas de angústia inicial pela falta de informação sobre a estréia dos Batutas nas primeiras investidas nas fontes primárias, apontam para algo significativo, que é o como de poucos temas foram compostas narrativas muito contundentes que construíram a realidade, organizando um sistema categorial que envolve tudo aquilo que eu estava esperando encontrar nos fatos, ou seja, tudo se passa como se o que houve (de fato) tenha sido um grande furor de debates na imprensa, onde os Batutas foram o pivô61. Esta “realidade” é o que me parece ser o ponto de partida da maioria dos trabalhos com os quais tive contato sobre o grupo até agora, sendo uma exceção Vianna (1998) que aponta que, se houve algum debate acalorado, este passou rápido, sendo os favoráveis aos Batutas em número muito superior do que seus adversários, pois senão não seria justificável a rapidez com que 59

Aliás, esta dicotomia conceitual é operatória também nos dias de hoje, não sendo difícil de serem encontradas em relação a vários gêneros musicais populares, sobretudo articulados em retóricas desqualificantes do mundo do consumo. Como se fosse possível outro mundo! 60 Os registros memorialistas e biográficos - com ênfase em Pixinguinha - sobre a história dos Oito Batutas adquirem, sobretudo nos anos 60 e 70, o que Menezes Bastos (2005) sugere como um caráter épico e hagiográfico. 61 De certa forma, há um principio intelectual operante aqui, que remete à figura do bricoleur de Lévi-Strauss, como lógica do pensamento produtor de mitos, onde se elabora “conjuntos estruturados utilizando resíduos e fragmentos de fatos (...) testemunhos fósseis da história de um indivíduo ou de uma sociedade” (Lévi-Strauss, 2002: 37).

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o grupo passa a ser convidado a se apresentar em lugares respeitáveis e apresentações oficiais. No entanto, como se verá, o acompanhamento da trajetória do grupo Os Oito Batutas em suas associações, possibilita perceber vários âmbitos de atualização de temas em questão em que o grupo aparece como mote de referência relacional. 1.3 – Chega a Semana Santa. Depois de estrearem na segunda feira, dia 07 de abril de 1919 no Cine Palais, já no dia 10 começam a ser divulgadas as programações especiais da Semana Santa, tendo os anúncios do grupo diminuídos de ênfase. Após uma semana, no dia 14 de abril, Os Oito Batutas saem dos anúncios, da mesma forma com que entram em vigor as propagandas das intensas atividades de cunho católico religioso. Nos anúncios do Cine Palais no Correio da Manhã e no O Paiz anuncia-se o filme em cartaz, “Justiça Divina”, sendo estampada uma imagem de Jesus Cristo crucificado. Onde se lia anteriormente a chamada para assistir os Oito Batutas na sala de espera, agora se lê: Se sois cathólico, é um dever para com vossa fé virdes ver o tocante exemplo de abnegação religiosa que vos apresenta: JUSTIÇA DIVINA! Um espetáculo em homenagem ao catolicismo brasileiro. (Correio da Manhã e O Paiz, Rio de Janeiro, 16/04/1919).

A programação religiosa vai até o dia 20/04/1919, sem a presença do grupo nos anúncios, mas no dia seguinte há a mudança do filme no Palais para “Dois Heroes” e no O Paiz voltam os Oito Batutas timidamente: “ATTENÇÃO – Não deixar de vir ouvir a aplaudida orchestra dos Oito Batutas, nos últimos novos números do seu repertório nacional” (O Paiz, Rio de Janeiro, 21/04/1919). No entanto aparecem nesta propaganda apenas por mais dois dias, até a quinta feira 23/04, quando saem novamente dos anúncios e não voltam a figurar como atração do Palais em 1919, ao menos não consegui encontrar nada que indicasse a permanência do grupo. O que pensar sobre esta ausência dos Batutas das páginas dos jornais na programação da Semana Santa, aliás, uma dupla ausência, já que não há nenhuma referência a ela nas narrativas que tratam do grupo.

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Numa leitura apressada, estas omissões podem sugerir um momento de desconexão entre o mundo dos músicos populares em questão e o mundo católico religioso. Como já me referi, alguns dos músicos do grupo Os Oito Batutas, senão todos, eram intimamente ligados ao mundo dos cultos aos Orixás, ao candomblé e aos terreiros. Donga é filho da iyalorixá62 Tia Amélia, promotora conhecida de reuniões de sambas, irmã-de-santo de Tia Ciata, Tia Bebiana e Tia Perciliana63 no terreiro de João Alabá, um dos principais Babalorixá do candomblé nagô no Rio de Janeiro, conforme Moura (1983: 62-67). O filho de Ogum, Pixinguinha (Silva & Oliveira Filho, 1978), assim como seu irmão China, eram freqüentadores assíduos destas festas promovidas na casa de Tia Amélia e Tia Ciata. Possivelmente os temas musicais incluídos no repertório citado nos anúncios do Palais, como batuques, sejam de inspiração ou relacionados a este mundo dos Orixás. No entanto, as ausências dos Batutas vistas acima, apontam mais para uma estratégia de convivência do que uma separação de mundos, pois, no mesmo lugar – o Cine Palais - em que as famílias católicas apostólicas romanas vão assistir “o exemplo de abnegação religiosa de Jesus”, figuravam de modo entusiástico aqueles músicos populares negros. De certa forma, é um momento significativo em que universos de sentido diferenciados convivem em (ainda que por vezes competido por) um espaço em plena Avenida Rio Branco, região nobre do Rio de janeiro, intensificando a possibilidade de trânsito dos sujeitos pelos diferentes universos. Sugiro entender a convivência destes termos em oposição, como um modelo de pares constituídos dentro de um sistema de englobamento hierárquico, no sentido de Dumont (1992).

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Amaral (2007) sugere estas como sacerdotisas dos cultos afro-brasileiros, apontando a importância sócio-cultural destas em muitas das manifestações culturais do Brasil. 63 Perciliana Maria Constança era mãe do músico João da Baiana (Fernandes, 1970), personagem de destaque na história do samba, sendo um dos sujeitos reverenciados nos anos 60 como raiz da tradição da música popular brasileira, juntamente com seus parceiros de infância, Donga e Pixinguinha.

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1.4 – Benjamim Costallat, um defensor dos Batutas64. Curiosamente no dia em que os Batutas saem dos anúncios do Cine Palais e começam as programações religiosas do dia 14 de abril de 1919, o Rio Jornal65 apresenta uma coluna inteira dedicada à valorização do evento da estréia do grupo, assinada por Benjamim Costallat66, personagem central nas narrativas sobre estes músicos em sua articulação com as retóricas do nacionalismo via mestiçagem e valorização da negritude. Assim escreve o jornalista. “RIO JORNAL – segunda-feira, 14 de abril de 1919. OS „OITO BATUTAS‟ Até que enfim! Comprehenderam afinal os homens que exploram a arte e a alegria alheia nesta terra, que o povo, o publico, o grande publico, nunca desprezou nem despreza o que é nosso... Comprehenderam felizmente que essa preferência ao estrangeirismo, ao parisianismo, ao bruletinismo, ao cretinismo, é dada apenas por meia dúzia de casacos cintados e de imbecis, aos 64

Costallat (1897-1961) foi um dos autores mais lidos no Brasil nas décadas de 1920 e 1930, atuando no Rio como romancista, ensaísta e cronista (ou jornalista) polêmico. Também foi um dos grandes editores do início do século. Seu romance, Mademoiselle Cinema, foi censurado e considerado pornográfico e escandaloso, mas antes de ser recolhido chegou a vender mais de 60 mil exemplares. Em 1924, escreveu para o Jornal do Brasil a famosa série de reportagens “Mistérios do Rio”, onde trata do submundo carioca, dos crimes, viciados e o erotismo. (Ver: Bulhões, 2008 e Polesel, 2007) 65 Jornal fundado pelo cronista, teatrólogo e contista João do Rio (pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto), que também ajudou a fundar o A Pátria e a Revista Atlântica. Este autor deu a estes periódicos uma característica marcada pela crônica social, traço da obra de João do Rio. Este autor foi o fundador da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais em 1917 e membro da Academia de Ciências de Lisboa e da Academia Brasileira de Letras. Para informações biográficas sobre João do Rio, consulte o site: http://www.academia.org.br. 66 Como bem aponta Bessa (2005: 110), Costallat está em consonância com outros personagens do movimento nacionalista, entre eles intelectuais como Gilberto Freyre, que tentavam articular as idéias vindas do movimento de valorização do negro estabelecida na Europa, a “negrofilia”, como um avanço na direção da construção da nacionalidade brasileira, pautada na mestiçagem. Neste sentido, Costallat também advoga pela fábula das três raças e da idéia de democracia racial no Brasil (suprimindo o elemento indígena), onde a visibilidade cultural do negro torna-se ponto chave.

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quaes já chamei „os indefinidos‟... comprehenderam finalmente que nós brazileiros, de facto e de direito, estamos estafados e revoltados de ouvir falar em problemas alheios; estamos realmente preoccupados com uma nacionalidade ainda em formação e cada vez mais imprecisa, incerta, indefinida, abstracta, inexistente... comprehenderam, porém, repito, os que exploram nossa alegria e nosso prazer, que já estamos cançados em saber que Brulé e Max Linder são frnacezes, que Pina Menichelli é italiana, e que George Walsh é americano. E deram-nos finalmente os „oito batutas‟ nacionaes. Foi pra mim uma verdadeira e deliciosa surpresa ver a final e victoriosa invasão do „chôro‟ ali na Avenida... Pinxinguinha na fantastica loucura de sua virtuosidade, de suas variações, de suas inesperadas arabescas, e o acompanhamento ora soturno, ora heróico dos violões e cavaquinhos... As caras pállidas e internacionaes dos avenideiros tomavam outro aspecto... Eram brazileiros de facto... Comprehendiam a alma musical brazileira... Tinham sangue brazileiro nas veias e o rythmo syncopado nos nervos!... Tenho dito muitas vezes e ainda hoje repito. Temos uma musica genuína, essencialmente brazileira. É nossa musica popular. Devemos, pois tratá-la com todo o carinho. Aprefeiçoa-la, elevala, aristocratiza-la. Devemos conjugar a alma brazileira popular com a sciencia musical universal. Temos a obrigação de educar, de valorizar esses compositores, como já disse, maximalistas e populares que ignorando quasi tudo da arte e suas leis nos conseguem entretanto transmittir quasi todas as leis da belleza e do sentimento... Fiquei radiante de ver a instalação do „chôro‟ na Avenida. Não me envergonho em absoluto dos

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„oito batutas‟ (?) estranha musica dos sertões... musica do caboclo e da saudade!... Só senti ter vindo tão tarde... Ter vindo tão depois de outras instituições menos dignas e menos brazileiras: o „five-o-clock‟, o „menage á trois‟, o „tango‟, o „cock-tail‟, o „rouge‟, os „potins‟, e as „cocotes‟... BENJAMIM COSTALLAT.” (Rio Jornal, Rio de Janeiro, 14/04/1919)67

Este texto é significativo por ter sido publicado logo após a estréia dos Batutas, contendo já vários dos elementos que irão compor as associações do grupo e sua musicalidade com significados nacionalistas, onde o grupo passa a ocupar lugar pioneiro. Essa espécie de encarnação do nacional via mestiçagem e cultura popular é um prato cheio para uma vertente nacionalista do pensamento intelectual da época. Costallat parte da idéia de “povo” para articular o argumento da oposição “do que é nosso” em relação ao estrangeirismo dos “indefinidos”. De “o povo” como categoria genérica que aponta para um outro que se percebe de longe, passa-se a “nós, brasileiros de facto e de direito” que buscam a nacionalidade, “ainda em formação” – ou seja, em disputa simbólica - encarnada nos “oito batutas nacionaes”, estes apresentados como uma solução possível para a indecisão latente quanto ao nacional. Várias categorias são acionadas por Costallat. O choro (que, vale lembrar, também está se construindo como gênero musical nesse período) já começa a ser associado ao virtuosismo de Pixinguinha e o acompanhamento, “ora soturno, ora heróico dos violões e

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Esta nota consta do Arquivo Almirante, consultado no Museu da Imagem e do Som, Praça XV. Há no arquivo uma pasta destinada aos Oito Batutas, com vários recortes de jornais em sua maioria de 1919, dando atenção, sobretudo à cobertura jornalística das primeiras viagens ao interior do país que passam por São Paulo e Minas Gerais. Este material é por sua vez o processo seletivo empreendido por Almirante (Henrique Foréis Domingues) na construção de uma memória dos Oito Batutas. Vale destacar que este arquivo é muito consultado em relação ao tema, sendo base para várias das discussões realizadas por Martins (2009), que o utiliza de modo pouco crítico em relação à sua arbitrariedade temática seletiva, onde os recortes de jornais aparecem na sua narrativa quase que como exemplos etnográficos para seu argumento, que corrobora em grande medida os argumentos elaborados por Cabral (1978, 1997).

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cavaquinhos”68, indo em direção da ligação do “sangue brazileiro” com o “rythmo syncopado nos nervos”. Contudo, para se chegar ao resultado final da “música nacional”, Costallat indica a necessidade de uma operação vital, que deveria, a partir da essência (a música popular), “aprefeiçoa-la, eleva-la, aristocratiza-la”, conjugando a “alma brazileira popular com a sciencia musical universal”. Estamos diante de uma equação fundamental, qual seja: música nacional = (música popular + articulação erudita). Pode-se trocar o termo “música popular” por “música folclórica” em determinados contextos (como o de Mario de Andrade de 192869), mas o princípio lógico da operação continua em vigor. A educação dos artistas populares seria necessária na medida em que 68

A atualização desta idéia nos dias de hoje é significativa. Em meu trabalho de conclusão de curso (Lacerda, 2007), estudando concepções musicais e relações de poder entre grupos praticantes do gênero musical choro na Ilha de Santa Catarina, pude indicar como categorias como “virtuose” e idéias como de jogos competitivos entre melodia e acompanhamento fazem parte da construção do que é o choro (e o chorão), sendo gatilhos acionados conjunturalmente de modo relacional a outros gêneros musicais, constituindo especificidades. 69 Mário de Andrade em 1928, em seu Ensaio sobre a Música Brasileira, busca apontar a necessidade de pensar a constituição de uma música artística nacional, que só poderia existir na medida em que os músicos (eruditos) entendessem o imperativo de buscar elementos nas raízes populares, sobretudo nas manifestações rurais e folclóricas do interior do Brasil. Só assim, uma identidade musical brasileira poderia ser criada. Procurando salientar as heranças culturais musicais influentes na formação da musicalidade nacional, o autor afirma a grande contribuição portuguesa, média do negro e a pequena e insignificante do indígena. Contudo, é na fusão destas três raças que a musicalidade brasileira deveria ser buscada. Por outro lado, Andrade critica a prática comum de buscar as características nacionais no exótico ou erótico, sendo isto um viés europeu que teria no exotismo algo a aplaudir. É nesta chave crítica de leitura que o autor tecerá suas considerações depreciativas aos Oito Batutas, por, segundo Andrade, terem feito sucesso na Europa, através da manipulação do exotismo em função do gosto do público. Neste sentido critica o autor. Ora por causa do sucesso dos Oito Batutas ou do choro de Romeu Silva, por causa do sucesso artístico mais individual que nacional de Villa-Lobos, só é brasileira a obra que seguir o passo deles? O valor normativo de sucessos assim é quase nulo. A Europa completada e organizada num estádio de civilização campeia elementos estranhos para se libertar de si mesma. (...) o que a Europa tira da gente são elementos da exposição universal: exotismo divertido. Na música, mesmo os europeus que visitam a gente perseveram nessa procura do esquisito apimentado. (Andrade, 1972 [1928]) É preciso que se diga que Mário de Andrade se refere aos Batutas em 1928, quando estes já estão bastante envolvidos no mundo do jazz-band (pós viagens a Paris e Buenos Aires), sendo inclusive adicionado o termo em certas ocasiões ao nome do grupo, como veremos à frente.

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“ignoram quase tudo de arte e suas leis”, o que remonta a um saber intuitivo, primitivista, por sua vez matéria prima ideal para a criação artística. De certa forma há certa semelhança lógica na maneira pela qual se pensa a elaboração musical culta, a partir de material popular: no “populário” (que remete, sobretudo, a manifestações interioranas) em Mario de Andrade e nos músicos populares em Costallat. Aqui sim os Batutas constituem um depositário temático popular que pode ser apreciado e consultado para a composição da musicalidade nacional, funcionando assim como o “populário” (e não “popularesco”) para o caso de Mario de Andrade. Por outro lado, é interessante perceber o lugar específico onde se aloca a artisticidade Batuta (e popular) no discurso de Costallat. Mesmo como “defensor” do grupo, é nítido o estatuto diferenciado, distinto enquanto essência pouco elaborada, que o jornalista dá ao produto musical Batuta. 1.5 – Período pré 1ª viagem – 15 de outubro de 1919, um dia atípico! Depois das notícias que apresentei sobre a estréia dos Oito Batutas no Cine Palais, não encontrei o grupo figurando como atração nos jornais no período de maio a setembro de 1919, deixando uma lacuna sobre o tempo de atuação neste cinema e de outros trabalhos. As próximas aparições significativas nos jornais se dão nos dias 14 e 15 de outubro de 1919, sendo este um dia realmente impressionante de intensificação na cobertura jornalística do grupo. É uma cobertura em vários jornais sobre uma apresentação realizada na Associação Brasileira de Imprensa do Rio de Janeiro, para anunciar a primeira viagem do grupo ao interior do país (São Paulo e Minas Gerais). Esta viagem, além das apresentações musicais, é parte de um projeto de coleta de música folclórica patrocinado pelo milionário Arnaldo Guinle70, com o entusiasmo de Coelho Neto71 e a supervisão de Villa70

Mecenas, membro de uma das famílias mais ricas do Brasil. Patrocinou também as viagens dos Batutas e de Villa Lobos a Paris, em 1922 e 1923, respectivamente. (Sandroni, 2001; Menezes Bastos, 2004). 71 Martins focaliza historicamente estes personagens de forma bastante precisa, localizando as pretensões gerais que orientaram esta empreita aos Oito Batutas. “Para Coelho Netto, tratavase de elencar as tradições musicais populares, com o objetivo cívico e patriótico de ajudar a conformar uma identidade cultural para a nação. Para Guinle, tratava-se de buscar as raízes negras e mestiças da música folclórica e popular brasileira, seguindo as tendências do

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Lobos e Floresta de Miranda (secretário de Guinle). O projeto contará ainda com uma segunda viagem com os mesmos propósitos à Bahia e Pernambuco em 192172. Dia 14 de outubro de 1919 já se anuncia a apresentação. “Os 8 batutas. Os conhecidos 'batutas', que têm deliciado os amadores da musica, nesta capital, dao, hoje, as 9 horas, um concerto de despidida na Asosciação Brazileira de Imprensa sendo executadas várias peças nacionaes. Os '8 batutas', embarcarão brevemente para a Paulicéia, onde irão executar o seu extenso repertório de tangos, sambas, modinhas e marrôadas.”(A Notícia, Rio de Janeiro, 14/10/1919).

No dia seguinte, 15 de outubro, temos notas idênticas veiculadas nos jornais O Jornal73, O Paiz e Jornal do Brasil74 sobre a apresentação de despedida da imprensa carioca, nos seguintes termos: modernismo francês, buscando identificá-las a uma cultura francamente africana.” (Martins, 2009: 108). Esta autora ainda chama a atenção de que estas viagens são anteriores à Semana de Arte Moderna de São Paulo, e se é atribuível a Mario de Andrade a iniciativa de coletar material musical folclórico brasileiro com vistas a fazê-lo útil aos compositores eruditos do país, é significativo pensar que o projeto de Guinle e Coelho Netto, levado a termo pelos Batutas, é ainda anterior ao modernismo musical. 72 O material coletado nesta pesquisa foi repassado a Mario de Andrade e faz parte da coleção “Fundos Villa-Lobos” disponível para consulta no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros da USP). Segundo Maya (2004), a antropóloga Ruth Brito Lêmos Terra, em seu livro intitulado A literatura de folhetos nos Fundos Villa-Lobos, fornece mais informações sobre o material coletado nestas pesquisas e em outras que compõem a coleção que fazia parte de um projeto maior de Mário de Andrade, que visava sistematizar e publicar a produção popular artística brasileira. A partir das sucessivas viagens empreendidas pelos músicos patrocinadas pelo mecenas Arnaldo Guinle, Villa-Lobos reuniu o material coletado com vistas a produzir uma antologia de todo o folclore nacional. Estas viagens de pesquisa foram ainda pouco exploradas e podem fornecer informações importantíssimas para compreender a trajetória do grupo e suas implicações, porém neste trabalho isto não poderá ser feito na medida em que se deteve mais pontualmente em fontes do Rio de Janeiro, sendo que em trabalhos futuros será importante uma varredura de material específico dos eventos relacionados a estas pesquisas. Menezes Bastos ao tratar destas viagens, afirma que elas atestam “que as musicologias (no caso, a etnomusicologia no Brasil) são invenções dos músicos” (2005: 189). 73 Fundado em 17 de julho de 1919 por Renato de Toledo Lopes. Cinco anos após sua fundação, foi adquirido por Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, tornando-se o primeiro elo e o órgão líder da cadeia dos Diários Associados. Foi extinto em abril de 1974. O Jornal pretendia marcar sua atuação pela “independência e austeridade”, dedicando-se a assuntos literários e científicos. Assumiu quase sempre posições moderadas e oficiais. O

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“Os Oito Batutas apreciados e applaudidos artistas brasileiros que formam o conhecido grupo cuja a especialidade é tocar exclusivamente música nacionaes, as quaes acompanham as nossas sentidas canções, offereceram hontem, à Associação Brasileira de Imprensa, uma audição especial, na qual, mais uma vez, demonstraram o seu valor artístico. O interessante grupo, que é composto de Alfredo Vianna, o „Pichinguinha‟ exímio flautista; Ernesto Santos, o „Donga‟ (violão); Octávio Vianna (violão e canto); José Pernambuco (ganzá e canto); Jacob Palmieri (pandeiro); Raúl Palmieri (violão); Nelson Alves (cavaquinho); e Luiz Silva (reco-reco), deliciou a sua assistência durante algumas horas, com a correcta execução de tangos, canções sertanejas (...) características. Entre as composições originaes, foi tocada a valsa „Nostalgia da Lua‟, de „Pichinguinha‟ dedicada a imprensa.” (O Jornal; O Paiz; Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15/10/1919)75.

caráter situacionista do jornal não o impediu, contudo, de apoiar em 1922 a Reação Republicana, movimento liderado por grupos oligárquicos dissidentes, tendo à frente Nilo Peçanha, que combatia a candidatura oficial de Artur Bernardes à sucessão de Epitácio Pessoa na presidência da República. Apoiou também a revolução de 30. Conforme (DHBB – FGV, http://cpdoc.fgv.br). 74 Jornal carioca diário e matutino fundado em 1891 por Rodolfo de Sousa Dantas e Joaquim Nabuco. Apoiou o monarquismo de 1891 a 1893, quando assume a direção Rui Barbosa dando novos rumos ao periódico em defesa do regime republicano. Depois de 1894 foi vendido por indicação de Rui Barbosa, à firma Mendes e Cia, período em que ficou conhecido como “O Popularíssimo” (1894-1919). Após 1919, nova mudança na direção e ainda como jornal moderado, o Jornal do Brasil entrou numa fase de recuperação financeira, ao mesmo tempo em que procurava reconquistar o prestígio, preocupando-se em evidenciar as seções literárias e artísticas, em que se destacavam as colunas assinadas pelos membros da Academia Brasileira de Letras. Figuram como colaboradores figuras de renome nos meios intelectuais como o conde Afonso Celso, Medeiros de Albuquerque, Benjamim Costallat, Barbosa Lima Sobrinho, entre outros. Cf. verbete de Marieta de Morais Ferreira e Sérgio Montalvão, no DHBB-FGV, disponível em: http://cpdoc.fgv.br. 75 Com relação aos integrantes do grupo, parece haver uma confusão com o “José Pernambuco”, que provavelmente sejam duas pessoas, José Alves de Lima e João Pernambuco. É até curiosa a forma com que o periódico resolve o paradoxo de nove integrantes se chamar Oito Batutas, ou seja, transforma-se dois em um! Porém, não é isso que o próprio grupo irá fazer como veremos, e sim José Alves passa a ser o secretário do grupo.

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O fato de que o mesmo anúncio seja veiculado por vários jornais já indica uma elaboração prévia da matéria, distribuída para a imprensa, ainda que não seja possível indicar sua procedência. Penso que a publicação da nota poderia dar-se por indicação, senão pela própria compra do espaço no jornal para este fim. Ambas as situações são possíveis, uma vez que sabemos que estes eventos contam com a participação de Arnaldo Guinle e seus amigos. Por outro lado, a própria estratégia de realizar uma “audição” para a imprensa, na sede de sua própria Associação é uma artimanha sagaz de divulgação do evento e de propaganda para o grupo. Seja quem for que tenha estado por traz do artifício, soube utilizar-se muito bem dos recursos de marketing que estavam disponíveis, e deu certo, pois a cobertura nos jornais foi significativa76. Novamente a caracterização do grupo e sua musicalidade acionam categorias como o “nacional” articulado ao mundo das “canções sertanejas características”. Mas a nota jornalística que impressiona neste dia é a publicada no A Notícia77, ocupando quase um quarto da primeira página, no canto direito inferior, com uma foto já do grupo com vestimentas sertanejas, com João Pernambuco como integrante ao centro e José Alves de Lima, ao lado como secretário (afinal, era necessário contar apenas 8 batutas!)78. Reproduzo aqui o conteúdo textual do anúncio e em Anexo 2 a foto do jornal para se ter uma visão de sua disposição.

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Como será abordado à frente, Menezes Bastos (2005) sugere uma efetiva campanha publicitária para os Batutas em sua passagem por Paris, articulada por Guinle e Duque. 77 Jornal carioca, diário e vespertino, que circulou entre 1894 e 1979, sendo depois relançado em 1991. Foi fundado pelo jornalista Manuel de Oliveira Rocha, provocando impacto na imprensa por sua forma gráfica arrojada e inovadora. Foi considerado “o jornal de elite”, sendo basicamente um órgão de informação, o que o distinguia de outros periódicos do Rio, caracterizados pela vinculação político-partidária. No entanto, o A Notícia era decididamente republicano. Sob a direção de Cândido de Campos assumiu um papel concreto dentro da realidade política da Primeira República, caracterizando-se como porta-voz das idéias do governo e adquirindo grande audiência nos meios governamentais burocráticos e no corpo diplomático brasileiro, graças a seu ainda excelente serviço telegráfico e ao interesse de Cândido de Campos pelos serviços diplomáticos do país. Cf. verbete de Carlos Leal e Sérgio Montalvão, no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro - DHBB da FGV, disponível em: http://cpdoc.fgv.br. 78 Esta é uma foto clássica do grupo Os Oito Batutas, em que aparecem com os trajes similares aos utilizados quando do Grupo de Caxangá. Vale ressaltar a presença de João Pernambuco como integrante Batuta. Ele foi fundador e líder do Caxangá.

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“OS 8 BATUTAS A sua próxima tournée artística PARA O SUL A orchestra nacional e o seu secretário Certa tarde – vae já para quase oito mezes – na sala de espera de um dos nossos elegantes cinemas da Avenida, appareceu aquelle „esquisito‟ grupo de executantes de uma musica que ao nosso snobismo pareceu também esquisito. Não se destacava dentre elles, de arco em punho, cabelo basto e revolto, a figura do violinista madgyar ou tido como tal pelas meninas cloroticas que ainda não eram por esse tempo, as melindrosas. E se entre os músicos que se fizeram chamar desde a sua apresentação „Os oito batutas‟, dois ou três delles não tinham na pele quase a mesma coloração de roupa escura que então vestiam, os demais nada tinham de caucasiano no pigmento. A apresentação daquella orchestra que conforme a sua legenda fazia „ouvir a musica que cantava ao coração nacional‟, a aparição entre as tapeçarias, bijouterias, e bisautés e recamos de flores de uma casa de espectaculo de luxo daquelles modestos obreiros que empunhavam uma flauta, um cavaquinho, três violões, um ganzá, um pandeiro e um reco-reco, fizeram torcer o nariz a uns poucos e encher de jubilo a outros. Os rapazes, porém, foram sempre triumphando unidos, fazendo repertorio, trabalhando, dando a conhecer aos que se empanturravam de classicismo, sem o comprehender, as bellezas do nosso característico samba, o descante da „marroada‟, o batuque, o canto e a musica populares reaes e positivamente nossos, e como a persistência é meio caminho nos atalhos ou campo largo da Victoria, os Oito batutas venceram. Composto o interessante grupo de Alfredo Vianna, o „Pichinguinha‟ (flauta); Ernesto dos Santos, o „Donga‟, (violão); Octávio Bianna (violão e canto); José Pernambuco (viola e ganzá); Nelson Alves (cavaquinho); Jacob Palmieri

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(pandeiro); Raul Palmieri (violão) e Luiz Silva (réco-réco), depois de se exhibirem em várias casas de espectaculos do Rio, os Oito Batutas vão agora, dentro de breves dias, a caminho de São Paulo e dos demais Estados do Sul. Triumpharão por certo. Dispondo de um repertorio onde figuram todos os cantos e gêneros nacionaes, onde se ouve desde a modinha à canção da „embolada‟, desde a polka saltitante ao „batuque‟, aportarão nos primeiros dias da semana vindoura na capital do adiantado Estado, itinerando depois por todas as demais principaes cidades do interior, numa jornada certamente gloriosa. Seria matéria difficil enumerar o seu repertório. É elle tão vasto! O certo é que elle é todo escrupulosamente seleccionado e puramente nacional. Músicos dos mais caprichosos, amantes da alma brasileira, é tocante a homenagem que os „Oito Batutas‟ vão prestar à sociedade paulista. A grande figura desse grande cuidador das cousas pátrias, que foi Affonso Arinos, é-lhes um altar! À sua memória, à memória do inolvidável sertanista será a primeira exhibição dos esforçados rapazes na adiantada Paulicéia. Que os melhores ventos os acompanhem!” (A Noticia, Rio de Janeiro, 15/10/1919)

Aqui estão explícitos vários temas da representatividade Batuta, onde a questão racial é exposta de modo dissolvido na retórica, que diminui a importância da cor da pele dos integrantes, que “nada tinham de caucasiano no pigmento”. No entanto, “fizeram torcer o nariz a uns poucos e encher de jubilo a outros”, que pelo jeito a cor da pele podia ser relevada, com um intuito maior, o ideal nacional, onde “os Oito Batutas venceram”. Vale ainda destacar o caráter ambíguo do discurso ao se referir ao repertório do grupo, onde de um lado chama a atenção para sua vastidão (“Seria matéria difficil enumerar o seu repertório. É elle tão vasto!”), mas já em seguida, esta variedade é contida e seletiva como “escrupulosamente seleccionado e puramente nacional”. Esta nota de certa forma explicita bem e de forma resumida a tônica das viagens a

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São Paulo e Minas Gerais, pelo que delas se pode pensar no que ficou congelado nos fragmentos jornalísticos, selecionados por Almirante em seu arquivo, fragmentos estes que parecem compor as demais narrativas feitas até agora sobre estas viagens. Chama a atenção ainda, a estratégia interessante de associar o grupo a Affonso Arinos – seja lá quem for o estrategista -, pensador do movimento nacionalista de muita relevância, sobretudo no ambiente intelectual de São Paulo, para onde o grupo rumava. Em relação a este primeiro momento que analisei como o da gênese do grupo, o que tudo indica é uma grande adesão positiva em relação ao grupo nesta associação específica de construção do nacional. Se admitirmos o debate “contras” e “prós” Batutas, estes últimos parecem estar em vantagem, o que parece corroborar com as afirmações de Vianna (2008), para quem os descontentes existiam, mas não em um número tão grande, sendo os “admiradores importantes” em maior número79, o que autoriza o autor a concluir que “a sociedade brasileira já estava preparada para aceitar aquela música mestiça, inclusive para representá-la em cerimônias oficiais” (Vianna, 2008: 116). Trataremos à frente da relação dos Batutas com cerimônias oficiais, mas o que quero reter neste momento é que o que parecem apontar os eventos da estréia no Palais é uma “estrutura de conjuntura”80 (Sahlins, 2003) em que estes músicos fazem sentido, ao aparecerem propondo condições de negociações destas realidades e transformações estruturais. Os próprios músicos, ainda que tenham tido interesses e articulações distintas, não 79

Como apontam várias narrativas, desde Orestes Barbosa nos anos 30, passando pelos depoimentos de Donga e Pixinguinha nos 60, chegando aos anos 70 nas narrativas épicas e nas dos dias de hoje, no Palais os Batutas eram prestigiados por pessoas como Rui Barbosa. Esta audiência é acionada como representativa da importância do evento da estréia do grupo, que mobiliza a atenção para uma série de decorrências, sobretudo para a relação música popular e nacionalismo, via um conjunto de músicos “negros”. 80 Para Sahlins (2003) uma “„estrutura da conjuntura‟ é a realização prática das categorias culturais em um contexto histórico específico”, ou seja, um complexo de relações históricas que, ao mesmo tempo, reproduzem as categorias culturais tradicionais, atribuindo-lhes novos valores, isto abrindo, portanto a possibilidade de se pensar nas ações motivadas dos agentes históricos em suas interações. No movimento (“dupla manobra teórica” de pensar evento e estrutura em uma síntese situacional) tem-se a idéia de uma “reavaliação funcional das categorias”, onde os significados simbólicos são re-arranjados na ação, ou nos termos de Sahlins, temos um “evento” (relação entre um acontecimento e a estrutura – ou estruturas), sendo sintetizado em uma situação de “estrutura conjuntural”. O autor assinala o valor estratégico do conceito de “estrutura da conjuntura” para a determinação dos “riscos simbólicos” e das “reificações seletivas” na ação.

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deixam de se inserir nas brechas abertas pelo envolvimento com teóricos nacionalistas, uma vez que têm abertura e visibilidade legítimas para sua arte, enquadrando-a no perfil nacionalista, encarnando a raiz do ser brasileiro, utilizando-se de vários elementos, entre eles o sertão e a síncopa. Vale assinalar que é na aproximação dos nacionalistas que resulta a primeira ênfase sobre o grupo, numa valorização de seus atos, que irá desembocar na primeira viagem “etnográfica” dos Batutas ao interior do Brasil, numa dupla empreitada de apresentações e pesquisa da cultura popular.

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CAPÍTULO 2 – PRIMEIRAS VIAGENS – A Busca de um Brasil interior.

M.R. - Pixinguinha e os Oito Batutas gostavam muito do sucesso que faziam no Cine Palais, mas resolveram viajar pelo Brasil, tocando e pesquisando novos ritmos. No fim de 1919, botaram o pé na estrada, ganharam inspiração para novas canções. Apesar dos protestos, que continuavam aqui e ali, os Oito Batutas não só mostravam que eram ótimos músicos como também que conheciam a fundo a cultura brasileira. (Rabaça, 1999: 43)

2.1– As viagens e o Acervo Almirante. Buscarei apontar algumas impressões gerais sobre as primeiras viagens-pesquisa81 do grupo Os Oito Batutas ao interior dos Estados de São Paulo e Minas Gerais, de outubro de 1919 a maio de 1920, assinalando especificidades que rondaram estes eventos em suas articulações narrativas82. De forma geral, o que já se escreveu sobre estes eventos são narrativas similares entre si, mas com algumas distinções em relação aos modos pelos quais são articulados os termos e temas constitutivos. A maioria das narrativas relacionadas às viagens a SP e MG que consultei parecem ser elaboradas a partir de um mesmo material jornalístico, que é o recorte específico organizado por Henrique Foréis Domingues, conhecido pelo apelido de Almirante83. Este recurso 81

Estas viagens, assim como sua continuação para Pernambuco e Bahia, conciliavam tanto apresentações musicais, como pesquisa (coleta) de material musical das manifestações do interior do país. Estas viagens foram patrocinadas por Arnaldo Guinle. Tratarei mais à frente disto. 82 Farei o mesmo à frente sobre as demais viagens do grupo. 83 Henrique Foréis Domingues (Almirante) foi compositor, intérprete, locutor, radialista, pesquisador e colecionador de material referente à música popular. Como músico foi fundador do “Bando de Tangarás”, grupo de Noel Rosa que nos anos 30 foi central no processo de mudança rítmica do samba, ao qual Sandroni (2001) chama de “paradigma do Estácio” ou

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metodológico de aproximação às fontes, via “arquivo Almirante”84, a priori condiciona o olhar em função deste recorte, sem que se faça nenhuma menção sobre as implicações de se tomar as fontes (e aqui me parece mesmo uma idéia de fonte de onde se retira a informação, uma espécie de plantação de onde se colhe os dados) a partir de um recorte pré-condicionado85. Infelizmente não poderei neste trabalho analisar mais detidamente os recortes deste acervo, apontando apenas algumas das operações seletivas mais gerais que compõem as narrativas sobre os eventos das viagens. De um lado isto se faz necessário pela quantidade de informações deste acervo, que mereceria um tratamento minucioso que ultrapassa os limites deste trabalho. Meu esforço se concentrará em apenas dar o tom destas viagens por aquilo que me chamou a atenção nas constituições narrativas, articulando isto ao pontual de meu trabalho, que foca mais detidamente as impressões da imprensa a partir do Rio de Janeiro. O que encontrei especificamente em relação aos Oito Batutas foi uma pasta nominal com recortes de jornais selecionados por Almirante86, com em torno de 40 páginas de caderno com as “samba de 2º tipo”, paradigma este que se estabeleceu como símbolo nacional. Como radialista, Almirante teve grande atuação na Rádio Nacional (inaugurada em 1936), idealizando programas que colocavam em foco músicos tidos como pioneiros do mundo da música popular brasileira. Para uma biografia de Almirante, cf. Cabral (2005). 84 Conforme me informou Ricardo Cravo Albin (2009), em 1965 o então governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, comprou o acervo de Almirante e incorporou-o ao acervo do Museu da Imagem e do Som do RJ, presidido então pelo próprio Cravo Albin. Nesta ocasião, Almirante também acabou sendo contratado como funcionário do MIS-RJ. 85 Considerando que desde 1965 o Arquivo Almirante está disponível no MIS-RJ, é provável que nos anos 70, Silva & Oliveira Filho (1979) – dentre outros - tenham buscado neste acervo informações para construírem suas narrativas. Cabral, biógrafo de Pixinguinha, admite em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura em 27/08/1990 que conheceu Almirante em 1960 e que buscava informação desde aí em seu acervo pessoal. Bessa (2005) não faz menção ao acervo, mas constrói um percurso muito próximo ao que se encontra na pasta de Almirante, o que talvez indique alguma ligação. Martins (2009) segue declaradamente o acervo, construindo uma narrativa que não faz uma avaliação crítica pontual sobre o caráter seletivo deste arquivo. 86 É significativo assinalar que o primeiro acervo que procurei para pesquisar ao chegar ao Rio de Janeiro em setembro de 2009 foi o Arquivo Almirante. No segundo dia de consultas ao MIS-RJ, após minha insistência sobre os recortes de jornais de Almirante – no dia anterior não haviam encontrado -, consegui ter acesso à pasta (que não se encontrava tão bem organizada no sistema de informação). Todavia, este era o último dia de atendimento no MIS (Praça XV) antes de fecharem as portas para uma reforma, sendo portanto um dia muito tumultuado, com trânsito de caixas, mudanças, pedreiros, estando os funcionários e eu no meio da bagunça

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reproduções dos recortes colados, em média com dois ou três por página87. Destas 40 apenas, 5 não são sobre as viagens de 1919 e 1920, a São Paulo e Minas Gerais, sendo portanto uma cobertura específica em jornais destes Estados, sobretudo com a ênfase no êxito das apresentações. Sugiro que a pasta “Oito Batutas” contem boa parte do que para Almirante seria de mais importante sobre o grupo, algo a ser memorizado, arquivado para a posteridade, o que de fato parece ter tido conseqüência posterior, na medida em que ele realmente constituiu boa parte da base documental daquilo que veio a se dizer sobre o grupo. As viagens à Argentina e ao sul do Brasil são pontos excluídos desta seleção de memória, assim como a relação dos Batutas com o mundo do Jazz, como chamou a atenção Coelho (2009: 15). Façamos então uma incursão ao Arquivo Almirante e às primeiras viagens dos Oito Batutas. Primeiramente quero salientar que mesmo antes da chegada do grupo a São Paulo já havia veiculação de notícias nos jornais paulistanos sobre a vinda do grupo. As notas começam em 16 e 17 de outubro de 1919, no Correio Paulistano88 e O Estado de São Paulo89 respectivamente, nos seguintes termos. procurando coisas sobre os Oito Batutas. Às 17 horas entreguei minhas folhas de requerimento para reprodução dos recortes de jornais e fotos de outros acervos, trazendo comigo este material para ser analisado em Florianópolis, na volta do campo. Esta situação pode ter atrapalhado minha busca pelos recortes e possivelmente o acervo seja maior do que o que eu encontrei, mas, por outro lado, não tenho evidências de que isto possa ter ocorrido, e me parece, sim, que estes recortes que encontrei constituem a totalidade sobre os Oito Batutas no Arquivo Almirante. 87 Luis Fernando Hering Coelho havia me informado de que na pasta de Almirante havia comentários escritos ao lado dos recortes originais, provavelmente feitas pelo próprio Almirante, mas infelizmente não tive acesso aos originais, somente às cópias, aliás, mal feitas, o que dificulta a leitura de várias partes. 88 Jornal fundado em 1854 em São Paulo pelo proprietário da Tipografia Imparcial, Joaquim Roberto de Azevedo Marques. Nascido liberal, o jornal, em pouco tempo tornou-se conservador. Em 1882 assumiu a direção editorial Antônio Prado, que imprimiu ao jornal a orientação de defesa do abolicionismo, e posteriormente de defesa da ordem republicana. Com o advento da República o jornal assume postura oligárquica e conservadora, tornando-se o órgão oficial do Partido Republicano Paulista (PRP), então dirigido pelos oligarcas paulistas Manuel Ferraz de Campos Sales, Prudente de Morais, Antônio Prado e Francisco de Paula Rodrigues Alves, entre outros. O Correio Paulistano, como órgão oficial do PRP, lançou a campanha pela constitucionalização, lutando contra as intervenções federais em São Paulo. Cf. verbete de Amélia Cohn, no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro - DHBB da FGV, disponível em: http://cpdoc.fgv.br. 89 Jornal paulista diário e matutino de grande circulação fundado em 1875 com o nome de Província de São Paulo e rebatizado sobre o comando de Júlio de Mesquita em 1889 como O

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“Os Oito Batutas” Visitou-nos hontem o Sr. José Alves de Lima, secretário de um novo grupo de cantores e tocadores sertanejos, que brevemente fará a sua estréia nesta capital em um dos nossos theatros. Do grupo fazem parte o apreciado João Pernambuco, já conhecido do nosso publico e o Sr. Alfredo Vianna, applaudido flautista brasileiro. Logo depois da sua chegada a S. Paulo, o grupo dos „Oito Batutas‟ dará uma audição as ex. famílias e à imprensa. (Correio Paulistano, São Paulo, 16/10/1919 – Arquivo Almirante)

Já o Estado de São Paulo põe maior ênfase ainda em João Pernambuco, personagem já conhecido na cidade devido a apresentações anteriores90, chegando a não mencionar o nome do grupo e sim como “troupe Pernambuco”. Esta evidência na associação com Pernambuco será constante durante as notícias nestas viagens. “TROUPE PERNAMBUCO” Chegará brevemente a S. Paulo, devendo estrear num dos nossos theatros a “troupe” de artistas

Estado de S. Paulo. De acordo com Eleutério (2008) este jornal resultava de uma aliança entre elites rurais e burguesia ascendente que, amparada por sólido capital, conjugou uma ideologia elitista com um veio de defesa social. Na Guerra de Canudos (1893-1897) enviou para o sertão baiano Euclides da Cunha como correspondente. Para Leal e Saul, o jornal tendia para um caráter político oposicionista. Em 1919 apoiou a candidatura derrotada de Rui Barbosa, opondo-se ao candidato situacionista Epitácio Pessoa. Porém em 1921 e 1922, na sucessão de Epitácio, o jornal apoiou o candidato oficial Artur Bernardes, ficando contrário a Nilo Peçanha, o candidato de oposição. Já na sucessão de Bernardes, O Estado de S. Paulo voltou à sua antiga oposição, manifestando-se contra a candidatura situacionista de Washington Luís. Cf. verbete de Carlos Eduardo Leal e Vicente Saul, no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro - DHBB da FGV, disponível em: http://cpdoc.fgv.br. Ver também Luca (2008: 162). 90 João Pernambuco, após a criação do Grupo do Caxangá, foi convidado por Afonso Arinos para se apresentar em um ciclo de conferências sobre temas folclóricos, organizado por ele em São Paulo, em dezembro de 1915 e janeiro de 1916, cf. Martins (2009: 47). Sobre as conferências de Arinos, Carvalho (2008) salienta o teor nacionalista dos discursos do literato onde os ouvintes (entre outros, Olavo Bilac e o jovem iniciante literário Mario de Andrade) são incitados a perceber a riqueza da cultura popular como estímulo para a arte erudita, lição certamente instigante e amplamente posta em prática pelos autores modernistas anos mais tarde.

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nacionaes organisada pelo artista brasileiro João Pernambuco, que aqui é bastante conhecido como exímio violeiro e cantor de modinhas sertanejas. Do conjunto organisado por João Pernambuco fazem parte os srs. Ernesto dos Santos (Donga), violonista, autor da popularíssima cançoneta “Pelo Telephone”; Alfredo Vianna (Pixinguinha), flautista; Octavio Vianna, violonista e cantor sertanejo; Nelson Alves, guitarrista; Raul Palmieri, violonista; Luiz Pinto da Silva (récoreco) e Jacob Palmieri (Maracaxá). A Troupe de que é secretário o sr. José Alves de Lima, está, como se vê, constituída de elementos capazes de lhe assegurar franco successo em todas as audições que aqui vem realisar, sendo de esperar que os originalíssimos artistas de que se compõe sejam recebidos com toda a sympathia pelo publico desta capital. (O Estado de S. Paulo, 17/10/1919 – Arquivo Almirante)

Portanto, como já me referi, estas notas tiveram veiculação em São Paulo antes mesmo da chegada do grupo, bastando lembrar de que no dia 14/10 eles estão atuando no Rio de Janeiro, na Associação Brasileira de Imprensa e nos dias seguintes são anunciadas as viagens “ao sul” para os próximos dias. Pelo menos José Alves (de Lima) já está em São Paulo dia 16/10 como aponta o Correio Paulistano, fazendo um primeiro contato, sendo inclusive anunciada uma audição para as famílias e a imprensa, assim que chegasse o grupo carioca. Neste sentido, o músico parece estar atuando realmente como um secretário. Esta prática de propaganda comercial de visitas aos órgãos de imprensa, incluindo audições é recorrente na trajetória do grupo, o que aponta para uma atitude bastante articulada e consciente dos integrantes do grupo sobre estes meios de divulgação e sobre as estratégias necessárias para seu melhor proveito. Não é possível identificar precisamente quem são os estrategistas nestas campanhas publicitárias, mas sabe-se que Guinle, Coelho Neto e outros intelectuais estão por traz desta viagem, sendo, portanto, muito provável que estes sujeitos, em conjunto com os próprios músicos, sejam os articuladores.

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A presença de João Pernambuco como integrante do grupo Os Oito Batutas, o que acabou por deslocar José Alves para a posição de secretário, foi comentada por Donga em seu depoimento ao MIS-RJ em 1969. Donga conta que Pernambuco foi incluído no grupo por indicação de Arnaldo Guinle, milionário mecenas que patrocinou as viagenspesquisa do grupo, como parte de um trabalho de pesquisa e de coleta de manifestações musicais folclóricas pelo interior do Brasil, idealizado por Guinle e Coelho Neto, como já me referi. Donga ainda informa que a razão da saída de Pernambuco teria sido um desentendimento com o mecenas, por uma questão de egoísmo e por ter pedido demais para o trabalho. Este desentendimento envolveu também Pixinguinha, mas com a mediação do próprio Donga e Floresta de Miranda, Pixinguinha teria resolvido o mal estar com Guinle. Cabral (2007: 58) afirma que “a memória de Donga estava confusa” neste depoimento, salientando que chamar Pernambuco de egoísta e mesquinho seria incorreto a julgar pela sua generosidade, citando para tanto a questão dos direitos autorais das canções Luar do Sertão e Cabocla de Caxangá, registradas somente em nome de Catulo da Paixão Cearense, sem a reclamação de Pernambuco. Martins (2009: 43-49), apresenta também a versão deste episódio através da biografia de João Pernambuco realizada por Leal & Barbosa (1982), onde os autores se perguntam sobre João Pernambuco como um “batuta esquecido”, sendo de qualquer forma trazidas poucas informações adicionais à discussão sobre estes eventos. O que se repete é que a entrada de Pernambuco para o grupo foi imposição de Guinle como parte do plano de coleta folclórica musical, sendo sua saída um desentendimento em relação a esta atividade, que não teria sido realizada como gostaria o mecenas, pois Pernambuco não escrevia o que coletava – ou seja, provavelmente não fazia transcrições para a partitura -, sendo Pixinguinha o sujeito que levaria a cabo este trabalho em conformidade com a exigência. Vale ressaltar outro aspecto da participação de Pernambuco. Para a inserção do grupo no mundo artístico de São Paulo, foi estratégica a evidência de Pernambuco como o ponto central da propaganda Batuta, acionado pela sua associação anterior com Afonso Arinos e deste com o sentimento nacional via valorização da cultura sertaneja e folclórica. No entanto, acompanhando as demais notas jornalísticas da turnê, que vai ao interior de São Paulo e depois para Minas Gerais, é significativo que Pernambuco tem seu peso diminuído

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na imprensa, na medida em que o grupo se afasta da capital paulista, passando a figurar as ênfases a outros elementos, como as qualidades da arte sertaneja do grupo, a genialidade e virtuosidade de Pixinguinha, a popularidade de Donga como autor de sambas carnavalescos, enfim, outras chaves estratégicas passíveis de serem acionadas inclusive concomitantemente. Antes de seguir expondo minha atitude de flanar pelo arquivo Almirante, gostaria de levantar algumas considerações sobre os “depoimentos para posteridade” do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. O depoimento de Ernesto dos Santos, Donga, citado anteriormente, foi realizado no dia 2 de abril de 1969, tendo como entrevistadores Jota Efegê (João Ferreira Gomes), Mozart Araújo, Ilmar de Carvalho, Aloísio de Alencar Teles, Braga Filho e Ricardo Cravo Albin. Foi transcrito e editado pelo MIS-RJ em 1970 em As Vozes Desassombradas do Museu. Também estão nesta coletânea os depoimentos de João da Baiana, de 24 de agosto de 1966, além dos depoimentos de Pixinguinha, realizados em duas partes, a primeira em 6 de outubro de 1966 e a segunda em 22 de abril de 1968, tendo como entrevistadores, no primeiro, Hermínio Bello de Carvalho, Cruz Cordeiro, Ilmar Carvalho, Ari Vasconcelos e Helio Marins David; e no segundo, Hermínio Bello de Carvalho e Jacó do Bandolim, todos sob a direção de Ricardo Cravo Albin. Os depoimentos de Pixinguinha receberam nova edição na Série Depoimentos: Pixinguinha editada também pela UERJ e MIS-RJ em 1997. É preciso de início salientar a riqueza das informações contidas nestas gravações e as atitudes meritórias de realizá-las. Dialoguei com dois participantes destes eventos, Ricardo Cravo Albin, então diretor do MIS-RJ e idealizador do projeto, e Lygia dos Santos (filha de Donga), que participou da organização dos eventos e como colaboradora na edição do livro As Vozes..., que foi uma transcrição e edição das gravações, publicada em 1970 pelo próprio MIS-RJ. Ambos os interlocutores fizeram questão de salientar as dificuldades no processo de realização dos eventos, assim como de divulgar seus resultados, desde questões financeiras, até dificuldades técnicas e metodológicas. Como salientou Cravo Albin (2009), estes eventos devem ser entendidos dentro de um quadro de ações que intentavam re-valorizar o âmbito da música popular, sobretudo as personagens “menos favorecidas” e identificadas como “raízes da tradição”, sendo as três “vozes

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desassombradas” marcos referenciais disto91. As ações deste período desencadearam, por exemplo, a formação do “Conselho Superior de Música Popular”, formado por estudiosos, pesquisadores, musicólogos, jornalistas, historiadores e biógrafos, com o intuito de fomentar o culto à música popular brasileira no final de anos 6092. Tive a oportunidade de ouvir estes depoimentos no MIS-RJ (Lapa) onde pude comparar a minha transcrição com as antecedentes, percebendo assim o quão seletiva e de certa forma tendenciosa foram as edições realizadas nos livros93. De um lado, há problemas com a própria realização das entrevistas, em que há ocasiões, por exemplo, onde as respostas são claramente induzidas pelos entrevistadores ou ainda situações de constrangimentos em relação aos entrevistados. De outro, ao serem transpostas as falas para o texto, além do processo seletivo do que se transcreve, há troca de palavras e a rearticulação das frases em busca de um “esclarecimento de sentido”94, mas que por vezes acaba dando outro sentido ao que se falou. Outros exemplos são casos em que o que é uma afirmação de um entrevistador, transcreve-se como afirmação do depoente. O livro As vozes... é uma das principais fontes 91

Vale reforçar que os depoimentos foram realizados no auge do regime militar, onde os efeitos da censura eram constantes e eventos desta natureza eram alvo de atenção, de modo vigilante, mas sem intervenções propriamente ditas. 92 O Conselho foi criado em 1966, pelo diretor do Museu da Imagem e do Som do RJ, Ricardo Cravo Albin – com o aval do então governador do Estado da Guanabara, Negrão de Lima como apoio para a realização das gravações dos “depoimentos para posteridade” de personalidades da cultura brasileira, começando pela música popular, e depois passando a outras áreas como a música erudita, cinema, teatro, literatura, artes plásticas, comunicação e esportes, num total de quase 600 depoimentos. Como me contou Albin em algumas conversas que tive com ele quando de minha estadia no Rio, para cada disciplina ele criou um "conselho superior formados por pessoas de notória autoridade, sendo elas as mais indicadas para escolherem os depoentes”. O Conselho Superior de Música Popular, por exemplo, era formado por: além do próprio Albin, Ary Vasconcelos, Jacó do Bandolim, Vinícius de Morais, Renato Almeida, Tinhorão, Lúcio Rangel, Edison Carneiro, Ilmar de Carvalho, Guerra Peixe, Marques Rebêlo, Sérgio Pôrto, Sérgio Cabral e outros. Para mais sobre o IMS-RJ, Cf. Cravo Albin (2001). 93 É claro que o próprio processo de transcrição de entrevistas (como o de qualquer transcrição, inclusive a musical) por si só é reducionista e resulta em uma análise, sendo entendível a intradutibilidade entre as formas de linguagem. Porém, ao tratá-las como fonte de informações, torna-se necessário estabelecer o estatuto destas diferentes formas lingüísticas e as implicações sobre os significados comunicados. Penso não em uma transcrição verdadeira, mas sim uma transcrição adequada, que esteja atenta a reproduzir o máximo de informação pertinente ao contexto descrito. 94 Em Fernandes (1970), são utilizadas notas explicativas que fornecem indicações e sugerem os sentidos de algumas partes da transcrição.

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de informações sobre seus depoentes e a temática da música popular brasileira, sendo que na maioria das vezes os pesquisadores que o utilizam acabam não escutando as gravações originais, baseando-se exclusivamente nestas transcrições sem uma reflexão crítica sobre seu estatuto. Em minha narrativa procurarei citar minha própria transcrição destes depoimentos – também seletiva, é claro, como qualquer transcrição -, apontando quando pertinente, as transformações decorrentes de outras transcrições e suas implicações95. Voltando às notas de Almirante, em 20 de outubro de 1919 os Batutas já estão em São Paulo e iniciam algumas visitas às redações de jornais da cidade para exibir suas habilidades musicais. Visitam primeiramente o Jornal do Commércio (SP) e no outro dia (21/10/1919) o Correio Paulistano, o que lhes traz como rendimento algumas pequenas notas de exaltação e propaganda, que expressam a qualidade musical sertaneja e informam o provável sucesso da passagem do grupo pela capital. Esses rapazes, com encantadora modéstia e lhaneza de trato, todos peritos nos seus instrumentos, nos deliciaram com algumas das composições caracteristicamente nacionaes no rythmo e na dolência suggestiva: sambas, tangos e lundus, que nos dão a idéa nítida da nossa vida sertaneja com todos os seus encantos de catiras e de mutirões. Os 8 Batutas, além de peritos, dispõem de um vasto repertório e trabalham com muita limpeza. Dentro de dias, exhibir-se-ão elles num de nossos theatros. (Jornal do Commércio, São Paulo, 21/10/1919 – Arquivo Almirante)

No dia seguinte o Correio Paulistano traz uma crônica assinada por Helios - que segundo Bessa (2005) e Martins (2009) seria o pseudônimo de Menotti del Pichia96 – onde o grupo é acionado como Apresentarei partes de minha transcrição – e não na íntegra -, na medida em que forem surgindo casos pertinentes no decorrer de minha narrativa. 96 Poeta, jornalista e político, além de exercer vários cargos públicos no Estado de São Paulo. É autor, entre outras obras, do poema "Juca Mulato" (1917), considerado precursor do Movimento Modernista de 1922, onde teve participação ativa na Semana de Arte Moderna, de 11 a 18 de fevereiro de 1922. Para mais sobre este autor, cf. Moisés (1984). 95

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contraponto e alternativa (nacional e sertaneja) aos espetáculos estrangeiros. Depois da temporada lyrica, a temporada caipira; depois do „Principe Ygor‟, o choro dolente do „Você me acaba‟ (...) – Quem são? – Os Oito Batutas... Imaginei oito Marinuzzis; os últimos batutas que por aqui andaram traziam cabellera flammejante e casaca impeccavel... Eram, porém, oito bravos e fortes caboclos nortistas, trazendo a S. Paulo do „Triptico‟ pucciniano o pranto musicado da roça. (...) Depois da temporada da Empresa Mocchi, um desabafo de musica nacional... Depois de Reunier e Dentale, os „Oito Batutas‟! Chega de sapateados russos de Barodine; para mim, que melhor os comprehendo, prefiro os catiras nacionaes. HELIOS (Correio Paulistano, São Paulo, 22/10/1919 – Arquivo Almirante).

Martins (2009) se refere a esta nota da seguinte forma. O articulista Hélios comparou a música dos europeus eruditos com a música dos populares nacionais e pendeu para esta última. Preferiu os choros, sambas, lundus e as modinhas aos sapateados russos e a tudo que fosse piano, ópera, concerto, cantoria e o diabo. Nem Chopin agradava mais aos ouvidos de Hélios que um choro dos catiras nacionais. (Martins, 2009: 99)

Porém, como salienta Bessa (2005) de um modo mais refinado, o que está orientando a escolha de Helios é a idéia de que “cada povo com suas graças”. O que a crítica está apontando vai além da oposição à música estrangeira, representada por autores românticos como Puccini e Chopin, mas também se opõe à música “moderna” do nacionalista russo Borodin, autor da ópera O príncipe Igor. Neste sentido, para uma representação nacional brasileira, os “catiras” serviam mais que Chopin,

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que provavelmente teria sua vinculação a outro lugar, mas não aqui (Brasil). De forma geral as narrativas que tratam sobre esta passagem do grupo por São Paulo citam de início a primeira apresentação do grupo no Salão do Conservatório Dramático Musical, sobretudo salientando o êxito e sucesso destas apresentações. Contudo, o que levou o grupo a este lugar e não a um teatro, por exemplo? Há no arquivo Almirante, além das notícias de exaltação à recepção do grupo e que falam já das apresentações no Conservatório Dramático (que normalmente são articuladas nas narrativas) duas notas que põem em suspensão estas primeiras impressões e incluem novas informações sobre os eventos. Os Batutas. Devido a exploração dos proprietários dos cinemas desta capital, a interessante e applaudida „troupe‟ nacional „Os Batutas‟ não conseguiu nem um cinema para se exhibir ao publico paulista, motivo pelo qual resolveram das as suas audições no Salão do Conservatório. (A Gazeta97, São Paulo, 23/10/1919 – Arquivo Almirante)

E sobre o mesmo assunto também se refere o Jornal do Commercio. Noticia a „Gazeta‟ de hontem, que os cinemas da Capital se recusaram a aceitar as propostas que lhe fez o grupo de cantores e instrumentistas nacionaes – „Os Batutas‟ – que há poucas noites, se exhibio na redacção deste jornal. É de lastimar que tal acontecesse tratando-se como se trata de rapazes que se impõem pela distincção e pela modéstia com que se apresentam e sobretudo, pela nota imediata que dariam aos freqüentadores desses cinemas com a exhibição de 97

Jornal paulistano diário vespertino fundado em 1906, sob a direção de Adolfo Araújo. Apesar da intenção de manter uma linha editorial isenta havia simpatia pelo Partido Republicano Paulista (PRP). Em 1921 se dá a modernização do parque gráfico do A Gazeta que passa a ser um dos jornais mais modernos de São Paulo e do Brasil. Foram seus colaboradores: Sílvio Romero Filho, Antônio Torres, Campos de Medeiros, Coelho Neto e Oliveira Lima, entre outros. Cf. verbete de Amélia Cohn, no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro - DHBB da FGV, disponível em: http://cpdoc.fgv.br.

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um repertório em que palpitam tradições brasileiras, toucadas de muita poesia, traductoras da nossa alma simples e de costumes que vão desapparecendo. Fossem esses rapazes imitadores de caipirices, desvirtuados ao talento de quem as explora, inculcassem-se músicos excêntricos; trouxessem bonecos de mola; dessem-se a exercícios de funambolismos; propusessem-se a desmanchos de maxixes, a saracoteios de samba, a esgares e palhaçadas, e esses cinemas se afoitariam em contratál-os. Não desanimem com isso os „Batutas‟. Se os repellem os cinemas, nós não o repellimos, nem os repellirá o publico de São Paulo, que vai ouvilos, brevemente, no Salão do Conservatório... Ouvil-os e julgal-os. A audição que esses rapazes nos proporcionaram é uma garantia segura do êxito que os espera. (Jornal do Commercio, São Paulo, 24/10/1919 – Arquivo Almirante)

Estas notas são muito interessantes, primeiro por serem excluídas da maioria das narrativas sobre esta viagem, inclusive de textos mais recentes como o de Martins (2009). Estas notícias informam que a recepção inicial em São Paulo não foi tão calorosa assim aos Batutas, sendo que os empresários de cinemas e teatros não tiveram interesse em exibir os artistas. Contudo, isto acaba fazendo com que o grupo se apresente em um lugar muito distinto, que é o Conservatório Dramático e Musical98. Bessa (2005), que é a única narrativa que cita estas notas, comenta que esta circunstância adversa favoreceu os Batutas. Neste sentido, é possível se pensar em ganhos sob determinados aspectos na recusa por parte dos teatros e cinemas de São Paulo, que levou o grupo a um lugar diferenciado e que acabou conferindo-lhes estatuto diferenciado também à sua arte. Porém, me pergunto como estes músicos não conseguem se exibir nos teatros e 98

O Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (CDMSP), foi fundado em 1906 com o intuito de formação estritamente erudita, tornou-se um reduto da elite paulistana. Teve entre seus ex-alunos ilustres Francisco Mignone, Camargo Guarnieri e Mario de Andrade, que também lecionou nesta instituição. Sobre esta, cf. Azevedo (2008).

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cinemas reservados às programações de variedades, mas obtêm abrigo (como artistas populares) justamente em um local destinado ao culto da “Arte”, no âmbito da escola superior de música erudita? Este acolhimento não foi fruto de benevolência para com os desamparados músicos populares. Estes têm íntimas relações com vários personagens deste âmbito e suas produções artísticas são distinguidas, como algo diferenciado em relação a outras artes populares (diferente daquilo que Mario de Andrade chamaria de “popularesca”). Estamos de certa forma num processo de “distinção”, na expressão de Bourdieu (2002, 2008), que opera por vários mecanismos e embute valoração diferencial a bens e práticas99. Neste processo, por exemplo, o fato de os músicos serem de origem urbana (da capital cosmopolita do país) é ignorado, tudo se passando como se aqueles sujeitos fossem saídos do fundo do sertão, categoria que se liga a um imaginário interiorano e ao mundo do 99

Bourdieu, em sua Crítica Social do Julgamento (Bourdieu, 2008) pensando, sobretudo a sociedade francesa, sugere que no âmbito da distribuição dos bens e das práticas – pensando no campo artístico - há uma relação entre as ofertas possíveis num dado momento e as disposições socialmente diferenciadas. Estas têm articulações com o capital adquirido socialmente, que determinam interesses, pelo consumo e produção de bens ou práticas estabelecidas diferencialmente enquanto signos. Neste sentido, o autor assinala a importância de se pensar os traços distintivos enquanto sistema de diferenças que manifestam antes de tudo, diferenças sociais. O ato de distinção estética só pode ser entendido como parte do processo de diferenciação social, na relação entre a aquisição do habitus, de capital, ativado dentro do campo da arte. Neste sentido, escreve Bourdieu em relação ao campo artístico-literário: (...) o artista que faz a obra é ele pr6prio feito, no seio do campo de produção, por todo o conjunto daqueles que contribuem para o „descobrir‟ e consagrar enquanto artista „conhecido‟ e reconhecido - críticos, prefaciadores, marchands etc. (Bourdieu, 2002: 193). Inspirado nestas idéias, sugiro pensar atores como mecenas, políticos e empresários, bem como jornalistas e pesquisadores, para além de incentivadores ou apreciadores dos Batutas, mas como atores produtores, fornecedores das condições necessárias para conhecimento e reconhecimento do grupo (o ato de “fazer o nome”). É nestes termos que se pode perceber o processo de distinção e valorização de sua arte. Situações de campanha jornalística e estratégias de propaganda e publicidade não são frutos de uma conseqüência natural das paixões estéticas, mas pautados pelas paixões conseqüentes das illusios que esquecem (e por isso existem) as próprias condições de sua existência pelo compartilhar das regras do jogo no campo concorrencial da música popular. Vale ainda destacar que Bourdieu (2002) chama a atenção para a necessidade de não apenas identificar o “criador do criador”, mas pensar de onde vem o “poder de consagrar”. Para um estudo bastante pormenorizado das idéias de Bourdieu em relação ao campo das artes e uma possível transposição analítica cuidadosa destas contribuições para se pensar o campo da música popular brasileira – no caso a música sertaneja – cf. Oliveira (2009).

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folclore, apontando para uma estética da pureza. É interessante que, nas notícias, estas apresentações no Conservatório aparecem com apelo ao público popular, sendo característico dos anúncios chamarem a atenção para os preços acessíveis dos ingressos (“preços populares”). As várias notas jornalísticas no Arquivo Almirante (do Correio Paulistano , O Estado de São Paulo e Jornal do Commercio) indicam que os Batutas apresentaram a peça com o sugestivo nome de “Uma Noite no Sertão”, duas vezes no Salão do Conservatório Dramático Musical, a primeira no dia 27 de outubro de 1919 (segunda-feira) e a outra, anunciada a “preços populares” e como última apresentação no dia 1 de novembro de 1919. Ambas chamavam a atenção ao repertório composto por “Cantos, Sambas, Lundus e Sapateados Sertanejos”. Já nos dois dias seguintes (2 e 3/11/1919) o grupo passa a se apresentar no Theatro Boa vista100, como parte de um espetáculo de variedades no qual figuravam outros números. (...) depois da “Orquestra Tziganos” exhibiu-se em interessantes trabalhos de illusionismo, autosuggestão e catalepsia o “fakir” brasileiro J. Duarte, sendo muito applaudido, o mesmo acontecendo com o professor De Leon, que executou trechos de música no seu original instrumento “Marinbon”. Deram fim a matinée o popular actor Arruda, que contou engraçadas anecdotas e o festejado humorista Napoleão Aguiar, que fez uma série de novas e applaudidas imitações. (O Estado de S. Paulo, SP, 2/12/1919 – Arquivo Almirante).

Acredito que seja importante fazer uma exposição geral do possível itinerário Batuta nestas viagens, no que pude re-constituir pelos jornais de Almirante. Da capital de São Paulo o grupo seguiu para Santos, estreando dia 05/11/1919 (e continuando 6 e 7/11) no Theatro Guarany. Sobre esta apresentação, Cabral (2008: 79) reproduz o que seria o seu programa, porém, além de não coincidirem as datas, - que no programa aparece como segunda-feira, 29 -, ainda há outra incompatibilidade, quando o 100

Este teatro foi inaugurado em 1914, na Ladeira Porto Geral com a Rua Boa Vista, sendo de propriedade do jornal O Estado de São Paulo.

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autor apresenta o grupo como “jazz-band Os Batutas”. Esta designação aponta provavelmente que se trata de alguma passagem do grupo alguns anos depois destas primeiras viagens, provavelmente depois de 1923, quando a idéia do Jazz-band é incorporada de forma mais corrente em relação ao grupo101. Os Batutas voltam para a capital, fazendo uma apresentação para os sócios do Club Commercial102 (A Gazeta, SP, 19/11/1919) e dia 20/11/1919 os jornais Correio Paulistano, A Gazeta e Jornal do Commercio informam103 que o grupo atuará na matinê do Theatro Boa Vista e, no mesmo dia, partem para Campinas (SP). Nesta cidade, desde o dia 18/11/1919 o Commercio de Campinas já anuncia que chegarão os Batutas para se apresentarem no Theatro Casino no dia 20/11/1919 (e 21/11), ou seja, de acordo com as notas, eles se apresentaram de manhã na capital e à noite já estavam se apresentando em Campinas, algo no mínimo difícil nesta época - uma viagem tão rápida. As notas seguintes são de Ribeirão Preto, do Diário da Manhã, sobre a estréia no Cine-Theatro Polytheama em 27/11/1919 (também 28, 29 e 30/11), onde se chama a atenção para a apresentação de um “número realmente nacional e nacionalizador”. No dia 30/11, coloca-se ênfase na apresentação “pelas vítimas da seca do nordeste”, salientando a doação de 20% da portaria em prol desta causa. Já em 7 de dezembro, os jornais O Cravinhos e O Albor da cidade de Cravinhos (SP) informam retrospectivamente que os Oito Batutas se apresentaram por lá nos dias 3/12 no Club Recreativo; 4 e 5/12 no Éden Theatro. Este último jornal traz um poema que dá o tom da uma impressão particular sobre a recepção ao grupo nesta cidade interiorana. OS 8 BATUTAS Um sortão teve Cravinhos Recebendo este pessoal Que tem feito em toda parte Um successo colossal!... 101

Veremos à frente que este nome é possivelmente incorporado ao grupo de Pixinguinha e China em 1923, quando da dissolução do grupo principal, onde Donga e Nelson Alves formam outro grupo. 102 Importante salão de São Paulo que abrigava vários artistas de renome. Em 1920, por exemplo, Anita Malfatti faz neste local – Rua São Bento, 56 - sua exposição individual com grande repercussão na imprensa, conforme o convite reproduzido em Batista (2006: 255). 103 Vale dizer que as informações de ambos os jornais é devida a uma visita de José Alves (o secretário) às respectivas redações, sendo prática estratégica rotineira.

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Com seu bello repertório De cantigas do sertão Nos arrebatam, fascinam E nos enchem de emoção!... E depois que bons artistas! Como sabem trabalhar! Nesse gênero caipira São mesmo de arrebatar! Entre o grupo dos Batutas, Não se vê nenhuma falha; Tudo ali sabe o que faz, E como gente trabalha!... Joao Pernambuco, leitores, Fartamente conhecido, E por todos consagrado, É um batuta “sacudido”! E a flauta de Alfredo Vianna?! Que prodígio, que colosso! Não é atôa que o Pixinguinha Provocou grande alvoroço! Sympathico e com no pinho, O Octavio Vianna alcançou, Muitos applausos e palmas Todas as vezes que cantou! Ainda no pinho quem nega, Elogios, tantos, tantos, Ao caboclo destorcido, O “Donga”, Ernesto dos Santos! Mas não é o Ernesto somente, Um turuna no violão O moço Raul Palmieri, Não fica atraz delle não! Temos falado de flauta,

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Temos falado de pinho, Agora vamos contar, Do moço do cavaquinho. Chama-se elle Nelson Alves E tem premio por tocar Somente com cinco cordas! Faz cousas de admirar! E por fim Jacob Palmieri, No pandeiro, alegra a gente, Enquanto no reque-reque, O Luiz Silva é um exigente!... (GHRITTA) (O Albor, Cravinhos, SP, 7/12/1919 – Arquivo Almirante)104.

No dia 08/12/1919 já estão em São Paulo novamente, saindo notas com textos similares nos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal do Commércio, informando apresentação no Theatro São Pedro105 para o dia 10/12/1919. O Estado de S. Paulo veicula a partir do dia 15/12 notas com a foto do grupo com as vestimentas sertanejas, com a frase que informa pomposamente: “O maior êxito de 1919!”106. Elas divulgam as apresentações dos dias 15 e 16 no Theatro São Pedro; dia 17 Theatro São Paulo (mais uma vez em benefício dos “flagelados pela seca no

Cabral (2007: 62) reproduz este poema “para se ter uma idéia do que foi a apresentação dos Oito Batutas na cidade”. 105 Idealizado pelo português Manuel Ferreira Lopes - importante empresário que fez fortuna com casas de espetáculo em São Paulo e Rio de Janeiro -, o Theatro São Pedro foi inaugurado em 1917 na esquina entre as ruas Albuquerque Lins e Barra Funda. O edifício era muito luxuoso e foi construído em estilo neoclássico. Oferecia 28 amplas frisas, 28 camarotes, platéia com 800 lugares e uma espaçosa geral que comportava mil pessoas, além de quatro filas de balcões, vizinhos aos camarotes, com 100 cadeiras. Um local digno da grande metrópole que surgia. Cf. site oficial do Teatro São Pedro (SP), disponível em: http://www.apaacultural.org.br/saopedro/historia.php 106 Estas notas caem bem na narrativa de Cabral (1977, 1997, 2007), pois ajudam a pintar a “exuberante” e “exitosa” viagem. Nesta mesma direção, Martins (2009: 99) afirma que “este comentário do jornal O Estado de São Paulo foi repetido em inúmeros outros periódicos que fizeram a cobertura desta temporada”. Contudo, não há essa profusão em “inúmeros periódicos” partindo do arquivo de Almirante – aliás, a mesma fonte da autora - pois só encontrei este comentário no O Estado de S. Paulo e depois na articulação narrativa de Cabral. 104

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nordeste”) e 18/12/1919 no Royal Theatre107. Estas notas são idênticas, mudando apenas o local e data do evento, caracterizando-as como propaganda, o que parece ser o caráter da maioria das notas de Almirante, menos talvez o inspirado poema de Cravinhos. Desta última data até a segunda quinzena de janeiro de 1920 não se tem notícia do grupo nos recortes de Almirante, que volta a encontrá-los já na cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Mais uma vez, estrategicamente José Alves de Lima (o secretário) visita a imprensa local, informando-os da chegada do grupo e dos êxitos da turnê. A nota do O Pharol parece reproduzir as informações do secretário, a julgar pela similaridade do texto com outras notas anteriores sobre o grupo. De qualquer forma, este jornal, bem como O Jornal do Commercio local, registram as apresentações dos Batutas no Cine Polytheama de Juíz de Fora nos dias 15 e 16/01/1920, informando ainda que o grupo rumará para a cidade de Caldas e posteriormente para a Europa - o que de fato só ocorrerá dois anos depois, quando o grupo embarca para Paris, em 1922. Os recortes de Almirante nos levam a Belo Horizonte, onde no dia 21/01/1920 os jornais Diário de Minas108, Jornal de Minas109 e Estado de Minas anunciam a presença dos Oito Batutas no Cine América e depois, no dia 24/01, no Theatro Municipal de BH110. Novamente os integrantes visitam as redações dos jornais para se apresentarem. Curiosamente, entre os jornais há incompatibilidades em relação aos integrantes do grupo. Para o Estado de Minas, “Os Oito Batutas” seriam nove, surgindo um novo Batuta, o barítono Luiz de Freitas, mais o secretário José Alves, portanto, teríamos “dez Batutas”! Temos os seguintes integrantes citados: 1 - Alfredo Vianna, flauta; 2 – 107

Este Teatro foi inaugurado em 1913 e ficava na Rua Sebastião Ferreira nº 62. Os anúncios da época no O Estado de São Paulo se referiam a este Teatro como “o preferido da elite paulistana”. 108 De acordo com Werneck (1992), este jornal foi fundado em Belo Horizonte em 1889. Inicialmente oposicionista, foi comprado rapidamente pelo Partido Republicano Mineiro - que foi um dos pilares da política do café-com-leite -, que o manteve como veículo oficial de imprensa. Entre seus colaboradores estava o então jovem escritor, Carlos Drummond de Andrade. 109 Bessa (2005) cita esta nota como sendo de 2 de janeiro de 1920, o que deve ser apenas um erro de digitação. 110 Teatro acostumado a receber os grandes espetáculos que vinham para a capital mineira. Foi inaugurado em 1909 e no início dos anos 40 foi vendido pelo então prefeito Juscelino Kubitschek, passando a chamar-se Cine-Teatro Metrópole.

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Octavio Vianna, violão; 3 – Ernesto Santos, violão; 4 – Raul Palmieri, violão (maracá para o Jornal de Minas); 5 – Nelson Alves, cavaquinho; 6 – Luiz Silva, réco-réco; 7 – Jacob Palmieri, maracaxá (este nome não integra a lista do Jornal de Minas); 8 – João Pernambuco, canto (viola para o Jornal de Minas); 9 – José Alves de Lima, secretário; e 10 – Luiz de Freitas, barítono. A incompatibilidade parece estar na presença ou não de um dos irmãos Palmieri, uma vez que Jacob não aparece na lista do Jornal de Minas e, por sua vez, Raul aparece como tocando maracá no Estado de Minas, instrumento mais provável para seu irmão. Estas são as últimas notícias sobre estas primeiras viagens que constam da pasta “Oito Batutas” do Arquivo Almirante com a qual tive contato. Fechando a trajetória percorrida nesta primeira viagem, Cabral (2007) completa as informações, narrando que o grupo ainda passou pela cidade de Morro Velho (MG), com o intuito de coletar material para a pesquisa folclórica, onde, segundo Cabral, - citando um depoimento de Donga a sua filha Lygia Santos -, tiveram o primeiro contato com a embolada mineira. Ainda segundo Cabral, os Batutas voltam para São Paulo, passando por Jundiaí e São João da Boa Vista, retornando em maio de 1920 para o Rio de Janeiro. Esta narrativa que apresentei sugere que nestas viagens os Oito Batutas foram tratados pela imprensa sob a ênfase do caráter “autenticamente sertanejo”, traduzido pelo repertório de gêneros musicais regionais, indicando de forma geral a expressão do nacional. É neste sentido que as narrativas que tratam destes eventos se direcionam, além do destaque dado à recepção positiva do público, os grandes êxitos das apresentações e os louvores aos excepcionais músicos, sobretudo Pixinguinha. Neste sentido, por exemplo, Martins (2009: 97) afirma: “os jornais das cidades por onde passavam se rasgavam em elogios à música dos Batutas”, e continua, “a voz que saiu das matérias de jornal nesta turnê de 1919/1920 foi uníssona: os Batutas representavam a verdadeira cultura musical nacional e a executavam com patriotismo”. Bessa (2005) também destaca o caráter não-racista da recepção jornalística da turnê em São Paulo “onde, aliás, a cor dos Batutas parece ter sido um atrativo a mais, evocando os „pretos de verdade‟ de Afonso Arinos”, o que, segundo a autora, seria diferente da imprensa carioca. Contudo não se deixa claro que estas impressões uníssonas são devidas provavelmente aos jornais escolhidos por Almirante, e nem mesmo que os próprios trechos selecionados são em sua maioria produtos publicitários e

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propagandas. Não é que tenha sido apenas uma recepção dos jornais e do público aos Batutas nestas direções, mas sim, houve ações por parte dos vários atores (dentre eles, os próprios músicos) participantes destas viagens no sentido de imprimirem estas associações e representações em relação ao grupo. O que me parece é que se explicita aqui uma campanha publicitária - que Menezes Bastos (2005) identifica como uma das características da viagem do grupo a Paris - muito forte e contundente em relação ao grupo e sua musicalidade, envolvendo estes temas e associando-os ao nacionalismo. O que estes jornais apontam é realmente isto, porém, estas são em sua maioria matérias publicitárias, cuidadosamente recolhidas por Almirante e reproduzidas em articulações narrativas posteriores que as interpretam por esta mesma ótica em função do mesmo sentido. Inicia-se de fato, em gênese, associações muito poderosas na direção da representação da nação via arte popular (regional e negra), composta pelo englobamento das regionalidades pelo âmbito da capital urbana, o Rio de Janeiro. É possível identificar alguns momentos que de forma geral padronizam as notícias, contendo as mesmas informações, o que aponta para uma formatação prévia, que parece não ser fruto de elaboração dos jornais em si, mas que estes recebiam este material (em visitas e audições nas redações) e o publicavam. Isto parece ocorrer em relação a vários eventos da trajetória do grupo e suas respectivas coberturas jornalísticas, o que parece caracterizar uma consciência estratégica sobre as possibilidades de uso do aparato propagandístico dos jornais para produzir uma imagem específica sobre o grupo, que neste momento está encarnando o sentimento nacional, via associação ao “sertanejo” e “típico”. A história contada nesta lógica enfatiza, sobretudo, um dos âmbitos das viagens que é o das apresentações, ficando outros quase que obscurecidos, como o das pesquisas e coletas folclóricas, as ligações e laços sociais estabelecidos, as estratégias desenvolvidas e aplicadas no caminho percorrido, enfim, uma infinidade de outros âmbitos que constituem as representações e significados associados ao grupo e sua arte.

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2.2 – Breve pausa no Rio Chegando ao Rio de Janeiro em maio de 1920, Os Oito Batutas logo se inserem como atração na opereta de Danton Vampré111 e Leonardo Deodato, chamada “Flor Tapuya”, com estréia em 16 de junho de 1920 no Teatro São Pedro, da empresa Pascoal Segreto112. Pequenos anúncios sobre a estréia começam a ser veiculados já desde maio, ao mesmo tempo em que já se anunciam os preparativos para as programações de recepção aos visitantes ilustres, o Rei Alberto da Bélgica e sua família, fato que será a grande repercussão durante o segundo semestre de 1920. Também está de visita ao Brasil neste período, se apresentando no Teatro Municipal, o músico erudito Arthur Rubinstein, que será anos mais tarde amigo e incentivador de VillaLobos em sua carreira internacional,113 empreendida a partir de 1923, iniciada com sua viagem a Paris, patrocinada também por Arnaldo Guinle. No domingo do dia 6 de junho de 1920 encontrei uma nota sobre a “visita do Rei Alberto” no jornal Gazeta de Notícias que noticia a visita de Arnaldo Güinle ao Presidente da República onde se lê: 111

Segundo Mariano (2009: 40), Danton Vampré foi um dos revisteiros paulistas de maior destaque na segunda metade dos anos 10 e início dos 20. Entre suas peças, “São Paulo Futuro”, de 1914, é considerada a primeira revista paulista de grande sucesso nacional e foi encenada em várias capitais. Para mais sobre Vampré e o teatro em São Paulo, Cf. Sábato Magaldi (2001). 112 O Teatro São Pedro foi um dos redutos do teatro erudito no final do século XIX. A partir da criação do Teatro Municipal, que se destinou às apresentações dos espetáculos considerados eruditos, os gêneros populares foram se concentrando em outros locais da cidade, principalmente a praça Tiradentes. Paschoal Segreto, conhecido como o grande homem dos divertimentos públicos cariocas (mas também dono de várias casas de espetáculos no interior e na capital de São Paulo, Niterói e outras cidades) passou a concentrar nos estabelecimentos arrendados por ele nesta praça e arredores - entre eles o Teatro São Pedro e São José -, atividades dedicadas a uma forma teatral mais popular, o teatro ligeiro. A empresa Pascoal Segreto vinha de uma grande experiência com o mercado do entretenimento cinematográfico e com a concorrência dos cinematógrafos da região da Avenida Central (atual Rio Branco), Segreto partiu para o ramo do teatro, trazendo consigo uma lógica de mercado, com peças de menor e rápida produção, num ritmo quase industrial, conhecidas como o teatro por sessões. Segreto era dono também da Companhia Nacional do São José, sempre trabalhando com o conceito de entretenimento a preços populares. Os Segreto têm um papel fundamental para a formação do teatro musicado e cômico no Brasil. Sobre Pascoal Segreto, Cf. verbete em Fernão Ramos (1997: 503-504) e Martins (2004). Sobre a influência do teatro por sessões, popularizado por Segreto no teatro de revista, Cf. Valadares (1998). 113 Conforme Flechet (2009), em sua homenagem, Villa-Lobos escreveu seu Rudepoema (1926). Sobre a relação com Villa-Lobos ver também Kater (1987).

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O Fluminense F. C. quer prestar seu concurso. A tarde o senhor Presidente da República recebeu ontem em conferencia, uma comissão de diretores do Fluminense Football Club, chefiada pelo Sr. Dr. Arnaldo Güinle, seu presidente. A saída do Catete, disse-nos o Sr. Guinle: - Viemos expor ao chefe da Nação o desejo do Fluminense collaborar na recepção dos soberanos Belgas. Lançamos a idéia a Sr. Ex. que preliminarmente achou louvável o nosso intuito. É um programa complexo que bem poderá patentear a nossa cultura aos olhos do Rei herói. É possível entretanto que surjam exigências protocolares. Esperamos porém, que o protocolo não nos impossibilite de levar a diante o plano do Fluminense que nos trouxe aqui. (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 06/06/1920) (grifos meus)

Uma semana depois, no dia 13 de junho, sai no mesmo jornal a nomeação da comissão de recepção ao Rei Alberto, sob a presidência do Ministro de Relações Exteriores, Dr. Azevedo Marques e, entre os demais, Arnaldo Guinle. Isto é interessante, pois, como veremos, Os Oito Batutas se apresentaram para a família real belga, que chegou ao Rio de Janeiro em 19 de setembro de 1920, sendo provavelmente Guinle o articulador do evento. Vale salientar aqui a acessibilidade de Guinle aos níveis governamentais do Estado, com a particularidade de uma relação específica para além de um contato formal ou compromisso político partidário em si. Guinle representa um setor, de certa forma “fora do Estado”, que tem poder para propor ações de relevância diplomática para a política de relações exteriores em um momento de grande importância, como a da chegada do Rei Alberto114. Guinle ainda menciona sua preocupação com o protocolo dos eventos, esperando que estes não prejudiquem suas intenções, ou seja, tem-se em mente certo controle dos protocolos em prol de uma demonstração da “nossa cultura 114

Pensando na importância da dimensão simbólica para se constituir o conceito de Estado (cf. Geertz, 1991), ações como estas apontam para atores como Guinle, como atores “dentro do Estado”.

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ao Rei Herói”, o que não exclui provavelmente a necessidade de um drible protocolar em último caso. Mas enquanto o Rei não chega, vamos acompanhar outros rastros da atuação dos Batutas. Na Revista Careta115 de 12 de junho de 1920, noticia-se uma apresentação do grupo no Palmeiras A. Club, local de elegantes festas de pessoas ricas da cidade do Rio. Esta nota em Silva & Oliveira Filho (: 38) aparece como evento da gênese do grupo, como prova de que já de início o grupo “agradou em cheio,... e tornou-se moda contratá-los para tocar nas festas elegantes”. No entanto, nesta narrativa não se contextualiza que isto se dá um anos depois da criação do grupo, depois das experiências das viagens ao interior. Ou seja, há toda uma bagagem experiencial e uma gama de associações importantes que dão legitimidade e distinção às ações dos músicos. A estréia da opereta Flor Tapuya é divulgada em vários jornais, salientando um grande elenco onde a estrela principal é a famosa vedete Abigail Maia116. Chama-se a atenção do público para a estréia que contaria “com a assistência do Sr. Presidente da República, Ministros de Estado e altas autoridades do país e diretores de todos os jornais diários desta capital”, como noticiou a Gazeta de Notícias (13/06/1920, RJ) e outros jornais. A participação dos Batutas é destacada como “cantores e musicistas sertanejos” em “bailados característicos” sendo as “danças típicas”, “do parafuso”117, “dos manobreiros”118 e o “autêntico reisado” 115

Esta revista circulou de 1908 a 1960 e foi fundada pelo jornalista e empresário Jorge Schmidt que a dirigiu até 1935. Para Nogueira (2010), ela pode ser apontada como exemplo de um representante de uma coletividade ansiosa por novos hábitos e costumes, assim como de uma imprensa que se queria em dia com as novas formas de abordagem da notícia, sendo caracteristicamente uma revista de variedades. O autor destaca sua condição técnica de impressão e de ilustração que possibilitavam a circulação de um periódico muito ilustrado, com charges, caricaturas e fotogramas, com ênfase no humor. 116 Atriz, cantora, bailarina de grande destaque no início do século XX, trabalhando em inúmeras companhias de comédias e revistas antes de criar sua própria empresa, a Companhia Abigail Maia, em parceria com seu marido Oduvaldo Vianna. Sobre Abigail Maia, cf. Hollanda, Bicalho e Moran (1991). 117 De acordo com Câmara Cascudo, o parafuso seria uma parte prestigiosa do maxixe, sendo passos de dança do sul de Pernambuco, da zona do açúcar. O autor descreve a dança como: “uma espécie de samba, onde homens e mulheres bailavam em roda, cantando. No final dos versos, fazem uma pequena série de voltas, terminadas por um „stacato‟ e batida forte de pé. O estribilho-refrão denomina o baile: „Parafuso, fuso, fuso, fuso. Roda, fuso, fuso, fuso, Torna a rodar!

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os principais números119. Após a estréia no dia 16/06/20 os jornais publicam suas avaliações da peça. Dia 17/06/1920, a Gazeta de Notícias publica a crítica da peça assinada por “O. M.” que fala do teatro lotado e da expectativa do público despertada pelos “reclamos publicados”, sendo que para ele “não se pode negar que Flor Tapuya agradou (...), a peça tem muito sal”, mas, contudo, “annunciada como peça puramente regional não satisfez a expectativa”. O poema dos jovens poetas que se queria “característico do sertão” não alcançou êxito para o crítico, ainda que ele reconheça os esforços para isso. Também a música, ainda que bem executada, “não sugeria saudades do phraseado sertanejo, cheio de propriedade natural”120, assim como os personagens não corresponderam, para o crítico, ao “sentimento sertanejo”. Porém, sobre Os Oito Batutas ele foi contundente. “As palmas foram raras, exceto quando se apresentaram os Batutas, os conhecidos músicos do Cine Palais. Seus números foram os únicos que mereceram „bis‟ e prolongadas ovações”, salientando também a boa apresentação de Vicente Celestino “com sua educada voz” e encerra a nota dizendo: “Os coros bons e bem vestidos. O „miseen-scene‟ irrepreensível. Flor Tapuya ficará, por certo, no cartaz. Tem muito sal, cópias bonitas e o sucesso dos „Oito Batutas‟” (O. M.) (Gazeta de Notícias, RJ, 17/06/1920). Neste mesmo dia, o Correio da Manhã (RJ, 17/06/1920) faz uma nota tímida sobre a peça, sem destaque para os Batutas, enfatizando Abigail Maia e avaliando o enredo da opereta como sendo “os Capuletos e Montegui do sertão sergipano!”.

Ai! Que a gente veio ao mundo Somente pra vadear! Ai! Roda fuso, fuso, fuso! Parafuso, fuso, fuso, fuso!”(Cascudo (1998: 672). O autor ainda cita o parafuso como parte das quadrilhas do sertão nordestino, assim como brincadeira infantil em São Paulo. Nas notas explicativas ao depoimento de Donga ao MIS-RJ em Fernandes (1970), a dança do parafuso aparece como “número musical em que o conjunto executava trajando roupas em forma de parafusos” (: 97). A meu ver, a referência às danças nordestinas me parece mais plausível, sobretudo se tratando de um período logo posterior à chegada dos Batutas das viagens-pesquisa ao nordeste brasileiro. 118 Diferentemente da dança do parafuso, não encontrei nenhuma menção a este número. 119 A Gazeta de Notícias (16/06/1920) na véspera da estréia traz toda a programação do espetáculo. 120 Vale salientar de que a música da opereta era composta pelo compositor português Luis Quesada.

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No dia seguinte, o jornal O Paíz (RJ, 18/06/1920) fala da peça sem muito entusiasmo, com pouco realce para a “orchestra rústica” dos Batutas, reforçando o caráter “simples” da peça e de que “para platéias populares a que foi destinada Flor Tapuya preenche perfeitamente o seu fim”, ou seja, de acordo com o colunista, para “os populares” estava bom! Já o A Noite121 deste mesmo dia faz uma avaliação muito positiva da peça, destacando suas “características sertanejas”, onde aparece no final do artigo de modo tímido que “a troupe nacional dos Oito Batutas que entram na peça, fez sucesso com suas músicas e canções características”122 (A Noite, RJ, 18/06/1920). Flor Tapuya segue em cartaz sendo noticiado de forma geral apenas nos anúncios comerciais da Agência Pascoal Segreto, tendo sua última apresentação, no dia 1 de agosto de 1920, sido noticiada pelo J. do Comércio (RJ, 30/07/1920), que informa a sua substituição pela opereta “Vida de Caboclo”, de Mario Monteiro, escrita sobre um conto de Coelho Neto, com músicas do maestro Paulino Sacramento, que também era regente da orquestra do Teatro S. Pedro. A narrativa de Silva e Oliveira Filho (1979: 39) sobre esta opereta é bastante reduzida, informando que “Pixinguinha musicou a sua primeira peça teatral, a opereta Flor Tapuya”. Porém, não se conta como se dá a passagem da música original, composta pelo português Luis Quesada, para a versão posterior de Pixinguinha. Isto só surge no depoimento de Donga (1969), que Cabral (1978, 1997, 2007) reproduz, baseado na transcrição de Fernandes (1970). Donga informa que durante as apresentações houve o desaparecimento do compositor português, que levou consigo as partituras da peça, o que acarretou diversos problemas por mais de uma semana, ficando os artistas em péssimas

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Jornal carioca diário e vespertino, fundado em 1911 por Irineu Marinho. Sua primeira fase durou até 1925, tendo uma linha política oposicionista. De modo geral, todos os movimentos tenentistas da década de 1920 também foram apoiados pelo A Noite, que era muito próximo das propostas levantadas pelos grupos urbanos e pelas oligarquias dissidentes. A partir de 1925, Irineu Marinho, após algumas desavenças com o acionista Geraldo Rocha, acabou vendendo o jornal a este último, que mudou bastante a linha editorial do periódico. Cf. Luca (2008) e verbete de Marieta de Morais Ferreira, no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro DHBB da FGV, disponível em: http://cpdoc.fgv.br. 122 Este tipo de nota tímida – pequenas notas de passagem no meio de outras informações – por vezes aparece como destacadas nas articulações narrativas posteriores, sobretudo as dos anos 70. Cabral (1978, 1997, 2007) cita esta nota. Farei algumas considerações adiante sobre estas citações.

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condições e sem receber123. Donga e China encontram Vampré e Deodato desolados pela situação e, ao tomar conhecimento, Donga teve a idéia de levar o livreto da peça para Pixinguinha que de pronto escreveu novas composições para Flor Tapuya.124 Estas narrativas não têm uma marcação temporal para que se possa saber em que momento da peça deu-se a mudança nas suas composições musicais e quais as avaliações que foram dadas sobre isto. A partir dos fragmentos jornalísticos por mim encontrados, nada neste sentido pôde ser percebido, além de chamar a atenção o fato de que, no geral, os jornais continuam anunciando a opereta como musicada por Luis Quesada até o último dia, como mostra o J. do Comércio de 30 de julho de 1920, um dia antes da apresentação final. Em relação a estes eventos, temos uma narração articulada em que se destacam particularidades dos personagens Donga e Pixinguinha, o primeiro como articulador administrativo e o segundo o artista genial. Esta dicotomia informa algo em relação a uma concepção de arte em que o seu produtor, o artista, está alocado no plano da inspiração, da Donga fala em seu depoimento: “Atuamos nessa peça e tal e de repente, depois de um espaço de meses de apresentações, aquela coisa toda, foi caindo o negócio. Foi caindo e era preciso uma renovação ou uma coisa qualquer para ganhar força.” (Donga, 1969). Isto é transcrito em Fernandes (1970: 87) como: “Atuamos durante muito tempo, foram meses de apresentações. (...) Ocorre que depois de um período de decréscimo de afluência, fato que motivou uma renovação no espetáculo, a peça foi suspensa de repente.” 124 Cabral (1978, 1997, 2007) complementa sua narrativa sobre este evento, enfatizando a admiração de Donga por Pixinguinha como gênio, citando a fala de Donga que teria dito: “eu acho o Pixinguinha um gênio. Não é por exibição não, pois não sou erudito, mas aconselhei muito Pixinguinha. Outros também aconselharam”. Esta transcrição é exatamente a que está editada em Fernandes (1970), o que, portanto indica a fonte usada por Cabral. No entanto, o que ouvi na gravação do MIS-RJ deste depoimento é um pouco diferente: “eu acho o Pixinguinha um gênio. Gênio! Não é por erudição não, não é que ele seja erudito não. O Pixinguinha nunca... Eu aconselhei, outros aconselharam. Porque nós nos queremos como irmãos, de modo que eu disse ao Pixinguinha numa ocasião que eu me lembro bem. Tinha o Fausto, flautista que ganhou prêmio e medalha de ouro e tal e eu disse: Você podia procurar o Fausto que ele já me falou que tinha vontade que você se aperfeiçoasse e tal. Ele foi lá, deu duas aulas e não foi mais!” (Donga, 1969). Estas re-articulações de termos podem indicar coisas diferentes. Na primeira versão da narrativa, é Donga que se reconhece como “não erudito”, mas que mesmo assim aconselha Pixinguinha a estudar. Na segunda narrativa (a que eu escutei), Donga salienta que Pixinguinha nunca foi “erudito” e que sua genialidade não advém disto. O que é importante é que temos aqui termos que irão qualificar Pixinguinha como gênio. Mas omitir da narrativa de Donga a negação de Pixinguinha como músico erudito – este termo indicando entre outras coisas o acesso ao mundo da escrita musical – possibilita construir a persona deste como conhecedor do saber erudito, ainda que adquirido de modo espontâneo e não acadêmico e de quebra, Donga é remetido ao não-erudito. Infelizmente não pude precisar quem seria o tal Fausto que Donga cita. 123

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intuição, dimensão cognitiva própria do gênio escolhido que é dotado de um poder ontológico que o capacita a contemplar a essência do mundo. Estamos na acepção romântica do gênio como sujeito extraordinário. De certa forma é o gênio Hegeliano “aquele que tem o poder geral da criação artística bem como a energia necessária para exercer tal poder com o máximo de eficácia” (HEGEL, 1985: 303). Já o administradorextrategista é apenas o mediador do ato criativo do gênio artista com o mundo exterior e suas contemplações. Tudo isto pode indicar alguns modos de se pensar o modo pelo qual estes dois personagens vão sendo construídos historicamente, Pixinguinha “endeusado” no gênio criativo e Donga “endemoniado” como usurpador da criação alheia, sendo a controvérsia do registro e gravação do “Pelo Telefone” seu exemplo primeiro. Rápida incursão ao evento do “Pelo Telefone”. Donga foi o compositor do famoso samba “Pelo Telefone”, que foi registrado como samba em 1916 e gravado em 1917 e amplamente reconhecido como o primeiro samba gravado. A controvérsia se instala desde a contestação deste pioneirismo até a sua legítima autoria, sendo algumas das contra-posições a Donga veementes em relação à acusação de plágio por parte deste compositor, que teria roubado uma expressão da manifestação coletiva ligada às festas afro-religiosas, transportando-a (numa profanação) pelo registro fonográfico ao mundo do mercado. Isto seria uma contaminação da pureza da manifestação espontânea em uma atitude egoísta e interesseira. Estas acusações perpassam muitos autores, mas têm em Francisco Guimarães – o Vagalume (1978 [1933]) - e Henrique Foréis Domingues – o Almirante (1969) - seus principais articuladores. Flávio Silva (1975) faz um estudo aprofundado sobre o processo de criação desta canção e suas implicações, numa dissertação para a EPHE de Paris intitulada “Origines de la samba urbaine à Rio de Janeiro”. Silva demonstra que tanto Donga quanto o jornalista Mauro de Almeida, co-autor responsável pela letra do samba125, reconhecem que a 125

Silva (1978) apresenta duas cartas de Mauro de Almeida em que esclarece não ser o autor das letras. Durante minha pesquisa tive a oportunidade de dialogar (via email) com Flávio Silva, que gentilmente me mandou sua tese e vários materiais usados em seus trabalhos. Em relação a estas cartas, disse-me Flávio que ao mostrá-las a Ary Vasconcelos nos anos 70 este exclamou surpreendido: "Mas então, ele está dizendo que o Donga também não é autor da música!?". O trabalho de Silva causou controvérsia, sendo um exemplo disto a discussão

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composição se deu através de trechos de outros temas que estes recolheram e re-articularam. Mas, Silva não faz com isto uma acusação a Donga, reconhecendo seu papel de compositor e pioneiro, tanto que afirma: Etymologiquement, "compositeur" veut dire celui que compose des éléments séparés ou même disparates. Le compositeur n'est pas necessairement créateur. Le compositeur de Pelo Telefone, c'est Donga. C'est lui qui eut l'idée de grouper des éléments séparés, ou que avaient peut-être été réunis un moment durant un partido alto. C'est lui qui eut l'intuition du succés que ce regroupement pouvair avoir. C'est lui qui a lutté dès le début, pour vendre cette composition. Sans Donga, il est très probable que ces fragments auraient été oubliés. (Silva, 1975: 334) 126.

Sandroni (2001: 118-130) também faz uma interessante análise da canção Pelo Telefone, utilizando-se bastante dos estudos de Silva. Para Sandroni, “Donga pode não ter sido o „autor‟ de „Pelo Telefone‟, como alguns anos depois se dirá no Rio de Janeiro que Noel Rosa é o autor de „Feitiço da Vila‟. (...) é ele o autor da história, é ele quem inventa a canção e assim fazendo inventa o samba carioca em muitas das características que veio a guardar até hoje. Para usar a expressão de Michel Foucault, este é o primeiro momento da

ocorrida no II Encontro de Pesquisadores de Música Popular Brasileira no Rio de Janeiro na década de 70. Como defensores de Donga estavam, Lygia Santos (sua filha) e Edigar de Alencar, autor de “Nosso Sinhô do Samba”, que teriam ficado muito magoados pelas apresentações de Silva, levantando-se enfaticamente em favor de Donga. No entanto, lendo a tese de Silva (1975), tenho a impressão de que não há nenhuma intenção de diminuir o mérito de Donga no processo de estabelecimento do gênero musical samba. 126 “Etimologicamente, „compositor‟ quer dizer aquele que compõe elementos separados ou mesmo díspares. O compositor não é necessariamente criador. O compositor de Pelo Telefone, é Donga. É ele que teve a idéia de agrupar elementos separados, ou que tinham sido reunidos talvez num momento durante um partido alto. É ele quem teve a intuição do sucesso que este agrupamento poderia ter. É ele quem lutou desde o começo, para vender esta composição. Sem Donga, é muito provável que estes fragmentos teriam sido esquecidos.” (tradução minha).

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constituição de uma „função autor‟ no universo do samba (...)”. (Sandroni, 2001: 120).

Toda esta polêmica acabou englobando e de certa maneira absorvendo a carreira de Donga que ficou em grande medida seu prisioneiro. Em seu depoimento ao MIS em 1969, fica claro tanto a insistência dos entrevistadores nesta controvérsia quanto a impaciência e desconforto de Donga em relação a isto tudo. Voltando novamente à opereta Flor Tapuya127, chama a atenção que sua apresentação no dia 13 de julho de 1920, foi noticiada por vários jornais128 como uma festa em homenagem à “Acção Social Nacionalista”. O espetáculo se complementava com a conferência do poeta Carlos Maul, membro da A.S.N., com o título “O Triumpho do Theatro Nacional”, seguindo com a participação dos Oito Batutas “em número característico” e o barítono Enzo Lombardi cantando o “prólogo de Pagliacci” (ópera) e “Minha Alma”, canção brasileira de Marcelo Tupinambá. Conforme Oliveira (1999) este movimento A.S.N. é uma vertente bastante intensa do movimento nacionalista brasileiro que terá nos anos posteriores ligações muito próximas com grupos fascistas europeus e irá se instituir como gênese da “Ação Integralista Brasileira” de Plínio Salgado, na década de 30 (Oliveira, 1990)129. As versões narrativas de Cabral (1978, 1997, 2007) fazem a exposição sobre Flor Tapuya a partir de notícias atribuídas ao jornal A Noite. Além da nota de avaliação do jornal sobre a estréia da peça – vale ressaltar, uma nota pequena - já citada anteriormente, Cabral cita outras Em seu depoimento, Donga (1969), ao se referir à “Flor Tapuya”, um dos entrevistadores pergunta: “Ali na Sebastião Oliveira, a gafieira Flor Tapuya?” Responde Donga: “Não! Deus me livre. Eu nunca trabalhei em gafieira!!” O que provoca risos dos presentes pela confusão do entrevistador. 128 Encontrei as mesmas notas nos seguintes jornais: Jornal do Comércio, Jornal do Brasil, Gazeta de Notícias, O Paíz e A Noite. Ainda pesquisei o Correio da Manhã, que não noticiou o evento. 129 Esta nota da apresentação em homenagem à A.S.N. só aparece nas narrativas de Cabral na segunda e terceira edição (1997 e 2007 respectivamente), sem, contudo haver qualquer informação sobre a natureza desta organização. Ainda que não se possa afirmar qualquer ligação direta entre os músicos e a A.S.N., vale indicar possíveis acionamentos nas relações de proximidade entre os pensamentos nacionalistas desta natureza com a arte produzida pelos Batutas. 127

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duas que infelizmente não consegui encontrar mesmo com uma consulta detalhada ao periódico. A primeira cita uma interrogação do jornal em relação ao número da “dança do parafuso”130. O que é a Dança dos Parafusos? – perguntou o jornal „A Noite‟ e a resposta foi de Donga: - É muito usada no Norte, nas noites de Natal, e é executada por pastorinhas. Deodato a colocou na „Flor Tapuya‟ com grande propriedade. Mas o número que de que muito esperamos, não é esse. São emboladas da nossa lavra. Mas o repórter de „A Noite‟ não sabia o que era embolada. - São cantorias sertanejas – explicou Donga. – Escrevemos esses números – acrescentou – sob o tema proposto no poema dos autores. Iremos agradar. A verdade, entretanto, é que por toda parte nossa orquestra tem causado grande sucesso. Agora mesmo rejeitamos um contrato para a Europa. (Cabral, 1978: 36, 1997: 58, 2007: 66)

Já a segunda nota, apresenta uma carta não identificada ao A Noite, se referindo à atuação dos Batutas na opereta. Na primeira versão (de 1978), Cabral cita a fonte como sendo do dia 25 de julho (portanto, seis dias antes da última apresentação) e curiosamente, nas demais versões (1997, 2007), o autor apenas afirma que seria “dias depois da estréia”, sem citar exatamente quando teria sido publicada a carta, que dizia: Sr. Redator. Assisti à representação da opereta nacional „Flor Tapuya‟. Fiz bem porque, animando o nosso teatro, igualmente me divirto. Mas o espetáculo me sugeriu um reparo que peço ao jornal „A Noite‟ transmitir nas suas colunas. Trata-se da exibição dos Oito Batutas, os

De acordo com as “notas explicativas” ao depoimento de Donga de 1969 no livro do MIS (Fernandes, 1970: 97), feita por Lygia Santos (filha de Donga), esta dança era um “número musical que o conjunto executava trajando roupas em forma de parafusos”. 130

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festejados músicos cantores patrícios.131Esta troupe foi contratada como um número de atração para a peça. No entanto, seus trabalhos não têm o brilho a que as suas aptidões fazem jus, devido à intromissão dos artistas e coristas da companhia do São Pedro, que não querem perder a atenção do público. Mas estes têm muitas cenas onde aparecem. Não era justo que deixassem seus colegas Oito Batutas se exibirem à vontade? (Cabral, 1978: 36; 1997: 58; 2007: 66)

Seria importante ter encontrado estas notas, porque, pela leitura que fiz do A Noite, minha impressão foi de que este jornal não dá destaque tão grande à participação dos Batutas em Flor Tapuya - mesmo na nota já citada de crítica à peça -, pois são notas pequenas. Isto é significativo na medida em que este jornal terá uma atitude incisiva e comprometida com a promoção do grupo, começando logo após as viagens do grupo ao nordeste, como se verá à frente. Isto apontará para a entrada marcante de Irineu Marinho (proprietário do A Noite e do futuro O Globo) nas relações com a trajetória do grupo. Vale destacar os episódios da Flor Tapuya132 como interessantes para Os Oito Batutas (digno de serem lembrados nas narrativas sobre o grupo), na medida em que deu visibilidade por um bom período, com 131

Esta parte é excluída das duas últimas versões de Cabral (1997, 2007), que apresenta a carta se referindo que seu escritor “não gostou do tratamento dado pela direção do espetáculo aos Oito Batutas”. 132 Menezes Bastos, orientador deste trabalho, me chamou a atenção para os significados da palavra Tapuya. Segundo Cascudo (1998: 856), designava o indígena do interior do país, que não falava o tupi. Para o dicionário Houaiss (2009), também seria a denominação dada ao indígena subjugado ao branco, que teria perdido alguns traços de sua própria civilização; ou o filho de branco e índia, ou seja, mestiço; e ainda de modo pejorativo, denominaria o caboclo, rude e ignorante. Menezes Bastos (2004, 2005) sugere que em torno dos anos 20, a categoria “música indígena” apontava para a “música nacional”. Neste sentido, o título da opereta – Flor Tapuya – e as considerações feitas a ela (incluindo sua conexão com a ideologia nacionalista) parecem confirmar esta sugestão. Note-se que na década seguinte o cenário mudando radicalmente, os índios sendo remetidos para os confins da brasilidade, por assim dizer “esquecidos”. Ao questionar-se sobre o lugar do elemento indígena na constituição de um Brasil mestiço, Menezes Bastos (2005b) discute a articulação perspicaz – a despeito de uma ilusória falta de congruência - entre os dois sistemas de pensamento brasileiro, o social – que compreende o mito das três raças – e o musical – onde a contribuição indígena é suprimida. Ao desvendar este “jogo de espelhos” em que “o que um registra o outro esquece”, Menezes Bastos questiona o universo de representações de um Brasil musical em que a contribuição ameríndia é apagada.

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chamadas publicitárias constantes em vários jornais, onde seus nomes apareciam associados a “recordes de aplausos” e ao “ininterrupto sucesso de Os Oito Batutas nas suas cantigas regionais” (Gazeta de Notícias, RJ, 24/06/1920). Chegando às últimas semanas da “opereta sertaneja”, os números voltaram-se ainda mais para o apelo a “typos característicos do norte”, sendo os Oito Batutas destacados em seus “desafios nortistas à viola”133 (J. do Comércio, RJ, 20/07/1920). É interessante esta relação com o “norte” do país, pois, como sugere Menezes Bastos (2004b), no processo de elevação do samba carioca como gênero nacional por excelência - associado ao mundo urbano – deu-se de certa forma uma vitória do Rio de Janeiro “moderno” sobre a “velha” Bahia, o que acabou jogando esta última, relacionada genericamente como “o norte”, à posição de tropo original da raiz primitiva do Brasil. Neste sentido, “o norte” aponta para o “interior” e para o “passado”, em oposição ao Rio, capital do “presente moderno”, apontando para o “exterior” em conexão com o mundo, posicionando-se no concerto das nações. Sugiro que a relação dos pólos aqui se dá por um englobamento hierárquico (Dumont, 1992). Enquanto lia sobre a peça Flor Tapuya, via concomitantemente as informações sobre os recitais de Arthur Rubinstein no Teatro Municipal no Rio de Janeiro. Ele estava em cartaz desde 19 de maio de 1920 e em 22 de junho noticia-se sua despedida. Considerando a visibilidade em que se encontravam os Batutas na época com Flor Tapuya, fiquei pensando se não seria possível algum contato entre estes e o renomado músico erudito, sobretudo devido aos interesses pelos exotismos em voga entre os artistas cosmopolitas de Paris na época. Também pela própria relação próxima dos músicos do grupo com pessoas que certamente estavam também prestigiando, senão mesmo recebendo, o visitante ilustre – Rubinstein -, como seria possível, por exemplo, a Arnaldo Guinle. Ainda que isto não passe objetivamente do plano da especulação, penso que não se pode negar a possibilidade de haver ligações muito próximas entre os personagens deste mundo artístico-musical em pauta. O que poderia ter produzido estas possíveis relações é normalmente naturalizado como irrelevante, a não ser de um ponto de vista inspirador para o erudito, como no caso de Blaisé Cendrars. 133

Vale lembrar que os Batutas ainda não haviam realizado (pelo menos ao que se sabe pelas narrativas e jornais pesquisados) suas viagens ao nordeste.

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Durante minha estadia no Rio de Janeiro, pude acompanhar alguns eventos que celebravam a carreira de Villa-Lobos, com a abertura do Ciclo de Palestras por Anaïs Flechet, - historiadora francesa, autora de “Villa-Lobos à Paris – Un écho musical du Brésil” (Flechet, 2004) -, com o tema “Villa-Lobos e a vida musical parisiense na década de 1920”. A apresentação foi estimulante, tocando temas como o nacionalismo, o exotismo, a síntese musical e as estratégias de V-L para entrada na vida musical parisiense, mas fiquei pensando durante a palestra sobre o lugar da música popular na tal “vida musical” que tanto enfatizava Flechet. Como afirmou a palestrante, V-L, que teve como mecenas Arnaldo Guinle, soube se utilizar do imaginário europeu sobre o Brasil, elaborando através das idéias de “selvagem” e “exótico” um fecundo artifício de marketing. Neste sentido, movido pelo meu interesse de pesquisa é claro, acabei perguntando sobre alguma possível relação entre as sociabilidades construídas nas passagens dos Batutas em 1922 e a de Villa-Lobos em 1923 em Paris, contando de que este último, como afirmou Flechet, soube se utilizar do imaginário europeu sobre o Brasil em sua relação com o “selvagem” e “exótico”; além da relação com Guinle como mecenas das viagens. O que tive como resposta à minha enfadonha pergunta foi uma atitude veemente da palestrante – seguida de falas até mais veementes da platéia, composta de musicólogos e músicos eruditos – da separação dos mundos: de um lado os dancings e cabarés, correspondentes às manifestações populares, e de outro os salões e teatros, palcos das Artes (com A) e da aristocracia. O que me chama a atenção não é a divisão em si, mas a veemência de seu estatuto de verdade incontestável. Ora, dicotomias desta natureza têm intrinsecamente algo de arbitrário, mas mantê-las como indissolúveis chega a ser preocupante. O que pareceu estar préestabelecendo a resposta à minha pergunta era muito mais um conceito de Arte, com A, e seu correlato Música, com M, sendo uma visão culturalista, elitista e sem dúvida equivocada, responsável pela impossibilidade de pensar este mundo correspondente permeado por relações com outros. Para encerrar o assunto, Flechet me respondeu: “minhas fontes não dizem nada sobre estas relações”, se referindo a Batutas/Villa-Lobos em Paris. Fiquei pensando se ela por acaso chegou a perguntar algo neste sentido para as suas “fontes”!134 134

Menezes Bastos (2004, 2005) e Vianna (2008) já sugerem a importância das associações entre Villa-Lobos e artistas “eruditos” franceses (e outros) com os músicos populares. Estas

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Já apontei que um dos fatos de maior repercussão na imprensa carioca do segundo semestre de 1920 foi a visita da família real Belga. Desde junho há intensa movimentação em prol de ações diplomáticas relativas à recepção aos visitantes, sendo Arnaldo Guinle um dos membros da comissão de recepção oficial. Sobre este evento, Silva & Oliveira Filho (1979: 39) conta que os Oito Batutas tocaram para os visitantes em um almoço na Cascatinha da Tijuca, por indicação de Eduardo Souto135, sem dar datas nem fontes sobre estas informações. Para Cabral (1978), os Oito Batutas tocaram para “Suas Majestades” durante um almoço oferecido pelo então presidente da República, Epitácio Pessoa, citando em complemento de sua narrativa o “desespero de Catulo da Paixão Cearense”, que não foi convidado para a apresentação e que teria manifestado sua “dor-de-cotovelo” em carta publicada na Gazeta de Notícias. Esta carta aparece na primeira edição de Cabral (1978) citada como do dia 25 de setembro. Curiosamente nas outras edições do livro a data não consta, mas a narrativa continua com os mesmos termos136. Infelizmente não pude encontrar esta carta na Gazeta de Notícias e nem mesmo nenhuma evidência nos jornais que pesquisei do período sobre o evento dos Batutas tocando para o Rei Alberto como parte das atividades oficiais. Percorri vários jornais, acompanhando as notícias e a programação oficial que era divulgada todo dia sobre o itinerário da família Real, mas não consegui ver nada onde constassem os Batutas. Houve alguns dias de muita chuva durante a estadia do Rei no Rio de Janeiro, o que levou ao cancelamento de alguns eventos oficiais programados. Ao que parece, não houve uma comunicação oficial da apresentação dos Batutas, mas, levando-se em conta a relação do grupo com Guinle (membro da comissão de recepção) - bem como outros personagens que provavelmente teriam acesso aos âmbitos do poder governante do Estado -, pode-se pensar em um drible de associações são na maioria das vezes tratadas de forma irrelevante e negligenciadas. 135 De acordo com Frota (2003: 72), Eduardo Souto foi diretor artístico da Casa Edison representante no Brasil dos selos Odeon e Parlophon -, onde inovou o mercado de discos, editando gravações de “pontos de macumba”. Em conjunto com Pixinguinha e Radamés Gnattali, participou como maestro e arranjador nos anos 20 e 30 do boom da “orquestração brasileira”, trabalhando tanto na indústria fonográfica quanto no rádio. Ver também verbete do Dicionário Cravo Albin, disponível em: www.dicionariompb.com.br (acesso em: 15/01/2011). 136 Martins (2009: 154) se utiliza desta mesma narrativa de Cabral (1997) com as mesmas articulações.

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protocolo137 em que os Batutas se inserem como apresentadores da “nossa cultura aos olhos do Rei herói”, o que indicava o desejo de Guinle (e de vários nacionalistas) desde sua primeira conversa com o Presidente da República em junho, quando da matéria da Gazeta de Notícias citada acima. Em todo caso, estes eventos podem apontar modos pelos quais a política de relações exteriores do Brasil estava permeada de ações que envolviam atores para além do âmbito da governança estatal, articulados nos interstícios das ações oficiais, possíveis através dos dribles de protocolos. Menezes Bastos (2005: 180) aponta um caráter “quase diplomático” presente na viagem do grupo a Paris em 1922, como uma missão articulada por Guinle, o empresário-mecenas; Duque (Antônio Lopes de Amorim Diniz), o dançarino-agente cultural; Lauro Müller, político e diplomata; sendo os músicos-viajantes e sua musicalidade a representação do nacional, onde a negritude é possível e até mesmo central para o ideal de nação proposto então. Chamo ainda a atenção para a ênfase no âmbito da dança nos anúncios de Flor Tapuya, que se soma como mais uma característica do caráter regional e típico da arte dos Batutas, associadas ao universo sertanejo. Tudo isto pode ser acionado como parte da experiência das viagens (que vale lembrar era parte de uma pesquisa e coleta de material folclórico em São Paulo e Minas Gerais, levada a cabo pelos músicos). Esta experiência dá de certa forma autoridade no ambiente musical carioca de então, no mínimo fornecendo “novidades” trazidas do interior, o que, aliás, acontecerá de forma explícita posteriormente em relação às outras viagens, sobretudo Bahia e Pernambuco. É curioso notar que as viagens para Curitiba, - que segundo Cabral (2007) já somavam duas em 1921 -, não indicam associações para a construção da musicalidade Batuta. Também não encontrei nas notas jornalísticas nenhuma menção a alguma característica regional associada à região sul do Brasil. Vale destacar que esta região é comumente associada aos “imigrantes”, tendo em sua constituição, brasileiros “recentes” e não “originários”. O núcleo originário do “Brasil” fica assim deslocado e associado a sua região nordeste.

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Alguns jornais identificavam um caráter não arrogante do Rei Alberto, justamente apontando suas atitudes de quebra de protocolos nos eventos oficiais.

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2.3 - BAHIA E PERNAMBUCO – A busca das origens... Sobre as viagens à Bahia (Salvador) e Pernambuco (Recife), as principais fontes de informações são os livros de Cabral (2007) e Silva & Oliveira Filho (1978), os quais narram estes eventos de forma semelhante, salientando o caráter exitoso da empreitada do grupo138, onde, sobretudo Pixinguinha (o foco das narrativas) é envolto pela áurea do sucesso e da glória139. Estas viagens têm o mesmo intuito das de São Paulo e Minas Gerais, conciliando apresentações e pesquisas folclóricas demandadas por Guinle e Coelho Neto. Conforme o programa de apresentação no Cine Teatro e Cassino Moderno de Recife, já em suas últimas apresentações no nordeste, reproduzido por Cabral (2007: 79) o elenco era assim descrito: Alfredo Vianna - (Pixinguinha) - Exímio flautista (Rival de Patápio Silva) Octávio Vianna – Barítono Brazileiro João Pernambuco – violonista e cantador sertanejo Ernesto dos Santos - (Donga) – Exímio violonista, autor dos celebres tangos “Pelo Telephone”, “Vamos deixar disso” e “Você me acaba” Nelson Alves- (cavaquinho) Jacob Palmieri (Pandeirista) João Thomaz – (Réco-reco) José Monteiro – (Ganzá)

Portanto Raul Palmieri e Luís Pinto – que são da formação original e estavam em SP e MG – foram substituídos por J. Thomaz e José Monteiro, não sendo possível saber se José Alves de Lima ainda faz parte da equipe como secretário. O programa também destaca que o grupo se exibiu para o Rei Alberto da Bélgica e que “receberam Silva & Oliveira Filho assim resumem a viagem. “O grupo obteve enorme sucesso em Recife. Só houve na imprensa referências elogiosas aos Batutas” (1979: 49). 139 Os fragmentos dos jornais são articulados nas narrativas destes livros neste sentido. Assim como em relação às viagens a São Paulo e a Minas Gerais, seria muito importante uma pesquisa intensa de varredura de fontes primárias sobre estas viagens-pesquisa, o que poderia apontar novos rumos sobre as recepções da imprensa e as representações sobre o grupo e sua musicalidade. Isto aqui fica apenas como apontamento para estudos futuros. 138

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d‟aquelle soberano vibrantes applausos”, caracterizando-os como “interessante e única troupe genuinamente nacional”. É interessante que ainda que haja indicação sobre a característica do “sertão”, a foto do grupo reproduzida no programa não é aquela que remete ao Grupo do Caxangá em vestes sertanejas e chapéus nordestinos, mas sim de ternos escuros e gravatas. O grupo permaneceu em Salvador entre 14 e 26 de junho de 1921, seguindo para Recife onde estrearam em 3 de julho, permanecendo até dia 18. De acordo com as narrativas, pelo sucesso que o grupo obteve, acabaram inspirando a formação de conjuntos locais como os “Turunas Pernambucanos”, do qual eram integrantes o cantor e violonista José Calazans, (o Jararaca), o saxofonista Severiano Rangel, (o Ratinho), o violonista Cipriano Silva (Cipoal), o cavaquinhista Robson Florence (Sapequinha), o pandeirista Ademar Adour (Cobrinha), Artur Costa (Sabiá) e o violonista Romualdo Miranda (Bronzeado), grupo que já no ano seguinte, em 1922, viajou ao Rio de Janeiro, onde fizeram uma temporada no Cine Palais (aquele da estréia dos Batutas) e em seguida participaram das comemorações do Centenário da Independência, numa trajetória muito semelhante a dos Batutas, inclusive realizando viagens nacionais e uma internacional a Buenos Aires140. No nordeste o grupo tem em seu repertório, portanto, tanto os números caracterizados pela moda sertaneja – sendo o sertão algo genérico, que vai do interior do nordeste ao sudeste (e não suas capitais) – quanto às musicalidades específicas do âmbito urbano carioca, como os sambas, maxixes, tangos e os choros. Neste contexto não é João Pernambuco o personagem acionado como chave de apresentação do grupo, como em São Paulo, mas Pixinguinha (via virtuosismo na flauta) e Donga (via sucessos carnavalescos de músicas gravadas, como “Pelo Telefone”). De acordo com Silva & Oliveira Filho (1979: 50) a última 140

Bessa (2005) ainda aponta outros grupo que também se inspiraram no sucesso dos Batutas, como o conjunto também pernambucano “Turunas da Mauricéia”(1927), e o “Bando de Tangarás” (1929), este contando com personagens ilustres para a consolidação do “samba de segundo tipo”, ou “do Estácio”, como Almirante (voz e pandeiro), Noel Rosa (violão), João de Barro (voz e violão), Henrique Brito (violão) e Alvinho (violão e voz). Estes conjuntos se constituíram associados ao mundo sertanejo, moda que se espalhou por todo o país de modo rápido. Para Bessa, esta associação sinaliza as influências profundas e recíprocas entre a música folclórica rural e a popular urbana desde pelo menos os anos 1920.

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apresentação do grupo no nordeste foi em Recife no Cine Teatro e Cassino Moderno no dia 18 de julho de 1921. 2.4 – Novamente à Capital. A volta d‟Os Oito Batutas ao Rio de Janeiro marca uma nova associação intensa do grupo com o jornal A Noite, do qual é proprietário Irineu Marinho. É uma cobertura específica e permanente (quase diária) que, diferentemente dos demais jornais, visa acompanhar o grupo em si em suas apresentações, ou seja, teatros que não eram anunciados no jornal aparecem em notas com descrições destacadas dos espetáculos e não apenas como parte das programações e anúncios comerciais. A primeira nota da primeira campanha intensa em prol dos Batutas sai dia 12 de agosto de 1921, intitulada “A reaparição dos 8 Batutas”. Os „8 Batutas‟, os festejadíssimos músicos nacionaes que, no seu gênero original não têm até hoje competidores, fazem na semana vindoura, sua reaparição ao público carioca. Os „8 Batutas‟ aproveitam os quinze dias que estão nesta capital, de regresso de sua bem sucedida excursão pelos Estados do norte, não só para um justo descanso, como para fazerem a colectânea das últimas composições nortistas que trouxeram daquela viagem, e que darão agora a conhecer à platéia de nossa cidade. Os „8 Batutas‟ se apresentam de novo na Avenida, no Trianon, numa vesperal, às 4 horas de quarta-feira próxima (...). (A Noite, RJ, 12/08/1921).

As notas sobre este evento seguem diariamente, sendo no dia 15/08/1921 duas notas. A primeira tem o título, “A MÚSICA NACIONAL – Os „8 batutas‟ reaparecem ao público carioca” e conta com uma foto do grupo em trajes “sertanejos”, chamando a atenção para “os novos números trazidos do norte”. A segunda nota está na seção “DA PLATÉIA” e mais uma vez chama a atenção para: As novidades dos „8 batutas‟ Os „8 batutas‟, os aplaudidos músicos nacionaes, trouxeram de sua recente excursão ao norte

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interessantes produções regionaes de Pernambuco e Bahia. Algumas destas composições a afinada „troupe‟ brasileira dará a conhecer ao público carioca, na matineé de quarta no Trianon. São ellas, por exemplo, a canção „Espingarda‟, o tango „Cheiroso‟, a canção „Bambo-bambê‟, a valsa „Sarah Ramos‟, a canção „A-e-i-o-u‟. Em audição particular, tivemos ocasião de apreciar a excellencia desses novos números do magnífico repertório dos „8 batutas‟ (A Noite, RJ, 15/08/1921).

No dia 16/08 o jornal passa à programação do espetáculo do dia seguinte – que infelizmente não pude ler devido a defeitos na cópia – e um dia após a estréia, o mesmo jornal faz o balanço da “reaparição dos 8 batutas – o espetáculo de hontem no Trianon”, parabenizando-os, salientando que o espetáculo agradou o público, que assistiu a dois números: “Um choro na cidade nova” e “Uma noite no sertão” (A Noite, RJ, 18/08/1921). Esta divisão parece representar bem a capacidade inclusiva do tropo de passado (“interior” ou “o norte”) e do presente moderno (“exterior”, conexão com o mundo), constitutiva da musicalidade dos Oito Batutas neste período, que figura entre estas duas representações: do choro-urbano e do sertanejo-rural141. Esta especificidade é constitutiva do grupo e não interfere de forma geral na sua associação como o representante legítimo da música nacional neste período. De 22 até 29/08/1921, o grupo se apresenta em Copacabana no Cine-teatro Americano, sendo a última apresentação a estréia do número “Um Baptisado na Favela”. Já no dia 05 de setembro de 1921 o grupo vai para o Cine-teatro América representar a revista “O que o Rei não viu”, de autoria de Dias Pino e o “batuta” Otavio Vianna, o China, com músicas da autoria de Pixinguinha142. Ao que tudo indica foi apenas uma apresentação. No dia 7 de setembro de 1921 chega ao Rio de Janeiro uma comissão de intendentes da província de Buenos Aires em viagem 141

Ao que tudo indica, esta foi a forma das apresentações do grupo realizadas no nordeste brasileiro. 142 Cabral (1978: 39; 1997: 65; 2007: 75) cita de forma equivocada a notícia desta apresentação no A Noite como sendo do dia 5 de agosto de 1921.

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diplomática143. Dois dias depois o A Noite faz a cobertura do dia anterior dos visitantes (dia 8), onde se fica sabendo que os Batutas se apresentaram para os intendentes no “Hotel Itamaraty”, “sendo servido o almoço de iguarias nacionaes (...)” e segue, “era também nacional a orchestra „Os 8 batutas‟, que mereceram aplausos nas suas canções regionaes.” (A Noite, RJ, 09/09/1921). Exatamente um mês antes, no dia 09/08/1921, o A Notícia noticia o convite do Conselho Deliberativo de Buenos Aires para a Comissão do Conselho Municipal do Rio de Janeiro para uma viagem diplomática de visita à Argentina. O que fica evidente é que há uma intensificação das relações exteriores entre estes dois países, entre as quais orbitam de forma extra-oficial os músicos dos Oito Batutas. No dia 11 de setembro de 1921, segundo o A Noite, os intendentes argentinos visitam o Fluminense Footboll Club, onde provavelmente entram em contato mais uma vez com Os Oito Batutas, sendo que já no dia seguinte sai a noticia do convite dos intendentes aos músicos. Os Oito Batutas vão a Buenos Aires É possível que no próximo mês embarquem para Buenos Aires, afim de exibirem seu festejado repertório os „Oito Batutas‟. Incitaram os distinctos artistas patrícios a tal fazerem os intendentes argentinos que ora são nossos ilustres hóspedes, e que hontem os ouviram pela primeira vez durante o almoço que os (?) cariocas lhes ofereceram na Tijuca. O sucesso dos „8 Batutas‟ foi extraordinário e os legisladores municipaes platinos animaram os nossos patrícios a irem a Buenos Aires, onde seus números serão devidamente apreciados. (A Noite, RJ, 12/09/1921)

Segundo esta nota, Os Batutas teriam tocado pela primeira vez aos visitantes argentinos no dia anterior (11/09). Porém, o mesmo jornal já havia noticiado uma apresentação no dia 08/09 no Hotel Itamaraty, 143

Na Argentina, os intendentes eram dirigentes administrativos das principais cidades das províncias, semelhante ao que seria chamado no Brasil como prefeito, em relação aos estados.

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sendo, portanto este um segundo encontro, onde houve o convite para a viagem por parte dos visitantes. Coelho (2009: 64,65) ao tratar das viagens dos Batutas em 1923 para a Argentina, afirma não ter encontrado indícios sobre apresentações do grupo a representantes argentinos, sendo a viagem (de 1923) uma articulação particular entre o empresário argentino Humberto Cairo, e o grupo, contando com uma possível intermediação do cônsul argentino no Brasil. O que estas notas de 1921 apontam é uma articulação anterior, que colocou os músicos brasileiros em relação direta com intendentes argentinos, havendo certas propostas de viagem, como já havia ocorrido em relação aos eventos com a família real Belga. Além disto, tudo leva a crer que houve sim alguma participação de Guinle na apresentação do grupo no Fluminense Footbal Club, do qual ele era presidente, bem como de Irineu Marinho, com uma cobertura jornalística incansável do A Noite sobre os eventos e as apresentações do grupo. Como salientei, a campanha pró-batuta do A Noite inicia em agosto de 1921, desde a chegada do grupo ao Rio de Janeiro de volta das viagens ao norte do Brasil. Esta campanha perpassa setembro quase que diariamente, acompanhando todas as apresentações do grupo. No dia 13/09/1921, o grupo estava se apresentando em Niterói no Teatro João Caetano, num espetáculo em homenagem a Nilo Peçanha, então candidato a presidente da república144. De 13 a 23/09, no Cinema Central do Rio, voltando dia 24 a Niterói. A partir de 26/09/1923 começa-se a anunciar de modo pujante para o dia 09/10/1921 uma apresentação chamada de o “Festival dos Oito Batutas” em “homenagem ao Fluminense Football Club, na pessoa de seu presidente, Dr. Arnaldo Guinle”. A campanha jornalística em relação às apresentações dos Batutas é impressionante no mês de outubro de 1921, iniciando pela ênfase ao Festival do dia 9. São notas 144

Conforme Porto (2002), Nilo Peçanha foi Presidente da República em 1909, após a morte de Afonso Pena. De 1914 a 1917, foi Presidente do Estado do Rio de Janeiro e neste ano precede Lauro Müller no Ministério das Relações Exteriores até 1918, quando assume novamente vaga no senado federal. Foi candidato à presidência da República em 1921 pelo “Movimento Reação Republicana”, que se apresentava como contraposição ao liberalismo e à política das oligarquias estaduais. Foi derrotado por Artur Bernardes nas eleições de março de 1922, mesmo contando com o apoio advindo dos Estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia, os quais representavam lócus de representações regionais de grande força política.

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expressivas diárias, comentando gradativamente os aspectos da apresentação do Teatro Lyrico. Primeiramente os Batutas aparecem ligados ao cômico, “dentro de um fio de comédia”, associados também ao “nacional”. “„Um Baptisado na Favella‟. Este é o título de uma engraçada comédia musicada, em que se photographam alguns typos e flagrantes do pessoal da „lyra‟, escripta especialmente para a troupe dos „8 Batutas‟” (A Noite, RJ, 03/10/1921). No dia 04 a nota salienta outro ingrediente do programa como “Um Imitador Brasileiro”. O público carioca vai ter a ocasiao de conhecer um artista brasileiro, jovem e modesto, mas de valor. É elle um imitador de instrumentos musicais e animais. Zé Filarmônica, seu apelido, reproduz os sons mais difíceis do violino e bandolim, tocando com a boca, composições inteiras escritas para estes instrumentos. Um choro authêntico da Cidade Nova, elle, egualmente, traduz pela boca, fazendo ao mesmo tempo o papel de diferentes e diversos músicos. O motor e busina de automóvel, o roncar do porco, o mugir do boi, tudo enfim, este artista imita. Zé Filarmônica será apresentado a platéia desta cidade como um dos números de atrações do espetáculo que a troupe dos „8 Batutas‟ organizou (...) (A Noite, RJ, 04/10/1921)

No dia seguinte soma-se outra atração. „Números Caipiras‟ - Os números caipiras sempre agradam ao público carioca, principalmente. Agora mesmo um desses vem obtendo sucesso. É o do artista Mané Piqueno, jovem possuidor de muito graça. Esse artista trabalha actualmente em conjunto com a troupe dos „8 Batutas‟, alcançando sempre êxito. (...) Mané Piqueno fará nesse dia, uma conferência caipira, contando novos e interessantes „causos‟ de sua lavra. (A Noite, RJ, 05/10/1921)

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Na seqüência dos dias 06, 07 e 08/10 os anúncios completam a programação, com a participação da Banda Naval, executando a “symphonia do „Guarany‟”. O festival, portanto, foi bastante variado e contando com um grande elenco. A programação completa do “festival dos Batutas” em homenagem a Guinle, de acordo com o A Noite ficou assim constituída: 1º - A sinfonia “O Guarany” pela Banda do Batalhão Naval; 2º - Os Oito Batutas “representando um acto musicado, cômico e typico, „Um Baptisado na Favella‟”; 3º - “Acto variado em que tomaram parte, entre outros, os artistas Vicente Celestino, Alfredo Silva, Algusto Anibal, Edmundo Maia, onde o artista Mané Piqueno fará uma palestra humorística e em que será estreado o imitador Zé Filarmônica” 4º - termina o espetáculo, “um ato regional, típico, „Uma Noite no Sertão‟ em que Os Oito Batutas apresentarão canções caracteristicamente brasileiras, sambas, modinhas, cateretês, emboladas, desafios, etc...” Não seria nem necessário dizer que após o espetáculo o A Noite fez uma ampla nota comentando o seu grande êxito como “uma noite magnífica”. Outros jornais comentam esta apresentação, mas de forma moderada, sem a cobertura explícita e específica sobre o grupo Oito Batutas em si. O Correio da Manhã, por exemplo, só traz uma nota no dia 09/10/1923, na página dos anúncios publicitários de programação dos cines e teatros, ou seja, é um anuncio pago. No dia 11 o jornal alude ao espetáculo de forma tímida, salientando que “constituiu um espetáculo encantador”. (Correio da Manhã, RJ, 11/10/1921). O A Notícia do dia 10 de outubro de 1921 trás uma interessante nota em destaque no canto superior esquerdo da sua primeira página: Para os „8 Batutas‟ que vão à Argentina o Conselho votou uma verba de 200 contos ou sejam 25 por cabeça. As despesas em Buenos

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Aires correm por conta da municipalidade de lá. Imagine-se se não corresse!...

É curioso como esta nota entra na narrativa de Cabral (1978: 47; 1997: 89; 2007: 104,108), como parte dos eventos relacionados com a viagem dos Oito Batutas à Argentina em 1923. Há um deslocamento temporal de dois anos entre um evento e outro, mas, contudo, Cabral utiliza a nota de 1921 para construir a idéia de protestos nos jornais (controvérsias) contra a ida dos Batutas a Argentina em 1923, afirmando que: Era o velho patrulhamento contra a música brasileira. Nem Os Batutas nem Vila-Lobos podiam receber ajuda do governo brasileiro. Em compensação, o governo dos Estados Unidos adotou como política, durante quase todo o século XX, o patrocínio de viagens dos seus músicos e cantores para o mundo inteiro. (...) Se os jornalistas brasileiros soubessem da repercussão das apresentações dos Batutas – projetando o Brasil na Argentina, na época, um país bem mais adiantado do que o nosso -, talvez não tivessem tanta má vontade com Pixinguinha & Cia. Foi uma temporada de êxito crescente (...) (Cabral, 1997: 89; 2007: 104).

Aqui temos uma incursão a-temporal que liga eventos distantes, personagens e lugares distintos, elaborando uma narrativa construída em prol de uma denúncia dos que se colocam “contra a música brasileira”. Há um “patrulhamento” que impediria o Estado brasileiro de apoiar a exposição dos símbolos da nação no exterior (expressa na música dos Batutas ou de Villa-Lobos), o que deixa o Brasil em defasagem em comparação com o grande estrategista vencedor do mundo moderno, os Estados Unidos. Estes, segundo Cabral, utilizaram desta prática de mecenato estatal de apoio aos seus artistas nacionais, o que deu legitimidade internacional e poder a estas manifestações frente ao mundo. Mas nem tudo foi perdido, pois, na análise de Cabral, os Oito Batutas, a despeito do Estado e de seus antipáticos, foram sucesso, “projetando o Brasil na Argentina”, que na escala de Cabral, seria um país “bem mais adiantado que o nosso” na época.

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É interessante que no mesmo dia 10/10/1921, sai outra nota na seção “Theatros e Cinemas”, elogiando a apresentação dos Batutas no Teatro Lyrico no dia anterior, ou seja, o tão comentado pelo A Noite, “Festival dos Batutas” em homenagem a Guinle. A applaudida „troupe‟ brasileira, „Os Oito Batutas‟ realisaram hontem no Lyrico a sua festa artística. Para quantos amam a boa e genuinamente nacional, a verdadeira música brasileira, capaz de fazer acordar em nosso peito recordações longínquas e viver pela emoção imagens inapagáveis estampadas na nossa alma, evocando tudo que é muito nosso, esse festival de hontem, em que brilharam esses nossos modestos porém, bons músicos, foi uma bellissima ocasião para deixar o espírito alar-se à região diaphana da fantasia, onde se sente melhor e mais nítido o mundo subjectivo das idéias. Foi uma festa de arte, em que tudo se achava bem e se hamonisava. Esses aplaudidos artistas, depois de seu notável triunpho aqui no coração da cidade, no centro de nossa lidima cultura, por certo estão talhados a grandes e ruidosos successos por onde quer que passem e patenteem sua boa arte, que é também a nossa. (A Notícia, RJ, 10/09/1921).

Ou seja, no mesmo dia em que sai uma nota criticando uma possível ajuda aprovada pelo conselho municipal ao grupo para uma viagem a Buenos Aires, sai uma nota tão elogiosa com tanta poesia. Cabral cita a parte em itálico que destaquei desta nota, o que atesta de que Cabral viu este jornal e mesmo assim confundiu os eventos em relação ao anúncio dos 200 contos para os músicos brasileiros irem a Argentina145. 145

Sobre o fragmento relativo aos 200 contos, é possível que a nota seja uma crítica que utiliza o nome do grupo como metáfora da comissão de intendentes do Rio de Janeiro que estava convidada para a viagem ao país vizinho. Houve casos em que o nome “Os Oito Batutas” apareceram usados para satirizar os políticos da época, sobretudo utilizando-se de charges. Um exemplo é apresentado por Cabral (2007: 153). Isto talvez desse mais sentido à nota seguinte, de elogio poético que se refere, esta sim, com toda a certeza ao grupo musical em si.

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A nota do A Notícia é interessante pois o que informa o caráter “nacional” é justamente a capacidade de “recordar” o que “é nosso”, que já não se encontra no aqui, mas no passado, possível de ser acessado através da arte Batuta, que é jogada ao plano do lúdico e da fantasia. Isto aponta para conceitos específicos de arte e estética, que podem ser mais bem avaliados ao perceber a desqualificação explícita na nota, onde os músicos, ainda que “simples”, são bons e nacionais (por re-introduzir e memorar o passado longínquo). Este desqualificador “simples” provavelmente tem a ver com a concepção de uma “arte maior”, comumente relacionada (no período, mas também hoje) ao mundo erudito. É muito interessante como este trecho desqualificador é justamente o que é suprimido nas narrativas de Cabral, o que indica modos pelos quais se dão as construções da figura do herói, tanto da persona Oito Batutas, quanto especificamente de Pixinguinha. Depois do Lyrico, o A Noite continua o acompanhamento cerrado aos Batutas em suas apresentações, diariamente do dia 11 ao dia 28/10/1921, sempre salientando o “êxito” e o “sucesso”. Estes adjetivos e suas articulações fornecem a lógica pela qual os autores dos anos 70 corroborarão nas suas narrativas épicas sobre Os Oito Batutas e seus integrantes. Após esse bombardeio de notícias sobre o grupo, de forma surpreendente o A Noite pára com as notas, que desaparecem em novembro e dezembro. Encontrei, no entanto neste jornal, em 19 de novembro de 1921, o anúncio da chegada ao Rio de um importante personagem para esta história, “vindo de Paris, o conhecido dansarino brasileiro Duque”, de quem tratarei no capítulo seguinte. Para encerrar este capítulo, gostaria de remarcar meu esforço de reconstituição dos eventos das turnês-pesquisas apresentados aqui através de uma exposição e explicitação das transformações constitutivas das narrativas que trataram destes temas. Estas narrativas tentam sistematizar fontes primárias em relação à trajetória do grupo, num recorte específico, que busca recompor os eventos, salientando o seu caráter exitoso, que destaca sobretudo Pixinguinha. Por outro lado, e aqui sugiro uma nova questão, estas narrativas voltam sua atenção para o aspecto das apresentações musicais, reduzindo o âmbito das pesquisas feitas pelos Batutas - e cujo material resultante foi doado a Mario de

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Andrade – subjugadas como uma dimensão secundária e praticamente irrelevante.146 Menezes Bastos (2009) estuda o ambiente originário de nascimento das musicologias na Alemanha e no Brasil comparativamente, com um enfoque analítico que busca restabelecer a simetria nas relações entre musicólogos - etnomusicólogos - e músicos (“nativos”). Para o autor, as práticas artístico-musicais de músicos românticos, como Felix Mendelssohn (1809-1847) no caso alemão, ao buscarem a revivificação da música do passado - especialmente a de J. S. Bach (1685-1750) -, anteciparam procedimentos de elaboração musicológica da partitura crítico-interpretativa. De forma semelhante, as turnês-pesquisas empreendidas pelos Batutas, para o caso brasileiro, parecem sugerir uma antecipação de horizontes conceituais e procedimentos metodológicos de práticas musicológicas, como base da invenção da música folclórica brasileira e do campo disciplinar do Folclore, onde Mario de Andrade é comumente celebrado como precursor. Sugiro que neste sentido simétrico poderia ser pensada outra proposta de pesquisa, pautada no reconhecimento de que se encontram, nos mesmos patamares situacionais e intelectuais, musicólogos – ou etnomusicólogos – e músicos. Uma pesquisa intensa de varredura de fontes primárias sobre estas turnês-pesquisas pode apontar novos rumos sobre as recepções da imprensa e as representações sobre o grupo e sua musicalidade, assim como restituir associações que remontam à constituição do pensamento musical brasileiro. No entanto, isto fica como sugestão para outro trabalho.

O material faz parte da coleção “Fundos Villa-Lobos” disponível para consulta no IEB-USP. Segundo Maya (2004) a coleção fazia parte de um projeto de Mário de Andrade, que visava sistematizar e publicar a produção popular artística brasileira. 146

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CAPÍTULO III – SETE HOMENS E UM DESTINO: PARIS (M.R.) No começo de janeiro de 1922, uma notícia agitou novamente os jornais. Os Oito Batutas estavam de partida para Paris. Naquele tempo, Paris era a capital cultural do mundo. Tudo o que era chique e elegante estava lá. Tocar em Paris era o máximo. Ser aplaudido em uma das casas de espetáculos locais significaria calar a boca de todos os almofadinhas brasileiros. Afinal, eles não queriam copiar tudo o que vinha de Paris? Pois agora iam ter que copiar os Oito Batutas. Os invejosos se assanharam. Os almofadinhas quase tiveram um troço. E os jonais ficaram coalhados de artigos que não falavam de outra coisa. Gente a favor e gente contra a ida dos batutas a Paris. Mas não ia ser a gente faladeira a impedir a viagem. E lá se foram eles, de navio. Os Oito Batutas estavam preparados para o que desse e viesse. Menos para o frio danado que fazia por lá. Desembarcaram batendo os dentes. Ninguém sabia que a temperatura por ali era tão baixa. - Ai meu Deus. A gente vai virar pingüim. Poucos dias depois da chegada, ainda tiritando, os Oito Batutas esquentaram a cidade com o ritmo brasileiro. - C‟est magnifique! - Merveilleux! - Superbe! – diziam os franceses, sacolejando com os chorinhos, sambas e ritmos irresistíveis que vinham diretamente do Brasil. Até então, Pixinguinha só conhecia a vibração da música brasileira. E ficou encantado com a música negra norte-americana. Naquele tempo, Paris estava cheia de bandas de jazz. A Primeira Guerra mal tinha acabado e ainda existiam muitos soldados norte-americanos na cidade. Muitos deles estavam feridos ou mutilados e o governo norte-americano pagava as orquestras para animálos.

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O Dancing Sherezade, onde os Oito Batutas se apresentavam era o quartel-general das orquestras norte-americanas. Além disso, ali pertinho estava o famoso cabaré Follies Bergère, onde também se apresentavam bandas de jazz famosas. Foi lá que Pixinguinha ouviu com atenção o charleston, Foxtrote, shimmie e ragtime, uma música vibrante, que não deixava ninguém ficar quieto ou sentado numa cadeira. Foi lá também que Pixinguinha viu um saxofone pela primeira vez. Gostou tanto do instrumento que acabou sendo presenteado com um, de prata. De volta ao Brasil, os Oito Batutas anunciaram a grande novidade. Ao lado dos sambas e chorinhos, iam começar a tocar também Foxtrotes. (Rabaça, 1999: 48-55).

Os acontecimentos relacionados à viagem do Os Batutas a Paris constituem o ponto de convergência, ao mesmo tempo de inflexão, em torno do qual se articulam a maior parte dos temas em relação à trajetória do grupo e suas implicações. Seria possível contar essa história sem referências às viagens ao interior do Brasil (ou com poucos detalhes sobre estas), bem como em relação às viagens a Buenos Aires e interior da Argentina (que abordaremos à frente), sendo, aliás, comum encontrarmos narrativas que excluem ou que dão pouca ênfase a estas últimas viagens, o que em relação a Paris seria impensável. As narrativas que contam esta história, - inclusive as que são articuladas hoje, como algumas que escutei de meus interlocutores em campo – enfatizam uma intensa discussão em torno da legitimidade (ou não) da representação da nação pela música popular, assim como a sua associação à “raça negra”147, apontando, portanto, questões de ordem estética, racial e social na direção da disputa simbólica pela representação do Brasil no exterior – não qualquer, mas em Paris, a então capital cultural do mundo. Assim, a forma como o mito de 147

Esta discussão se desmembra em outras que, por exemplo, irão discutir a influência (positiva ou negativa) sofrida pelos músicos brasileiros, especificamente em relação ao mundo do jazz; seguindo a questões como a diluição da originalidade folclórica e, mais, o papel corrosivo do mercado no estabelecimento da música popular.

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referência (MR) acentua e demarca o debate inicial é amplamente recorrente nas narrativas, com maiores ou menores detalhes, todavia, sendo o modo pelo qual a história começa a ser contada, de forma muito semelhante ao que apresentei no primeiro capítulo ao tratar sobre a gênese do grupo e a estréia no Cine Palais em 1919, onde expressões como “o escândalo” e as divisões entre “prós” e “contras” dão o tom para a mobilização dos leitores (ou a audiência) para as narrativas. De fato, há certa profusão de notícias, de críticas e defesas em relação à viagem, o que não significa uma agitação jornalística tão intensa. Apontar de onde são produzidas estas notícias e como são re-articuladas posteriormente pode ajudar a re-compor as passagens de “acontecimento” a “evento” em determinadas “estruturas da conjuntura” (Sahlins, 2003, 2008)148 em relação aos episódios narrados desta parte importante da história do grupo e da música popular brasileira. Meu flanar pelos arquivos, na medida em que seguia rastreando atores pelas notícias, estava cada vez mais mediado pelas experiências de campo. Isto envolvia primeiramente minha estadia no Rio de Janeiro e em especial minha moradia na Lapa, bairro que busca se constituir como tradicionalmente boêmio, concentrando bares e shows numa atmosfera de celebração da identidade brasileira, via a figura do “carioca da gema”149 (aliás, esse é o nome de um bar famoso do bairro, onde se encontra um número expressivo de estrangeiros e turistas interiorizados por esta atmosfera), que encontra no samba e no choro

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Para Sahlins (2003, 2008), é na interpretação pela ordem cultural que um acontecimento torna-se ato significante enquanto evento, ou seja, a significância histórica de um evento se dá pela apropriação por, e através, do esquema cultural. Mas Sahlins propõe ainda um passo decisivo ao pensar, como síntese da relação entre evento e estrutura, uma estrutura conjuntural. As pessoas usam as ordens culturais para moldar sua construção e ação no mundo. Quando agem, as pessoas colocam suas construções em jogo, usando-as para se referir ao mundo. Fazendo isso estabelecem a “estrutura da conjuntura”. Isto pode suscitar uma transformação estrutural quando se estabelecem mudanças nas relações entre as categorias. Há neste caso uma reavaliação funcional das categorias que pode suscitar uma verdadeira transformação estrutural. Conforme Sahlins: “A estrutura da conjuntura, enquanto conceito, possui um valor estratégico para determinação dos riscos simbólicos (por exemplo, de referência) e das reificações seletivas (por exemplo, pelos poderes estabelecidos)” (2003: 16). 149 Conversando com cariocas sobre esta expressão me pareceu classificar cariocas nascidos de pai e mãe cariocas, residentes numa região diferenciada ou nobre que compreende um território grande de bairros, mas que exclui as regiões periféricas da cidade. O discurso assume uma classificação geográfica – onde gema e clara do ovo dão a forma - que imprime uma diferenciação sócio-cultural importante.

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(não quaisquer, mas os “de raiz”150) suas principais fontes de legitimação. Também convivia mais regularmente com interlocutores como Dona Lygia Santos (filha de Donga), com quem tinha conversas longas sobre a que ela se referia como o “mundo do samba”, onde, sobretudo a retórica da herança da tradição negra (africanidade mediada pela Bahia) e da resistência cultural se impunha como central. Também estava mantendo contato com sujeitos ligados à música popular (músicos, escritores, pesquisadores) além de me aprofundar nas leituras sobre o tema em livros que consegui encontrar em minhas visitas/pesquisas em sebos. Enfim, havia uma profusão de informações me bombardeando e construindo meu campo e era neste ritmo que continuava lendo os jornais na Biblioteca Nacional e demais acervos. Nos periódicos da primeira semana de 1922 não localizei nenhuma menção ao grupo. Na seguinte, do dia 9 até dia 11 de janeiro encontrei-os figurando como atração do Theatro Abigail Maia, como informa o A Noite assinalando o “sucesso do grupo”. No dia 11 o Jornal do Brasil, em seus informes sobre o iminente carnaval, destaca a participação de Pixinguinha como diretor de harmonia do Reinado de Siva, importante bloco carnavalesco de então. O Lira, na qualidade de presidente da Comissão de Carnaval do Reinado de Siva, está contentíssimo consigo mesmo não só por haver conseguido a reconciliação dos dissidentes que foram constituir o bloco „Quem não Presta se Aproveita‟ (que pessoal Cotuba!) como por ter formado a trinca Josino (Caboclo), como diretor técnico, Índio das Neves, como diretor de canto, e o Pixinguinha, como diretor de harmonia. Isso é que é rojão! (Jornal do Brasil, 11/01/1922).

Esta nota é utilizada por Silva & Oliveira Filho (1979) e vale avaliar o trecho de articulação desta narrativa para os preliminares da 150

Vale assinalar esta classificação nativa, na medida em que ela, em si, destitui gêneros musicais, como o pagode, por exemplo, que passa a ser entendido como degeneração de algo tido como legitimamente brasileiro, o “samba de raiz”, onde alguns artistas detêm os saberes e poderes de sua prática e outros (sobretudo os pagodeiros) não. O processo de “distinção” (Bourdieu, 2008) estabelecido aqui está imbricado num “campo” de disputas simbólicas que determinam valores e hierarquias.

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viagem a Paris. Depois de citar a nota pré-carnavalesca sobre Pixinguinha e o Reinado de Siva, os autores complementam, mobilizando um elemento extra-ordinário interessante, Ogum. Só que o rojão do Lira não subiria muito, nem duraria muito tempo no céu. Menos de três semanas depois, Pixinguinha estava trocando o „palácio‟ do Reinado de Siva, na rua Senador Pompeu, pelo Sherazade, 16, Faubourg Montmartre, em Paris. Isto porque, nessas três semanas abençoadas, Ogum resolveu usar sua espada para abrir as portas do mundo para seu filho de fé e seus sete companheiros. Para transportá-los, usou como veículo o Assírio, cabaré instalado no subsolo do Teatro Municipal. Ali, são ouvidos todas as noites pela „fina flor‟ da sociedade boemia carioca. Ali, no mesmo espetáculo, um casal de bailarinos de fama internacional empolga o publico dançando o ritmo que, durante anos e anos, fora uma „dança excomungada, anatematizada‟, proibida às moças e aos rapazes „de família‟. Duque e Gaby, dançam o maxixe. Ou la matchiche, como preferiam os almofadinhas da época.” (Silva & Oliveira Filho, 1979: 52) (grifos meus).

Continuando a narrativa, os autores apresentam Gaby e Duque, falando da proximidade deste com o milionário Guinle, que ao ir “ver o amigo Duque no Assírio, ouviu também, a flauta mágica de Pixinguinha” (: 53). É então que acontece o encontro decisivo: Duque sugere a viagem dos Batutas a Guinle, que a aceita e a financia. Além disso, há a interessante articulação da narrativa, onde Ogum aparece também como ator, assim como o Assírio, lugar do encontro extraordinário que resulta da efetivação do evento. Mas Cabral (2007) diz que as apresentações no Assírio foram até o réveillon de 1921, sendo que para Silva & Oliveira Filho (1979), é nas “três semanas abençoadas” de início de janeiro de 1922, que eles estariam no Assírio e ali se efetivaria a viagem. Infelizmente não consegui informações sobre as datas destas apresentações no Assírio, mas, de fato, o que importa aqui é sublinhar este lugar nas narrativas, como ponto demarcador do evento

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da viagem a Paris151. Porém, como venho apontando, há um processo se materializando, onde vários atores estão imbricados e a viagem do grupo a Paris parece ser sim fruto de uma ação política muito perspicaz com intuito de (re)presentar a música brasileira ao mundo152. No entanto, a definição do que seja “música brasileira” é algo negociado num campo de disputas simbólicas amplo. Duque era o apelido de Antônio Lopes de Amorim Diniz, dentista, ator, dançarino, revistógrafo, compositor e jornalista (1884, Salvador, BA - 1953, Rio de Janeiro, RJ). Em 1906 transferiu-se para o Rio de Janeiro, sendo conhecido freqüentador de pontos de encontro da boêmia carioca, participando de atividades ligadas ao teatro e logo se dedicando à dança, sobretudo ao maxixe. Em 1909 foi para Paris como representante de um produto farmacêutico, atividade que logo foi abandonada, tendo a oportunidade de apresentar-se como dançarino do maxixe, conseguindo grande sucesso ao lado de várias partenaires, como Crysis (dançarina grega); Arlette Dorgère (dançarina parisiense de renome); Maria Lina (atriz brasileira que havia feito grande sucesso no Brasil em 1906, com a revista chamada O maxixe, e logo após, despontou em vários países como parceira de Duque); e, a partir de 1912, passou a atuar em companhia de sua principal partenaire, a dançarina e manequim Gaby, com quem em 1918 atuou como protagonista do filme Entre a arte e o amor (direção Angle Brazilian). Duque foi responsável pela transformação do maxixe, de “dança excomungada”, (na expressão de Efegê) considerada no Brasil como de baixa origem, em ritmo elegante apreciado pelas elites de vários países pelos quais excursionou (Berlim, Nova Iorque, Londres, Paris, Buenos Aires, Montevidéu), sendo também suas atividades como professor e proprietário de Academia de Dança em Paris e no Rio de Janeiro,

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Algumas narrativas até afirmam que foi aí que os músicos teriam conhecido Guinle, através de Duque, o que efetivamente não ocorreu, uma vez que Guinle e integrantes dos Batutas já se conheciam desde a criação do grupo, já tendo inclusive trabalhado juntos, nas viagens pelo interior do Brasil em 1919/1920. 152 Pixinguinha relata em entrevista à Revista Manchete em 1966 que Guinle aceitou a sugestão de Duque para financiar a viagem dos Batutas a Paris, “para poder divulgar o samba e outros ritmos brasileiros, como [Duque] já o fizera com relação ao maxixe” (Vasconcelos, 1985: 76). Numa série de entrevista com músicos do choro e samba ao O Jornal (RJ) em 1925, China teria afirmado que: “A nossa ida a Europa resultou da iniciativa de Duque, apoio do Dr. Guinle e nossa boa vontade” (O Jornal , RJ, 29/01/1925).

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responsáveis pela divulgação de sua dança e de seu sucesso153. Para a viagem a Paris, o conjunto foi rebatizado por Duque de Les Batutas, sendo contratado a apresentar-se primeiramente no dancing Scheherazade154. Menezes Bastos (2004, 2005) aponta, além do financiamento de Guinle, o apoio político-diplomático de Lauro Müller, que como exministro de relações exteriores do Brasil, podia estabelecer ligações com a embaixada brasileira em Paris. A relação de Les Batutas (e equipe, contando com Duque e Floresta de Miranda) com o âmbito da diplomacia brasileira na Europa existiu, a julgar pelo menos pelas apresentações que o grupo realizou para a família real brasileira, assessorados por Floresta de Miranda, como informa enfaticamente Donga (1969). Pixinguinha também cita o nome de Souza Dantas como anfitrião de uma festa em que o grupo foi recebido no Palais des Affaires Publics, em Paris, conforme Cabral (2007: 94). Souza Dantas servia como diplomata em Roma e assumiu em novembro de 1922 a embaixada brasileira nesta cidade, conforme apurou Menezes Bastos (2005: 189). 3.1 – A poucas horas de Paris Ao que tudo indica os integrantes do grupo, mesmo já se mobilizando para a viagem, também estavam engajados nas atividades do carnaval de 1922. No dia 24 de janeiro de 1922, duas notas demonstram isso.

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Sobre Duque, cf. Efegê (1974), Marcondes (1998), Menezes Bastos (2005) e Witkowsky (1990). 154 Tinhorão (1969), num livro chamado “O samba agora vai... a farsa da música popular no exterior” - que expressa já no título a famosa postura carrancuda de seu autor – aponta a viagem a Paris como o resultado de uma lógica oportunista comercial, na qual Duque tem papel central, como o articulador e empreendedor que “percebeu a importância de levar a Paris não somente a coreografia das danças – como fizera no início do século com o maxixe – mas o ritmo vivo produzido por músicos populares brasileiros” (: 26). Para manter sua popularidade em Paris, Duque lança mão desta nova estratégia. Como este já se apresentava em final de 1921 com os Oito Batutas no Assírio com a bailarina Gaby, nada melhor do que eles para entrarem nesta jogada. O passo seguinte foi convencer Guinle a financiar a viagem. Neste sentido, a narrativa se passa articulada pela razão prática, numa análise de causa e efeito do mercado em relação à cultura popular.

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Os Oito Batutas vão dar uma nota pitoresca e alegre no carnaval deste anno. Para tanto, prepararam já um repertório adequado que deliciará o povo desta cidade. Como amostra, transcrevemos „A Carta‟, letra de M. de Almeida e música de Alfredo Vianna (Pixinguinha): O vento carrega os ditos Daquilo que se falou Mas cuidado com os escritos Que é cousa que aqui ficou CORO Não fui eu, não fui eu Quem escreveu a tal cartilha Que tanto trabalho deu! Sei que um bilhete esquesito Em tua casa foi ter Não tenho nada com isso Não tenho nada que ver. (A Noite, RJ, 24/02/1922)155

No mesmo dia o Gazeta de Notícias156 publica na seção “Música”157 a nota sobre a edição de uma música do repertório dos Oito

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Provavelmente M. de Almeida seja Mauro de Almeida, jornalista e letrista registrado por Donga como co-autor do “Pelo Telefone”, sendo personagem da controvérsia, tendo inclusive desmentido publicamente sua participação no famoso samba, através de carta, como aponta Silva (1978). Lendo a letra de “A Carta”, chega a ser sugestiva uma especulação sobre esta negação de autoria, sobretudo quando o coro chama a atenção ao: “Não fui eu, Não fui eu!”. Vale ressaltar que esta canção surge cinco carnavais após o “Pelo Telefone” ter feito sucesso. Infelizmente não encontrei gravação de “A Carta”. 156 Jornal diário fundado em 1875 por José Sousa Araújo. Foi um dos principais jornais da capital federal durante a República Velha. Sua posição era fundamentalmente governista, sendo exemplos disto, os combates às candidaturas presidenciais de Rui Barbosa e à Reação Republicana, em 1910, defendendo Hermes da Fonseca, e em 1922, Artur Bernardes, ambos situacionistas. O caráter governista do jornal refletiu-se em sua estrutura econômica e no alto nível de sofisticação de sua aparelhagem técnica, que figurava na época entre os mais modernos do mundo. Cf. verbete de Carlos E. Leal, no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro - DHBB da FGV, disponível em: http://cpdoc.fgv.br. 157 Normalmente os jornais reservavam à música erudita as seções com esse nome. No entanto, nas proximidades do carnaval, a música popular por vezes as ocupava até mesmo com destaque.

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Batutas, intitulada “Meu Passarinho”, que inclusive será gravada pelo grupo no ano seguinte em Buenos Aires pela Victor. „Meu Passarinho‟, samba de Octavio Vianna (China). Recebemos, editado pela casa Viuva Guerreiro, o delicioso samba „Meu Passarinho‟ de Octavio Vianna (China), oferecido ao Club dos Fenianos. Esse lindo samba carnavalesco é do repertório da conhecida „troupe‟ – Os Oito Batutas – que, com grande sucesso, põe em foco a musica popular brasileira. (Gazeta de Notícias, RJ, 24/01/21922)

Neste anúncio já temos alguns dos elementos que irão nortear o grupo nas próximas ações, aparecendo como parte de seu repertório uma música sob o rótulo de samba ou samba carnavalesco, bem como chama a atenção para a convergência do grupo em relação à “música popular brasileira”158. Isto é significativo sabendo-se que neste dia a viagem a Paris já estava certa, uma vez que dois dias antes, no mesmo jornal o colunista Benjamin Costallat, - o mesmo que saiu em defesa do grupo em 1919, em relação à estréia no Palais - já a havia anunciado com grande destaque. Este artigo foi muito utilizado, entre eles por Cabral (1978), Silva e Oliveira Junior (1979), Efegê (1985) e Martins (2009) e vale ser pontuado. Foi um verdadeiro escândalo quando, há uns quatro anos, os Oito Batutas apareceram. Eram músicos brasileiros que vinham cantar coisas brasileiras! Isso em plena Avenida, em pleno almofadismo, no meio de todos esses meninos anêmicos, frequentadores de „cabarets‟, que só falam francês e só dançam tango Argentino! No

De fato neste período, esta expressão ainda não parecia corresponder àquela de “popular music” conforme a tradição anglo-saxônica, o que provavelmente veio a se constituir somente nos anos 60.Como me chamou a atenção Menezes Bastos, no livro “Música Popular Brasileira”, de Oneyda Alvarenga (discípula do Mário de Andrade), publicado originalmente em 1945 e depois em 1960, o “popular” (não o “popularesco” de Andrade) corresponde àquilo que hoje seria chamado no Brasil de “folclórica”. 158

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meio do internacionalismo das costureiras francesas, das livrarias italianas, das sorveterias espanholas, dos automóveis americanos, das mulheres polacas, do esnobismo cosmopolita e imbecil! Não faltaram censuras aos modestos Oito Batutas. Aos heroicos Oito Batutas, que pretendiam, num cinema da Avenida, cantar a verdadeira terra brasileira, através de sua música popular, sinceramente sem artifícios nem cabotinismo, ao som espontâneo dos seus violões e dos seus cavaquinhos. A guerra que lhes fizeram foi atroz. Como músicos eram bons, „batutas‟ de verdade, violeiros e cantadores magníficos, como a flauta de Pixinguinha fosse melhor do que qualquer outra flauta por ahi sahida com dez diplomas de dez institutos - começaram os despeitados a alegar a cor dos Oito Batutas, na maioria pretos. Segundo os descontentes, era uma desmoralização para o Brasil ter na principal artéria de sua capital uma orquestra de negros! O que iria pensar de nós o estrangeiro? Tive a honra de defender (e essa defesa foi das que fiz com mais entusiasmo em minha vida de jornal) os Oito Batutas naquela ocasião. Hoje, porém, tenho que voltar ao assumpto: os Oito Batutas embarcam esta semana para Paris. - Para Paris? - Mas isso é uma desmoralização! - Como é que o ministro do Exterior não toma providencia? - Agora é que o Brasil vai ficar inteiramente desmoralizado! Calem-se os imbecis. Calem-se os patriotas baratos. Calem-se os músicos pernósticos que fazem música das Casas Mozart e Artur Napoleão. Os Oito Batutas não desmoralizarão o Brasil na Europa. Ao contrário. Levarão dentro de seus violões toda a alma cantante do Brasil – a modinha. Levarão o Brasil tal qual elle é no seu sentimento e na sua belleza. Levarão a verdadeira música brasileira, essa que ainda não foi

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contaminada por influências alheias e que vibra e que sofre e que geme por si, cantando luares dos sertões e os olhos de caboclas... Levarão o perfume das nossas matas, o orgulho das nossas florestas, a grandeza da nossa terra, a melancolia da nossa gente, a bondade e o amor dos nossos corações, ditos e cantados pelo verso simples e a música sublime da alma popular... Levarão o verdadeiro Brasil, desconhecido dos próprios brasileiros, mas formidável assim mesmo no enygma de suas forças e de suas aspirações... - Mas são negros ! - Que importa ! São brasileiros ! Devemos procurar ser conhecidos na Europa tal qual somos. Com os nossos negros e tudo o mais... Nada perderemos com isso. Temos uma personalidade internacional tão digna quanto as outras, e cumpre afirmá-la a cada instante: - Somos assim. E se nos quizerem... Detesto esses bons patriotas que, na Europa, querendo fazer propaganda desta terra, negam que no Brasil haja calor e negros, duas coisas que elles consideram profundamente deselegantes. - Mas, por que? Porque consideram o calor e o negro duas coisas vergonhosas, se ellas, primeiro, não o são e, segundo, são bem nossas, bem brasileiras? Eu quizera que no Brasil houvesse gente verde, gente de todas as cores, calor de enlouquecer, calor de matar, para poder afirmar com orgulho a existência de todas essas pretendidas calamidades aos europeus! E se eles se espantassem com o calor do meu paíz, eu me espantaria com o frio do paíz deles, se eles gritassem contra o sol, eu gritaria contra o gelo, se eles falassem contra o preto, eu falaria contra o branco, e assim não acabaríamos nunca! Não acabaríamos nunca! Cá por mim, não acabaria! Tenho muita coisa a dizer da Europa em reação às coisas que se disserem no Brasil! Não é, pois, vergonha sermos conhecidos tal qual somos. Ao contrário, isso nos deve honrar.

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Vergonha é sermos inteiramente desconhecidos. E é o que somos. Noutro dia ainda, apareceu o Almanach Hachette, de 1922, que é comprado aos milhares e há anos, no Brasil, dando uma descripção fantástica da bandeira brasileira. Mas, uma descripção fantástica! O francezinho que a escreveu falara em linhas paralelas e não sei mais quantas asneiras! Isto é que é vergonha. E sem vergonha são estes livreiros daqui que vendem semelhante porcaria e não devolvem imediatamente ao Sr. Hachette o seu latrinário almanaque com um pouco de creolina. Amanhã, também não teremos obrigação de conhecer a bandeira francesa. Poderemos descreve-la como entendermos. Com qualquer cor, com qualquer symbolo. E, naturalmente, o Sr. Hachette será o primeiro a protestar... vendendo mais caro os seus livros. O sucesso dos “Oito Batutas”, em Paris, será grande. Será a revelação de uma música inteiramente nova na beleza de seus rythmos e de sua melodia. Paris que eu vi, ainda há mezes, festejar uma grande orchestra americana de pretos. “The Syncopated Band”, que tocava Beethoven e todos os clássicos com acompanhamento de buzina de automóvel, apito de trem, campainhas, latas velhas e os barulhos mais infernaes e mais prosaicos que a imaginação mórbida do „jazzband‟ conseguia inventar, uma orchestra que enlouquecia, uma musica que dava colicas; Paris, que foi em peso, de casaca, com luxuosíssimas toilettes, ouvir religiosamente todo aquele ruído ridículo no Theatre des Champs Elysées, naturalmente saberá fazer distinção entre nossos músicos e os palhaços americanos, os homens das latas, das buzinas e dos apitos... Os americanos levaram barulho. Os nossos levam sentimento. O que saiu das latas, vai sair agora dos corações. A diferença é grande...

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Não é mais Beethoven com chocalhos que os franceses vão ouvir. É a música de uma terra e a alma de uma gente distante. Terra do luar, da cabocla, do violão... Terra admirável de sentimento onde até os coqueiros morrem de saudade!... „Tu não te lembras da casinha pequenina Onde o nosso amor nasceu Tinha um coqueiro ao lado Que, coitado, de saudades já morreu!‟ E ouvindo as nossas modinhas, e ouvindo cantar as nossas noites de luar e o nosso sertão e os olhos das nossas morenas, e o nosso amor e as nossas saudades, muitos franceses hão de se comover. E no „cabaret‟ estonteante de alegria e de luz artificiaes, muita „cocotte‟ de olhos fundos de „crayon‟, lábios humidos de „champagne‟, há de chorar ouvindo „a asa branca da serra‟, ou „uma casinha na praia‟. Há de chorar, e com razão, a casa branca que ella nunca teve, nem na praia, nem na serra... Chorará mulher! Mesmo sem compreender as palavras, porque a modinha brasileira fala pela voz de seu violão. E todos o entendem na sua linguagem cantante... Chorarão a pequena casa branca da felicidade onde a garrafa de champagne é um riacho que geme mansamente todo o dia e toda a noite, e vem, puro, la dos altos das montanhas infinitas... E compreenderás, enfim, graças a modinha, plangente mas feliz, que é ainda cá nestes maravilhosos sertões brasileiros que há um pouco de belleza e de felicidade espalhadas entre os homens... (Benjamin Costallat) (Gazeta de Notícias, RJ, 22/01/1922)

Pode-se dizer que o artigo é o exemplar de um discurso épico por excelência, na medida em que narra toda a saga de desventuras e dificuldades, chegando ao apogeu da volta por cima do herói, no caso,

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os Oito Batutas. Estes figuram quase como o herói Odisseu (ou Ulisses), que depois das aventuras, regressa heroicamente da guerra de Tróia para sua Pátria e sua esposa Penélope, como narrado na Odisséia por Homero. Poemas épicos à parte, Costallat fornece no artigo alguns dos temas que dão o tom da polêmica que irá constituir as narrativas sobre o evento da viagem, assim como reafirma tal tom em relação à gênese do grupo. De forma geral, a temática racial e o nacionalismo tornam-se os pontos a serem reforçados, sendo os Batutas defendidos entusiasticamente159 e o imaginário do sertanejo acionado como especificidade do grupo, uma ligação, aliás, constitutiva da campanha publicitária dos Batutas, sobretudo quando das viagens (e logo após) ao interior do Brasil. Diferentemente do artigo de 1919 do mesmo autor, onde o choro era citado, aqui é a modinha que representa a “verdadeira música popular brasileira” e um Brasil que é legítimo, a despeito do conhecimento dos próprios brasileiros. Seis dias depois da nota de Costallat, o jornal A Noite reforça o tom de entusiasmo e defesa aos Oito Batutas, advogando “Pelo que é nosso!”160. O jornal ilustra a notícia de que o grupo “embarca amanhã [29/01/1922] para a Europa” com uma foto do grupo em trajes que aludem ao sertão – que remontam ao Grupo de Caxangá. Depois de assinalar o sucesso alcançado pelos Batutas, desde sua criação em 1919, nos cinemas, na Avenida e nos Estados, o jornal destaca que o grupo: Vai agora à Europa, com um contrato. Primeiro a Paris, onde vão mostrar as músicas dos nossos „sambas‟. Embarcam amanhã no Massília. Podese calcular o sucesso que vão fazer. Haverá, talvez, quem num melindre idiota reprove a ida dos rapazes, porque são de côr.... Nenhuma phrase melhor que a de um chronista, escrevendo ha dias sobre elles: - Mas são brasileiros!... (A Noite, RJ, 28/01/1922). 159

Temas centrais e tom entusiasta que perpassam narrativas desde os anos 30, com Orestes Barbosa ([1933] 1978); Almirante (1963) e Lúcio Rangel (1962) nos 40 até 60; passando por Cabral (1978) e Silva & Oliveira Filho (1979) nos 70; e chegando aos dias de hoje, com reedições ou produções atuais como os materiais didáticos de Diniz (2003a, 2003b). 160 Expressão comum nos jornais cariocas da época, assinalando a defesa das manifestações populares identificadas com o nacional, como também a valorização do mercado e da política interna.

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O “mas” da última frase é muito interessante, pois a adversativa parece intervir como um perdão (serem brasileiros) para o pecado (de serem de cor). A nota termina indicando a formação do grupo que viajou: Alfredo da Rocha Viana Filho “Pixinguinha” (flauta); Otavio Liplecpow da Rocha Viana “China” (violão e canto); Ernesto dos Santos “Donga” (violão); Nelson Santos Alves (cavaquinho); José Alves (ganzá); Sizenando Santos “Feniano” (pandeiro) e José Monteiro (maracajá)161. Ainda no dia 28/01/1922 o A Pátria noticia a viagem no mesmo tom de entusiasmo e o Jornal do Brasil, na cobertura das festividades do carnaval, informa que é o dia da “batalha de confetti” da Praça XI, além de várias outras atividades, como as “feijoadas dos Democráticos e do Reinado de Siva”, este último com “Pexinguinha” como seu diretor de harmonia. A julgar por estas notas, os integrantes dos Batutas se despediram aproveitando o sábado de carnaval. Até a partida do grupo para Paris no dia 29/01/1922, a bordo do navio Massília, não encontrei nenhuma notícia que se colocasse contra a viagem, apenas o entusiasmo prevaleceu. É a partir do dia 01/02/1922, portanto três dias após zarparem, que saem notícias reprovando a viagem, com teor agressivo e racista (notas essas que geralmente arranjam as narrativas sobre o evento, compondo a idéia de um debate “acalorado” na imprensa). É curioso notar que estas notícias partem do interior do país, sobretudo de Recife (PE), de onde duas notas chamam a atenção. A primeira do Diário de Pernambuco162, pelo cronista A. Fernandes: 161

Da primeira formação dos Oito Batutas para esta houve a ausência dos irmãos Palmieri (Jacob e Raul) e Luís Pinto, entrando “Feniano” e José Monteiro. Este é apontado por alguns estudos, como o autor de “Boi no Telhado”, tango brasileiro lançado em 1918 que teria inspirado Darius Millhaud (que teve passagem no Rio de Janeiro em 1917) a compor “Le Boeuf sur le Toit”, conforme pesquisa de Daniella Thompson (disponível em http://daniellathompson.com/Texts/Le_Boeuf/cron.pt.30.htm). Segundo Cabral (2007), sem indicar sua fonte, J. Tomás estava com passagem na mão, mas por motivo de doença acabou não embarcando, tendo o grupo que ir apenas com sete componentes. Assim, em Paris o grupo passou a se chamar “Les Batutas” ou “L‟orchestre des Batutas”. No áudio do depoimento de Donga ao MIS em 1969, há uma fala que é excluída da transcrição do “As vozes...” (Fernandes, 1970), onde, ao ser perguntado sobre os sete que viajaram, ele responde: “Sete porque foi um cálculo comercial e tal...”, mas infelizmente a fala é cortada por uma nova pergunta, e Donga não continua esta explicação. 162 De acordo com seu site oficial, O Diário de Pernambuco é o mais antigo jornal da América Latina, fundado em 1825, por Antonino José de Miranda Falcão. Em 1901 o conselheiro Rosa e Silva, então vice-presidente da República, assume o jornal, que é envolvido por agitada

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De uns e de outros... Há pouco eu lia no Temps um artigo de um médico francês que esteve no Brasil, e todo ele era uma verdadeira apologia da cozinha nacional. Imaginem que o homem tão emocionado ficou com a nossa arte culinária que a propunha ao país de Pantagruel e de Brillat como tendo muita coisa digna de ser imitada. E exaltava com o senso apurado de um perfeito gastrônomo o excelente almoço „jeca-tatu‟ que o Dr. Baeta Neves lhe oferecera. Confesso que me senti orgulhoso do íntimo de minha brasilidade por ver assim louvados e admirados os pratos indígenas, que o „snobismo‟ cosmopolita vai pouco a pouco substituindo pela comida européia. Pois se um jantar qualquer, com ou sem solenidade, traz até o cardápio redigido em francês, como se o velho idioma de Camões não fosse digno de ser usado em ocasiões brilhantes! O sucesso do Brasil na Europa – e Paris continua a ser para muitos efeitos a Europa – não ficou, porém, adstrito a assuntos culinários. O triunfo parece muito mais considerável e abrange também a arte pura. Não bastou que o Duque, trocando heroicamente a sua profissão de dentista pela de dançarino, lançasse nos salões parisienses o „maxixe‟ brasileiro que, noutros tempos de feroz carrancismo, as „sinhás-moças‟ não ousavam dançar, sob os olhos vigilantes do papá e da mamã. Era preciso que a Cidade Luz, sôfrega de espetáculos inéditos, fatigada do Shimmy, da dança do urso, do dadaísmo, do expressionismo, da arte negra, culminando com a atribuição do prêmio Goncourt ao romance de René Maran – ouvisse e admirasse como a mais alta expressão da música brasileira a famosa troupe de os Oito Batutas! Paris vai ter, entre todas as capitais da disputa política, sofrendo, inclusive, empastelamento, o que se repetiria em 1945. Entre os seus redatores estavam Assis Chateaubriand e Gilberto Amado, que escrevia a coluna intitulada Golpes de Vista. Chateaubriand, anos depois, faria do Diário de Pernambuco uma das unidades dos Diários Associados, rede de jornais e outros meios de imprensa, criada pelo jornalista em 1924. Cf. http://www.diariodepernambuco.com.br.

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Europa, a honra insigne de aplaudi-los e, por um momento, esses heróis serão o expoente de nossa raça. O caso é esse, senhores. Os Oito Batutas vão à pátria de Saint-Säens fazer mais uma vez o Velho Mundo curvar-se ante o Brasil. Não sei se a cousa é para rir ou para chorar. Seja como for, o boulevard vai se ocupar de nós. Não do Brasil de Arthur Napoleão, de Oswaldo Cruz, de Ruy Barboza, de Oliveira Lima, não do Brasil expoente, do Brasil de elite, mas do Brasil pernóstico, negroide e ridículo e de que la chanson oportunamente tomará conta... (Diário de Pernambuco, RE, 1/02/1922. In: Silva e Oliveira Filho, 1979: 203)

No mesmo dia, também em Recife, no Jornal do Comércio163 por autor que se identifica apenas por S. sai a segunda nota: MEU DIÁRIO O Sr. Benjamin Costallat, que é um dos nossos mais finos observadores, estava o ano passado em Paris, quando a sua confreira patrícia, a Sra. Regina Regis, lá residente, fez representar num teatro qualquer uma peça „genuinamente brasileira‟ por ela assim inculcada ao público e, como tal, por este vivamente aplaudida. Nessa assistência, contava-se a flor de nossa colônia na cidade luz. E o cronista não pôde deixar de manifestar a sua indignação em correspondência para um jornal do Rio diante de um negroide obsceno das bananeiras e dos sambas que a Sra. Regis se lembrara de impingir como as únicas coisas típicas de sua pátria à frivolidade boulevardière. 163

Pinto (2008) afirma que estes dois jornais, Diário de Pernambuco e Jornal do Commércio, definiam dois pólos de debates intelectuais no Recife no início dos anos 20. Segundo o autor, estes representavam as duas propostas de cultura e dois projetos políticos. O primeiro seria o divulgador das idéias de Gilberto Freyre, quando de sua volta dos Estados Unidos em 1923, propondo a defesa regional e a unidade do nordeste, dando suporte para a organização do “I Congresso Regionalista” em 1926. Já o outro pólo, do J. Commércio, tinha como principal idealizador Joaquim Inojosa, que se posicionaria mais em consonância com as idéias que inspiravam o movimento modernista de São Paulo.

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Eu recordei-me imediatamente do protesto de Costallat ao ler um dia destes o telegrama que o dançarino Duque embarcara com destino à capital francesa levando em sua companhia a troupe dos Oito Batutas. Esses „artistas‟ já estiveram aqui exibindo-se no Teatro Moderno. São oito, aliás, nove desempenados pardavascos, que tocam viola, pandeiro e outros instrumentos rudimentares, acompanhando uns aos outros em cantigas do horrível gênero Catulo Cearense e dançando com exagero as cores da nossa Terpsicore bárbara. Pois bem! É essa gente que Luiz Duque, o famoso bailarino do Luna Park, um dos ilustres reveladores de „La Mattchiche‟ ao velho mundo, vai fazer exibir no seu cassino, onde passa cotidianamente a gama de basblenismo e do rastacuerismo internacional. Os Oito Batutas vão ser, dentro em pouco, o número „suco‟ do Luna e, diante deles, o parisiense blasé se espantará, excitando a sua perdida sensualidade diante das sortes daqueles mulatos audazes que pretendem representar o Brasil. E não haver uma polícia inexorável que legalmente os fisgasse pelo cós e os retirasse de bordo com manopla rija, impedindo-lhes a partida no liner da Mala Real! Impunemente, porém, os Oito Batutas lá vão rumo de Paris mais o Duque, que tem olho fino, mais fino mesmo que os pés e sabe como os treinar para que eles se mostrem de verdade uns cotubas no remelexo, nas cantilenas estropeadas de Catulo, na música lúbrica dos choros. Para consagrá-los e desmoralizarem cada vez mais o seu país, lá estão à espera com os seus lugares reservados, os mesmíssimos brasileiros que aplaudiram a peça „nacionalista‟ da sra. Regis. E depois ainda nos queixamos quando chega por aqui um maroto estrangeiro que, de volta a penates, se dá a divertida tarefa de contar das serpentes e da pretalhada que viu no Brasil. (Jornal do Commercio de Recife, RE, 1/02/1922. In: Silva e Oliveira Filho, 1979: 204).

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Os textos são abertamente agressivos, sendo a questão racial o ponto mais forte das indignações. Porém, elas se acentuam na medida em que: 1- são músicos negros; 2- de música popular (portanto no pólo da baixa-cultura ou da não-cultura); 3- que acionam a idéia de representar o Brasil para o mundo. Ou seja, a questão racial é clara, mas ela está imbricada, sobretudo, à questão da representação nacional e à do popular. Neste sentido, se deslocarmos a atenção para a questão representacional da nação, focalizamos nestas indignações possíveis traços de uma disputa simbólica (e, portanto política)164, entre sedes concorrentes do país, processos em que Pernambuco165, Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro ocupam lugares de destaque. Os colunistas pernambucanos são contra toda a representação que parte da capital (Rio de Janeiro), que incluem o repertório musical – de choros e maxixes -, os instrumentos musicais, a dança e os negros que executavam tudo isto: Os Oito Batutas. De Barbacena (MG), também em 1/02/1922, vem outra reprovação muito citada. Uma carta escrita por um francês residente nesta cidade (escrita em sua língua natal), chamado León de Faranda, enviada ao jornal O Paíz e publicada em 4/02/1922, juntamente com a resposta deste jornal. A propósito dos Oito Batutas. Recebemos a seguinte carta: Barbacena, Le ter février 1922 – Á monsieur le directour du journal O Paiz. RJ. Cher Monsieur Le journal A Noite vient d‟annoncer à son de trompe le depart des „Huit Batutas‟ pour Paris. Ils sont envoyés en embassade, ditce quotidien, comme representants du Brésil et l‟art brésilien. Une photographie nous révèle leur beauté physique, un article nous parle des services qu‟ils vont rendre à leur Patrie, des succès qu‟ils vont 164

Disputas estas que remontam a sérias insurgências bélicas desde muito antes do período da primeira república. 165 Um exemplo seria o movimento “Regionalista-Tradicionalista-Modernista do Recife”, expresso pelo “Manifesto Regionalista” de Gilberto Freire em 1926, onde se busca uma síntese para a nação e o povo brasileiro, via mestiçagem, mas, tomando como mito fundador, o Nordeste. Para Freyre, “o conjunto de regiões é que forma verdadeiramente o Brasil.” (Freyre, 1967: 32)

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remporter sur les boulevards de la belle Metrópole. La France, l‟Angleterre, l‟Italie, quand elles ont besoin de se faire representer à l‟étranger, choisissent leurs plus grands hommes d‟État. Chez vous, les choses se passent autrement: on vient de choisir les „Huit Batutas‟ pour vous représenter à Lutéce. Le journal A Noite assure que ces artistes sont la crème brésilienne... Qu‟en diront vos enemis? Vous, les representants de la presse, devez agir pour que de tels désagrements soient evités à votre beau et glorieux pays. Um sincére admirateur de votre merveilleuse Patrie, um ami de votre journal. León Faranda. (O Paíz, RJ, 4/02/1922)

E na seqüência vem a resposta do O Paiz: O missivista tem e não tem razão. Tem, porque acreditou na informação leviana do jornal que lhe deu a notícia. Não tem, porque os nossos „Oito Batutas‟ não levaram missão alguma, directa ou indirecta, official ou officiosa, para representar a arte brasileira em Paris ou na China. Aquelles patrícios nossos foram a Europa, como a Europa vão frequentemente, músicos americanos de seu gênero, attraidos pelo natural desejo de ganhar dinheiro, graças a accessibilidade de um publico, como, em geral, o Europeu, ávido de novidades exóticas, principalmente no artigo danse. Servem de paradigmas o tango argentino e outros muitos passos característicos estrangeiros, applaudidos até ao delírio em Paris (principalmente). Tolice rematada é dizer que os nossos batutas vão à Europa mostrar a nossa arte, coisa de que não tem culpa o missivista, mas certos jornaes – que têm o cuidado de provocar o ridiculo em torno do que é nosso, mesmo onde elle não pode existir. (O Paíz, RJ, 4/02/1922)

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Infelizmente não pude fazer um levantamento mais profundo sobre impressões da viagem em outros estados, ficando apenas com as informações das narrativas – sobretudo dos biógrafos de Pixinguinha em relação ao episódio onde são estas as notas articuladas. Mas com relação à imprensa carioca, muito pouco houve de resistência ou contraposição à viagem (ou pelo menos não foi possível afirmar o contrário a partir dos jornais que tive acesso do Rio de Janeiro da época), sendo antes um espaço de defesa em relação às notas difamadoras que vinham do interior, bem como de divulgação do “sucesso da troupe”. 3.2 – Notícias no Rio da estréia de Les Batutas em Paris As próximas notas que encontrei sobre o grupo são do dia 17/02/1922, dando conta da estréia no Sheerazade no dia anterior. Tanto o Jornal do Brasil quanto a Gazeta de Notícias se referem ao “sucesso” das músicas e dos músicos brasileiros em Paris. No dia seguinte a revista A Maçã publicou um artigo no qual comentava a polêmica em torno da delegação e a estréia nos seguintes termos: Para uns, a nossa missão musical vai redundar em prejuízo para nossos créditos de povo culto, de que os Oito Batutas não podem ser a expressão legítima. Para outros, porém, os franceses saberão o que essa missão exprime, tomando os nossos oito graúnas como autênticos representantes do gênio popular, e não como delegados do Clube dos Diários, da Associação Comercial ou da Academia de Letras. (A Maçã, RJ, 18/02/1922; apud Camargos, 2003: 141)

Vale destacar que, conforme o levantamento hemerográfico de Menezes Bastos (2004: 32, 2005: 195), desde o dia 12 de fevereiro de 1922, começam a circular as notícias da chegada do Les Batutas na França (Le Journal, Paris, 12 e 13/02/1922) e no dia 14/02/1922, dão conta da estréia no Shéhérazade os jornais Le Journal, Le Figaro, L‟Intransigeant e Comœdia. Dia 24 de fevereiro de 1922, Floresta de Miranda manda uma carta que será muito difundida nas narrativas, onde, usando uma escrita

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que reafirma o sucesso do grupo em tom entusiástico, com isso também responde aos críticos no Brasil, sobretudo ao francês morador de Barbacena (MG). A carta, porém só será divulgada no Rio no mês seguinte pelo jornal A Noite em 22/03/1922166. A propósito dos „Oito Batutas‟ O êxito da nossa música popular em Paris. Uma carta de preciosas e lisonjeiras informações. Do nosso distincto patrício A. Floresta de Miranda, actualmente em Paris, recebemos a carta abaixo, que estampamos sem julgar necessário esclarecer, como fizemos em tempo, que esta folha jamais afirmou terem ido os „Oito Batutas‟ a Paris, em embaixada dando-se a esta palavra a significação estrita e oficial. Eis a carta, que muito nos deve encher de jubilo: Paris, 24 de fevereiro de 1922. - A propósito do extracto do jornal „O Paíz, que me foi enviado dahi, e que junto com esta, onde um Sr. Leon Paranda, de Barbacena, censura A Noite por ter annunciado à son de trompe a partida dos Oito Batutas, permita-me que vos dirija esta carta. Se, de facto a A Noite publicou que esse conjunto de músicos partiria em embaixada, foi naturalmente victima de alguma informação errônea, que em nada o desabona. Os „Batutas‟ vieram a Paris por iniciativa exclusivamente particular, garantidos por excelente contrato, para se exibirem em um dancing ou dansange (corruptela franceza) denominado „Shéhérazade‟, actualmente sob a direcção de Duque. O facto de serem elles pretos não tem significação pejorativa para os brasileiros. As grandes orchestras de Paris (refiro-me a orchestra de dansa) são os „jazz-band‟ de pretos norteamericanos e não me consta que a grande 166

Cabral (1978, 1997, 2007) cita esta nota, como sendo divulgada pelo O País em 25 de fevereiro de 1922. Nesta data não a encontrei. Considerando que foi escrita dia 24 em Paris, seria difícil sua divulgação na íntegra no dia seguinte no Brasil. Martins (2009) também cita esta nota, através de Cabral.

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República soffra com isso algum eclipse. Demais, a França também possue homens de cor, milhares dos quaes deram o sangue em defesa da Pátria durante a guerra, o que lhes vae lhes valer um monumento in memorian. Se conclue que preto também é gente... e preta tem sido muita gente boa. Passemos adeante. Os „Batutas‟ não se apresentam aqui como expoentes da arte musical brasileira (o que seria ridículo) e, sim, como especialistas e introductores do nosso „samba‟, que já vae obtendo enorme aceitação. Ao par disso, possuem elles no seu grupo um grande (digo grande sem receio algum) flautista, Alfredo Viana, ou „Pixinguinha‟, como é mais conhecido ahi. Recordo-me de que Francel, ao ouvi-lo pela primeira vez, declarou-me não conhecer em Paris flautista de maior valor, chamando-me a attenção para a perfeição de son souffle! Ainda hoje, em Sheherezade, jantando em companhia de Gustave de Kerguézec, senador, presidente da comissão da Marinha, o professor Kochard, célebre cirurgião francez, e Mme. Henry Blanchon, senhora da mais alta sociedade parisiense (cito os nomes propositadamente para mostrar de quem se trata), tive ocasião de ouvir do senador de Kerguézec os maiores elogios ao conjunto dos sete, especialmente a Pixinguinha, para quem elle teve esta frase: C‟est un flautiste d‟une virtuosité épatante. Mostra a prova da sua sinceridade o fato de pretender convidar Mr. Rochet, diretor de L‟Opéra, para também ouvi-lo. Além disso, ficou combinado logo um almoço em casa de Mme. Blanchon, para que se pudesse apreciar os Batutas num ambiente mais tranquilo. Haroldo de Bozi, compositor, primeiro prêmio de flauta do Conservatório, também mostrou-se encantado ao ouvir Pixinguinha e declarou que iria compor un morceau especialmente para elle. Há apenas oito dias de exhibição e grande número de artistas e altas personalidades já estiveram assistindo os „Batutas‟.

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Naturalmente que, se elles aqui se apresentassem como intérpretes de Miguez, Nepomuceno ou Oswald, fariam fiasco, pois não é com violão, pandeiro, reco-reco e cavaquinho que se poderá interpretar os nossos mestres. Mas, no gênero que apresentam, posso garantir que fazem sucesso e os caros compatriotas estejam descansados que elles não nos envergonharão. Muito antes pelo contrário... como diria um poeta! Se a A Noite anunciou a son de trompe que ces artistes son la crème brésillienne, como diz o missivista, não deverá retirar o que disse, porque, no gênero, repito, eles são de facto. Com os votos de sinceridade e sympathia. Patricio, admirador e amigo. A. Floresta de Miranda. (A Noite, RJ, 22/03/1922)167

Evidenciando as controvérsias do texto, a carta cambaleia entre a negação de que Les Batutas representem a “arte musical brasileira” – buscando diminuir as críticas e preocupações no Brasil - e, ao mesmo tempo, a afirmação de que “son la creme brésillienne” no “gênero” específico em que são “especialistas e introdutores do nosso samba” em Paris. O titubeio entre as duas posições aponta para uma classificação estética que via o “folclore”, associado aos Batutas, como menor – ou menos elaborado – em relação à arte (ou Arte). Para Miranda seria “ridículo” confundir os dois âmbitos168. A carta ainda informa sobre uma audiência “distinta” que tem admiração pelos Batutas - sobretudo Pixinguinha – o que os legitima como virtuoses. Na semana seguinte outro periódico comenta as notícias de Paris. Os 8 Batutas - A cidade luz, mãe do apache e de Joanna D‟arc, é a virine em que o mundo inteiro vai escolher as suas celebridades. 167

Curiosamente, duas colunas à direita na mesma página do A Noite está outro destaque importante: “O BRASIL no estrangeiro. A NOSSA PROPAGANDA NA AUSTRIA – Uma conferencia do delegado do Ministerio da Agricultura em Vienna.”. A nota destaca, também entusiasticamente, outra apresentação da “bella pátria” (Brasil) na Europa. 168 Isto me fez recordar classificações operantes em várias situações em campo entre música popular/música erudita. Presenciei com certo incômodo a recorrência desta dicotomia operando em algumas palestras de que participei no Rio de Janeiro, sobretudo em discursos de músicos e musicólogos.

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O sucesso alcançado lá por um artista tem por isso o significativo valor de uma quase consagração universal. Convencidos disso, os nossos popularíssimos 8 Batutas, convidados por um contracto amável, resolveram acceital-o, partindo então para a grande prova. Cartas e telegrammas ultimamente de lá chegados garantem o successo indiscutível de nossos musicistas populares na Cidade Luz. Sabemos perfeitamente – e basta ter-se vivido algum tempo fora do Brasil para se comprehender – como o telegrapho e certos amigos de determinados homens nossos resolvem coroal-os lá fora para nos impressionar aqui. Acontece com os 8 Batutas, porém, que elles são artistas modestos, e que só mesmo um grande e real sucesso poderia fazer com que o seu echo retumbante até nos chegasse. Com a Victoria destes portanto, podemos nos orgulhar e acceital-a sem nos tornarmos ridículos... (Revista Careta, RJ, 1/04/1922).

Cabral (2007) ao articular esta nota em sua narrativa, enfatiza “a suspeita de certa manipulação feita no telégrafo internacional”, contudo esclarecendo que, “a própria revista se encarregou de excluir os Batutas dessas manobras”. Este mesmo autor apresenta outras duas notas da Gazeta de Notícias, sem apontar as datas, onde as impressões sobre a estréia do grupo no Sheerazade seriam ambíguas. A primeira seria muito otimista e eufórica, onde a letra do samba “Les Batutas” serve de engodo e exemplo de uma vitória do “nosso samba”, agora falando francês na “Cidade Luz”. A segunda já seria uma nota muito preconceituosa, segundo Cabral, onde se leria que “para uma turnê por centros de civilização adiantada, os maxixes tocados pelos Oito Batutas não podem dar a mínima idéia do nosso adiantamento”, sendo melhores representantes, Itiberê Cunha e Arthur Napoleão. A nota ainda chamaria a atenção de que a probabilidade de inserção e relativo sucesso dos “interessantes rapazes” (os Batutas) teria fundamento sob o caráter da curiosidade exótica que estes podiam despertar na platéia parisiense com seu “tanguinho brejeiro”. Terminaria o articulista mostrando sua preocupação em relação à percepção irônica dos parisienses: “Se os

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franceses quando nos olham de frente são irônicos, que dirão agora, que os Oito Batutas, em pleno Paris, estão exibindo as coisas do nosso país pelo avesso?” (Gazeta de Notícias, s.d. apud: Cabral, 2007: 91). Vale assinalar que esta seria uma das poucas notas de jornais cariocas que comentam a viagem veementemente de forma negativa. 3.3 - Les Batutas em Paris Este trabalho tem no Rio de Janeiro seu principal ponto de referência, mas vale tecer algumas considerações sobre a estadia do grupo em Paris, onde os trabalhos de Menezes Bastos (2004, 2005) apontam contribuições fecundas. Em sua “antropologia da noite parisiense”, Menezes Bastos constrói um cenário interessante do ambiente cultural de Paris nos anos 20 do século passado que ocupava lugar no imaginário mundial como a “cidade dos prazeres”169. Se de um lado a convivência de diversas manifestações culturais e artísticas de várias partes do mundo na cidade – no então entre-guerras - despertava nos parisienses certo sentimento de uma invasão estrangeira, gerando posições protecionistas em relação a isto170, por outro, na direção da manutenção da cidade como capital cultural, operava um anseio de predisposição em relação ao outro, posição ligada, sobretudo, a uma vanguarda artística parisiense (e habitué da vida noturna, contando com vários estrangeiros). Esta posição vanguardista (que tem aproximações com a antropologia171) despertava um sentimento de valorização e consumo do exótico, onde a África e traços associados a esta, centralizavam os interesses, constituindo-se mesmo uma atmosfera de negrofilia. Neste contexto, Menezes Bastos (2004, 2005) aponta onde, antes da chegada da equipe Batuta, estava situada a musicalidade popular brasileira, percebida como: 1- englobada pelo universo das danses exotiques, em oposição ao mundo francês (civilizado), relacionados aos planos da etnicidade e nacionalidade; 2 - como uma das danses nouvelles ao lado do, entre outros gêneros, cake walk (norteNa expressão de Flechet (2009), Paris seria nos 20 “a caixa de ressonância do mundo”. Martins (2009: 104) concorda com Menezes Bastos e identifica certa “cautela em relação à „invasão‟ das culturas negras no Ocidente francês”, não significando exatamente uma corrente “contra” a negrofilia. 171 Clifford (2002c), no capítulo intitulado “Sobre o Surrealismo Etnográfico”, discute as relações entre a antropologia e a vanguarda artística parisiense. 169 170

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americano), do tango (argentino), do passo doble (espanhol), da rumba (cubana); 3 – também associada às danses latines (do mundo da Amérique Latine); 4 – ainda tinha com Duque uma forte identificação (associado à dança do maxixe) o que a remetia ao mundo dos brancos.

(Le Journal, Paris, 16/02/1922 – Arquivo Lygia Santos) Anúncio sobre a estréia dos Batutas no Shéhérazade.

Após a chegada do grupo, Menezes Bastos (2004, 2005) identifica uma efetiva campanha publicitária para promovê-los, que buscou principalmente dar contorno e especificidade à musicalidade do Les Batutas como: 1 – de espírito nouveau, unique e de caráter étniconacional indiscutivelmente brasileiro; 2 – construído pela associação ao gênero samba, caracterizado pelo assento na rítmica e na percussão; 3 assumindo sua relação de contraponto com o mundo do jazz172, relação esta ao mesmo tempo de pertinência e independência. As ações da campanha, de um só golpe, lançavam a musicalidade do Les Batutas no plano mundial (para além da Amérique Latine), pois a aproximava ao mundo negro (africano), calcado no contraste relacional ao jazz, este grande Outro musical que assumia o centro da musicalidade mundial. De quebra, o grupo se afastava do tango argentino e do ambiente branco, livrando-os também da possível associação ao maxixe - identificado com o seu divulgador, o Duque, um personagem branco e por isso mais situado ao lado do tango argentino. É neste processo que, na Paris dos anos 20 – lócus de consagração então dos gêneros musicais nacionais - a musicalidade negra passa de problema a solução para a nação brasileira, Lê-se num dos anúncios do grupo: “L‟orchestre des Batutas n‟est pas un jazz-band. Il ne comprend ni piano ni batterie, composé d‟instrumentistes espéciaux, d‟une virtuosité accomplie, Il est d‟une gaieté communicative formidable.” (Le Journal, 16/02/1922. Apud, Menezes Bastos, 2005: 184) 172

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na direção da formação de sua identidade173, inserindo-a no sistema mundial das nações modernas, antecipando horizontes conceituais vigentes mais concisamente a partir dos anos 30174.

(Le Journal, Paris, 25/05/1922 – Arquivo Lygia Santos) Anúncio sobre os Batutas, agora no Chez Duque.

Assim, mais do que evidenciar um primeiro momento de invenção de uma brasilidade musical, onde o samba e o negro surgem como traços positivos para a identidade nacional brasileira, os trabalhos de Menezes Bastos (2004, 2005) apontam um modelo analítico interessante sobre o processo pelo qual isto se deu, num âmbito relacional internacional global e num período anterior aos anos 30, o que acena para outros temas e rumos para a análise do “mistério do samba” feita por Vianna (2008). A viagem ainda foi decisiva para impulsionar, conforme Menezes Bastos, a construção de Pixinguinha como “primus inter pares da música popular brasileira”, o que sugiro, em concordância com o autor, que foi a coroação de um processo que se inicia com a formação do grupo em 1919 e vai se tornando consistente, a partir das viagens ao interior do Brasil. Neste sentido, chamo a atenção para a importância das experiências de viagens e o caráter “transeunte” do grupo - usando a expressão de Coelho (2009) -, pois são nos encontros com “outros” que eles vão constituindo sua(s) musicalidade(s) e sua autoridade. Quanto ao tema comum nas narrativas sobre a passagem dos Batutas em Paris, expressa na sentença polêmica da “influência do jazz” na música popular brasileira, concordo com os argumentos de Coelho 173

Não deixa de ser significativo que em 1923 - um ano após Les Batutas em Paris - Oswald de Andrade profere uma conferência na Sorbonne, observando que “enquanto para o europeu o negro não passa de um elemento exótico, para os brasileiros, o negro é um elemento realista”. (Cf. Schwartz, 2008:657). 174 Menezes Bastos (2005) ainda aponta o processo congênito e concomitante da formação de gêneros nacionais, sobretudo em relação aos países da América Latina.

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(2009: 174 - 176). Este autor chama a atenção que esta temática tem suas consistências nas articulações narrativas posteriores aos acontecimentos relacionados aos Oito Batutas, sobretudo a partir dos anos 70, e neste sentido, irá distinguir três argumentos narrativos. O primeiro, onde Cabral (2007) e Martins (2009) são exemplos, reconhece a influência, mas atribuindo-a às necessidades profissionais impostas aos músicos – não só aos Batutas – pela moda dos jazz band, o que não consistiria uma diluição da brasilidade dos Batutas e nem de Pixinguinha. O segundo, contido em Silva & Oliveira Filho (1979) – e que ressoa argumentos dos anos 60, sobretudo de Rangel (1962) -, busca provar que tal influência não existiu, ou ainda invertendo sua direção, baseando-se em argumentação com “fatos históricos”, que justifica uma defesa ufanista e nacionalista reificante da idéia de influência, ao mesmo tempo em que constrói uma blindagem que torna incorruptível a brasilidade dos Batutas e, sobretudo de Pixinguinha. O terceiro argumento Coelho atribui a Cazes (1998) – e eu acrescentaria Diniz (2003a) – que ao diminuir a relevância da viagem dos Batutas a Paris, colocando-os como “mais um exotismo entre tantos da capital da intelectualidade” (Cazes, 1998: 64), nega também a influência, ao restringi-la aos aspectos da instrumentação e da indumentária somente175. Estes três argumentos compartilham em certa medida, segundo Coelho - e aqui me alio ao coro – de uma visão que, numa possível analogia com os paradigmas antropológicos, chamaríamos de “culturalista”, o que daria congruência aos conceitos de “influência” e “aculturação”. Para superar esta postura, Coelho lança mão do conceito de “apropriação” de Chartier176 (2001) para pensar a questão da Cazes (1998: 63) chega a basear seus argumentos na tese “Os Brasileiros em Paris nos anos 20”, de Marta Rosseti, com quem Cazes também conversou, e que afirmou a ele não haver referência à passagem dos Batutas por Paris. Isto me fez lembrar a resposta à minha pergunta a Anaïs Flechet sobre possíveis relações entre as passagens de Villa-Lobos e dos Batutas por Paris, ao que fui prontamente respondido que “NÃO!”, numa divisão clara entre mundos “popular X erudito”. Em minha conversa com Cazes (2009), ele também argumentou que a viagem não teve tanta importância, pois se tivesse, teriam feito gravações, sendo para ele, neste sentido, a viagem a Buenos Aires muito mais significativa. Severiano (2008: 85) apresenta argumento semelhante. Estes argumentos remetem a um discurso que toma a fonografia como índice mensurador do alcance simbólico e do “sucesso” das viagens. 176 Chartier (2001) elabora este conceito equacionando as concepções de Foucault (pautado nas idéias de controle e monopólio da formação e circulação de discursos, operando relações de poder) e Ricouer (numa perspectiva hermenêutica em que a apropriação dos textos se segue de atualizações e modificações de sentido), incluindo a atribuição de conteúdo sócio-histórico ao conceito. 175

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influência do jazz (ou não) que passa de uma atitude passiva dos músicos (“aculturados”), para uma “apropriação” ativa e consciente do contato com esta e outras musicalidades, tendo os músicos, antes entrado em contato com possibilidades estéticas múltiplas que poderiam ser acionadas em circunstâncias diferentes, sem com isso constituir abandono da brasilidade. Nestes termos, as discussões em torno do tema da influência apontam para a o âmbito das disputas pelo monopólio de sentidos, onde entram em jogo, entre outras, as concepções de brasilidade e seus símbolos. Acrescento, a título de complementação destas idéias, que a chegada dos Batutas ao Rio de Janeiro, de volta de Paris, apresentava uma conjuntura em que a musicalidade articulada na campanha vitoriosa (onde o negro e o samba constituem o cerne) mobilizava significados muito interessantes para o momento da celebração do Centenário da Independência e o sentimento de inclusão do Brasil no contexto mundial. 3.4 – De volta à terra natal Dois dias antes da chegada do navio Lutecia ao RJ, o A Noite já convocava os membros do clube Fluminense F. C. para recepcionarem o seu presidente, Arnaldo Guinle. No dia 14/08/1922, ancora o Lutecia, trazendo a bordo dentre outras personalidades, Santos Dumont, Arnaldo Guinle, assim como os Batutas, vindos para as comemorações do Centenário da Independência. Neste mesmo dia os “8 Batutas” recebem nota no A Noite (do fiel escudeiro Irineu Marinho), como “os applautidos músicos brasileiros que na Cidade Luz se fizeram apreciar”, nota ilustrada com uma foto do grupo com Duque (talvez como o oitavo batuta) no Shéhérazade.

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(A Noite, RJ, 14/08/1922 – Acervo Biblioteca Nacional) No dia 16 de agosto, a Gazeta de Notícias comenta sobre a chegada do grupo que fez uma visita ao jornal para informar suas próximas ações. Duque e os Oito Batutas – Uma visita à Gazeta. Recebemos hontem a visita do conhecido dansarino Duque, chegado ante-hontem de Paris, que se fazia acompanhar dos Srs. Ernesto dos Santos, o Donga, e Octavio Vianna, ambos pertencentes ao aplaudido conjunto denominado “Oito Batutas”, também regresso da capital francesa, onde se fizeram ouvir, conseguindo enorme triumpho. Na rapida palestra que connosco entretiveram, os populares artistas nos transmitiram as suas impressões da Cidade Luz,

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onde tiveram os seus esforços coroados de exito pois foram unanimes os applausos recebidos. Aqui no Rio, os "Oito Batutas" vão fazer a sua reaparição, amanhã, dia 17, na festa que o Jockey Club offerece ao seu presidente, Dr. Linneu de Paula Machado. Nessa festa elles executarão o seu repertório de musicas brasileiras, e no proximo dia 6 de setembro, então no Fluminense F. C. exhibirse-ão no genero "jazz-band", para o que aguardam a chegada dos instrumentos de pancadaria já encommendados. Quanto ao dansarino Duque, que agora se retira completamente da sua funcção de dansarino para tornar-se professor de dansa, pretendendo mesmo abrir no Rio um curso especial, contou-nos que vem introduzir nos clubs chics desta cidade o moderníssimo "cotillon" francez, completamente desconhecido do publico carioca. Esses "cotillons" serão dirigidos pelo próprio Duque, que para isso já tem o convite de varios clubs. É innegavelmente essa uma boa noticia para aquelles que gostam de divertir-se frequentando os salões dos nossos principaes clubs. (Gazeta de Notícias, RJ, 16/08/1922)

Vale destacar que, recém chegados, Duque177, Donga e China já buscavam restabelecer contatos em visitas à imprensa, estratégica de marketing utilizada há tempos pelo grupo. Chamam a atenção para o êxito do grupo em Paris, para as novidades trazidas da metrópole, o jazz band, que será apresentado com exclusividade no Fluminense Club, que era então presidido por Guinle, patrocinador também do “instrumento de pancadaria”178. Contudo, eles também fazem questão de não abandonar o “seu repertório de músicas brasileiras”. No mesmo dia 16, o A Notícia traz na primeira página uma longa entrevista com o grupo (quase ¼ da página). Partes desta entrevista integram as narrativas de Cabral (2007), Silva e Oliveira Junior (1979), Bessa (2005) e Martins (2009), mas acredito ser interessante reproduzi-la na íntegra. 177

De acordo com o A Noite, Duque abre seu curso de dança dia 29 de agosto de 1922. Segundo Cabral (2007: 93), a bateria foi um presente de Guinle a J. Tomás, o oitavo Batuta que não pôde embarcar para Paris. 178

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Vinte Minutos da rua do Ouvidor A cançoneta franceza pela voz do Samba Nacional Os Oito Batutas e o Duque Um bulício de artéria estreita e elegante, num cair da tarde, como a de hontem na rua do Ouvidor. Gente que anda, roçando-se pelos ombros e gente que para às esquinas, entopindo o trânsito, discutindo football ou frivolidades. Céo límpido, de uma tonalidade igual. De um azul suave e branco. - Os “Oito Batutas”! Estacamos. Deante de nós, o Alfredo Vianna, o „Pichinguinha‟, o Ernesto dos Santos, o „Donga‟, o Nelson, o Octavio Vianna! Andamos nos braços uns dos outros, em amplexos de velhos amigos. Mas, logo depois, uma palmada em cheio nas costas, fazendo-nos voltar para o outro lado. Duas mãos tomam as nossas, puxando-nos para um outro peito amigo. - O Duque!? - Pois, então, amigo? Aqui estamos todos. Aqui está todo o “chez – Duque” de regresso à Pátria amada! - Ao café! Cadeiras que se arrastam em torno de uma das mesas do “Palácio”. Acomodamos o melhor que pudemos faze-lo. Palavras de boas vindas. Mutuo jogo de parabéns pelo aspecto de feliz saúde de todos. - Quem fala? - Do Rio? - Não, de Paris. O Duque sorridente, escusa-se. Falar de Paris, elle? Elle que tem sempre um pé aqui, outro lá? Não. Que o façam os “Batutas”. Esses é que devem dizer do que fizeram lá por fora. O “Pichinguinha” arrisca um tanto a medo: - Mas é uma entrevista? - Não. Uma palestra apenas. - Pois então, modéstia parte, fique sabendo que triunphamos. É bom que saiba que quando daqui saímos, caminho a Paris – animados por uns,

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ridicularisados por outros – não tínhamos a estulta pretensão de irmos representar, no estrangeiro, a arte musical brasileira. O que íamos apresentar em Paris e o fizemos com descencia – Graças a Deus – era apenas, uma das feições de nossa musica, mas daquella essencialmente popular, característica. Para os que nos animavam, ficavam em nossos corações reconhecimento e saudades. Dos outros, preferimos amargar os adôpos a discutir. Tocamos em frente! - E Paris... - Recebeu-nos entre palmas, victoriosamente. Ali chegamos a 12 de fevereiro e estreamos a 15 no “Sheerazade”. Uma platéia cheíssima, que nos compreendeu desde logo, que nos pareceu ter imediatamente compreendido que o que ali estava, recolhendo seus aplausos, era apenas um grupo de artistas modestos, mas profundamente sinceros, fazendo-lhes ouvir a música fácil, despretenciosa, das nossas cantigas populares. O “samba”, o “maxixe”, a “embolada”, o “desafio”, a “polka”, a simples valsa de serenata, qualquer número, enfim, que tivesse feição genuinamente brasileira, tinha sempre a saúda-lo um publico que não se limitava até a faze-lo com palmas. Muitas outras demonstrações de agrado, nós “les brésiliens”, como a principio nos chamavam, recebemos diariamente. - E quais os números que mais agradaram? - É impossível dar-se uma resposta qualquer. Parece-nos que... todos, convindo que digamos, 12 delles, comprehendendo composições dos do grupo, fomos obrigados a mandar imprimir para dar à venda. Entre estes um samba que ali compuz “Les Batutas”, que a platéia cantava comnosco. E depois do “Sheerazade”? - No “Chez Duque”, um dancing que o Duque inaugurou ali. A nossa estréia na nova casa foi a 2 de junho. E ali, como no “Sheerazade”, continuamos, felismente, sempre com o agrado do publico. Ahi, o “Donga”, que até então se mantivera como simples expectador, interveiu:

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- E o “Pichinguinha” ainda não disse tudo... - Como assim? - É que agora temos em um ou outro numero do repertório, ao envez da flauta, o saxophone. - O saxophone? - Sim, o saxophone... E entrou o Nelson, por seu terreno, a explicar o caso. Influencia talvez das jazz band, das quaes encontraram quatro em Paris, também em pleno sucesso. Acamaradagem entre os músicos das duas nacionalidades, deste outro continente, estabeleceu-se de tal forma que, por vezes, os norte-americanos acompanhavam com a sua “bateria” estravagante e endemoinhada, os números dos instrumentistas brasileiros. Desta comunhão, nasceu no “Pichinguinha” o intenso desejo de experimentar o saxophone. - E tentou-o? - E tocou-o já, o que é mais, o que é tudo! E o flautista, acredite, muito pouco ainda está devendo aos saxophonista... - E de novidades musicaes, trouxeram-nas muitas? - Uma grande mala, a transbordar! Temos ali de tudo quanto é novidade apparecida ultimamente em Paris. Espalhamos por lá, grandemente a musica popular brasileira, sem distinção de autores, trazendo, em cambio, o que Paris conta, e o que Paris ouve. - E, fora dos espectaculos públicos, fizeram-se ouvir em outros lugares? - Muitos. Por um convite que nos honrou sobremaneira, fizemo-nos ouvir até no Ministério dos Trabalhos Públicos. Mas, não foi só. Professores dos mais acatados, músicos dos de maior nomeada, tiveram a delicadeza de nos ouvir e aplaudir. Que mais poderíamos desejar? Depois, approximamos o nosso “samba” não só da canção franceza, como do “shimmy” americano. Voltamos plenamente satisfeitos. - Não quizeram fazer novo contracto? - Não. Offereceu-nos o Duque, que sempre se mostrou um grande amigo nosso, excellente

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contracto para Biarritz. Mas não quizemos. Lá fora, a Patria é, para nós, outros, como uma mulher que deixamos distante e que amamos muito, seja ella, mãe, esposa, ou amante. As saudades deste sol, destas coisas todas, cada dia augmentavam mais. Depois, ahi vem o nosso centenário... - E agora, para onde vão? - Não sabemos ainda. É provável porem que permaneçamos no Rio, durante algum tempo. Mais umas chicaras de café. Sahimos. Despedidas. E os “Oito Batutas” lá se foram, com o Duque, na direcção da Avenida... (A Notícia, RJ, 16/08/1922)

A articulação narrativa do jornalista é significativa, imprimindo um modo particular ao discurso atribuído aos músicos. No entanto, algumas informações podem sugerir algo sobre o tema, como por exemplo, o destaque já no título da coluna, ao “Samba Nacional” em oposição à “cançoneta francesa”. É significativa também a relação próxima entre o jornalista e o grupo, como “velhos amigos”, o que pode indicar a eficácia das estratégias de marketing que buscavam agregar músicos e imprensa a um mundo compartilhado. As frases atribuídas a Pixinguinha apontam de um lado um caráter modesto que assinala uma despretensão da viagem em representar a “arte musical brasileira”, mas sim uma de suas facetas, a de origem “popular” e “caracteríztica”; porém, de outro lado, destaca o “triunfo” da campanha que se dá justamente pela “feição genuinamente brasileira”. Ou seja, o poder que dá êxito à viagem estaria ligado ao caráter de essência de uma brasilidade genuína que o grupo encarnaria179. Esta relação já era acionada pelo grupo em momentos anteriores a 1922. Curiosamente, dentre as várias possibilidades de gêneros (ou rótulos) em que esta essência (fonte da boa receptividade) poderia estar contida, é o samba a escolha principal, talvez a que daria o melhor resultado180. Também o 179

Aqui há similaridade lógica ao pensamento do movimento modernista de 22, onde o folclore seria uma inspiração para elaborações conceituais e estéticas de outra ordem, pretensamente mais complexa. 180 Não deixa de ser representativo que o samba “Les Batutas” seja o grande destaque da viagem.

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saxofone aparece aqui como ator distintivo que provê o grupo de novas articulações estéticas ligadas ao jazz – assim como o apelo à idéia da novidade trazida da metrópole -, fornecendo alargamento das possibilidades do grupo, algo significativo para se colocar como concorrente no “campo” – no sentido de Bourdieu - da música popular de então. No entanto, a fala atribuída a Nelson Alves (e que é reproduzida nestes termos em várias narrativas) sobre a influência do jazz-band parece ser mediada pelo jornalista, onde o advérbio “talvez” imprime certa dúvida ou incerteza em relação à afirmação, assim como o verbo “encontraram” (em 3ª pessoa) no lugar de “encontramos” (em 1ª pessoa) indica articulação jornalística, normalmente desconsiderada nas narrativas que usam esta nota, como Bessa (2005), Cabral (2007) e Martins (2009). 3.5 – Nacionalizando a Companhia Ba-Ta-Clan No dia 21 de agosto de 1922, a companhia de teatro de revista francesa Ba-Ta-Clan encerra as apresentações da peça “Pours vous plaire”, no Teatro Lyrico, substituindo-a pela nova representação chamada “V‟la Paris”. Esta nova montagem estreou dia 22 com anúncio no A Noite comunicando que Madame Rasimi, diretora da companhia, “num gesto de confraternização franco-brasileira”, abriu espaço para um “quadro nacional” na peça, chamando o escritor José do Patrocínio para escrevê-lo e Leopoldo Fróes para o papel principal, sem alusão aos Batutas recém chegados de Paris181. Contudo, no dia seguinte o jornal anuncia: “Duque e os „8 Batutas‟ no Lyrico”. A diretora da companhia do Ba-Ta-Clan, para dar mais cunho nacional ao quadro brasileiro que vai ter uma revista do seu repertório acaba de contratar os „Oito Batutas‟ para nelle trabalharem. Os apreciados músicos brasileiros irão fazer o repertório que mais sucesso alcançou em Paris. Mme Rasime pediu ao professor de dança Duque para ensaiar os números coreographicos do citado quadro, que José do Patrocínio está escrevendo e

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No mesmo dia sai nota expressiva no Jornal do Comercio que descreve detalhadamente os 31 quadros da revista, sem qualquer menção ao quadro “nacional”.

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que vae ter como interprete principal Leopoldo Fróes. (A Noite, Rj, 23/08/1922)

Um dia mais e os Batutas estréiam com os seguintes comentários do jornal. Os „8 Batutas‟ no Lyrico A direcção da companhia do Ba-Ta-Clan não quiz esperar a representação do quadro brasileiro em elaboração para uma de suas revistas, afim de estrear nos seus espectaculos o conhecido grupo nacional dos '8 Batutas'. E fez bem, porque foi ao encontro da ansiedade do publico carioca, em rever os sympathicos e apreciaveis musicos caracteristicos. Assim, estrearam hontem, num quadro da revista 'V'la Paris', esses applaudidos artistas que acabam de vir de uma excursão de successo a Paris. Os '8 Batutas' foram o numero de maior exito do espectaculo de hontem do Lyrico. Todas as partes que esses artistas executaram mereceram applausos calorosos da plateia. Os '8 Batutas' continuarão a exhibir-se nas vindouras revistas da troupe do Ba-Ta-Clan. (A Noite, Rj, 25/08/1922)

Vale ressaltar que o grupo atua como o ator que dá caráter nacional ao espetáculo, no intuito de tornar a peça mais brasileira, sendo neste sentido apontados nos anúncios publicitários como destaque nas chamadas que evidenciam: “Peça em que tomam parte os „8 BATUTAS‟ – COLOSSAL SUCCESSO” (Jornal do Comercio, 26/08/1922). Este sucesso é acionado via experiência exitosa da viagem do grupo a Paris, que não os descaracterizam, senão legitimam-nos como nacionais182.

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Como aponta Antunes (2004: 50), este período consolida a aproximação do teatro ligeiro e da revista ao mundo carnavalesco, onde os músicos populares disputavam as peças e quadros teatrais para a divulgação das novas composições, sendo os palcos da Praça Tiradentes instâncias consagradoras dos sucessos musicais populares que seriam cantados nas ruas da capital e outras regiões do país.

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(Jornal do Comércio, RJ, 25/08/1922 – Arquivo BU-UFSC)

A importância da passagem da companhia francesa de revista Ba-Ta-Clan pelo Rio de Janeiro em 1922 foi significativa para a mudança conceitual imprimida aos espetáculos de revista, sobretudo em relação às montagens e ao apuro técnico e de cenários. Buscava-se um equilíbrio entre as cenas cômicas, a crítica maliciosa e os quadros de fantasia183, onde a corporalidade feminina em uma exposição erótica e sensual mais explícita apimentava as coreografias que empolgavam o público, assim como despertava possíveis reprovações e censuras184. Neste contexto a companhia de Madame Rasimi suscitou polêmicas que iam além do desembaraço e apelo corporal das vedetes, chegando a críticas às tentativas da companhia de representar o Brasil, primeiramente em uma peça chamada “El Brazil”, apresentada ainda em Paris e depois, já no Rio de Janeiro, quando se inseriu atrizes francesas atuando como se fossem negras brasileiras. Sobre estas representações do Brasil no exterior – e seu teor ofensivo - o Jornal do Comércio de 183

O Ba-Ta-Clan tinha inspiração nos espetáculos do moderno music-hall francês, que era uma variante do teatro musicado que se difundiu amplamente no entre guerras por todo o mundo, pautado na valorização e elaboração da exibição visual, conjugando as idéias de variedade e agilidade dos quadros. 184 Sobre este processo conforme Antunes (2004: 47 – 68). Ver também Braga (2003) e Gomes (2003).

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16/08/1922 publica um artigo que retira da companhia Ba-Ta-Clan a responsabilidade pelo quadro caricatural ofensivo, pois seria antes, culpa de uma política diplomática equivocada que não se fazia representar de forma digna, pois, (...) lá no extrangeiro, o Brasil tem por figura symbolica um homem nu com tanga de pennas de arara, cocar de pennas de papagaio e, por arma de guerra e caça, o arco e flexa. Hão de convir comnosco que essa figura emblemática não representa um paiz civilizado... nas capitães de seus Estados, somente. Agora mesmo, representando a arte musical do Brasil, lá estão em Pariz os „Oito Batutas‟, com roupas de couro, chapéos de couro e tocando instrumentos e dansas de capadocios. O Ba-TaClan não tem culpa da propaganda que varias nações sul-americanas fazem em favor dos seus paízes e também em detrimento do Brasil, (...) (Jornal do Comercio, RJ, 16/08/1922).

Para o periódico O Malho (02/09/1922) a contratação dos Oito Batutas por Mme Rasimi seria uma resposta peculiar da “mordaz ironia franceza” a estes protestos. No entanto, sugiro que para Mme Rasimi, a volta dos artistas do “Oito Batutas” ao Rio de Janeiro, vindos de Paris, significava sim, possibilidades interessantes de atrações para sua peça, pois a articulava ao espírito nacionalista (ufanista) do período pré Centenário da Independência. Isto justificava inclusive o adiantamento da estréia do grupo no Ba-Ta-Clan185, antes mesmo da estréia do “quadro nacional”186. Por outro lado, é significativo que “V‟la Paris” seja uma representação descritiva de fatos (com ênfase cômica) do cotidiano parisiense, onde os Oito Batutas, cantando, por exemplo, um 185

O Ba-Ta-Clan voltou à cidade em 1923 quando trouxe como atração principal a legendária vedete francesa Mistinguett - a rainha do music-hall francês -; e ainda uma terceira temporada em 1926, quando contratou o Cartlito‟s Jazz-Band (do baterista Carlos Blassifera) para acompanhar a companhia no nordeste brasileiro, incluindo também uma excursão à Europa, a segunda viagem de Donga ao exterior, agora em novo grupo. (Tinhorão, 1969: 34; Cabral, 2007: 127) 186 O “quadro nacional” estréia no dia 29/08/1922 (sem o astro Leopoldo Fróes), mesmo dia em que o A Noite anuncia a abertura do curso de dança de Duque. Já no dia seguinte sai de cartaz a revista “V‟la Paris” e estréia “Au Revoir”, que vai até dia 03/09/1922.

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samba intitulado “Les Batutas”187 (de Pixinguinha e Duque) escrito em francês, legitimavam uma atuação da brasilidade no âmbito internacional. 3.6 – Celebrando o Centenário da Independência As narrativas sobre o grupo indicam as próximas ações dos seus integrantes e colaboradores, voltadas aos festejos na Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil, inaugurada dia 7 de setembro de 1922188. Este evento foi de uma grandeza impressionante, talvez o maior da época, em que pulsavam as buscas intensas pela caracterização do “nacional”, ao mesmo tempo em que o Brasil se inseria no chamado concerto das nações e na modernidade189. Como aponta Sant‟ana (2008), esta comemoração espetacular realizada no Rio de Janeiro coroou a constituição do espaço da modernidade brasileira dos anos 20, sendo a materialização da efemeridade do presente, estimulada por visões e reflexões do passado.

Há no arquivo de Mozart Araújo (no CCBB – RJ) um exemplar da partitura deste samba que foi registrado e impresso em Paris. A letra é mesmo uma apresentação do grupo e do gênero musical samba: Nous sommes Batutas/ Batutas, Batutas/ Venus du Brésil/ Ici tout droit/ Nous sommes Batutas/ Nous faisons tout le monde/ Danser le samba. Le samba se danse/ Toujours en cadence/ Petit pas par ci/ Il faut de l‟essence/ Beaucoup d‟elégance/ Le corps se balance/ Dansant le samba. La musique est simple/ Mais três rytmique/ Nous sommes certains/ Que ça vous plaira/ Nous sommes Batutas/ Batutas uniques/ Pour faire tout le monde/ Danser le samba. 188 O Brasil já havia realizado a Feira Nacional do Brasil em 1861, idealizada aos moldes das Grandes Feiras Mundiais que estavam em voga no século XIX, sendo exemplos a Exposição Industrial de Todas as Nações, em Londres no ano de 1851. Naquela ocasião, sob o regime imperial, buscava-se inserir o Brasil no cenário industrial internacional, onde os ideais de progresso técnico e científico apontavam os rumos de uma nação inserida na modernidade. Sobre as Feiras Internacionais e a inserção do Brasil nestes eventos, cf. Sant‟ana (2008), trabalho este que foca, sobretudo, os eventos relacionados à Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil de 1922, em um interessante enfoque historiográfico que fornece elementos importantes para se compreender tanto o que era o Brasil enquanto Estado-nação moderno, assim como o que este pretendia ser enquanto tal. 189 No mesmo ano outro evento significativo buscava caracterizar a essência nacional brasileira, em consonância com a modernidade, a Semana de Arte Moderna em São Paulo. Ainda que houvesse certamente disparidades entre as ações e discursos em voga nos distintos eventos, significando um cenário concorrencial entre ideais nacionais, a conjugação entre o nacional e o mundial era compartilhada. 187

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A festa do “nacionalismo brasileiro” glorificou o revival do estilo colonial português (neocolonial, consagrado como “o estilo nacional” em 1922), evidenciou as raízes africanas dos batuques e do samba, destacou a relação entre Brasil e Inglaterra – essencial no processo de desenvolvimento industrial brasileiro – em mostras industriais e discursos. O evento promoveu a universalização da nação através da particularização da mesma, conjugando modernidade com signos simbólicos nacionais. (Sant‟ana, 2008: 36)

Nos Pavilhões da Exposição do Centenário e seus arredores se firmavam valores e ideais que eram tidos como meio para a consolidação do progresso, da civilização, via exaltação do “nacional”. Esta representação de um “novo Brasil” estava intimamente ligada ao mundo ideal das elites republicanas, e se pautava por novas práticas sociais, onde proliferavam símbolos da modernização – como o automóvel, bonde elétrico, cinema, rádio e o relógio – associados às reformas nos âmbitos urbanísticos e arquitetônicos. Estas reformas vinham das décadas anteriores e provocaram implicações ao mundo sócio-cultural, sobretudo em relação à população pobre, sendo legitimadas por retóricas sanitaristas e de segurança pública190. Dentre as ações promovidas neste ambiente está a finalização do processo de desmonte do Morro do Castelo191 dando lugar à construção dos diversos 190

Sevcenko (2006) faz uma leitura das alterações de hábitos, costumes e de suas implicações nas tensões sociais e políticas. Porém, sua análise enfatiza a “novidade moderna” (a partir da Europa e das novas tecnologias) e dá pouca atenção ao processo concomitante de “criação” do passado e da tradição, que fica jogado para o “regional” – mantendo a oposição criada moderno/interior - com sentido negativo (como menos moderno) ou positivo (mais autêntico). Sugiro que analisar este ambiente através das ações relacionadas ao evento da Exposição do Centenário em 1922 fornece indicações para se concordar que a consolidação do moderno se dá em função de uma reafirmação do tradicional. Não há neste processo uma contradição, mas uma conseqüência. 191 Este processo foi concluído na administração do prefeito Carlos Sampaio, que era engenheiro e assumiu a prefeitura tendo como uma das principais metas a preparação da cidade para a exposição do centenário. A primeira intervenção no Morro do Castelo data da primeira década do século XX, quando das ações urbanísticas do Prefeito Pereira Passos que resultaram na construção da Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), feita à imagem dos boulevards parisienses, ladeada por grandes construções, entre elas, a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes, o Supremo Tribunal Federal, a Câmara Municipal e o Teatro Municipal. Neste sentido, a partir de 1920, a área do Castelo torna-se região valorizada e “era

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pavilhões que iriam receber as exposições das várias nações participantes da exposição. A Comissão Organizadora do Centenário da Independência do Brasil a partir de agosto de 1922 começou a publicar uma revista dando conta das atividades relativas ao evento, bem como divulgando as idéias, valores e sentimentos que dele emanavam, sobretudo a valorização do desenvolvimento, do progresso e da integração nacional, via exaltação do liberalismo. Os Estados Unidos da América foram destacados como exemplos e amplamente elogiados no número de abertura da revista. O articulista Pádua Resende fornece a intenção oficial do evento nos seguintes termos: Mostrar, por forma sumaria, os resultados que alcançamos nas várias espheras de nossa actividade política, social e econômica, no decorrer d‟esses últimos cem annos, deve constituir presumpção legítima dos dirigentes da actual Exposição Brasileira, não só para revelar o labor nacional, mas precisamente, para documentar a nossa perfeita integração ao processo geral das nações. (Resende, 1922: 2)

A mesma revista – em vários dos seus números - trazia uma seção chamada “Os Fundamentos do Espírito Brasileiro”, escrita por Pontes de Miranda192 com textos de cunho sociológico, buscando caracterizar “o brasileiro”, onde o mestiço aparece como opção. Escreve Miranda ao tratar da “origem do nosso folk-lore”: (...) As impressões que o folk-lore brasileiro deixa nos que o observam e estudam é de que, no nosso typo definitivo, haverá o predomínio das qualidades exteriores e de intelligência do branco, porque é nesse sentido que parece evoluir o preciso eliminá-lo não apenas em nome da higiene e da estética, mas também da reprodução do capital” (Abreu, 1997). Para uma maior contextualização sobre as discussões e implicações sócio-espaciais do desmonte do Morro do Castelo, incluindo uma vasta iconografia, conforme Nonato e Santos (2000). 192 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892–1979) foi advogado, jurista, diplomata e professor, com atenção também à filosofia e à sociologia. Ocupou a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras em 1979, conforme o site: www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=276&sid=130.

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mestiço sob a influência do meio, das leis de adaptação e da seleção natural. Um ponto curioso a se assinalar na época em que festejamos o primeiro século de nossa emancipação política, é o que prevê, mediante a aceitação de que nosso indígena teria ligações ancestraes com a raça amarella, que o brasileiro venha um dia a realisar o typo humano por excellencia, concentrando em seu sangue a tenacidade do amarello, o sentimento do negro e a intelligencia do branco. (Miranda, 1922: 14)

É explícita a orientação evolucionista social do texto, numa versão do “mito das três raças”, sendo privilegiada a figura do “mestiço” como “typo definitivo” do brasileiro, nesta que era uma publicação oficial do evento dos festejos do Centenário da Independência. Neste contexto193 – certamente não uníssono, senão parte de um campo concorrencial de disputas simbólicas – é que os integrantes dos Oito Batutas (e seus colaboradores) se inserem, o grupo participando das atividades artísticas promovidas no pavilhão da General Motors e segundo narrativas (Cabral, 2007) e (Silva & Oliveira Jr., 1979), na Embaixada dos E.U.A., onde teriam tocado para o embaixador norteamericano Morgan, um admirador da musicalidade brasileira. Não encontrei nenhuma menção aos Batutas nas programações publicadas nos jornais, revistas e cadernos que consultei e que davam conta dos eventos da exposição. Segundo Cabral (2007) e Silva & Oliveira Jr. (1979), Pixinguinha seria o líder de uma orquestra especialmente organizada para a exposição, e provavelmente contava com vários dos integrantes dos Batutas. No entanto, é necessário chamar a atenção de que estes autores estão escrevendo a biografia de Pixinguinha (poderíamos dizer hagiograficamente), o que implica na centralidade do personagem na construção do evento narrado. De qualquer forma, os festejos do Centenário são recorrentes nas narrativas sobre o grupo, assim como nos discursos de seus integrantes, até mesmo como um dos motivos pelos quais o grupo teria voltado de Paris para o Brasil. Após a 193

Talvez fosse rentável pensar este evento como ritual, inspirado nos estudos de DaMatta, para quem o mundo do ritual é parte integrante do cotidiano, e eventos como festas e comemorações são lugares privilegiados para a análise, ou seja, “é como se o domínio ritual fosse uma região privilegiada para se penetrar no coração cultural de uma sociedade” (DaMatta, 1997: 29).

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Exposição, segundo os biógrafos de Pixinguinha, o grupo voltou a se apresentar no Cabaret Assírio, já incluindo as novidades do jazz-band, partindo em dezembro de 1922 para a Argentina. Gostaria apenas de remarcar alguns dos pontos abordados aqui sobre este evento da viagem dos Batutas a Paris, o ponto nevrálgico da “mitologia Batuta” no meu entendimento. Primeiramente, em relação aos “debates acalorados” que a viagem suscitou, é significativo notar que as notas de reprovação à viagem partem em sua maioria do interior do país, sendo a capital – Rio de Janeiro – um âmbito muito mais de apologia e incentivos. De certa forma, pensando analiticamente de forma modelar194, a despeito da “grita” – como se refere Efegê às polêmicas negativas - do interior contra a representação Batuta em Paris (nas narrativas articuladas aqui, sobretudo em relação a Pernambuco), o Rio de Janeiro enviou-os mesmo assim195. Nos termos desta disputa regionalismos/capital, é possível pensar uma intencionalidade específica (da capital) na campanha próBatuta empreendida em Paris – campanha semelhante à que já havia ocorrido em outros termos em contextos distintos – no sentido de uma representação do Brasil e da brasilidade ao mundo196, a meu ver diplomática mesmo, como parte da ação política constitutiva do próprio Estado-nação. No entanto, a noção de “Estado” aqui é inspirado em Geertz (1991), para quem – estudando o Estado-teatro balinês – o conceito deve ser entendido para além da sua concepção restrita da “governança”197, sendo necessária para a sua compreensão a restituição 194

Não pretendo diluir o fato de que houve também declarações contrárias à viagem partindo do Rio, mas o tom destas é muito diferente, além de serem menos freqüentes e de demorarem até a estréia para começarem a ser veiculadas. 195 Como já assinalei, é instigante pensar nos movimentos regionalistas e nas conseqüentes insurgências como pólos concorrenciais ao então estabelecido governo da capital. 196 Do ponto de vista carioca, os Batutas não estão ausentes do interior/regional – as regiões singularizadas em uma -, mas sim, eles são representações deste, atualizados no Rio pelo caráter sertanejo que o grupo tem como possibilidade estética. Isto fornece materialidade à sua condição de representante de uma identidade brasileira, constituída no bojo da idéia de uma totalidade das diferenças regionais. Opera aqui um traço do discurso “cariocacêntrico” que constitui boa parte do pensamento musical brasileiro e que sobrevive ainda hoje, quando se refere, sobretudo, a gêneros musicais como o choro e o samba. 197 Geertz (1991) identifica que na concepção de Estado do discurso político moderno há pelo menos três temas etimológicos concentrados em si: o status, a pompa e o governo. Nesse discurso, este último tema, o governo, tende a dominar o conceito, ao ponto de obscurecer os demais, comprimindo a compreensão da sua natureza múltipla. Analisando o Negara, o autor se

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da dimensão simbólica ao conceito de Estado. A idéia de representação – talvez fosse melhor o termo apresentação - a que me refiro é entendida de forma “tautegórica” ao invés de “alegórica”. A “alegoria” supõe o dizer algo (do latim “gorien”) de algum fato ou coisa, através do outro (do latim “ale”) que o determina. Por sua vez, a “tautegoria” supõe o dizer algo (“gorien”) de algum fato ou coisa, partindo dele mesmo (“taute”), ou seja, dizer a coisa é ser a própria coisa. Na representação enquanto tautegórica (portanto presentacional), significante e significado são coincidentes198. No entanto, o que sugiro chamar de ato comunicante da representação tautegórica – pois tem por objetivo comunicar significado – é passível de mudança, ou seja, pleno de criatividade, ao representar-se a si mesmo em continuidade, também se re-cria em transformação. Seguindo as ações nos eventos em relação aos Batutas, a viagem a Paris pode ser pensada como um momento de atuação de uma representação de um Brasil, re-criado enquanto nação, numa conjuntura em que o samba e o negro surgem como elementos pertinentes. A meu ver, o próprio fato de existirem as controvérsias sobre a legitimidade da representação reafirma a efetividade da sua existência enquanto tal. De certa forma, a idéia recorrente em narrativas que buscam exaltar a “tradição” da música popular brasileira, de que a viagem dos Batutas a Paris foi “a primeira a levar a música brasileira ao mundo”, pode ser pensada como uma viagem que trouxe para a nação brasileira uma possibilidade interessante para re-constituir a si mesma em sua musicalidade. Foi na relação com os “outros” que se afirmou o “eu” enquanto brasileiro (não-argentino, não-norte-americano, nãocubano,...). Mais uma vez se atesta a validade da afirmação de que a identidade nacional se concretiza na relação e em termos de identidades nacionais, não há como compreendê-las desarticuladas do âmbito internacional. depara com um campo variado de significados englobados, com a interconexão entre status (meta principal constituinte dos governantes), pompa e governo. Para a compreensão do Estado-Teatro balinês, Geertz propõe elaborar uma “poética do poder”, ao invés de uma “mecânica”, ou seja, sugere uma teoria política restituída das dimensões simbólicas do poder. Nestes termos, o simbólico não é eufemismo do real, mas parte constituinte deste, ou ainda, “o real é tão imaginado como o imaginário” (Geertz, 1991: 170). 198 As idéias em termos de “tautegoria” e “alegoria” me surgiram inspiradas pelo emprego que destes conceitos faz o orientador deste trabalho, ao tratar da idéia de “tradução” dos subsistemas artísticos significantes da cadeia intersemiótica que compõe o ritual do Yawari entre os Kamayurá. Cf. Menezes Bastos (1998: 18).

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CAPÍTULO IV – ARGENTINA E SUL DO BRASIL: CONSIDERANDO O QUE “NÃO TEVE IMPORTÂNCIA”.

Preço do sucesso Quem faz sucesso não sossega. Donga e Pixinguinha queriam viajar mais, conhecer novas terras, novos ritmos. Foi quando chegou um empresário que resolveu levar os Oito Batutas para Buenos Aires, terra do tango. Lá se foram Pixinguinha, China, Donga, Josué de Barros – um sujeito muito engraçado – e mais quatro batutas. Acontece que sucesso demais pode se tornar um problema, ainda mais quando dividido por oito. E, no meio da temporada argentina, estourou uma briga no meio do grupo. Donga danou-se e voltou para o Brasil com três batutas. Os que ficaram não puderam cumprir os contratos. Afinal, todos queriam ver os famosos Oito Batutas e não um quarteto. Sem dinheiro, sem contrato, a vida ficou complicada. Já não tinham mais como pagar o hotel, nem a comida. Foi quando Josué de Barros teve uma idéia: - Pixinguinha, se é pra morrer de fome, pelo menos vamos ganhar um dinheirinho com isso. - Ganhar dinheiro com a falta de dinheiro? Cê ta doido, Josué? - Pois eu vou trabalhar de faquir! - Tá maluco – respondeu Pixinguinha. Maluco ou não, Josué botou sua idéia em prática. Ficou sem comer nada durante dez dias. Virou faquir. E foi desse jeito circense que conseguiu o dinheiro que faltava para que o grupo pudesse voltar ao Brasil. A briga entre Pixinguinha e Donga acabou logo. Eram amigos demais. Além disso, não podiam ignorar que uma coisa importante estava acontecendo no Brasil: o jazz tinha chegado aqui. (...) Pixinguinha não teve dúvida.

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-Donga, a gente precisa arranjar uns instrumentos de pancadaria. Deixar o chorinho de lado? Nem pensar. Depois de algumas experiências, Pixinguinha e Donga criaram a Bi Orquestra Os Batutas. O „bi‟ no nome vinha de um novo repertório, que trazia o chorinho e também o jazz. A receita deu certo. Certíssimo, aliás. M.R. (Rabaça, 1999: 56-59)

4.1 – Experiências de campo em festas da “tradição”. A leitura dos jornais e narrativas sobre os eventos relacionados aos Batutas nos períodos de 1923 a 1925 - e de modo menos intenso, até 1928 -, acontecia concomitantemente ao aumento de minha convivência e dos diálogos com pessoas relacionadas à música popular carioca. Meu trânsito por este ambiente me proporcionava situações interessantes, que me faziam pensar sobre o tema de minha pesquisa, num certo deslocamento diacrônico onde minha experiência me colocava em frente a atualizações de temas que estava pensando sobre os anos 20, sobretudo em relação ao que recorrentemente se referia à exegese nativa do “mundo do samba”199 e à constituição da brasilidade (sobretudo de um ponto de vista carioca). Dentre essas situações gostaria de narrar uma que me parece significativa para este trabalho, que foi minha visita à Escola de Samba dos Acadêmicos do Salgueiro, em uma festa da Ala das Baianas, no domingo de 29 de novembro de 2009. Há algum tempo eu convivia com Lygia Santos e alguns de seus amigos, - todos ligados de formas variadas ao carnaval carioca – quando Este “mundo” geralmente se referia idealmente ao mundo afro, sendo algo que se estende à dança, religiosidade, alimentação, corporal idade, enfim, uma série de partes constitutivas, onde o samba parece ser o ponto de convergência dos significados. De qualquer forma, esta exegese aponta para o que vários estudos chamam a atenção como paradigmas ideais sobre o samba, onde este seria intrinsecamente produto da cultura afro-brasileira, sendo a idéia da repressão e resistência outros dois componentes de tal paradigma ideal. Uma grande quantidade de estudos vem apontando a dinamicidade e multiplicidade do processo de constituição do samba, sendo a negritude, uma das partes. Dentre estes estudos destaco: Vianna (2008); Menezes Bastos (2005); Sandroni (2001). No entanto, essa visão paradigmática – ou “concepção tópica do samba”, cf. Sandroni (2001: 114) - é recorrente e muito eficaz na organização conceitual do mundo carioca, sobretudo ao que se refere aos sujeitos relacionados às instituições promotoras do carnaval. 199

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Lygia me convidou para acompanhá-los a um evento nos “Acadêmicos do Salgueiro”. A idéia surgiu quando ela se deu conta de que era uma “festa das baianas”, e que lá estariam representantes da maioria das velhas guardas das escolas de samba, o que seria muito importante para minha pesquisa, pois eu iria entrar em contato com a “tradição” do samba, o que muitas vezes os trabalhos científico-acadêmicos – nas palavras de Lygia – “não conhecem e saem falando bobagem”. Sendo assim, lá fui eu, acompanhando Dona Lygia e Maria Moura, rumo à “tradição”. Ao chegarmos ao Salgueiro, senti a importância de Lygia para os componentes das Escolas de Samba, o que se justifica, por ela ser, além de filha de Donga – o que às vezes era lembrado por pessoas que se apresentavam a ela, ou que lhe apresentavam a alguém –, Lygia é também integrante permanente do júri do “Estandarte de Ouro do Carnaval Carioca”200, o que dá estatuto diferenciado para sua presença ali naquele lugar, onde muitas pessoas se aproximavam para conversar, se apresentar e tirar fotos com ela. Os membros da diretoria do Salgueiro também se sentiram honrados com a presença de Lygia no acontecimento, nos dando uma atenção toda especial. Lygia me apresentava para as pessoas como: “esse é um amigo meu de Florianópolis que é antropólogo e estuda o samba”. Isto, é claro, me colocava num lugar muito específico em campo, pois, mesmo sentindo que na maioria das vezes as pessoas não sabiam o que seria um antropólogo exatamente, ainda assim, parecia ser algo importante, ou seja, alguém que deveria ser apresentado ao que havia de melhor e mais importante na escola (ao menos naquela conjuntura), qual seja, a “tradição”, corporificada na figura das baianas e dos componentes da velha guarda. Aquilo tudo para mim foi muito significativo, pois me colocou próximo das sensações vivenciadas dentro da instituição do carnaval carioca, além de compartilhar a emoção de sujeitos singulares e muito interessantes que têm nesse mundo uma relação visceral, de fato vital. Tive a oportunidade de conversar com integrantes de várias escolas – pois elas mandavam ao acontecimento embaixadores para representá-las – sendo recorrente o discurso da “perda das tradições do

200

Prêmio muito conceituado pelas Escolas de Samba, oferecido pelo jornal O Globo aos melhores do carnaval carioca.

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carnaval”, numa espécie de “pessimismo sentimental” (Sahlins)201 nostálgico, mas que, contudo, não desvalorizava por completo as ações das novas gerações. O que mais se lamentava era a idéia de uma “diminuição” (ou ruptura) do vínculo das Escolas de Samba com a “comunidade”. No entanto, para mim, o que presenciava era justamente uma atuação significativa da idéia de “comunidade”, não só na relação Escola de samba/comunidade, mas entre Escolas e “comunidades”, na comunhão em prol do cultivo da “tradição”202. A importância de todo aquele contexto para a organização do mundo daquelas pessoas era significativa. Ele também acionava categorias que em minhas pesquisas apareciam sendo acionadas nos anos 20. Estas categorias ajudavam nas elaborações de memórias – sobretudo as que remetiam aos “tempos das tias baianas” -, como forma constituinte e rica para dar sentido ao que se atuava e disputava naquele contexto em que me encontrava. Outro aspecto que gostaria de citar nesta minha pequena etnografia da “festa das baianas do Salgueiro” foi o musical. Como já disse, o acontecimento era de cultivo da “tradição”, e neste sentido, no discurso sobre a música, o samba aparecia como central, sendo reverenciada também a “bateria” da Escola de Samba – ou seja, a composição dos instrumentos percussivos que fazem parte do musical da escola de samba, ditando o ritmo do desfile -, como o “coração da Escola”203. Foi assim que fui me embebedando – também no sentido etílico, com uma cervejinha - daquele entusiasmo e compartilhando daquela exegese que me enchia de expectativa. No entanto: 1ª “decepção”: Não teve bateria! “Mas como?!” diziam indignados meus guias, ao que eu também me indignava decepcionado: Sahlins (1997a, 1997b) se utiliza desta idéia para criticar a afirmação de que a “cultura”, como o objeto da antropologia, estaria em vias de extinção. Num ensaio bastante reflexivo sobre as implicações epistemológicas de algumas concepções de “cultura” de parte da disciplina antropológica, o autor reafirma sua posição de pensar as categorias culturais como reavaliadas na prática, sendo os processos de globalização e de imposição do capitalismo não meros veículos de homogeneidade cultural, - como poderia sugerir a idéia de aculturação, por exemplo - mas sim grandes multiplicadores de novas possibilidades culturais. 202 A idéia de comunidade aqui é pensada não como uma totalidade ontológica e estanque, mas como espaços/tempos conjunturais, em que se exacerbam o compartilhamento de sentimentos de pertença, convergentes a uma identidade coletiva, que só existe de forma contextual e relacional. Neste sentido, ser “Salgueiro” se constitui em relação a não ser “Portela”. Contudo, ambas as “comunidades” se congregam na conjuntura específica do culto da “tradição” do “mundo do samba”. 203 Ouvi algumas vezes durante a festa que “se a bateria era o coração da Escola, as baianas eram a sua alma”. 201

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“mas como?”. No decorrer do tempo, fui percebendo, no entanto, o quanto eu realmente estava compartilhando uma forma particular de ver o que estava acontecendo ali, sobretudo, pela mesma ótica da “tradição”. Eu queria, esperava ver a bateria, e, logo, me decepcionei, pensando que aquilo não estava certo. Mas será que não? 2ª “decepção”: Uma celebração católica! No meio da festa, um padre (um sujeito negro com o discurso da valorização da negritude como inspiração retórica) assumiu o microfone do palco e fez um sermão, que terminou com todos – inclusive o antropólogo – dando as mãos e rezando um “Pai Nosso”, seguido de canção gospel. Na minha cabeça se passava: cadê a “tradição”? Novamente, eu estava esperando ver a negritude, a macumba, os feiticeiros, sei lá, mas não uma missa católica. Não fazia sentido. Mas será que não? 3ª “decepção”: Após o “Pai Nosso”, voltou a música. Mas não podia ser! Um grupo de baile, tocando bolero em espanhol, com teclado e bateria eletrônica? Eu não podia acreditar, e via em meus guias certo desconforto. No entanto, fui me dando conta de que tudo aquilo estava muito bem entrosado ao ambiente da festa. Era surpreendente para mim aquelas baianas, símbolo da “tradição” do samba, completamente à vontade, cantando e dançando os boleros em espanhol. O que estas “decepções” me fizeram pensar foi a porosidade e dinamicidade do mundo social, do âmbito da cultura e das musicalidades. Ao mesmo tempo, me fez refletir sobre como a idéia de “tradição” é seletiva, relacional e circunstancial, e não ontológica. Ela organiza a experiência, mas não destrói a dinamicidade do vivido204. O samba, a baiana, a bateria, são a “tradição” – e estavam sendo reafirmados ao antropólogo a todo o momento – que organiza aquelas experiências. Mas não excluem o bolero em espanhol, o padre negro, a missa. É tudo ao mesmo tempo agora! [Pode? Pode!] E isto foi significativo para pensar aquele mundo, e por que não, outros205. Por Rabinow (1975) ao pensar mudança cultural no Marrocos aponta para a idéia de “tradição” como uma “imagem móvel do passado”. Na medida em que as condições se alteram, os símbolos culturais mudam seus significados e, neste sentido, significados culturais e coerência sempre existem em relativa associação – em relação a – com a situação histórica geral e nunca por si mesmos. O autor diferencia então a “tradição” da “alienação”, que consiste na tentativa de impor e manter um sentido fixo para os símbolos, uma vez que as condições mudaram. Para Rabinow, os significados não estão somente no nível cultural, mas na relação parcial e imperfeita dos símbolos com as condições históricas nas quais eles estão situados. 205 De fato, a idéia de “reavaliação funcional das categorias” de Sahlins (2003, 2006) tem aqui uma pertinência significativa. 204

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outro lado, me colocou na situação de perceber como o antropólogo pode se deixar engolir pela exegese nativa. Tratava-se de uma subjugação perigosa que podia suscitar não uma possível compreensão do fenômeno vivido, mas sua reificação. Nas últimas semanas de minha permanência no Rio de Janeiro tive várias outras experiências interessantes que infelizmente não serão narradas aqui, mas que certamente renderão outros relatos futuros. Outras visitas a escolas de samba; conversas em outros momentos com sujeitos das velhas guardas; a viagem a Oswaldo Cruz no “trem do samba”, acontecimento comemorativo do “Dia Nacional do Samba”206; as noitadas na boêmia Lapa, foram algumas destas experiências que realmente me ajudaram a pensar sobre a atualização da instituição do “samba”, que compreende uma variedade de manifestações. Mas voltemos aos Batutas. 4.2 – “Isso não teve importância!” Antes de iniciar minha narrativa sobre o evento da viagem dos Batutas à Argentina, gostaria de destacar minha impressão sobre um possível desinteresse dos próprios protagonistas em relação a estes acontecimentos. Em todas as entrevistas ou depoimentos a que tive acesso, que buscavam expor a opinião atribuída aos próprios músicos sobre suas carreiras, esta viagem aparece de forma secundária, senão irrelevante. Nos depoimentos ao MIS-RJ nos 60 transparece certo desconforto tanto de Pixinguinha quanto de Donga207, ao serem inquiridos sobre suas experiências na Argentina. 206

No dia 2 de dezembro, saem trens lotados da estação da Central do Brasil - integrantes das baterias de escolas de samba vão tocando nos vagões -, com parada estratégica em Madureira e destino final no bairro de Oswaldo Cruz, onde um mar de gente se encontra em meio a barraquinhas de comidas – como o bom “churrasquinho de gato” – e de bebidas, rodas de samba e choro, que compõem o ambiente e dão o tom festivo do “Dia Nacional do Samba”. 207 Segundo Lygia Santos, que acompanhava seu pai (Donga) na gravação do depoimento ao MIS, ele realmente estava muito incomodado tanto com a insistência por parte dos entrevistadores em relação ao tema do “Pelo Telefone”, assim como ao episódio da viagem e das desavenças na Argentina. Sobre este último ponto, Lygia se recorda que seu pai nunca falava a respeito. No entanto, lembrou-se que ele se referiu uma vez, quando disse algo sobre uma discordância dele (Donga) com Pixinguinha e China, em relação a uma proposta de viagem do grupo para tocarem no Uruguai, com o que Donga não concordara e a partir do que se instaurou a discordância que culminou na separação do grupo. Contudo, essa informação não é citada em nenhuma narrativa sobre estes acontecimentos, nem mesmo nenhum dos personagens da história se referiu a ela em alguma declaração.

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Donga ao ser perguntado por Ricardo Cravo Albin sobre quando teriam ido a Argentina dá a resposta taxativa: “Ah, isso eu não lembro, porque isso não teve muita importância!”. É nítido que Donga não queria falar sobre o assunto. Percebe-se sua recusa pelo tom de voz, que difere do tom eufórico com que vinha conversando sobre Paris. É um tom de voz muito semelhante ao que se ouve nos momentos em que ele busca encerrar o outro assunto que lhe incomodava, o “Pelo Telefone”. Vale destacar que esta frase de Donga é uma das partes suprimidas da transcrição de Fernandes (1970), assim como a palavra “comercial” que dá sentido à explicação de Donga sobre os desentendimentos ocorridos na viagem à Argentina. Assim se ouve no depoimento: MIS - Seria interessante se o Donga falasse sobre a ida deles para a Argentina, que foi posterior a volta da Europa. DONGA: Aí nós nos separamos e tudo isso aí lá. M - Onde? D: Na Argentina. Houve uma desamizade. M - Porque? D: Questões de comércio. Vocês sabem que conjunto é assim. M - Mas o conjunto, onde tocou na Argentina, o sucesso lá, como foi a coisa? D: O sucesso foi bom. M - Vocês fizeram gravações lá, os catálogos acusam. D: É, fizemos gravações e tudo, mas eu não dei muita importância por que eu não gostei muito da viagem, por causa dos aborrecimentos que me entristeceu e eu não lembrei mais da Argentina208. (Donga, 1969. Grifo meu) 208

Em Fernandes este diálogo é transcrito assim: “MIS – (...) seria interessante se você [Donga] falasse sobre a ida à Argentina. Foi posterior à volta da Europa? Donga – Sim. Infelizmente, na Argentina, nós nos separamos. Vocês sabem, conjunto é assim mesmo. MIS – Mas vocês chegaram a fazer sucesso lá? D – O sucesso foi bom, fizemos até gravações. Eu não gostei muito da viagem por causa dos aborrecimentos.” (Fernandes, 1970: 93)

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Pixinguinha também se recusa a se aprofundar na questão da viagem à Argentina em seu depoimento ao MIS-RJ, sendo, aliás, um tema que não chega a ser tocado em seu primeiro testemunho (Pixinguinha, 1966) e vagamente mencionado no segundo (Pixinguinha, 1968), feito sob o impositivo inquérito do escrivão de polícia e músico, Jacob do Bandolim209. Aliás, quando nota a atitude fugidia de Pixinguinha em relação ao tema, Jacob adverte de forma descontraída: “Pixinguinha, eu quero lembrar a você que, além de estar aprendendo a tocar bandolim há 34 anos, sou escrivão da justiça. Você deu azar desgraçado” (Pixinguinha, 1968). De forma semelhante ao que percebi em relação ao depoimento de Donga, ao tentar se esquivar das questões sobre a Argentina, Pixinguinha apresenta um tom de voz muito parecido ao que anteriormente se percebe no momento em que ele é perguntado sobre o samba - temática que também recusa - quando rapidamente afirma: “Samba é com o João da Baiana!”. Logo em seguida, Pixinguinha segue um dos entrevistadores que afirma que “Ele [Pixinguinha] era do choro”. Nesta afirmação do entrevistador – que aparece apenas como resposta imediata do entrevistado em Fernandes (1970) e Mota (1997) - está sua saída de qualquer polêmica que o relacionasse ao samba, e então concorda: “O meu amigo, eu era do choro!”210. Sugiro que há de certa forma uma vontade de esquecer ou fugir de ambas as temáticas (a origem do samba e os problemas na Argentina) por parte de ambos os atores. O que se sente ao ouvir os depoimentos é que o desânimo dos entrevistados em relação a um evento (Argentina) é diretamente proporcional ao entusiasmo com que conversam sobre o outro (Paris).

209

O segundo depoimento de Pixinguinha, em 22/04/1968, teve como entrevistadores Ricardo Cravo Albin, Hermínio Bello de Carvalho e Jacob do Bandolim, que, além de músico renomado do choro, era também escrivão de polícia, ofício que lhe dava uma presença formal e curiosa no evento dos depoimentos. Em minhas conversas com sujeitos que participaram destas gravações, e também pessoas que conheceram Jacob, este aparece como um personagem caricato do investigador à procura dos fatos, como um verdadeiro policial que era. 210 É neste sentido que esta afirmação de negação de Pixinguinha ao “mundo do samba” deve ser entendida. Pixinguinha se recusa a qualquer envolvimento na polêmica em relação ao samba, que geralmente se apresenta através da idéia da “origem” do gênero e que perpassa, sobretudo, a polêmica do “Pelo Telefone”. Aliás, antes da frase de Pixinguinha, Hermínio Bello de Carvalho fala: “Você disse que não quer responder sobre o samba”, e então tenta fazer uma pergunta, que de pronto é rejeitada. Isto sugere que havia um acordo prévio de exclusão do tema da pauta do depoimento.

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4.3 – Prévias para a Argentina. Em novembro e dezembro de 1922 as notícias sobre os Batutas nos jornais cariocas se tornaram raras. A partir das narrativas biográficas de Pixinguinha, o grupo estaria se apresentando em festas particulares. É neste período que conseguem um contrato com o empresário argentino Humberto Cairo para viajarem em excursão para a Argentina, para atuarem no Teatro Empire, em Buenos Aires. A data da viagem que segundo Silva & Oliveira Filho (1979) constava no passaporte de Pixinguinha, era de 1 de dezembro de 1922. No entanto, encontrei nesta data a seguinte nota: “Recebemos, hoje, a visita dos „8 Batutas‟, que amanhã partirão para Buenos Aires, onde vão, contratados, trabalhar no Theatro Empire”. (A Noite, Rio de Janeiro, 1/12/1922). Sobre a viagem para a Argentina, Cabral (1978, 1997, 2007) cita uma ajuda de custo de 200 contos aos Batutas, aprovada pelo Conselho Municipal, com base em uma nota do A Notícia. No entanto, esta nota, como já apontei, é uma referência dos rumores surgidos sobre uma possível viagem dos Batutas a Argentina, em 1921, quando o grupo se apresenta para Intendentes argentinos de visita diplomática ao Rio de Janeiro. A viagem ao país vizinho em 1921 não se concretizou naquele ano, vindo a acontecer, por outros motivos, no final do ano seguinte. Isto exclui o financiamento público dos 200 contos211 que Cabral menciona, e que utiliza em sua narrativa também para fazer uma crítica à imprensa que não apoiava o patrocínio, comentando que era o “velho patrulhamento contra a música brasileira” (Cabral, 2007: 104). Abaixo a nota que Cabral confunde como sendo de 1922.

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Conforme Gomes (2003: 97), o salário médio de um operário carioca homem em 1920 era de 5,5 mil réis diários. Já um aluguel de cômodo na zona portuária do Rio em 1921 era de 80 mil réis. Um dos melhores salários entre os artistas populares em 1921 era o do tenor Vicente Celestino, que recebia na Companhia São Pedro, 1,1 conto de réis mensais. Nesta relação, 200 contos de réis era um valor muito alto e significativo para a época.

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(A Notícia, Rio de Janeiro, 10/10/1921 – Acervo Biblioteca Nacional)

A viagem a Argentina de forma geral aparece nas narrativas sobre o grupo de forma menos intensa em relação às demais viagens. Cabral (1978, 1997, 2007) busca reconstruir o percurso do grupo em pouco mais de 4 páginas, sempre destacando o sucesso do grupo (e sobretudo de Pixinguinha), êxito este que não sustentou a unidade do grupo, que se separou devido a “razões que jamais foram reveladas pelo grupo”212 (Cabral, 2007: 108). Coelho (2009) realizou sua tese em antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina buscando tratar dos eventos relacionados a estas viagens de 1923 à Argentina (e às viagens posteriores ao Sul do Brasil em 1927) e de suas implicações, num mergulho intenso em fontes primárias. Não vem ao caso retomar aqui todos os argumentos levantados por este autor, porém, vale destacar alguns pontos que me parecem significativos para meus propósitos, lembrando que o ponto referencial para meu trabalho foca as percepções articuladas em relação aos Batutas, a partir do Rio de Janeiro. 4.4 – Seguindo os músicos transeuntes Coelho (2009) busca elaborar um mapa das categorias em função das quais os Oito Batutas foram pensados no decorrer da viagem pela Argentina, explicitando os diferentes contextos e suas

212

Vale lembrar que Donga em seu depoimento ao MIS afirma que as razões foram “comerciais”, palavra excluída da transcrição feita por Fernandes (1970).

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articulações213. O autor aponta incompatibilidades entre os dados apresentados por Cabral e Silva & O. Filho, em relação aos integrantes do grupo que desembarcaram em Buenos Aires. Na comparação entre estes autores e o registro de desembarque no porto daquela cidade, há uma diferença em relação a: José Alves de Lima (citado pelos livros e por Pixinguinha em seu depoimento ao MIS) e Aristides Júlio de Oliveira (declarado no desembarque). Vale ressaltar que Cabral afirma que este teria se juntado algum tempo depois ao grupo, quando este já atuava em solo argentino, mas o que parece mais provável pelos dados de Coelho é que este já desembarcou com o grupo. Para Coelho (2009), a formação mais provável dos integrantes dos Oito Batutas que viajaram para a Argentina foi: Alfredo da Rocha Vianna Filho (Pixinguinha), Otávio Liplecpon da Rocha Vianna (China), Ernesto Joaquim Maria dos Santos (Donga), Josué Borges de Barros, Nelson dos Santos Alves, João Thomaz de Oliveira, J. Ribas e Aristides Júlio de Oliveira. Coelho acompanha a temporada argentina dos Oito Batutas - e da dupla de dançarinos Les Zuts214 e, em parte da turnê, o grupo Los Guanabarinos –, percorrendo as notícias jornalísticas que trataram destes artistas brasileiros naquele país, começando em 7 de dezembro de 1922, data do desembarque em Buenos Aires, até fins de março de 1923, na pequena cidade de Chivilcoy, na província de Buenos Aires, onde o autor perde as pistas nos jornais. Como prelúdio a sua exposição cronológica da turnê, Coelho apresenta duas cartas: a primeira do empresário carioca José Segreto, endereçada ao Cônsul Brasileiro em Buenos Aires – Dr. Alcindo dos Santos Silva -, e a segunda a resposta deste ao empresário. Estas cartas fornecem informações pertinentes para o entendimento de alguns dos acontecimentos destas viagens, pois tratam de uma suposta quebra de contrato entre o empresário argentino Humberto Cairo215 e o empresário brasileiro José Segreto. Este último tinha - conforme sua queixa -, 213

O autor ainda complementa sua análise com um recurso comparativo, tomando como referentes as recepções em relação a outros artistas negros de música popular na Argentina nos anos 20: a jazz-band de Sam Wooding e a dançarina Josephine Baker. 214 Esta dupla de bailarinos – Antônio Gonçalves e Sofia Gonçalves - embarcou do Brasil com os Batutas, sendo, como aponta Coelho, parte do contrato firmado entre o empresário argentino Humberto Cairo e o empresário brasileiro José Segreto para a excursão à Argentina. 215 Empresário e produtor musical que teve entre suas ocupações a contratação de apresentações musicais para o Teatro Empire e o Teatro Maipo, dois importantes estabelecimentos de entretenimento em Buenos Aires nos anos 20.

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contrato firmado no Brasil com os músicos do Os Oito Batutas e acordou, mediante novo contrato firmado com o empresário Humberto Cairo, cedê-los para a excursão à Argentina, pelo valor de 24 contos, mais as passagens. O não cumprimento deste contrato – que foi articulado por China (irmão de Pixinguinha) e mediado pelo cônsul da Argentina no Brasil - segundo as fontes de Coelho, parece ter sido o motivo para um desentendimento entre os músicos e o empresário argentino, o que fez com que os Batutas saíssem em excursão por outras cidades do interior da Argentina. Isto não deu tão certo, daí decorrendo sérias dificuldades aos músicos, o que pode ter gerado os desentendimentos que culminaram na própria dissolução do grupo, que se dividiu, de forma geral, entre duas facções: de um lado Pixinguinha e China; e de outro Donga. Tratarei disto à frente. As notícias em Buenos Aires sobre as apresentações dos artistas brasileiros começaram a ser veiculadas antes mesmo da chegada da troupe. Apresento a seguir, algumas das apreciações feitas por Coelho sobre a turnê dos Batutas, lembrando que não apresento a totalidade do levantamento feito por este autor, mas apenas o que possa expressar, ao menos minimamente, as suas idéias gerais. Avaliando as notícias que tratam das primeiras apresentações do Los Ocho Batutas, veiculadas nos jornais Critica, La Nación, El Telégrafo e Última Hora216, Coelho chama a atenção para a percepção de certa forma compartilhada por todos os textos, do espetáculo enquanto expressão de exotismo, onde categorias como naturalidade, exuberância e primitivismo são acionadas para se referir ao que é tido como brasileiro. Além disto, no texto do primeiro jornal, chama atenção a interpretação do articulista para a composição da orquestra nos seguintes termos: (...) Constituye esta orquesta un pedazo de la vida popular brasileña sin afectación teatral de ningún género, dado que su composición ha sido más bien obra de la casualidad que de la premeditación. No son músicos que han estudiado para vivir de la música; son simples cultores de la musa arrabalera como lo eran nuestras antiguas orquestas típicas con su bandoneón, que un día 216

Vale destacar que eram jornais de destaque e boa circulação na Buenos Aires de então.

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surgieron por la moda y tuvieron uma vida próspera devido al éxito que lograron. (Crítica, BsAs, 08/12/1922. In: Coelho, 2009: 31).

A idéia de casualidade, em oposição ao planejado, expressa outra dicotomia entre o “espontâneo” e o “cultivado”, que para Coelho aponta para fatores delimitadores de uma fronteira entre a arte “popular” e a “erudita”, algo constitutivo de um senso comum amplo que tem implicações tanto na Argentina como no Brasil, chegando muito presente ainda aos dias de hoje217. Ainda em relação a estas primeiras notas, Coelho aponta a comparação da musicalidade dos Batutas com a musicalidade das antigas orquestras típicas Argentinas, ou seja, segundo o autor, na chave de leitura dos jornais argentinos o grupo que viaja para aquele país como expressão contemporânea da “musicalidade autêntica” do Brasil se torna comparável ao passado musical Argentino218. Vale ainda destacar o caráter racista e preconceituoso dos textos dos jornais, sobretudo a nota do Ultima Hora, que desqualifica o grupo por ser constituído de negros (classificando a apresentação como verdadeiro “luto”) e contando com muitos homens e barulhentos (“ruidosos”). Neste sentido opina o jornal: (...) Nosotros, con franqueza, hubiéramos preferido menos negros, menos ruido, más A idéia do Os Oito Batutas serem uma formação “improvisada” de músicos surgiu em minhas conversas, tanto com Henrique Cazes, quanto com Luciana Rabelo, ambos músicos influentes da música popular carioca. Para o primeiro, citando uma frase atribuída ao maestro Radamés Gnatalli, o grupo era uma “esculhambação”, no sentido de que não haveria arranjos, nem ensaios, enfim, uma formação improvisada, com vistas a ganhar dinheiro, tocando pouco. Já para Luciana, o improvisado seria algo que tinha como “espírito” a própria lógica das rodas de choro, onde a música é tocada, compartilhada, sem necessariamente uma preparação prévia, um ensaio, mas que sim seria da própria prática desta musicalidade, uma arte – neste caso superior – de saber improvisar, algo que encontra certa semelhança, com a concepção nativa da improvisação jazzística. No entanto, o próprio Pixinguinha, ao ser perguntado repetidamente por Hermínio Bello de Carvalho e Jacob do Bandolim em seu segundo depoimento ao MIS em 1968, se no tempo dos Oito Batutas eles improvisavam, ele reponde categoricamente: “Não! Improvisação não! Tinha era ensaio!”. Esta discussão que dura alguns minutos da gravação do depoimento, é traduzida na transcrição de Fernandes (1970) como:“Não, era mais ou menos improvisado. Havia apenas acompanhamento de violão feito na pauta. Não tinha cifragem não. Era choro.” (: 33). 218 Coelho (2009) não deixa de assinalar o processo que se institui neste período na Argentina, pelo qual a retórica da perda apaga a figura do negro da cultura daquele país, sendo remetida a sua presença a um passado longínquo. Sobre este processo conforme Domínguez (2009). 217

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bailoteo y más polleras. Para negruras demasiadas tiene la vida (..) (Última Hora, BsAs, 08/12/1922. In: Coelho, 2009: 33)

Esta notícia em específico, não se refere categoricamente ao Brasil. Já o caráter “ruidoso”, que menciona a nota, aponta para um modo de perceber o mundo do “jazz-band” de forma desqualificante. Inclusive o jazz-band aparece como característica musical dos Batutas em uma das notas do Ultima Hora, o que leva Coelho a afirmar que na Argentina, os Oito Batutas, “mesmo que, por hipótese, apresentando-se em sua transformação sertaneja, podiam ser englobados, neste caso como alvo de crítica, no universo da jazz-band” (Coelho, 2009: 39). Vale ainda destacar a recorrência nos anúncios de exacerbação do virtuosismo de Pixinguinha na flauta, algo que é recorrente em outros anúncios de outras apresentações, o que é significativo, pois sugere certa excepcionalidade deste integrante em relação aos demais companheiros de música. A partir do dia 13 de dezembro, no Empire, as apresentações dos Oito Batutas e Les Zuts são acrescidas de um grupo de artistas já conhecidos do público argentino, a “troupe Los Guanabarinos”. Já no dia 17/12/1922, o grupo faz sua última apresentação no Empire, passando a atuar no dia seguinte já no recém inaugurado Teatro Maipo219, que em algum tempo depois se tornará o local mais célebre do teatro de revistas de Buenos Aires. Já nestes dias, anúncios sobre um “baile de inoscentes” promovido pelo Circulo de la Prensa, confirma a contratação de duas orquestras: uma típica argentina, dirigida pelo maestro A. P. Berto220 e Los Ocho Batutas, executando um variado programa de one-step, fox-trots, maxixes y shimmys. Isto, portanto, assinala tanto a variação de repertório, quanto de lugar de apresentações do grupo na Argentina, dos teatros para bailes. No Teatro Maipo Los Ocho Batutas se apresentam até o dia 26 de dezembro. Logo depois do natal, ao que tudo indica, os músicos romperam com o contrato firmado com o Sr. Cairo – o que motivou a carta do Sr. Segreto ao consulado 219

A passagem para o Maipo já assinala uma diminuição da ênfase do grupo nas notícias da imprensa, como aponta Coelho (2009). 220 Este maestro, como se verá, foi o responsável pelas gravações realizadas pelo grupo na Argentina em março de 1923, pela gravadora Victor. Tudo indica que este baile tenha sido a primeira aproximação entre as partes deste outro evento significativo da passagem desta viagem do grupo.

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brasileiro na Argentina -, e tiveram que procurar outros rumos para sua turnê. Somente no dia 5 de janeiro de 1923 os Batutas surgem novamente como atração, agora não mais em Buenos Aires, mas em Rosário, província de Santa Fé, onde teriam se apresentado no Éden Park, até o dia 11, e em seguida no Cine San Martín, entre 12 e 14 de janeiro221. Após estas apresentações, o grupo já aparece no dia 18 de janeiro, pomposamente como atração na cidade de Córdoba, já a 700 km da capital. Nesta cidade, o grupo se apresenta no Cine El Plata até o dia 23/01/1923, tendo sua musicalidade associada positivamente ao “típico brasileiro”, sem contar com críticas da imprensa, como as que aconteceram em Buenos Aires. Seguindo os rastros dos músicos brasileiros, Coelho os encontra agora na cidade de Rio Cuarto, onde se apresentam no Cine Teatro El Plata, a partir de 1 de fevereiro de 1923, tendo causado boas impressões nas apresentações nos três primeiros dias. No dia 4, o jornal El Pueblo lança uma nota de apreciação das apresentações dos Batutas (sem o oito), com tom evolucionista e racista, que vale ser transcrita. Sobre la música típica brasileña – Los que hayan concurrido estas noches al café El Plata habrán tenido la oportunidad de escuchar, aires, música y orquesta típica brasileña. Como no hay nada mejor que refleje el carácter de un pueblo, que sus costumbres y manifestaciones del arte popular típico, la orquesta 'Los Batutas' nos muestran [sic] detrás de sus ritmos, notas y contorsiones, el espíritu de aquel pueblo y su estado evolutivo social. No hay que pretender juzgar a un pueblo sobre las obras de su elemento diferenciado, es grave error, pues es lógico que entre tantos millones de habitantes, haya un grupo sobresaliente. El mejor juicio es tomado del conjunto de su masa popular y como venidas de tal origen, tomamos las producciones que nos han hecho escuchar 'Los Batutas'. Todo el programa que compone esa música típica, es un grito de Coelho ainda cita uma nota de Buenos Aires que comenta a apresentação dos “Ocho Batutas” em Rosario, apresentando-se no teatro “La Comedia” no dia 15, o que o autor não pôde conferir nos jornais da cidade de Rosario. 221

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vuelta al África. Es el canturreo monótono y primitivo mezclado de lãs contorsiones eróticas típicas de las crudezas africanas. No tiene nada esta música popular brasileña que refleje un estado de refinamiento del alma, se concreta toda ella a un simple ritmo de candombe y de zapateado, unido a los gestos, contorsiones y muecas de los que ejecutan y bailan. La melodía no existe y hasta los sonidos sacados de los banjos son ásperos. Es verdad que el banjo es un instrumento difícil y que 'Los Batutas' lo manejan con suma habilidad, pero sus notas pueden arrancar solamente entusiasmo a los que tengan aún vibrante en su alma, el amor al batucaje. Nuestro tango, que aunque no lo sea, es ya considerado como uma manifestación de la música típica de este país, es una danza agresiva y erótica, pero une a estos dos graves defectos el mérito de ser un anantial de melodía, pero la música que 'Los Batutas' nos muestran como típica de aquellos lugares, es simplemente una manifestación selvática. En fin, nuetro pueblo que no tiene aún una música arraigada por largas generaciones y es un pueblo novelero, puede encontrar en esta mueca el placer que dan las cosas nuevas, y estos aires de 'jazz' despertar curiosidad momentánea o entrever en esta música sincopada las características de un pueblo vecino, pero que ella sea una manifestación de arte, hay mucho trecho” (El Pueblo, Río Cuarto, 04/02/1923. In: Coelho 2009: 71).

Esta nota, muito preconceituosa sobre a música dos Batutas, dá conta de uma “primitividade” da música brasileira, situando-a na direção da música da “antiga áfrica”, que seria “carente de melodia e exuberante em agressividade, selvageria e eroticidade”, não sendo propriamente uma “manifestação de arte”. Como aponta Coelho, é um evolucionismo de cunho racialista, comum tanto a várias correntes intelectuais da época, bem como a base de boa parte do “senso comum do mundo ocidental „civilizado‟” – argumento baseado em Schwarcz (2000).

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Coelho (2009) aponta no discurso de Rio Cuarto, para pólos em que estão: de um lado o “primitivo”, “selvagem”, “africano”, “negro”, “sensual e percussivo”, sendo também o lugar do jazz; e de outro, a “manifestação de arte legítima”. O tango, também em termos comparativos, surge, apesar da agressividade e erotismo, com a vantagem de um “manancial de melodia”. Neste sentido completa: Isto remete aos significados mapeados por Menezes Bastos (2002) na construção da própria memória da música brasileira, que elege seus elementos formadores também dentro de um esquema bipartido: de um lado, melodia, harmonia, inteligibilidade, “branco”, de outro, ritmo, sensualidade, “negro”, o “índio” ocupando aí um lugar meramente residual. Os Batutas mostram, então, desde o ponto de vista e de escuta manifestado na crônica, um Brasil essencialmente, e negativamente, africano. (Coelho, 2009: 72)

E segue o autor alertando que: Talvez não seja ocioso notar, antes de seguirmos, que de forma alguma a crítica da qual estivemos tratando representa de maneira unívoca o que seria um ponto de vista “argentino” sobre o “Brasil”. Trata-se, sim de um repertório de significados que podia ser mobilizado, e de fato fazia sentido, em largos setores sociais, tanto na Argentina, quanto no Brasil e alhures. (Coelho, 2009: 73).

Neste sentido, também no Brasil notas de natureza semelhantes, ainda que com suas especificidades, foram divulgadas sobre os Batutas, sua nacionalidade e sua raça. Em Rio Cuarto, Los Batutas ainda se apresentaram como atração musical nos bailes de carnaval da cidade, a partir do dia 10 de fevereiro, contudo, já uma semana depois, aparecem atuando musicalmente na cidade de La Plata, na província de Buenos Aires, a 700 km de Rio Cuarto, agora contando com um integrante da troupe a menos. A baixa na equipe se deu devida à permanência de Josué Borges

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de Barros (violão) naquela cidade, agora não como músico, mas como faquir, apresentando um espetáculo de “ser enterrado vivo”222. Coelho (2009) se vale de uma estratégia narrativa, que busca sobrepor os acontecimentos concomitantes das notícias sobre a estréia musical de Los Batutas em La Plata e as coberturas jornalísticas sobre o show de faquirismo de Josué Borges de Barros em Rio Cuarto223. Neste paralelo, 222

O feito de Josué de Barros foi destaque da imprensa de Rio Cuarto, onde este era apresentado como “professor de ciencia y autosugestión hipnóticas”. Gomes (2003: 88), caracterizando as atividades artísticas no teatro variedades do Rio de Janeiro dos anos 20, aponta a apresentação de vários tipos de espetáculos, entre eles a “mulher barbada” e o "enterrado vivo". Portanto, estas estratégias de exploração da sobrevivência em condições extremas eram ordinárias no contexto do entretenimento popular no pós-guerra. Gomes ainda cita um caso, em 1921, de Rose Rogé, uma francesa de 28 anos que buscou autorização policial para exibir-se como enterrada viva no Cinema Central, espaço da elite de então, situado na Avenida Rio Branco, o que, para o autor, sugere que estas práticas não eram exclusividades do âmbito do entretenimento popular da Praça Tiradentes, senão que fazia parte das atrações das casas de espetáculos de elite também. 223 Josué Borges de Barros era baiano e ocupa lugar de destaque na história da música popular brasileira, sobretudo lembrado como descobridor e professor de Carmen Miranda no fim dos anos 20. Como músico, já tinha experiência em viagens internacionais, tendo viajado a Paris (segundo Castro (2005) em 1912 e Vasconcellos (1977), em 1913, como violonista do cantor Arthur Castro Budd, com o incentivo do renomeado bailarino Duque. Na Europa, depois de uma temporada um tanto frustrada, Josué e Budd – segundo Vasconcelos – com o apoio do consulado brasileiro, conseguem a passagem de volta para o Brasil, desembarcando, todavia, em Lisboa, de onde, após algumas apresentações, conseguem contrato para realizar gravações fonográficas em Berlim, na gravadora Bekka. De volta ao Rio, ainda sem fazer parte dos Batutas, quando da viagem a Paris em 1922, segundo Castro, Josué de Barros se ocupa de outros projetos como o de saltar de um avião amparado por um guarda-chuva gigante, o que felizmente não chegou a se realizar. O espetáculo do “enterrado vivo”, executado em 1923 em Rio Cuarto, segundo Cabral (2007), foi também realizado em outras cidades como São Paulo, Bahia, Pernambuco e Ceará. É interessante que encontrei uma notícia no A Noite de 7 de julho de 1923, dois dias após a “reaparição dos Oito Batutas” no Brasil depois da viagem à Buenos Aires – da facção de Pixinguinha e China, pois Donga e J. Thomás já se encontravam no Brasil em maio -, que noticia também uma performance do “enterrado vivo”: O Sr. Jacob Borges de Barros, nosso patrício, é um novo „enterrado vivo‟. Elle vai apresentar este trabalho por estes dias ao publico de Barra do Pirahy. Esse homem „phenomeno‟ já fez igual experiência com sucesso em Buenos Aires. (A Noite, Rio de Janeiro, 7/07/1923). Vale destacar que o nome em questão é muito próximo de Josué Borges de Barros, o que pode sugerir que ambos, Jacob e Josué, sejam a mesma pessoa. No ano de 1933, Josué volta a Buenos Aires, agora como músico acompanhante da já estrela Carmen Miranda, ficando novamente por lá com sua família, por seis anos, voltando ao Brasil em 1939. Para mais informações sobre Josué de Barros, cf. Castro (2005: 42).

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o autor salienta que o evento de Josué, noticiado para o dia 21 de fevereiro de 1923, é acompanhado com mais intensidade pela imprensa do que qualquer apresentação dos Oito Batutas como músicos na Argentina. Nas apresentações musicais do grupo em sua volta a Buenos Aires (sem Josué), foram associados à música de dança – onde o maxixe e o shimmy aparecem citados -, em consonância com os concursos de danças. Em La Plata – “no mundo dos vivos”, brinca Coelho – a imprensa se reporta muito bem às apresentações dos Batutas, com destaque para a flauta de Pixinguinha. Já no dia 24/02, Josué termina o “experimento” e se dá a ressurreição, três dias após o enterro. Somente após a ressurreição é que a imprensa de Rio Cuarto relaciona Barros aos Oito Batutas, salientando o porquê do feito do enterro, como compensação ao fracasso financeiro do grupo nas apresentações da cidade. (...) Es sabido, que el señor Borges de Barros vino a esta con la orquesta típica brasileña „Los Batutas‟, a cuyo conjunto el negocio les fue malísimamente, tanto, que ni para los gastos de hotel hicieron. En tal afligente situación, el señor Borges de Barros, con un rasgo de „fidalgo‟, quiso quedarse en rehenes, resolviéndose a ejecutar el peligroso experimento, creyendo que habría una buena entrada, lo que le permitiria pagar la deuda contraída por él y sus compañeros, como igualmente para seguir viaje. Tal es a nuestro entender el valor real del sacrificio a que el brasileño se ha sometido, pero, sería inhumano, pretender que lo prolongara por más tiempo, si en vez de resolver el problema econômico que lo motivara, no ha de hacer por los gastos que su „entierro‟ ocasiona diariamente. (...) (El Pueblo, Rio Cuarto, 24/02/23. In: Coelho, 2009: 90)

Por fim, o autor não consegue uma resposta sobre o reencontro de Josué com o restante do grupo, passando a abordar as próximas atividades musicais da troupe, agora em gravações fonográficas feitas na Victor, apuradas por Coelho como tendo sidas realizadas nos dias 2, 5, 7 e 8 de março de 1923, possivelmente sem a presença de Josué de Barros.

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Um dos personagens centrais nas negociações e efetivações destas gravações dos Batutas foi Augusto Berto, que atuou como Publisher224, mediando os músicos brasileiros com a gravadora Victor. Berto foi parceiro do grupo em algumas das apresentações de baile em Buenos Aires. Coelho descreve assim a conjuntura específica para a realização das gravações: (...) Os Oito Batutas precisavam de dinheiro, a Victor Company precisava manter um catálogo interessante e constantemente alimentado com “novidades”, Augusto Pedro Berto uniu as duas pontas, levando seu quinhão. Meses depois, ele mesmo “tempera”, por assim dizer, seu repertório emulando aquela musicalidade tão... brasileira.225 (Coelho, 2009: 97)

As gravações realizadas pelos Batutas em Buenos Aires são extremamente interessantes e considero-as como documentos importantes que atestam e trazem elementos primordiais para se pensar a trajetória e várias das questões que se dão em torno do grupo226. Para mim, as gravações apontam um grande leque de musicalidades que foram reunidas com intuito comercial como material fonográfico. De certa forma, ali estão expressos, já de forma latente, a característica que Bessa (2005) indicou a respeito da musicalidade de Pixinguinha, como 224

Segundo Coelho (2009: 97) este termo aponta, desde o século XIX, para a pessoa encarregada da distribuição e administração dos direitos autorais referentes à produção e comercialização de partituras, uma espécie de intermediário entre compositores e o mercado. Em relação às gravações dos Oito Batutas em 1923, Berto provavelmente atuou na organização das sessões de gravação mediante pagamento. 225 Vale destacar que Berto grava com sua orquestra, em julho de 1923, um repertório de maxixes e sambas, entre eles a música rotulada como samba-maxixe, “Meu Passarinho”, gravada pelos Batutas meses antes, com o rótulo de samba. Esta troca entre rótulos é interessante para pensar a constituição de um grande sistema musical em suas conexões internacionais. Coelho (2009) aponta para a intercambialidade, tanto na Argentina como no Brasil, entre os rótulos de samba e maxixe, para samba-maxixe, que figura ativa até a consolidação do gênero musical samba nos anos 30 como símbolo nacional brasileiro. No entanto, para o rótulo tango, esta intercambialidade em relação ao maxixe (tango-maxixe), ainda possível naquela época no Brasil, já não é pensável na Argentina em 1923, onde o tango já figura como gênero eminentemente nacional. 226 Infelizmente não pude realizar uma análise criteriosa destas gravações neste trabalho, mas considero de suma importância e urgente um esforço analítico sobre este material, o que buscarei realizar em trabalhos futuros.

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resultado de uma “escuta aberta”. Naquelas gravações pode-se vislumbrar uma atmosfera que lembra, - ao menos em minha análise preliminar, que beira a especulação sonora – entre outras possíveis escutas, batuques, samba, choro, passando por modos de cantar dos sambas de roda, ao mesmo tempo contraponteado pelo bel canto italiano - que na voz de China adquire um particular tempero -, e o jazz-band. Estas gravações de certa forma, por si sós, relativizam e retificam certos enquadramentos reificantes com os quais a musicalidade Batuta é tratada – sobretudo nos anos 60 e 70 - por boa parte dos estudos sobre a música popular, onde a centralidade na “influência” do jazz e na “origem” do samba absorve as discussões. Quando de minha estada no Rio de Janeiro, onde dividia a casa com alguns músicos, e onde muitos outros apareciam para tocar ou falar sobre música, houve situações de interesse de alguns visitantes, - ao saberem do tema de minha pesquisa -, em escutar as gravações “do grupo que projetou Pixinguinha” – como eles se referiam. Assim, mostrei as gravações de Buenos Aires. As reações de alguns foram interessantes: “Mas não é choro!?” A decepção era visível. Outro completou: “Nossa, é uma bagunça!”. Reações semelhantes se seguiram em outras ocasiões. A meu ver, estas impressões estavam pautadas pela mesma lógica através da qual o músico e pesquisador Henrique Cazes avalia, de forma geral, a constituição do grupo Os Oito Batutas, como uma “esculhambação”227. De fato, no diálogo que tive com Cazes enquanto estava em trabalho de campo no Rio, seus comentários sobre os Batutas foram tecidos se referindo justamente às gravações do grupo na Argentina, as quais, segundo sua audição, “não eram bem gravadas”, além de “não terem arranjo nenhum”. Somente o que se salvaria delas seria “a execução magistral de Pixinguinha”. De forma comparativa, Cazes finalizou sua avaliação: “Não é como aquelas gravações que o Pixinguinha fez antes ou as do King Oliver‟s, que é da mesma época e que tem coisas complexas” (Cazes, 2009). De fato, simultaneamente às gravações dos Batutas em Buenos Aires em março de 1923, nos Estados Unidos da América do Norte, 227

Esta expressão Cazes (1998, 2005) atribui ao maestro Radamés Gnattali. Segundo o autor, “apesar da fama Os Oito Batutas ainda não tinham uma linguagem musical organizada” (2005: 54). Ressalto que Cazes é músico, arranjador e produtor, muito ativo em relação ao gênero musical choro no Rio, sendo seu livro muito lido entre seus pares e um formador de opinião impressionante entre eles.

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acontecia, o evento fonográfico - de suma importância para a história da música popular mundial -, da gravação da King Oliver‟s Creole Jazz Band228, formada por: Joe Oliver (1885 – 1938) e Louis Armstrong (1901 – 1971), trompetes; Johnny Dodds (1982 – 1940), clarinete; Honore Dutrey (1884 – 1935), trombone; Lil Hardin229 (1888 – 1971), piano; (Wilian Manoel Johnson) John St. Cyr (1890 – 1966), banjo e baixo; Bill Johnson (1872 – 1972), Tuba; Baby Dodds (1898 – 1959), bateria. Vale tecer alguns comentários sobre minha escuta destas gravações de 1923. Ambas as gravações (dos Batutas e da King Oliver‟s) logicamente têm as suas limitações sonoras devidas às precárias condições técnicas da ainda pouco desenvolvida indústria fonográfica, mas, contudo, para mim, são de muito boa qualidade sonora, levando-se em conta estas dificuldades. Ouvindo de modo comparativo a ambas as gravações, uma característica me chama a atenção. Em ambos os grupos existem concomitantemente linhas melódicas que coexistem independentemente, mas que dialogam entre si. Em King Oliver esta característica aparece, sobretudo, entre a melodia do clarinete de Dodds e a melodia principal executada pelos trompetes de Oliver e Armstrong230, por exemplo, na primeira parte da faixa “Alligator Hop” (Gennett, 5274-B), ou em “Chimes Blues” (Gennett, 5135-B)231. Já nos Batutas, um exemplo é a modulação melódica que Pixinguinha executa no refrão da faixa “Meu Passarinho” (Victor, 73826-A)232, que é efetuada paralelamente à melodia principal do coro de vozes. Na 228

Este grupo tem reconhecida importância para a consolidação do estilo Nova Orleans do jazz. O grupo também deu impulso para o reconhecimento de Louis Armstrong como músico referencial mundial. As gravações de 1923 são um marco na história do gênero. O conjunto realizou 39 gravações, feitas para a Paramount, Okeh e Gennet. (http://en.wikipedia.org/wiki/King_Oliver%27s_Creole_Jazz_Band). 229 Lil era pianista, cantora, compositora e arranjadora. Foi a segunda esposa de Louis Armstrong, com quem colaborou com várias gravações nos anos 20 e 30. 230 Hobsbawm aponta que a principal característica do jazz de Nova Orleans seria a “polifonia vocal de três partes”, que era constituída pela corneta (trompete) na melodia principal, o clarinete com sua própria melodia e o trombone que “estabelecia um contraponto metálico à corneta”. Neste sentido, afirma o autor que “a complexidade melódica e rítmica da música surgia do inter-relacionamento de todos os instrumentos que, normalmente, improvisavam coletivamente (...)” (Hobsbawm, 1990: 115). 231 Disponíveis para audição online: http://www.redhotjazz.com/kingocjb.html (acesso em 1/12/2010). 232 Disponível para audição online no site do IMS: http://homolog.ims.com.br/cgibin/wxis.exe/iah/ (acesso em 01/12/2010).

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segunda parte desta música, muda-se a participação da flauta, que divide com o banjo as intervenções em contrapontos nos intervalos da melodia principal233, que é cantada com a eloqüência do bel canto por China. Vale ainda destacar que o modo como os banjos aparecem em ambos os grupos é bastante diferente. Em King Oliver‟s, este instrumento funciona de forma geral mais como um fundo de marcação rítmica, na mesma linha do que faz o contrabaixo234, sem muitos recortes melódicos, que ficam a cargo dos instrumentos de sopro e por vezes do piano. Já com os Batutas, os banjos e o cavaquinho - assim como o violão, todos tendo sua sonoridade prejudicada na gravação pelo volume sonoro dos demais instrumentos musicais – costumam fazer várias intervenções melódicas paralelas, assim como contrapontos que entrecruzam a melodia principal235. O que quero apontar é que, na minha avaliação das gravações de 1923 do grupo Os Oito Batutas em Buenos Aires, parece haver sim arranjos, bem como uma musicalidade bastante articulada. Numa escuta particular, seria possível afirmar que a extensão das possibilidades sonoras registradas em disco por este grupo parece apontar um horizonte conceitual musical mais vasto236 do que o que ficou registrado pela King Oliver‟s. A meu ver, é justamente este caráter aberto às possibilidades estético-musicais dos músicos brasileiros que acaba soando nas audições críticas futuras, como “esculhambação”, pois esta audição pré-condicionada – como qualquer audição, tanto pela experiência de vida do ouvinte, como – já diria Bourdieu - sua posição da estrutura social -, julgada a partir de um conceito particular de musicalidade, no caso de Cazes geralmente ligada aos aspectos formais “complexos” relacionados ao gênero musical 233

Esse modo responsivo e dialogante entre melodia principal e a intervenção de pequenos fragmentos melódicos entre os intervalos da melodia principal é bastante utilizado na linguagem do gênero musical choro e do samba até hoje, sendo possível ser identificado ouvindo, sobretudo, as melodias de contraponto do violão de sete cordas. 234 Vale lembrar que John St. Cyr tocava às vezes o banjo e outras o contrabaixo nestas gravações. Em relação ao segundo instrumento são mais comuns os solos paralelos e contrapontos de John. 235 As peripécias do banjo nas gravações dos Batutas, ao que tudo indica, ficavam a cargo do famoso “moleque diabo”, Aristides de Oliveira. Tanto Donga, como Nelson Alves, que também tocavam banjo, também tocavam violão e cavaquinho, respectivamente. Como é possível perceber na maioria das músicas a participação elaborada destes dois últimos instrumentos nas gravações, provavelmente era Aristides que ficava com o banjo. 236 Refiro-me ao leque de musicalidades – que remetem a uma variedade de gêneros e subgêneros musicais relacionados aos planos regionais e internacionais - com o qual os músicos brasileiros trabalharam.

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choro, que normalmente têm relação de respeito com a “complexidade” do jazz237. Esta avaliação de Cazes, a meu ver fornece a muitos músicos – sobretudo relacionados ao choro – um ponto de escuta particular a partir do qual se avaliam aquelas gravações de 1923. Mas voltemos às últimas considerações sobre o rastreamento feito por Coelho (2009) do Los Batutas na Argentina. Ao que tudo indica, a passagem do grupo pelo Teatro Cosmopolita de Buenos Aires conforme a citação de Cabral (2008) - deve ter acontecido no mês de março de 1923, antes ou depois das gravações. Em relação a esta casa de espetáculo, Coelho afirma que sua reputação, bem como sua exposição na imprensa, gozava de menos prestígio, sendo de forma geral entendida como parte do submundo portenho. Em seguida Los Batutas serão rastreados como atração musical em Chivilcoy, chamando a atenção o fato de ser citada pelo jornal El Hombre Libre (Chivilcoy, 25/03/1923) a formação da troupe composta por cinco músicos, três dançarinas e dois dançarinos, o que sugere que alguns dos músicos já não faziam parte destas derradeiras apresentações, sendo muito provável que estariam rumando para o Brasil, Donga, J. Thomas e Nelson Alves.238 Naquela última cidade é onde somem os rastros deixados pelos Batutas em terras 237

Em Lacerda (2007) realizei uma etnografia com músicos do gênero musical choro na Ilha de Santa Catarina, em Florianópolis, onde pude apontar como uma das idéias recorrentes entre os “chorões” (é como se chamam os praticantes do choro, principalmente os que detêm maior respeito e legitimidade entre os demais) é a de que há uma “complexidade” intrínseca a esta música, que a coloca em um lugar de destaque em relação a outros gêneros. Neste sentido, conforme a concepção nativa, o “complexo” se estenderia aos planos da melodia, da harmonia e do ritmo, “altamente trabalhados”, mais do que em outros gêneros musicais – uma frase recorrente entre os interlocutores era: “quem toca choro, toca tudo!”. Nesta direção, os sujeitos que quisessem ser integrantes do que chamei de “campo chorístico” – inspirado na idéia de “campo” de Bourdieu -, para que pudessem dominar as técnicas, o repertório, enfim, o “complexo” chorístico, teriam que despender um grande esforço para aprender esta “música complexa”. Este esforço é uma cobrança por parte dos pares, como constitutivo do “campo”, e pressupõe um consumo de tempo (além de uma “vontade”) para o aprendizado. Isto, entre outras implicações, restringe o número de sujeitos capazes de aprender esta “música complexa” e, portanto, há um movimento seletivo. De acordo com minha experiência neste trabalho, de forma geral, alguns outros gêneros musicais também eram reconhecidos como “complexos”, principalmente o Jazz e a música clássica erudita. De minha estada no Rio de Janeiro em 2009, pude conviver com alguns “chorões” e considero que estas observações em relação a Florianópolis encontram grandes semelhanças em relação ao âmbito carioca deste gênero musical. 238 Para Cabral (1978, 1997, 2007) é somente depois de se apresentarem em Chivilcoy que o grupo teria se desentendido, gerando a cisão e sérias dificuldades financeiras que levaria Josué de Barros ao espetáculo de faquirismo. No entanto, Coelho aponta de modo bastante convincente a distância cronológica entre os eventos.

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argentinas para Coelho, sendo suas últimas pistas a apresentação derradeira do dia 03 de abril de 1923. O que gostaria de reter da narrativa de Coelho (2009)239, é seu apontamento - fazendo uso dos conceitos de Gilberto Velho -, do caráter “metamórfico” dos Oito Batutas em função das variações no “campo de possibilidades” que a eles se abria, ou fechava, na medida em que transitavam pelo território argentino. De casas conceituadas a lugares de prestígio menor, ou duvidoso moralmente. De características da tipicidade brasileira à atuação como jazz-band e músicos de baile. Neste sentido afirma Coelho: De uma arte sedutora, às vezes odiada justamente por sê-lo, seriam os Oito Batutas pensáveis, neste sentido, como uma espécie de grande signo saussuriano em trânsito, no interior do qual a relação entre significante e significado constante e sutilmente deslizava, refazendo-se sempre em função das diferentes conexões possíveis entre palavras e coisas e da agência do próprio signo em função delas. (Coelho, 2009: 107).

4.5 – Cotubas, Batutas e Batutas. Como já afirmei, a cisão que aconteceu na Argentina entre os integrantes do grupo Oito Batutas fez com que alguns dos músicos, sob a liderança de Donga, antecipassem suas voltas para o Brasil. Em 5 de abril de 1923 – portanto a apenas dois dias da última apresentação em Chivilcoy, na Argentina, conforme apurado por Coelho (2009) – a facção musical de Donga já figura na imprensa carioca, numa audição no Centro Paulista, patrocinado pelo Círculo de Imprensa. A música popular. - Já noticiamos que, tendo-se dissolvido, na Argentina, o popular grupo de musicistas brasileiros denominado „Oito batutas‟, 239

É preciso salientar a contribuição do trabalho de Coelho (2009) para pensar o âmbito ideológico relacional e concorrencial de constituição de imaginários entre os pólos Brasil/Argentina, enquanto expressões de complementaridade, onde a negação do outro é também sua auto-afirmação.

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quatro delles regressaram ao Rio e aquí se reuniram a quatro novos companheiros, formando um outro grupo. Este, querendo apresentar-se ao público carioca, solicitou ao Círculo de Imprensa o seu patrocinio nesse sentido. Acquiescendo, a directoria do Circulo obteve obsequiosamente o salão do Centro Paulista, onde os oito músicos darão amanhã, ás 5 horas da tarde, uma audição a imprensa. Por essa occasião, o novo grupo receberá o nome com que vae ser baptizado. Os aggremiados do Círculo e os jornalistas em geral podem comparecer com suas familias á interessante audição (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05/04/1923).

Ao que tudo indica, já estavam sendo postas em prática estratégias de propaganda para divulgar a nova formação do grupo. Já no dia 6/04, o Correio da Manhã, dá conta do acontecimento citado pela Gazeta de Notícias: Os novos „8 batutas‟ reappareceram hontem Uma audição para a imprensa, no Centro Paulista Os „8 batutas‟, que tanto renome ganharam, popularizando a musica... americana, foram ter a Buenos Aires, e lá se exhibiram em vários concertos, logrando retumbante successo. Mas, como em negócios de música e, mórmente, de músicos, a harmonia é coisa que raras vezes se mette em compasso, os „8 batutas‟ entraram em desavença. Litigaram, dissolveram-se, afinal. Uns dois ou tres „batutas‟ sómente puzeram-se de accordo e pensaram em constituir novo blóco, de retorno ao torrão patrio. Aqui chegados, lutaram com difficuldades não poucas, porque a juncção de instrumentos heterogeneos, para os effeitos do jazz-band, não se consegue senão por uma escrupulosa escolha de elementos, cuja competência musical fosse cabalmente comprovada.

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Formou-se, pois, a nova jazz-band successora da outra, balda, porém, ao naipe sonante, que é a molla real do mundo – e vulgarmente conhecida como – dinheiro em caixa. Os rapazes não desanimaram, por isso; ao contrario, cheios de „harmonia‟ e bôa vontade, puzeram mãos à obra, ensaiaram, diariamente, longamente, porfiadamente até que um vasto repertório não ficasse bem sabido. Antes, porém, de se lançarem aos requestos do favor público quizeram offerecer á Imprensa e a alguns convidados as primazias de uma audição, no salão do Centro Paulista, na tarde de hontem. A audição teve magnífico éxito, através do seguinte programma: 1º - Non, non, jamais les hommes; 2º - Von and Ten, fox-trot; 3º - Morfina, valsa; 4º - Buddha sorri, fox-trot; 5º - Valle feitil, tango; 6º - Trouble, fox-trot; 7º - Tatú subiu no páo; 8º - Polka comica; 9º - Solo de violão; 10º - Embolada do Norte; 11º - Cantos, por José Monteiro. Os noveis „8 batutas‟ são assim constituídos: cantor popular, José Monteiro; banjistas, Ernesto dos Santos e Nestor dos Santos Alves; pistonista, José Cyrino; trombonista, Euclydes Galdino; saxophonista, J. B. Paraíso; pianista, Fausto Mozart Corrêa. O sr, João Thomaz de Oliveira é encarregado da „bateria‟, verdadeiro arsenal de pancadaria musical, que produz effeitos curiosíssimos. A musica desses „8 batutas‟ tornouse tão suggestiva, que alguns convidados de sexo opposto não resistiram à tentação de dar umas pernadas ao rhytmo do Fox-trot (Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06/04/1923).

De fato chama a atenção esta associação direta com o jazzband, como opção de exposição da nova formação do grupo, que se apresenta estrategicamente para ser batizada pelo próprio público. Esta nota aponta o intuito de se apresentarem voltados para a apreciação estética musical de sabor tido como moderno, sendo o Fox-trot sua moeda corrente e a instrumentação – onde não figuram nem o violão, 183


nem o cavaquinho - condiz com o ideal da proposta. No dia seguinte, o Gazeta de Notícias já anuncia o nome de batismo do novo grupo, Oito Cotubas. No salão do Centro Paulista, obsequiosamente cedido, deram ante-hontem, á tarde, a sua 1ª audição, sob o patrocínio do Circulo de Imprensa, os oito musicistas populares que acabam de formar um grupo no genero do que se denominava „Oito Batutas‟, e que ha pouco foi dissolvido na Argentina, de onde regressaram quatro dos seus componentes, agora incorporados áquelle novo grupo. Perante bôa concorrencia, no meio da qual se viam diversas famílias, os habeis musicos patrícios executaram bellos numeros de musica popular, sendo applaudidíssimos. Houve danças animadas, que se prolongaram até ás 7 horas da noite. O novo grupo pediu que o Círculo de Imprensa o baptisasse, e os socios desse gremio, que se achavam presentes, resolveram dar-lhe a denominação de „Oito Cotubas” (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 07/04/1923).

Segundo Cabral (2007: 112), o grupo recém criado, foi logo contratado por um bom cachê (100 mil réis por dia) pelo Cabaret Fenix por um mês. Não consegui nenhuma informação sobre este contrato, mas, o fato de não haver encontrado nenhuma outra aparição do grupo na imprensa até 27 de abril de 1923, quando estréiam na sala de espera do Cinema Central, pode sugerir que o contrato pode ter acontecido, no entanto, não por um mês. Assim se refere o Correio da Manhã em relação ao Cinema Central. Hoje estréia na sala de espera, de um novo atractivo, a orchestra Os Oito Cotubas, que com o seu excêntrico e inédito repertório de musica regional e jazz-band, fará as delicias dos nossos habitués, continuando a orchestra Ribas. (Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 27/04/1923).

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O anúncio é na seção de programação onde o Cinema Central – local muito refinado, localizado em plena Avenida Rio Branco -, tem bom espaço de divulgação e a estréia dos Cotubas recebe certo destaque. É interessante que são duas orquestras, Os Oito Cotubas e a Orquestra Ribas, atuando no mesmo espaço. Também chama a atenção o repertório da primeira, como “excêntrico e inédito”, mesclando “musica regional” e também “jazz-band”. Esta forma de atuação dupla (regional e jazzband) é identificada por Coelho (2009) como característica de algumas das apresentações dos Oito Batutas na passagem por Buenos Aires e, ao que tudo indica, fornece uma possibilidade interessante para a inserção do novo grupo no mercado do entretenimento do Rio. Os Oito Cotubas240 aparecem nos anúncios do Cinema Central no Correio da Manhã de forma muito sutil até 16 de maio de 1923. O A Noite também os anuncia no Central, mas somente a partir do dia 30 de abril. Os 8 Cotubas Alguns elementos dissidentes da troupe dos „8 Batutas‟ reuniram-se a outros músicos patrícios e organizaram um musical a que deram o titulo de „8 Cotubas‟, que acaba de estrear, com sucesso, no Cinema Central, em cuja sala de espera está trabalhando. É diretor da troupe o Sr. J. B. Paraíso, saxophonista conhecido. Os elementos que saíram dos „8 Batutas‟ para formar este conjunto são: Ernesto Santos, violão; Nelson Alves, cavaquinho e João Thomaz, pancadaria. Os 8 Cotubas além do repertório sertanejo, têm organização de jazz-band. (A Noite, Rio de Janeiro, 30//04/1923)

Na nota chama a atenção que a direção do grupo é atribuída a J. B. Paraíso, e não a Donga ou outro ex-Batuta. Aqui também se destaca a dupla possibilidade musical da orquestra em executar “repertório sertanejo” e “jazz-band”. Comparando com a nota do Correio da Manhã, temos uma correspondência entre as expressões “música regional” e 240

Como destaca Menezes Bastos (2005: 188), cotuba é uma palavra de origem tupi, cujo significado é “corajoso”. Para o autor, isto indica uma provável relação entre a escolha do nome do grupo e o ethos da facção de Donga em face das vicissitudes vividas na Argentina. Vale lembrar que segundo o Gazeta de Notícias, o batismo do novo grupo com este nome se deu pela escolha dos sócios do Círculo de Imprensa do Rio de Janeiro.

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“repertório sertanejo”, que enquanto musicalidade aponta para fora da capital, em oposição ao “jazz-band”, que ativa um imaginário moderno e cosmopolita. No dia 24 de maio de 1923, sai uma nota interessante no A Noite. Os „8 Cotubas‟ A troupe musical os „8 Batutas‟ fez celebrar hontem, no altar-mór da igreja de S. José, missa de ação de graças pelo seu sucesso. O acto teve concorrência e brilho. Nascimento Filho e Inácio Guimarães fizeram-se ouvir no côro, com acompanhamento ao orgam do Sr. Francisco Marti e ao violino do Sr. João Wanderley. (A Noite, Rio de Janeiro, 24/05/1923).

Primeiramente se destaca a confusão do jornal com os nomes „8 Cotubas‟ e „8 Batutas‟, o que sugere que o primeiro nome parece não ter conseguido se estabelecer independentemente do segundo. A missa é oferecida como celebração pelo sucesso do novo grupo, ou seja, das apresentações na sala de espera do Cinema Central. No entanto, o espaço que o grupo ocupa na imprensa neste período é bastante reduzido, e a chegada da outra facção de músicos de Buenos Aires (Pixinguinha e China) pode ser um motivo para uma exposição no sentido de uma auto-afirmação concorrencial no campo da música popular em questão. Uma semana depois da missa, o Jornal do Brasil (31/05/1923) anuncia que brevemente Os Oito Batutas sob a direção de Pixinguinha e China “reaparecerão ao público carioca”. Já no dia 5 de junho, o A Noite e o Correio da Manhã noticiam a volta da “troupe musical dos „Oito Batutas‟ que acaba de chegar de Buenos Aires” em um espetáculo no Teatro Trianon241. Na narrativa de Cabral (1997, 2007), Pixinguinha e China com este grupo “Oito Batutas” teriam feito uma apresentação particular no aniversário da filha do empresário Geraldo Rocha (proprietário do jornal

Neste mesmo teatro estão “Os Oito Batutas” se apresentando de 31 de julho a 3 de agosto, nas “Tardes de arte”, ao lado de Catulo da Paixão Cearense e Mané Pequeno, conforme anúncios no A Noite e O Paiz. Ao que tudo indica seria a facção de Pixinguinha e China. 241

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O Mundo) e em seguida teriam ido atuar no Cabaret Assírio242. Na sequência da narrativa Cabral afirma: Concluída a temporada, uma boa notícia: os antigos membros dos Oito Batutas estavam unidos novamente, num esquema bem diferente do anterior, tentando adaptar-se aos novos tempos. O novo conjunto ganhou o nome de Bi-Orquestra Os Batutas, com a proposta de tocar as músicas internacionais da moda, sem, contudo abandonar o choro. (Cabral, 2007: 113).

O cisma entre os integrantes do grupo teria sido resolvida, conforme Cabral (1997, 2007), em agosto de 1923. Justificando esta afirmação, o autor apresenta uma reportagem no A Notícia em que China teria falado sobre a recém criada “Bi-Orquestra”, explicando que “se tratava, ao mesmo tempo, de uma jazz-band e de um conjunto capaz de tocar choros, sambas, etc.” (apud: Cabral, 2007: 115). Luis Coelho me chamou a atenção para as diferenças desta citação de acordo com as diferentes edições do livro de Cabral. Na edição de 1978, a primeira apresentação da “Bi-Orquestra Os Batutas”, na qual teriam se reunido novamente as duas facções do Oito Batutas, teria acontecido ainda em 5 de junho, na apresentação no Trianon citada acima, sendo apenas um erro do jornais que ainda não haviam absorvido o novo nome do grupo. A citação do A Notícia nesta edição tem a data de 26 de outubro de 1923. Nas demais edições (1997, 2007) a “Bi-Orquestra” teria estreado no dia 24 de agosto de 1923, sendo a reportagem do A Notícia citada como de agosto de 1923, sem precisar a data. Luis Coelho utilizando o serviço de consulta à distância da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro obteve como resposta desta instituição que em outubro de 1923 não existe esta reportagem citada por Cabral conforme sua primeira edição. Já em relação ao mês de agosto, Coelho não obteve resposta. Isto aconteceu enquanto eu estava pesquisando na Biblioteca Nacional e então me prontifiquei a procurar em ambos os meses. No entanto, o jornal A Notícia de agosto de 1923 estava impossibilitado para consulta devido a seu mau estado de conservação. Portanto, especificamente em relação à declaração de China citado por Cabral, não consegui confirmar 242

Infelizmente não consegui encontrar nenhuma confirmação destas atuações.

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sua existência ou não. Mas, contudo, em relação à resolução do cisma e conseqüente estréia da “Bi-Orquestra Os Batutas”, posso apontar algumas considerações diferentes das de Cabral243, a partir de duas apresentações realizadas no dia 24 de agosto de 1923. A partir do dia 20 de agosto de 1923 (segunda feira), o A Noite inicia uma campanha jornalística de divulgação de um grande espetáculo que se realizaria no dia 24 de agosto (sexta) no Theatro Lyrico, patrocinado pelo próprio jornal. É uma homenagem ao artista João Caetano (1808 – 1863), sendo a renda em benefício da Casa dos Artistas. De acordo com o jornal, “todas as companhias nacionais e estrangeiras que ora se encontram nesta capital e outros elementos esparsos de valor reconhecido tomarão parte no espetáculo”, sendo anunciadas as participações de Leopoldo Fróes; da Companhia francesa Ba-Ta-Clan – recém chegada de uma excursão a Buenos Aires e Montevidéu – e dos “Oito Batutas”. (A Noite, Rio de janeiro, 20/08/1923). A notícia deste espetáculo circula toda a semana no jornal com grande atenção, até a sua realização no dia 24 de agosto. A matéria com toda a cobertura do “grande festival” é feita em duas partes, dividas nas edições de 25 e 27 de agosto. Estes informes salientam o sucesso do espetáculo e comentam suas apresentações uma por uma, entre elas, o destaque para a abertura com a ópera “O Guarany” regido por Francisco Braga (1868-1945). Na segunda parte, entre outros, “a canção brasileira pela atriz Itala Ferreira, acompanhada pela festejada orchestra dos „8 Batutas‟, foi uma emoção viva e regional”. A única menção a jazz-band se refere não aos Batutas – como apresenta Cabral (2007) – mas sim a um quadro da Ba-Ta-Clan com a Jazz-band de Earl Leslie244, bailarino que tinha como parceira a famosa vedete Mistinguett. Mas ao fim da cobertura, ficamos sabendo que “Os Oito Batutas” voltam para encerrar o espetáculo. A nota final, nota brasileira e de emoção, aplaudida com todo enthusiasmo, coube aos „8 Batutas‟ e ao côro de todos os artistas nacionaes ora no Rio, sendo o número escolhido o popular 243

As narrativas de Cabral sobre estes acontecimentos são referência para todas as demais narrativas com as quais tive contato que trataram da volta dos Batutas da Argentina e posterior resolução de seus conflitos. 244 Este conjunto era o Jazz-band Gordon Streton, que acompanhava Earl e Misttinguet no BaTa-Clan.

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„Luar do Sertão‟, acompanhado também pela platéia, sob a regência de Froes e Mistinguett. (A Noite, Rio de janeiro, 27/08/1923).

Como já me referi, esta apresentação divulgada pelo A Noite é tomada pela narrativa de Cabral (1978, 1997, 2007) como a primeira apresentação da “Bi-Orquestra Os Batutas”, sendo o cisma resolvido. No entanto, deste o dia 23 de agosto de 1923, estão sendo anunciados pelo Correio da Manhã e o O Paiz245, um espetáculo no Cine-Teatro Rialto nos seguintes termos: Os melhores e attrahentes números de variedade! DARWIN, LAUFFER e FROSSO. LAUFFER – o mais original dos músicos excêntricos que executará, acompanhado do delicioso jazz-band de „Os Batutas‟, encantadores trechos, inclusive de operas.

E mais abaixo no anúncio informa-se com destaque: OS BATUTAS no seu encantador repertório de músicas e canções sertanejas. Pixinguinha – nos seus admiráveis solos de flauta. O China – nas canções e modinhas da roça. (Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23/08/1923).

No dia 24 de agosto, Os Batutas aparecem da mesma forma normalmente na programação do Cine Rialto, com um destaque ainda maior para a participação no elenco da apresentação de Pixinguinha e China. Para Cabral (1997, 2007), seria apenas no dia 25 de agosto que a “Bi-Orquestra Os Batutas” estariam no Rialto, com Donga, Pixinguinha e China. Mas, como parecem apontar as notícias dos jornais, havia dois grupos musicais que utilizavam o mesmo nome “Batutas” no dia 24 de agosto: um no Teatro Lyrico, na festa do A Noite, provavelmente com Donga; e outro no Cine Rialto, com Pixinguinha e China. Em nenhum dos dois aparece mencionado o nome de “Bi-Orquestra Os Batutas”. Somente no dia 23, no anúncio veiculado pelo Correio da Manhã sobre os espetáculos do Cine Rialto, - com Pixinguinha e China - é que surge a 245

Nenhum destes jornais anuncia as apresentações no Teatro Lyrico, de 24 de agosto de 1923.

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menção à “Jazz-band Os Batutas”, que é trocada pelo nome de “Os Batutas” nos demais anúncios deste cinema, onde ficam em cartaz até o dia 31 de agosto de 1923 – e não até fins de outubro, como narra Cabral.

“Os Batutas” estão na parte de baixo do anúncio do Cine-Teatro Rialto, no mesmo dia da apresentação de outro grupo “Oito Batutas”, no Lyrico 246. (O Paiz, Rio de Janeiro, 24/08/1923 – Acervo Biblioteca Nacional)

O que quero destacar é que em agosto de 1923, ainda estavam separados os dois grupos, Donga de um lado; Pixinguinha e China de outro. Ambos estavam fazendo uso da marca “Batutas” para promoverem seus espetáculos. Ambos pareciam estar aptos e dispostos a apresentar tanto o repertório regional como em formato de jazz-band. Em meu rastreamento, não pude precisar o momento da reunificação das partes cismadas em um grupo chamado “Batutas”. Por exemplo, em novembro de 1923, é destaque na programação do Teatro Lyrico: “Brilhantes números pelo afamado Jazz-band Donga, entre os quaes o

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Infelizmente a reprodução que tenho do anúncio desta apresentação no A Noite está pouco legível.

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Yes... we have not bananas247” (Correio da Manhã, RJ, 11/11/1923). Isto sugere que Donga estava ainda separado de Pixinguinha em fins de 1923. As notícias no período de 1924 a 1927 são ainda mais esparsas e pouco contundentes em relação a uma possível reaproximação entre Donga e Pixinguinha248. Nesta direção, minhas investigações também foram pouco elucidativas, pois a intensidade de notícias na imprensa carioca em relação aos integrantes do grupo Oito Batutas vai diminuindo significativamente a partir de 1924. Sobre Pixinguinha, Cabral (2007) informa sua atuação em junho de 1924 na peça “Não te Esqueça de Mim”, no Teatro São José. Depois, num salto para fevereiro de 1925, este aparece numa nova turnê para São Paulo, acompanhando Duque e Gaby, com Os Batutas, voltando para o carnaval no Rio nos bailes do High Life, quando o grupo teria recebido nota elogiosa no jornal A Noite. Passado o carnaval, o grupo teria - segundo Cabral (2007: 119) -, seguido para Santos (São Paulo), acompanhando novamente Duque e Gaby, voltando para a capital paulista, onde teriam atuado no Teatro Cassino Antártica249. No entanto, a partir destas fontes, não se pode afirmar se estas apresentações contaram com a presença de Donga ou não250. Este número “Yes, we have not bananas” já aparece como parte do espetáculo da Ba-TaClan, “Oh! La! La!”, como número de “Randall, o rei da cançoneta” (Correio da Manhã, RJ, 18/10/1923). No anúncio cita-se uma Jazz-band, mas não se refere a Donga nem a Gordon Streton. 248 Por exemplo. Cabral (2007) continua tratando em 1926 de “Os Batutas”, sem explicitar os seus integrantes, a não ser que Pixinguinha é um deles. Quando apresenta a nota da Revista Careta de maio de 1926 – a nota é do dia 22/05/1926 -, ele cita como uma referência ao show dos Batutas no Assírio. No entanto, lendo a notícia, fica claro de que não se trata de um grupo que tenha o nome Batutas, e muito menos que possa contar com a presença de Donga. Aliás, a nota se refere aos “Oito Batutas” com certo desprezo, afirmando que “felizmente [os outros integrantes] debandaram!”, ficando remanescente apenas o que importava, “Pixinguim”. Esta parte do texto é justamente a que é suprimida na narrativa de Cabral. 249 Nesta turnê Pixinguinha teria conhecido a cantora Jandira Aimoré (Albertina Pereira Nunes), com quem irá ingressar na Companhia Negra de Revista em 1926 e posteriormente se casar em 1927. 250 No entanto, neste ano de 1924, Cabral (2007) sugere ter ocorrido o encontro entre Pixinguinha e Donga, com Prudente de Moraes Neto, mediado pelo poeta francês Blaise Cendrars. Mas, segundo Vianna (2008), Prudente de Moraes Neto teria sido apresentado em 1924 somente a Donga, e é a este que aquele recorre em 1926 para contatar Pixinguinha e os demais músicos populares para a realização do encontro – tão inspirador para Vianna - entre os músicos populares e intelectuais do movimento modernista de São Paulo, em setembro de 1926, memorável, sobretudo, para Gilberto Freyre. 247

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Nas frases atribuídas a Donga, Pixinguinha e China na série de entrevistas ao O Jornal, publicadas em final de fevereiro de 1925, os músicos se referem ao grupo Oito Batutas no passado. As opiniões difusas publicadas nestas entrevistas apontam uma tensão latente entre as partes em questão, e podem sugerir algo sobre o cisma que parece persistir. 4.6 – Pixinguinha X Donga: pólos do cisma. A série de entrevistas publicadas no O Jornal em 1925, intitulada “Os Reis do Samba e do Choro” - contanto 32 entrevistados -, em si seria material para um trabalho de pesquisa intenso. Mesmo reduzindo meu foco somente aos cinco Batutas participantes da série (Donga, Pixinguinha, China, J. Thomaz e Aristides de Oliveira), um estudo detalhado deste material ultrapassaria em muito os limites deste trabalho, e, portanto, indico apenas alguns temas pontuais em relação a Donga e Pixinguinha. Martins (2009), um dos poucos trabalhos que tratam destas fontes em relação aos Batutas, tem um olhar bastante peculiar sobre estas entrevistas. É a base para uma parte de sua tese de doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense, o capítulo intitulado “Os Batutas pelos Batutas” que busca, segundo a autora, “vê-los por eles mesmos”251. A meu ver, esta postura historiográfica guarda resquícios de uma atitude epistemológica que assume como possível acessar alguma visão ou enquadramento da cultura que não seja mediada pelo olhar e atuação do próprio pesquisador. Em outra direção, partindo de uma perspectiva antropológica, sugiro que uma visão (ou enquadramento) da cultura só é compreensível por sua posição relativa no arranjo de outras visões, e em especial, a compreensão possibilitada pela experiência do observador-pesquisador, tem sua validade devida ao seu distanciamento relativo252.

Isto é proposto por Martins como contraponto ao que seriam “as visões da imprensa” (analisadas no capítulo 3 da tese) e os “enquadramentos” feitos por memorialistas, biógrafos e acadêmicos (capítulos 1 e 2). Para a autora “vê-los por eles mesmos” não seria uma perspectiva da verdade, mas uma que iria “perscrutar como construíram a narrativa de seu próprio presente e passado” (Martins, 2009: 112). 252 Vale relembrar Sahlins, para quem é imprescindível a “compreensão criativa” do olhar externo antropologicamente bem informado, sendo a “exotopia” (termo de Bakhtin, como 251

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Martins ao analisar a entrevista de Donga, por exemplo, inicia sua (da autora) interpretação afirmando que “Donga posiciona-se, logo de início, como o introdutor do samba no Teatro Municipal” (Martins, 2009: 124 - 125). Num segundo momento, tratando da forma efusiva com que Pixinguinha e Donga se referiam à viagem dos Batutas à Paris, Martins assevera: “Donga só é mais categórico que Pixinguinha ao considerar-se o melhor dos Batutas. Talvez por isto, o próprio repórter de O Jornal o julgue „um convencido‟” (grifos meus). Vamos por partes. Primeiramente, tudo se passa como se o que está escrito no jornal seja realmente a expressão fiel do pensamento de Donga. Mesmo que admitíssemos isso, a idéia de que Donga teria se auto intitulado como o “introdutor do samba no Municipal”, não passa de uma posição do jornal (e não de Donga), apresentada, nestes termos, no título da reportagem.

(O Jornal, Rio de Janeiro, 24/01/1925. Acervo Lygia Santos)

Donga teria dito de acordo com o que se lê no decorrer da matéria: Quando se levou à scena no Municipal, a opera nacional „O contratador de diamantes‟, do maestro ponto de observação externo à cultura) uma ferramenta fecunda para a compreensão da cultura. Nestes termos, “é preciso outra cultura para conhecer outra cultura” (Sahlins, 2006: 13).

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Mignone, coube-me a tarefa de ensaiar a troupe de bailados característicos, referentes ao nosso samba.

Em segundo lugar, não se lê no jornal “fui o melhor dos Batutas”, mas sim “fui o menos batuta, dos „Oito batutas‟253”. E conseqüentemente, não foi por isso que o repórter do O Jornal “julgou-o [Donga] convencido”. Vejamos o que se lê no jornal. A opinião de Donga (Ernesto dos Santos) sobre o chôro e o samba, tem o mesmo effeito de um dogma. Assim o affirmam vários autores de sambas e choros, o que evidencia ser o Donga uma competência nesse gênero de musica. Pois bem, tivemos o Donga a nosso lado; ouvindo a sua palavra abalizada, durante alguns minutos. A sua presença é agradável, a sua prosa é corrente. Discorre com fluência e os seus conceitos, pelo entono enérgico das phrases, vê-se que nascem da mais profunda convicção. É um convencido.

Em minha interpretação, a palavra “convencido” articulada pelo jornal logo após a referência à “profunda convicção” de Donga, me parece indicar um sentido positivo, e não depreciativo como poderia induzir ao leitor a interpretação de Martins. Estes apontamentos explicitam em grande parte o modo particular da articulação narrativa de Martins (2009) que parece caudatária de uma pré-conceitualização que, aos poucos, atribui a Donga um papel arrogante e individualista254. Mas, além disto, penso que este ator vai sendo situado no pólo oposto ao de Pixinguinha, que normalmente é hagiograficamente construído - como “São Pixinguinha”255 -, de forma mais intensa, por exemplo, pelas Donga reafirma esta posição em seu depoimento ao MIS em 1969, dizendo “Aliás, nos Oito Batutas não tinha ninguém medíocre. O pior era eu”. Esta declaração aparece na narrativa de Martins (2009) como uma contraposição ambígua e contraditória de Donga, entre as declarações de 1925 e de 1969. 254 Esta interpretação da personalidade de Donga a meu ver tem relação com toda a discussão a que já me referi, a respeito da polêmica do samba “Pelo Telefone”, onde o músico é acusado de “roubar” os temas comunitários nas rodas de samba da Tia Aciata. 255 Na revista “Textos do Brasil”, editada por nada menos que o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em seu número dedicado à música popular brasileira, - traduzido para o inglês e espanhol -, Hermínio Bello de Carvalho (escritor, compositor e produtor musical) 253

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narrativas de Cabral (1978, 1997, 2007). Esta perspectiva me parece constituir o óculo – ou lente conceitual - pelo qual Martins (2009) – e outros – busca ver “Os Batutas pelos Batutas”. Tendo a pensar que em início de 1925, Donga e Pixinguinha estariam separados256. No entanto, sugiro agora pensar de modo analítico esta condição, pela idéia de “cismogênese”, conforme entendida por Bateson (2008). Estudando o ritual do Naven do povo Iatmul da Nova Guiné, este autor sugere o conceito de “cismogênese” para pensar processos de interação – reações de reações - e integração sociais, de mudanças e permanências (da “estrutura social”; do “ethos” e do “eidos” – “estrutura cultural”) onde a “coesão social” é tecida pela vida social, num sistema em constante estado de “equilíbrio instável”. O que interessa aqui é que o conceito de “cismogênese” permite pensar integridade e ruptura não como processos opostos e distintos. Nestes termos, se admite as partes da “cismogênese” constituídas e constitutivas de um sistema relacional e auto-regulável. É neste sentido que penso ter valor heurístico pensar a separação Donga/Pixinguinha como uma relação de “cismogênese” que acena para uma diferenciação que envolve contradição e interdependência, onde um termo se constitui como simétrico e inverso do outro; assim como uma diferenciação que acentua e intensifica a rivalidade. Através de um modelo construído a partir destes conceitos, sugiro uma possível compreensão de algumas posições atribuídas a Pixinguinha e Donga. Se nas declarações ao O Jornal em 1925, para Pixinguinha257, o “samba é nefasto” por sua natureza “primitiva”; para Donga258, o samba estava deteriorado, justamente por se afastar desta natureza, de suas origens “da terra negra”. As definições pejorativas do samba são simetricamente relacionais, sendo uma o inverso da outra. Se escreve um artigo com o título de “São Pixinguinha”, onde declara: “Cada cultura ou religião tem seus mitos e fundamentos. Faço parte de uma confraria quase religiosa que cultua um Santo de pele negra, que tinha por hábito – e talvez missão – enternecer e melhorar a vida dos homens com sua arte divinal. Falo de Alfredo da Rocha Vianna Junior, mais conhecido por Pixinguinha. Para mim, seu devoto, será sempre São Pixinguinha.” (Carvalho, s.d: 51 – 53. Disponível em: www.dc.mre.gov.br, acessado em 20/12/2010) Não apenas concordo com Hermínio sobre a existência de tal “confraria quase religiosa”, como vejo nela uma poderosa instância de consagração da própria música popular brasileira como um todo. 256 Lembro que nas entrevistas de 1925, os Oito Batutas são lembrados no passado, por Pixinguinha, Donga e China. 257 Cf. O Jornal, Rio de Janeiro, 27/01/1925. 258 Cf. O Jornal, Rio de Janeiro, 24/01/1925.

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Pixinguinha veria no “nosso chôro” – gênero musical que na exegese nativa aparece como carioca por excelência - o “padrão” musical por excelência para uma música nacional, por proporcionar “possibilidades musicais” mais amplas do que o samba; Donga veria justamente no samba – que vindo da “África negra”, teria se irradiado pelo Brasil, a partir da Bahia - a “nossa música”, advogando ainda pela sua “complexidade coreográfica”. Os termos interagem – diria que reagem um ao outro – e dão forma a modos de conceber a brasilidade, entre pólos relacionais e concorrentes como: capital e regionalismos; modernidade e tradição (ou primitivo)259. Mas as posições dos atores (aqui expressadas pelos termos Pixinguinha e Donga) não são fixas em algum dos pólos, senão que transitáveis entre eles. Isto acenaria para uma compreensão do caráter transitório e compósito, pelo qual o grupo Oito Batutas (e seus integrantes) parece expressar-se em sua trajetória, em uma estrutura instável. A meu ver, a construção hagiográfica de Pixinguinha é possível na medida em que há uma minoração das características compósitas do sujeito. De forma semelhante, Donga também sofre da mesma atitude reducionista, mas numa condição de personagem menos nobre para a história da música popular brasileira. Se neste sistema conceitual, Pixinguinha é inventado como “simbólico”260 da brasilidade – no pólo da autenticidade; Donga é “diabólico”261 – no pólo oposto, o da inautenticidade262. Mas vale ainda frisar que os pólos em relação, não apenas se constituem em oposição, senão que convivem também de forma hierárquica (no sentido de Dumont263), onde Pixinguinha engloba Donga264, da mesma forma pela 259

Expressão da famigerada dicotomia cultura/natureza. De acordo com Boff (1998: 12), a palavra tem sua origem filológica no grego clássico, onde “sim-bólico” provém de sym-bállein, o que em termos literais significa lançar (bállein) junto (syn). Ou seja, o sentido remonta à idéia de um processo complexo de re-unir as realidades, convergir pontos diferentes. 261 Cf. Boff (1998), o termo “dia-bólico” provém de dia-bállein, que na forma literal significa: lançar (bállein) para longe (dia), de forma desagregada. Neste sentido, o termo é o oposto de sim-bólico, sendo seu significado residente na idéia de separação e oposição. 262 Ao pensar uma metáfora da própria condição humana, Boff (1998) chama a atenção para a inelutável experiência no mundo, de coexistência do sim-bólico e do dia-bólico, no universo, na história e na pessoa. 263 Dumont contribui decisivamente ao pensamento antropológico recuperando a idéia de hierarquia como princípio constitutivo do social. Sua análise da passagem do “indivíduo-forado-mundo” (holismo) ao “indivíduo-no-mundo” (individualismo) não elimina a hierarquia, senão que a expressa enquanto princípio, em termos de “inversão hierárquica” onde a parte “engloba” hierarquicamente o todo. Neste sentido, o ideal igualitário é artificial e expressa um 260

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qual o Rio de Janeiro engloba os regionalismos na elevação do samba a símbolo nacional por excelência, processo este acentuado nos anos 30. Conforme Eulálio (2001: 305), em fevereiro de 1926 em visita ao Brasil, o poeta vanguardista francês, Blaisé Cendrars265, procura Donga - de quem já era conhecido, provavelmente de Paris -, para que este forme uma “orquestra típica brasileira” para excursionar pela Europa. Eulálio publica a cópia de uma proposta manuscrita e assinada por Donga, endereçado a Cendrars (a quem Donga chama de “Sandra”), nos seguintes termos: “Orchestra typica Brasileira Proposta para um conjunto de 15 figuras para percorrer a Europa, inclusive, duas mulheres que sambam. Violôes 3 - 1 violão Baixo Flauta - 1 Cavaquinho - 1 “valor” moderno (ideologia) e “a negação moderna da hierarquia é o principal obstáculo que se opõe à compreensão do sistema de castas” (Dumont, 1997). Dumont (1992) ressalta a ideologia moderna (individualismo) como manifestação em forma de nacionalismo, sendo o primeiro englobante do segundo. A nação, portanto, seria precisamente o tipo de sociedade global correspondente ao individualismo como valor. Assim, pensando a “variante nacional” como desdobramento do individualismo moderno (nas obras de Herder e Fichte, por exemplo), o autor observa que há a presença constitutiva tanto do holismo em relação ao individualismo, quanto da hierarquia sobre o igualitarismo. Como argumenta a partir do sistema de castas indiano, a hierarquia se constitui em termos de valor e não necessariamente em termos de poder. Porém há a negação da hierarquia, em um ideal igualitário moderno de retórica contra as desigualdades decorrentes da hierarquia. 264 Devo a meu orientador a sugestão sobre as idéias de Dumont. 265 Cendrars é amplamente reconhecido pelos intelectuais e artistas modernistas brasileiros como uma das maiores influências para o movimento brasileiro. Sua influência é muito forte sobretudo em Oswald de Andrade – outro sujeito muito próximo de Donga, conforme lembrou o próprio Cendrars e conforme me relatou sua filha, Lygia -, expresso no Manifesto Pau Brasil de 1924. Conforme Aracy Amaral (1997): "Cendrars desembarcando em S. Paulo, é como a chegada de um símbolo vivo para os escritores e poetas, como seria Picasso para os pintores, se cá viesse. Mas em vez de expor de camarote os princípios da Modernidade parisiense, o poeta suíço-francês começa de imediato a fascinar-se, apontando aos modernistas o que via, como a dizer: Mas não é lá, é aqui mesmo, vejam!" Neste sentido, Cendrars teria alertado os jovens modernistas brasileiros para que se mirassem no espelho. De acordo com Vianna (2008), surpreendentemente foi Cendrars quem apresentou Prudente de Moraes Neto a Donga, com grande surpresa de que ainda não se conhecessem. Para um estudo das influências e relações de Cendrars com os modernistas brasileiros, cf. Amaral (1997) e Eulálio (2001).

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Clarinetta - 1 Piston - 1 Of Clyd - 1 Pandeiros (com Maracaxá) - 1 Réco-réco - 1 Ganzá - 1 Trombone - 1 As mesmas figuras destes instrumentos acima citados, tocam outros instrumentos próprios de orchestra, executando todo o genero de musicas, desde o samba ao classico. Uma vez acceita esta proposta mediante a quantia de 30 contos mensaes e passagens de 2ª classe de ida e volta, se assinará um contrato para garantia de ambas as partes. O responsável pelo conjunto será o signatário desta. Ernesto dos Santos.” (Eulálio, 2001: 305)

Ainda de acordo com Eulálio, Donga em bilhete destinado a Cendrars, teria dito que "a coisa está meio incaminhada" e pede ao contratante que "mande bazes" para que a missão possa prosseguir. Neste mesmo bilhete, Donga teria informado algo interessante: (...) sobre a macumba que o Dr. Paulo Prado pediu par arranjar, eu também ja tenho preparada. Assim que o senhor chegue aqui marcaremos o dia para se realizar esta macumba. Ainda honte eu encontrei com Villa Lobbo e disse a elle que ja tinha a macumba preparada. (Eulálio, 2001: 305).

Estas correspondências apontam ações e associações muito pertinentes. Em relação ao contrato para a viagem a Europa, Donga deixa claro ser uma “orquestra típica brasileira”, inclusive com mulheres que dançam samba, o que não exclui a possibilidade versátil dos músicos executarem o repertório “desde o samba ao clássico”, o que de certa forma explicita o caráter movediço, compósito do grupo de Donga. Algumas narrativas citam uma segunda viagem deste para a Europa justamente em 1926, numa experiência não tão bem sucedida como da primeira viagem em 1922 com Les Batutas. Não há, todavia como afirmar se haveria alguma relação desta segunda viagem de Donga com 198


as negociações envolvendo Blaisé Cendrars. Concomitantemente, as negociações explícitas pelas correspondências citadas, entrecruzam intelectuais da vanguarda do movimento modernista brasileiro, assim como do movimento francês, com músicos populares. Este tecido de relações é explicitado aqui por questões musicais, mas também pela realização da macumba, a pedido de Paulo Prado266. Lygia Santos me disse enquanto conversávamos sobre seu pai – Donga -, que ele era também um grande “feiticeiro”267, o que, como sugere os bilhetes citados, dá a este ator um papel importante e diferenciado na relação estabelecida com os vanguardistas modernistas268. Isto insere mais um elemento crucial para se pensar as relações entre estes atores, qual seja, o religioso269. Donga surge também como personagem particular, por outros aspectos, como por exemplo, sua intenção de se posicionar como “pesquisador” da música

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Paulo da Silva Prado (1869 - 1943) descende de uma das mais ricas e influentes famílias paulistas. Além de empresário, era poeta e escritor, mas também um mecenas muito importante, que teve atuação decisiva na constituição do movimento modernista brasileiro, sendo um dos grandes articuladores e promotores da Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo. Para um estudo sobre a obra, o legado e as redes de sociabilidades de Paulo Prado, cf. Waldman (2009). 267 De acordo com Cascudo (1998: 389), macumba seria, no Rio de Janeiro, a expressão equivalente ao candomblé da Bahia. A feitiçaria (e o feiticeiro) seria um nome genérico para designar estas práticas. 268 Outra negociação muito semelhante aconteceu envolvendo Donga, Villa-Lobos e o Maestro Leopold Stokolwski (1888 – 1977) nos anos 40, quando da organização para a gravação de músicas folclóricas brasileiras no Rio de Janeiro. Destas negociações resultaram 40 gravações que foram lançadas (apenas 17 delas) na coletânea “Native Brazilian Music” pela Columbia Records em 1942. Segundo Lygia Santos me contou, mesmo sendo ainda muito pequena, que lembrava destes acontecimentos, pois acompanhou seu pai (Donga) na empreitada de procurar os músicos, assim como esteve presente no navio S. S. Uruguay, onde foram realizadas as gravações. Segundo Lygia, Stokolwski teria se encantado, sobretudo com Zé Espinguela, - José Gomes da Costa (1901–1944) –, feiticeiro de grande renome no Rio. Nas gravações de suas macumbas, ouve-se o coro que acompanhava Zé Espinguela também em suas macumbas cerimoniais. Segundo Lygia, Espinguela e Donga eram muito próximos tanto pelas atividades de feiticeiros, quanto de sambistas. Para informações mais detalhadas sobre estas gravações de Stokowski e suas relações com os músicos brasileiros, veja site de Daniella Thompson: http://daniellathompson.com/Texts/Stokowski/Cacando_Stokowski.htm. (acesso em: 20/12/2010). 269 Infelizmente não poderei ir além nestas considerações, apenas sugerindo que esta questão deva ser retomada com afinco em trabalhos futuros. De qualquer forma, sua presença aqui ao menos deixa claro de que o advento da modernidade – o que quer que isto seja –, a intensificação do capitalismo, o cientificismo, enfim, não exclui a relação entre a arte, a política e neste caso, a macumba de Donga.

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popular270, sobretudo como conhecedor das artes musicais e coreográficas ligadas à “raiz africana”. Outro ponto que gostaria de destacar sobre Donga, é seu posicionamento político partidário com tendências de esquerda, como um simpatizante comunista, embora nunca tenha se filiado, propriamente, ao Partido Comunista271. Todos estes temas se inter-relacionam complexificando ainda mais uma compreensão profunda do âmbito das negociações simbólicas (portanto políticas) tanto da arte (e musicalidade), como da própria idéia de nação brasileira e seus símbolos correlatos. 4.7 – Últimos rastros e ações Não pude encontrar rastros significativos sobre os Batutas na imprensa carioca em 1927, quando o grupo se reúne novamente para 270

Um exemplo desta intenção é a formação de seu arquivo pessoal com recortes, fotos, enfim, várias relíquias ligadas à cultura brasileira que Donga colecionava. A maior parte deste acervo ficou sob responsabilidade de sua filha Lygia, mas foi praticamente deteriorado por completo por um vazamento de água que houve em sua casa nos anos 90, conforme me informou a própria Lygia. Outro exemplo deste caráter “pesquisador” de Donga, é uma apostila feita por ele e datilografada em 1969 por Lygia Santos, intitulada: “Ernesto dos Santos – Donga – sua vida, sua obra, suas influências na cultura musical brasileira: Concepções sobre o futuro da música brasileira”. Neste trabalho, que faz parte do Arquivo Mozart Araújo - disponível no Centro Cultural B. Brasil -, Donga discorre sobre vários temas, entre eles: “o mercantilismo musical”; o Samba, suas “influências”, seus “principais componentes rítmicos, harmônicos e melódicos” e seus “estilos coreográficos”; o Batuque; a “pseudo-denominação samba-maxixe”, entre outros temas. Enfim, não poderei me deter nestes apontamentos de Donga, mas o que quero salientar é que este sujeito, nesta atitude, se coloca como par concorrente pelas definições de categorias e conceitos nas disputas simbólicas do âmbito do “campo” – no sentido de Bourdieu - da música popular carioca e brasileira. Como outros demiurgos da música popular, alguns dos quais têm posição privilegiadas hoje, este sujeito buscava construir sua posição reafirmando sua condição de testemunha ocular da história, sendo sua experiência de vida a fonte de sua legitimidade. 271 Conforme me relatou sua filha, Donga era um fã incondicional de Luis Carlos Prestes e lia muito, inclusive sobre a vida deste personagem e o comunismo, até mesmo ensinando a ela sobre estes assuntos. Lygia lembrou-se de uma tarde – sem precisar quando – em que Donga foi chamado para esclarecimentos na delegacia sobre questões de ordem política. Neste dia, sua mãe em pânico queimou vários livros “subversivos” que Donga mantinha em sua casa. A ligação deste com vários sujeitos ligados aos âmbitos das artes – sobretudo a música – e também do Partido Comunista é significativa, sendo Tinhorão e Sérgio Cabral, exemplos recordados por Lygia de pessoas que mantinham discussões sobre política com seu pai em encontros em sua casa. Embora não possa seguir nesta questão, sugiro que esta relação entre integrantes do Partido Comunista e a formação do pensamento musical brasileiro, seja algo de extrema relevância e ainda uma temática pouco explorada. Deixo esta questão como ponto a ser retomado em estudos futuros.

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uma turnê na região sul do Brasil, passando pelos estados de Santa Catarina (nas cidades de Florianópolis, Itajaí, Blumenau e Joinvile) Paraná (Curitiba) e Rio Grande do Sul (Porto Alegre)272. Esta ausência é significativa na medida em que o sul do Brasil parece ser também excluído, tanto de alguma contribuição para a construção da musicalidade Batuta, ou brasileira, assim como não representa no ideal da capital, pólo concorrencial relevante do ponto de vista da legitimidade nacional. De acordo com a narrativa de Coelho (2009) que faz uma varredura das informações da imprensa em Santa Catarina e Curitiba, ficando de fora da análise da turnê, apenas Porto Alegre, as apresentações de forma geral foram muito bem avaliadas, sendo, ao que tudo indica uma viagem tranqüila e sem maiores transtornos ou críticas. Nem mesmo o fato de serem alguns dos integrantes negros não gerou polêmicas nem avaliações pejorativas mais grosseiras em relação ao grupo. Coelho (2009) identifica o modo de atuação do grupo como altamente versátil, tendo a característica de transitar por um repertório bastante variado, sendo o horizonte conceitual da musicalidade Batuta identificado tanto à formação jazz-band, quanto a uma tipicidade brasileira, não necessariamente carioca, mas que também compreendia o nordeste brasileiro. Apresentaram-se como número de variedades, como banda de baile, em teatros e cafés de elite, enfim, um trânsito por vários tipos de ambientes, embora com uma platéia relativamente semelhante. Ainda vale destacar a postura profissional bastante perspicaz e eficiente da turnê, no sentido de um amadurecimento dos músicos, bem como de uma boa produção e agenciamento. De forma geral e bem resumida, estas são as impressões que se pode ter das narrativas que trataram destas viagens ao sul do Brasil pelos Batutas, sobretudo por Cabral (2007) e Coelho (2009). Conforme Cabral (2007), após esta turnê, de volta ao Rio de Janeiro, ainda em 1927 os Batutas teriam sido contratados para atuarem no Cine Odeon – sem mencionar datas. Somente em maio de 1928, Cabral (2007) declara da seguinte forma a composição do grupo: “A propaganda falava em Oito Batutas, mas, na verdade, viajaram nove: Pixinguinha (flauta e saxofone), Donga (violão, violãobanjo e cavaquinho), Aristides Júlio de Oliveira (bateria), Alfredo de Alcântara (pandeiro), Esmerino Cardoso (trombone), Bonfiglio de Oliveira (piston), Mozart Correia (piano), João Batista Paraíso (saxofone) e Augusto Amaral, o Vidraça (ganzá)”. Coelho (2009) não consegue confirmação para essa formação indicada por Cabral. Vale destacar que durante estas apresentações, o China, irmão de Pixinguinha e ex-integrante dos Batutas, morre no Rio de Janeiro, de um aneurisma cerebral. 272

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teriam novamente voltado ao Cabaré Assírios, no mesmo ano em que as atividades dos integrantes do grupo, sobretudo de Pixinguinha, voltamse para o mercado fonográfico, intensificando-se gravações em que aparecem rotulados nos discos, nomes de grupos como: “Pixinguinha e Conjunto”, “Orquestra Típica Pixinguinha-Donga” e entre outras, “Orquestra Típica Oito Batutas”. No entanto, nestas gravações de 1928 já se percebe a mudança da composição do grupo para um formato de orquestra, com um número de integrantes que ultrapassa o número oito que sugere o rótulo. Neste período, além das gravações, Pixinguinha é contratado pela gravadora Victor, como arranjador e regente de sua orquestra, onde o músico se tornará a referência nestas áreas nas gravações a partir dos anos 30, imprimindo sua identidade. Donga, também inserido na indústria do disco, por exemplo, fará parcerias com os jovens sambistas do Estácio, como Noel Rosa, os representantes do “samba de segundo tipo”, na expressão de Sandroni (2001), que nos anos 30 se torna o paradigma de brasilidade por excelência. De minha parte, sugiro que a partir da reorganização do grupo em 1927 para as excursões ao sul do Brasil, já se inicia uma nova fase para os integrantes dos Batutas. Há um amadurecimento, não apenas etário, mas devido às experiências de vida acumuladas273 e as novas situações – como, por exemplo, a condição de casado de Pixinguinha e a morte de seu irmão China. As condições de vida destes personagens no final dos anos 20 exigem modos de agirem no mundo, onde as possibilidades abertas pela indústria fonográfica é uma das vias pela qual os músicos podem seguir. De toda a discussão sobre o engajamento ou não destes músicos populares no processo pelo qual a brasilidade se constituirá de maneira consolidada nos anos 30, de minha parte me parece bastante legítimo e coerente afirmar que eles estiveram envolvidos diretamente e ativamente neste processo. Eles não foram elementos manipulados passivamente pelos intelectuais, pelas elites ou pelo Estado em prol da constituição da nação e seus símbolos nacionais, mas atores singulares e importantes neste processo. Vianna (2008) traz uma importante contribuição ao passar da constatação da elevação do samba como manifestação periférica e perseguida a símbolo nacional (via força do carnaval, rádio, indústria fonográfica,...), para uma abordagem que busca compreender justamente 273

Vale lembrar que Donga, conforme Cabral (2007), teria acabado de voltar de uma temporada não tão bem sucedida da Europa.

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o processo pelo qual isto ocorreu. Outra contribuição é expor este processo, não como articulação estratégica de uma classe social, ou uma raça ou do Estado, mas fruto de negociações multiplas274. No entanto, a análise do “mistério do samba” de Vianna – que reflete em Sandroni – ao focar o “encontro” da “noitada de violão” entre intelectuais e músicos populares275, apresenta-se como uma opção teórica pré-concebida, em termos da dicotomia elite/povo e seus correlatos, que prejudica boa parte da análise. Ainda que Vianna aponte a problemática da “representação” (Freyre=elite), não se coloca problemas na dicotomização em si. Nestes termos, idéias como as de “mediadores”276 entre os mundos (elite e popular) apontando para, por exemplo, Pixinguinha, no fundo guardam a essência de mundos que se constituem como separados, necessitando de mediações para constituir relações277. Há uma orientação préconcebida dicotômica que seleciona os dados, usados como exemplo etnográfico da própria dicotomia. A própria ênfase “freyrecêntrica” na análise, focando os “intelectuais” diferencialmente em relação aos “músicos populares”, pode sugerir uma compreensão da música, próxima daquela de Merriam (1964)278, ou seja, como sub-produto da 274

No mesmo sentido, Sandroni (2001) estuda o processo de transformação (na estrutura métrico-rítmica e na sua execução) do samba urbano carioca, acontecido entre as primeiras décadas do século XX, demonstrando a passagem do “paradigma do tresillo” – o do primeiro samba gravado, o “Pelo Telefone”, em 1917 - onde há uma maior proximidade com as danças do século XIX, como o lundu, a habaneira, o tango e o maxixe; para o samba de segundo tipo, o do “paradigma do Estácio”, onde se insere uma contra-metricidade peculiar, estabilizado como “o” samba na vertente de símbolo nacional. Conforme o autor: “o paradigma do tresillo corresponde à imparidade rítmica num ciclo de 8 pulsações (3+3+2 e suas variantes); e o novo paradigma que vimos predominar no samba carioca mais recente, à mesma num ciclo de 16 pulsações (2+2+3+2+2+2+3 e suas variantes).” (Sandroni, 2001: 36). Wade (2003) analisa um processo na Colômbia chamando a atenção para as negociações múltiplas para a constituição de símbolos nacionais colombianos, de forma muito semelhante com o ocorrido no Brasil. 275 No encontro estão, por exemplo, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda (como intelectuais de elite) e Donga e Pixinguinha (como músicos populares). 276 Esta idéia também é forte na análise de Wade (2003) na Colômbia, com implicações semelhantes, assim como refletem de modo mais sutil em Sandroni (2001). 277 Talvez isto seja um resquício culturalista advindo de uma influência que vem de Boas, passa por Freyre e respinga em Vianna, com implicações caras aos resultados analíticos deste último. 278 Na “antropologia da música” de Merriam (1964), a música é uma parte da cultura, que deve ser estudada (a música) na cultura. No entanto, entendo a música conforme autores que salientam seu papel para além de um reflexo da cultura. Neste sentido, para Blacking (2006) [1973], a música é vista como uma síntese de processos cognitivos presentes no corpo humano e em uma cultura. Suas formas e efeitos produzidos são originários das experiências sociais dos corpos em relação aos meios culturais. A música aqui é som humanamente organizado, e, portanto ato criativo da (e de) cultura. Já Seeger (1987) propõe uma “antropologia musical”

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cultura, o que compromete seriamente uma análise antropológica ao tratar de fenômenos musicais, ao negligenciar o caráter ativo potencial da música na construção da cultura e de sociabilidades. Por isto, reforço minha posição em relação ao caráter ativo dos músicos populares na invenção de símbolos nacionais. Contudo, como diz o senso comumente especializado, “na prática o discurso é outro”. Assim, enquanto músicos que viviam de suas músicas – e aqui reflito minha própria experiência como músico -, os Batutas dançaram por muitas vezes conforme a música tocava, ou dito de outra forma, tocaram, conforme a música era pedida para poderem sobreviver, o que atesta que a simetria intelectual, não resulta necessariamente em igualdade de poder e condições de vida. PÍCCOLO FINALE Convivi, por um bom tempo, com dúvidas sobre o que eu tinha a dizer a respeito de minha experiência no Rio de Janeiro e de meu repensar sobre trajetórias de músicos populares nos anos 20. O que dizer de uma história como a dos Oito Batutas, já tão pormenorizada por tantas narrativas anteriores à minha? Palpitavam estas inquietações, ao mesmo tempo em que buscava me convencer do rendimento desta aventura. Depois de algum tempo regurgitando o material de campo – que atenta para o modo pelo qual as performances musicais criam aspectos da cultura, sendo um estudo da vida social como performance. Ao invés de supor uma matriz social préexistindo dentro da qual a música é executada, examina a maneira pela qual esta participa da construção e interpretação do social, das relações e dos processos sociais e conceituais. Menezes Bastos (1999) expõe as tensões do que chama “dilema musicológico”, criticando a prevalência tanto na etnomusicologia como na antropologia do dualismo entre expressão e conteúdo musicais, que separa os âmbitos dos sons e da cultura, sendo esta englobante daquela. Sugere a abordagem da música como parte de uma “antropologia da comunicação” (nos termos de Hymes), buscando compreender contextos comunicativos constitutivos da socialidade. O primado da língua (verbal) enquanto ato comunicante por excelência é avaliado, sendo que, ao tratar dos Kamayurá – e o sistema comunicacional xinguano -, a dimensão social do “falar sobre música” é apontada como parte integrante da comunicação e do plano da socialização dos grupos. Ainda por outros caminhos, Feld (1990), também compartilhando idéias da etnografia da comunicação de Hymes - articulando-a com o estruturalismo de Lévi-Strauss e a descrição densa de Geertz -, aponta para um estudo do som como um sistema cultural, ou de símbolos. Enfatizam-se os recursos da comunicação e os significados sendo performados no âmbito do contexto social. A música – como o choro e a poética – Kaluli, é parte da cultura, sendo também criadora de cultura e relação social.

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não sem o aumento de algumas úlceras -, tomei a construção de meu relato etnográfico como rentável, dando assumidamente vazão a uma intenção de proximidade com a elaboração de uma obra de ficção. Não que eu veja o relato etnográfico como apenas uma ficção, num sentido vazio. Pelo contrário. Enquanto tal, sua validade para produzir (ou como produtor de) conhecimento, reside na sua capacidade criativa relacional (e de certa forma ficcional), de revelar as criatividades dos sujeitos (e dos grupos), do eu e do(s) outro(s) em suas relações com o mundo. Para Strathern, a exegese antropológica deve ser compreendida como um esforço de criação de um mundo paralelo ao mundo observado, através de um meio expressivo - o texto escrito -, que estabelece suas próprias condições de inteligibilidade (Strathern, 1988: 47). Isto supõe uma construção simbólica - portanto de re-produção metafórica - que, buscando estabelecer o mesmo grau de complexidades, só se afirma como um “tropo” para a representação do conhecimento, alocado num campo específico, o qual contém sua própria moral e seus conceitos correlatos279. Também Wagner (2010), pensando as atividades exegéticas nativas e do antropólogo, sublinha o poder do caráter inventivo da cultura, sendo a “invenção” o aspecto primordial pelo qual opera toda cultura. Nestes termos, o antropólogo constrói criativamente sua compreensão da cultura do outro, assim como o nativo se utiliza de criatividade semelhante pra criar cultura em suas relações, para si e para o outro (no caso, o antropólogo). Para Wagner, a atividade da antropologia é fundamentalmente a de “inventar” cultura. A objetivação de sua própria “Cultura” só é possível pelo contraste relacional com a “cultura” dos outros. Assim: Invenção, pois, é cultura, e pode ser útil pensar em todos os seres humanos, onde quer que estejam, como uma espécie de "pesquisadores de campo", controlando o choque cultural da experiência cotidiana por meio dos mais diversos tipos de "regras", tradições e fatos, imaginados e contruídos. (Wagner, 2010: 75)

Vale lembrar Rabinow: “Enquanto os tropos estão à disposição para serem utilizados por todos, a maneira como são utilizados faz toda a diferença” (Rabinow, 1999: 98). 279

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Wagner e Strathern tratam a antropologia como atividade essencialmente relacional, que além de pensar sobre esquemas classificatórios, também e, sobretudo, pensa sobre a constituição relacional de realidades. Nesta condição me foi inspirador pensar uma “mitológica Batuta”. De certa forma, ao invés de uma historiografia Batuta, que tendesse a se voltar para a organização ou a ordem das coisas – uma “história para”, como se refere Lévi-Strauss -, busquei pensar uma mitologia Batuta - e não é ocioso marcar o caráter histórico do mito - que tendeu a uma dissolução da ordem e imputação da entropia. De minha parte, este artifício sugere que minha narrativa nem tanto informa sobre o que pode ou não ter acontecido em verdade sobre os Oito Batutas em suas aventuras, mas sim explicita formas possíveis de articulações do pensamento através do contar desta história. Isto acena para possibilidades de se pensar outras questões e negociações das realidades, para a constituição do que seja, por exemplo: Brasil, regional, nacional, tradição, modernidade, carioca, samba, Argentina, Paris, arte, popular, erudito, enfim, vários símbolos que vão adquirindo significados, sempre negociados no embrenhado manancial da inventividade da(s) cultura(s). Neste sentido, me parece que Os Batutas, há muito tempo, já foram identificados como “bons para pensar”280. Geertz (1991) afirma que, para além dos elementos de historicidade do mito Majapahit de Bali, ele exprimiria uma visão balinesa de seu desenvolvimento político281. De modo semelhante, sugiro que a análise da “mitologia Batuta”, a despeito dos modos de historicidades de suas narrativas (do “mito de referência”, passando por Cabral e outras narrativas em suas transformações, chegando a minha 280

Lévi-Strauss afirma, ao se referir à vantagem heurística da análise mitológica, que: Um mito propõe uma grelha, somente definível pelas suas regras de construção. Para os participantes numa cultura a que respeite o mito, esta grelha confere um sentido, não ao próprio mito, mas a todo o resto: ou seja, as imagens do Mundo, da sociedade e da sua historia, das quais os membros do grupo têm mais ou menos claramente consciência, bem como das interrogações que lhes lançam esses diversos objetos. Em geral, esses dados esparsos falham ao unirem-se e, na maior parte das vezes, contrapõem-se. A matriz da inteligibilidade fornecida pelo mito permite articulá-los num todo coerente. (Lévi-Strauss, 1983: 210) 281 De fato, é válida a crítica a Geertz de que este transforma a sua interpretação particular de uma visão balinesa específica, em uma visão totalizante da cultura balinesa.

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meta-narrativa) fornece uma visão bastante coerente do desenvolvimento do pensamento sobre a musicalidade brasileira, mas não de qualquer musicalidade, mas da que exprime o cerne da “brasilidade”. Neste sentido, o ato de re-contar esta história, é reafirmação expressiva e comunicante, que tem sua validade e condição de eficácia residente no ato de ensinar ao brasileiro, como é ser brasileiro, via música popular. Aqui é inspiradora a afirmação de LéviStrauss, buscando explicitar a semelhança estrutural entre o mito e a música, de que “a música se vive em mim, eu me ouço através dela. O mito e a obra musical aparecem como regentes de orquestra, cujos ouvintes são os silenciosos executantes” (Lévi-Strauss, 2004:37). Nestes termos, re-contar o mito, é dizer coisas a nós mesmos, negociando realidades. Ao tratar das versões narrativas e das suas transformações e recorrências, não penso minha narrativa como um aparar de arestas ou apagar de resíduos de incompreensões. Antes de tudo, narrei, compondo com elas, tomando-as como atividade comunicacional e como tal, passível de redundâncias, lacunas, equívocos e criatividade. Nos atos seletivos e inclusivos que os grupos fazem, se expressam modos processuais de constituição de sociabilidades, produções de saberes e conhecimentos, assim como explicitação de poderes e hierarquias. É nesta dinâmica “criativa” (estrutural e, como tal, instável) que poderíamos pensar a constituição da cultura (brasileira, mas não só). Este trabalho tem em mim seu único e exclusivo responsável por qualquer erro e inconseqüência, e por outro lado, deve a muitas pessoas possíveis contribuições ao que quer que seja. Após estas páginas, considero cumprido meu objetivo a contento (e cabe ao leitor avaliar) se tiver conseguido passar o tom de minha experiência, assim como fornecido alguns temas mínimos e algumas possíveis variações, a partir dos quais possam inspirar-se outros improvisos que criativamente construam outros conhecimentos, quiçá mais profícuos do que os que aqui foram apenas esboçados.

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Anexo 2 (A Noticia, Rio de Janeiro, 15/10/1919) Foto da primeira pรกgina do jornal anunciando a primeira viagem dos Batutas ao interior do Brasil. Acervo BN-RJ.

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Anexo 3 Donga nos anos 60 em seu arquivo pessoal. Acervo MIS-RJ.

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Anexo 4 Donga em encontro com Villa-Lobos e Leopold Stokowski nos anos 40. O Globo 08/08/1940 - Acervo BN.

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Anexo 5 - Pixinguinha e Elizeth Cardoso nos anos 70 no programa de Flรกvio Cavalcanti. Acervo pessoal Izomar Lacerda.

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Anexo 6 Pixinguinha no Teatro Municipal em 1968 nas preparações para o espetáculo em sua homenagem pelos seus 70 anos – Pixinguinha 70. Este show foi produzido pelo Museu da Imagem e do Som RJ e gravado ao vivo, com lançamento de disco em parceria com a RCA-Victor. Na foto Pixinguinha, Radamés Gnattali e Jacob do Bandolin. Acervo Lygia Santos.

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Anexo 7 Donga em 1962 em homenagem a Villa-Lobos, convidado de Arminda Villa-Lobos, viúva do maestro. Na foto, da esquerda para direita: Ismael Silva; Jacob do Bandolim; Mozart Araújo; Cristina Maristane; Donga; Arminda Villa-Lobos; Hermínio Bello de Carvalho; (não identificado); (não identificado); Turíbio Santos. Acervo Izomar Lacerda.

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Anexo 8 - Lista dos jornais, revistas e acervos consultados: RIO DE JANEIRO - Consulta na FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL CORREIRO DA MANHÃ – de abril a julho de 1919; de junho a setembro de 1920; de outubro a dezembro de 1921; janeiro, fevereiro e agosto de 1922; de abril a dezembro de 1923. O PAIZ – de abril a outubro de 1919; junho a setembro de 1920; janeiro a março de 1922; abril a setembro de 1923. A RUA – de abril a junho de 1919. JORNAL DO BRASIL – de abril a outubro de 1919; de junho a setembro de 1920; janeiro de 1922. O JORNAL – de junho a outubro de 1919; janeiro e fevereiro de 1925; fevereiro de 1926. A NOITE – de janeiro a dezembro de 1919; junho a dezembro de 1920; julho a dezembro de 1921; janeiro, março, agosto, setembro e dezembro de 1922; abril a setembro de 1923; janeiro, junho e julho de 1924; fevereiro e março de 1925; fevereiro e de agosto a outubro de 1927. A NOTÍCIA – de abril a outubro de 1919; agosto a outubro de 1921; janeiro e agosto de 1922. GAZETA DE NOTÍCIAS – de abril a outubro de 1919; de maio a dezembro de 1920; janeiro e de julho a dezembro de 1921; janeiro, fevereiro e agosto de 1922 [agosto com alguns exemplares indisponíveis na BN]; abril e setembro de 1923; fevereiro de 1925. JORNAL DO COMÉRCIO – RJ (consultado na BU da UFSC – Florianópolis-SC) - de fevereiro a dezembro de 1919; junho a setembro de 1920; julho a dezembro de 1921; janeiro e agosto de 1922; junho de 1924; fevereiro de 1926; fevereiro e agosto de 1927.

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REVISTA MANCHETE: setembro de 1966. REVISTA CARETA – números de 1919, 1922, 1923 e 1926. Disponível no acervo de periódicos digitalizados da Biblioteca Nacional – RJ (http://www.bn.br/portal). REVISTA FON FON – números de 1921 e 1922. Disponível no acervo de periódicos digitalizados da Biblioteca Nacional – RJ (http://www.bn.br/portal). REVISTA: A Exposição de 1922. Números 1 a 4 (agosto a setembro de 1922). BN. - Consulta no ARQUIVO ALMIRANTE (ACERVO MIS-RJ – Praça XV) Pastas de fotos e recortes de jornais: A3, A4 e “Oito Batutas”. Rio de janeiro: RIO – JORNAL – 14 de abril de 1919 A NOTÍCIA – 15 de outubro de 1919 São Paulo: CORREIO PAULISTANO – 16, 22, 23, 27, 28 e 31/10/1919; 1, 2, 20 e 21/11/1919; 1 e 15/12/1919. O ESTADO DE S. PAULO – 17, 25 e 31/10/1919; 1 e 2/11/1919; 08, 15 e 18/12/1919. A GAZETA – 23/10 e 20/11/1919 JORNAL DO COMMERCIO – 21, 24 e 31/10/1919; 20/11/1919; 8 e 15/12/1919. O FURÃO – 25/10/1919. Campinas (SP): DIÁRIO DO POVO – 21/11/1919. COMÉRCIO DE CAMPINAS – 18 e 20/11/1919. Santos (SP): A TRIBUNA – 7/11/1919. GAZETA DO POVO – 7/11/1919. Ribeirão Preto (SP): DIÁRIO DA MANHÃ – 27, 28 e 30/11/1919. A CIDADE – 29/11/1919. Cravinhos (SP):

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O ALBOR – 7/12/1919. O CRAVINHOS – 7/12/1919. Juiz de Fora (MG): O PHAROL – 16/01/1920. JORNAL DO COMERCIO – 16/01/1920. Belo Horizonte (MG): DIÁRIO DE MINAS – 22/01/1920. JORNAL DE MINAS – 22/01/1920. ESTADO DE MINAS – 22/01/1920. Consulta no ACERVO MIS-RJ – Lapa (Depoimentos em áudio): Nº 96 - João da Baiana (25/06/1966) Nº 125 – Pixinguinha (06/10/1966) e Nº 130 – (25/06/2968) Nº 116 – Donga (02/04/1969) Nº 1184 – Sérgio Cabral (1997) Consulta no ARQUIVO MOZART ARAÚJO (Centro Cultural Banco do Brasil – RJ) Pasta Pixinguinha – A127 e 1484. Recortes de jornais, revistas, manuscritos e partituras. Pasta Donga – S2 - Recortes de jornais, revistas, manuscritos e partituras. Consulta no ACERVO PESSOAL - LYGIA SANTOS O JORNAL – recortes de janeiro e fevereiro de 1925. ACERVO PESSOAL - IZOMAR LACERDA Recortes de jornais cariocas de 1966 sobre Pixinguinha: O GLOBO – 26/02/1966. CORREIO DA MANHÃ – 22/04/1966, 07/10/1966 e 15/10/1966. TRIBUNA DA IMPRENSA – 07/10/1966. DIÁRIO DE NOTÍCIAS – 07/10/1966. JORNAL DO BRASIL – 07/10/1966 e 14/10/1966. ACERVOS PARA CONSULTA ONLINE: Instituto Moreira Salles, disponível em: http://ims.uol.com.br/ims. Acesso em 10/01/2011. Fundação Joaquim Nabuco, disponível em: http://www.fundaj.gov.br/isis/disco.html. Acesso em 10/01/2011.

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