Gente do samba: malandragem e identidade nacional no final da Primeira República Tiago de Melo Gomes
1. Revisando o Mito Dentre os poucos temas da música popular que despertaram um interesse significativo da bibliografia acadêmica encontra-se a malandragem, tema que foi abordado por diversos trabalhos a partir de uma série de pontos comuns, resumidos a seguir1. Sua história começaria na década de 1880, quando um imenso contingente de ex-escravos obteve sua liberdade. Traumatizados por anos de trabalho compulsório, tais indivíduos teriam, ao se verem livres, abdicado do trabalho regular, identificado à escravidão. Passando a viver entre os contingentes marginalizados de cidades como o Rio de Janeiro, esses indivíduos encontrariam seu meio de expressão no samba, ritmo de origem popular, nascendo nesse momento o samba malandro. Este estilo musical seria então perseguido na Era Vargas, devido a seu caráter potencialmente desestabilizador da ideologia trabalhista que então se buscava implantar. Para se contrapor ao samba malandro, a máquina ideológica do governo varguista teria produzido o samba exaltação, sempre apontando as grandezas do país e as vantagens de se trabalhar honestamente. Assim, através da censura e do aliciamento, a malandragem seria afastada do meio musical nos anos do Estado Novo. É interessante sublinhar o fato de que tal tese, que busca explicar a presença da malandragem no samba, é na realidade um produto multidisciplinar, com trabalhos oriundos de vários campos desenvolvendo concepções semelhantes a respeito do assunto, ainda que com variações2. Cabe notar ainda que a aceitação dessa tese foi intensa, sendo freqüentemente citada em textos que tratam de música popular nos anos 1930 e mesmo