Carnaval do Recife: a alegria guerreira

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Carnaval do Recife: a alegria guerreira RITA DE CÁSSIA BARBOSA DE ARAÚJO

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intitulado Restos do Carnaval, Clarice Lispector relata transportar-se para a infância, reencontrando imagens e sentimentos há muito experimentados e que pensava esquecidos. Lembranças do Carnaval, da cidade e das ruas do Recife em festa. Sua intimidade confundia-se, então, com a da própria cidade. Ambas ansiosas, aguardando o Carnaval. Ambas querendo expandir-se e revelar-se; ambas desejando que “enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate”. Com a chegada das festas de Momo, a cidade desabrochava, a paisagem recifense e sua gente encontravam pleno sentido. Nesses dias, era como “se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas”. Quanto à pequena foliona, poderia finalmente viver “a capacidade de prazer que era secreta” e permanecia contida em si (1). O BELO CONTO

Não por acaso, a memória da escritora que morou num velho sobrado da praça Maciel Pinheiro, em pleno coração do Recife nos anos 30 deste século, fixou a imagem das ruas e praças da capital pernambucana sendo festivamente ocupadas pelo povo. Desde meados do século XIX, intensificando-se a partir de 1870, as manifestações carnavalescas passaram a ter curso preferencial mas não exclusivamente nos espaços públicos e ao ar livre da cidade. Ruas, praças, pontes e pátios das igrejas, outrora tão desprezados pelos segmentos da elite e da classe média urbana emergente, viram alterados seu uso e significado social, sobretudo de 1840 em diante. Valorizaram-se com os melhoramentos verificados nos equipamentos e serviços urbanos – nos transportes e nas comunicações, com os calçamentos, iluminação, ajardinamento e arborização das principais vias públicas, saneamento e água encanada. Surgiram novos e suntuosos edifícios que muito contribuíram para mudar a feição urbana do Recife, pontuando-lhe de referenciais arquitetônicos tidos como modernos. Outros sinais de cultura e civilização vieram somar-se aos primeiros: comércio mais rico e diversificado; imprensa jornalística extremamente dinâmica e produtiva; casas de espetáculos, algumas luxuosas como o Teatro Santa Isabel; instituições de ensino e pesquisa, a exemplo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, do Gabinete Português de Leitura, do Liceu de Artes e Ofícios e das Faculdades de Direito, de Medicina e de Engenharia. Os espaços públicos tornaram-se alvo de cobiça por parte das camadas dominantes que se mostraram, desde então, interessadas em ocupá-los não ape-

ESTUDOS AVANÇADOS 11 (29), 1997

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