“NÃO ME PONHA NO XADREZ COM ESSE MALANDRÃO”. CONFLITOS E IDENTIDADES ENTRE SAMBISTAS NO RIO DE JANEIRO DO INÍCIO DO SÉCULO XX * **
Maria Clementina Pereira Cunha Não moro em casa de cômodo, Não é por ter medo não. Na cozinha muita gente Sempre dá em alteração.
om estes versos, o estivador João Machado Guedes, mais conhecido como João da Bahiana, da primeira geração dos descendentes de emigrados da terra do Senhor do Bonfim para o Rio de Janeiro, introduziu um samba antológico e bastante conhecido ainda hoje. Entre outras qualidades, o velho samba nos dá acesso a debates que se arrastam por muito tempo sobre a música brasileira e seus agentes e, por isto, vale a pena prestar atenção em seus enunciados e na sua sonoridade. Anunciado o tema na introdução (a casa de cômodos e a convivência entre seus habitantes), ouvimos um refrão tradicional de samba de roda, que remete ao século XIX e se relaciona à experiência de escravos domésticos que enfrentam a proibição da “sinhá” sobre “batucar na cozinha”.1 A este refrão seguem-se passagens típicas do partido-alto, em que uma estrofe sobre o ciúme de homens brancos e mulatos em relação a suas mulheres é sucedida pela fórmula tradicio-
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Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada ao IX Congresso da Brazilian Studies Association, realizado na Tulane University, New Orleans, em março de 2008. Membro do Centro de Pesquisas em História Social da Cultura (Cecult) e Professora Associada do Departamento de História da Unicamp / São Paulo. “Batuque na cozinha, a Sinhá não qué / Por causa do batuque eu queimei meu pé.”
Afro-Ásia, 38 (2008), 179-210
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