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AS TIAS BAIANAS TOMAM CONTA DO PEDAÇO Espaço e identidade cultural no Rio de Janeiro* Mônica Pimenta Velloso 1. BRIGANDO PELO PEDAÇO “... o tempo e o espaço concorrem para a produção da vida social, para o que podemos chamar de ‘enraizamento dinâmico’ (...). É afique deve ser buscado o fundamento do apego afetivo ou passional que liga o indivíduo ou o grupo ao território...” Mafesoli
Entre nós a idéia de espaço fundamenta uma das bases do projeto nacional, constituindo sólido fator de identidade cultural. Chegou-se a afirmar que, diferentemente dos outros países, “somos feitos de espaço” (Velloso, 1985). Era uma maneira de descartar o realhistórico para inventar as utopias necessárias ao mito da nação. Entretanto, essa associação entre espaço e identidade cultural não foi apenas uma elaboração ideológica da ordem dominante, servindo também de referência básica aos grupos marginalizados. Brigando pelo espaço, esses grupos, na realidade, estavam brigando para terem reconhecida a sua própria existência. A territorialização aponta para a especificidade, revelando como o homem entra em ação com o meio imprimindo nele as suas marcas. Assim, a idéia de território está estreitamente ligada à questão da identidade. Demarcando um espaço, o grupo está estabelecendo a sua diferença em relação aos outros (Sodré, 1988). É a marca da propriedade, aqui no sentido original do termo, ou seja, do que é próprio e específico em relação ao conjunto. No Rio de Janeiro do início do século, essa questão da territorialidade manifesta-se de forma latente. Nesse período, conhecido como a Belle Époque, a cidade vai passar por modificações decisivas na sua estrutura urbana. Através da reforma de Pereira Passos (1904), é realizada uma série de medidas para estabelecer a sintonia da cidade com a modernidade. Mas esta sintonia é precária, lacunar e, sobretudo, artificial. Cidade administrativa e política, de base escravista, o Rio sofre influência marcante da cultura africana. Em meados do século XIX, a população escrava chega a representar mais da metade da população da corte, enquanto na cidade de São Paulo o contingente de escravos não chegava a atingir 9% da população (Dias, 1985). O fato vai imprimir contornos específicos à história carioca, sendo a cidade definida por uma verdadeira dualidade de mundos (Carvalho, 1987). Realmente, se lembrarmos que um dos objetivos do projeto Pereira Passos era o de tornar o Rio uma “Europa Possível”, a africanização será a contrapartida dessa possibilidade. A “Pequena África”1 e a “Europa Possível”: como juntar realidades tão distintas? *
Este artigo foi desenvolvido como parte de um projeto de pesquisa financiado pela “Fundação Carlos Chagas” (SP) durante o ano de 1989. 1 Denominação dada por Heitor dos Prazeres ao trecho da cidade que se localizava entre a área do cais do porto e a Cidade Nova, em torno da praça Onze. Ver, a propósito, Moura (1983:62). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 3, n. 6, 1990, p.207-228.