Erga Omnes_6ª edição

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ERGA Revista OMNES Ano 2, nº 6, outubro de 2010, Salvador - BA

1.3 O Poder Judiciário Brasileiro na Questão da Saúde Não é de hoje que o Poder Judiciário se tornou refúgio dos que necessitam de medicamentos ou de algum procedimento não oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A premissa inaugurada na Constituição de 1988 de que a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado escancarou as portas dos Tribunais para a chamada judicialização da saúde. Tal judicialização coloca ao Poder Judiciário o desafio de ponderar demandas individuais e coletivas e resolver a dicotomia que cerca a questão: privilegiar o individual ou o coletivo? De um lado, a participação do Judiciário significa a fiscalização de eventuais violações por parte do Estado na atenção à saúde. Mas, de outro, o excesso de ordens judiciais pode inviabilizar a universalidade da 48

saúde, um dos fundamentos do SUS. Sem desconsiderar os argumentos da “reserva do possível” e do “mínimo existencial”, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido do Poder Judiciário dever imiscuir-se nas questões que, antes de tudo, têm base constitucional. Nesse sentido, a ementa a seguir transcrita:

De um lado, a participação do Judiciário significa a fiscalização de eventuais violações por parte do Estado na atenção à saúde. Mas, de outro, o excesso de ordens judiciais pode inviabilizar a universalidade da saúde.

econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Essas escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem “escolhas trágicas” pautadas por critérios de macrojustiça. É dizer, a escolha da destinação de recursos para uma política e não para outra leva em consideração fatores como o número de cidadãos atingidos pela política eleita, a efetividade e a eficácia do serviço a ser prestado, a maximização dos resultados. Nessa linha de análise, argumenta-se que o Poder Judiciário, o qual estaria vocacionado a concretizar a justiça do caso concreto (microjustiça), muitas vezes não teria condições de, ao examinar determinada pretensão à prestação de um direito social, analisar as consequências globais da destinação de recursos públicos em benefício da parte, com invariável prejuízo para o todo11. Na seara da destinação de recursos em saúde pública, salvar determinada pessoa pode ser o mesmo que matar outras duas ou três indeterminadas. Não há escolha moralmente correta nem uma solução moralmente fácil nesse debate. São verdadeiramente escolhas trágicas.

Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer contra essa prerrogativa fundamental um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só opção: o respeito indeclinável à vida” (RE 194.674, Rel. Min. Celso de Mello, j. 24/5/99). O Superior Tribunal de Justiça, na mesma linha de compreensão, diante de casos concretos em que se mostrou urgente e impostergável a necessidade de aquisição de medicamento, sob pena de grave comprometimento da saúde do demandante sem condições de realizála às suas próprias expensas, entendeu pela prevalência do direito fundamental à

saúde, inclusive com bloqueio de verbas públicas, se necessário. De um modo geral, a Justiça brasileira vem decidindo que, sendo comprovada a doença, necessitando o enfermo de determinado medicamento para tratá-la, o remédio deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna. No entanto, é preciso investigar a condição do doente e, por óbvio, comprovar a sua impossibilidade de arcar com o custo do medicamento. O constitucionalista Luís Roberto Barroso12 enuncia duas propostas para o dilema do fornecimento de medicamentos pelo Poder Público. A primeira é a de que todo medicamento que o Poder Público se obrigou a fornecer, considerado estratégico, excepcional ou de atenção básica, tem que se fornecido. Se não for, a pessoa que dele necessitar deve ingressar com uma ação individual para receber o remédio, já que existe o dever jurídico de oferecer uma gama de medicamentos e, se não oferecido, o Poder Judiciário deve determinar. A segunda proposta é mais complexa. O Poder Judiciário não deve determinar, por meio de ações individuais, o fornecimento do medicamento que não consta na lista, ou por omissão ou porque o Poder Público entendeu que não deveria constar. Se o remédio não consta na lista, o que se deve postular é a sua inclusão mediante ação coletiva, a ser proposta pelo Ministério Público, entidade de classe ou uma organização nãogovernamental que congregue portadores de uma determinada doença e que não estão sendo atendidos. A vantagem aqui é que, ao se obter a inclusão do medicamento na listagem, todas as outras pessoas que se encontram na mesma situação serão aproveitadas. Se o medicamento for incluído na lista, todos serão favorecidos. Segundo o autor, portanto, o que se faz é acabar com situações individualizadas e de privilégio, promovendose uma justiça que aproveite a todos. Defende-se, pois, a deflagração de um debate que permita ao Judiciário estabelecer determinados parâmetros para a sua própria atuação, propugnando que, no que a decisão do legislador e do administrador for razoável,


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