PANDEMÔNIO_3_3

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pandemĂ´nio

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Não é preciso entender de economia para saber que o Brasil está empobrecendo. Não importa se espantosos 1,1% foram acrescentados ao PIB; qualquer pessoa de bom senso e com o mínimo de sensibilidade já entendeu que a miséria voltou ao Brasil e que os festejados 1,1% talvez represente apenas outro pequeno aumento do poder aquisitivo dos mais ricos. Na outra ponta da desigualdade crescente, observamos que desde 2019 o número de famílias morando nas ruas subiu muito mais do que o PIB. Não sei se essas famílias entram nas estatísticas que medem o desenvolvimento econômico. Mas a constatação é empírica. Quem passa por essas pessoas a pé, percebe logo que são recém-chegados à vida de sem teto: além do velho colchão e do cobertor surrado, os novos mendigos ainda se apegam a outros objetos domésticos resgatados do despejo, a arremedar uma espécie de lar ao ar livre. Um fogãozinho de quatro bocas, sem botijão de gás ou acompanhado do botijão vazio. Uma pequena estante com livros escolares das crianças que talvez, na nova vida sem teto, não possam mais ir à escola. A tigela de comida dos cachorros, pois todos os moradores de rua possuem ao menos um, muito bem tratado por sinal. Não são pets. São os melhores amigos de seus pobres proprietários. Estes, com frequência pedem ao passante que comprem uma marmita de comida. Tentei, na primeira vez, dar em dinheiro o preço da marmita, mas o rapaz não aceitou: “dona, não adianta eu ter dinheiro. Estou muito sujo, ninguém vai me deixar entrar pra comprar a comida. Compra pra mim?”. Demanda irrecusável. A partir desse dia, sempre que alguém se diz com fome – e cada vez mais pessoas passam fome pelas ruas – prefiro comprar uma marmita do que dar uns trocados. Quando me pedem compro um saco de ração também. Me fazem lembrar o lambe-lambe que vi num poste perto de casa: “o


estômago roncava, mas dividiu a marmita de ovo e arroz com aquele cão sarnento que

A não ser...

era a desgraça de sua vida”.

...É aí que entra Deus. Nada valem a não ser para Deus. E quanto mais sofredores (isto é

No metrô é proibido dar esmolas – ou seja, é proibida a entrada de pessoas que

o cristianismo católico), mas amados pelo Pai. Ou então: quanto mais dinheiro cederem

incomodem os usuários a pedir dinheiro. A questão, para o metrô, é proteger os pagantes

à igreja para a glória de sua fé (esta é a face empreendedora do calvinismo) mais

de eventuais constrangimentos durante a viagem. Mesmo assim, pessoas entram em

premiados pelo Pai. Ou ainda, na versão moderna do mesmo calvinismo: quanto mais

um vagão, contam um pedaço da triste história que as levou àquela condição e pedem

gigantesca for o templo que o pastor construir com tua ajuda, mais importante hás de ser

ajuda. Na estação seguinte descem correndo e vão tentar outro vagão. Eu, apesar de

aos olhos D’ele. O templo gigantesco e horrendo dos seguidores de Edir Macedo atesta

ter sido educada na teologia da libertação durante a adolescência – “não dê um peixe

o empenho dos pobres fiéis. Quem sabe o leitor, ou algum companheiro colaborador

ao homem, ensine-o a pescar” – guardo todas as notas de 2 e 5 reais para não deixar

da Carta Maior, me ajude a acreditar que haja uma saída a vista para essa monstruosa

nenhum pedinte de mãos abanando. Para evitar constrangimento, os pagantes que

combinação de fanatismo religioso com apologia da violência. Pois foi o governador

viajam no metrô evitam olhar nos olhos dos pedintes, o que só piora as coisas para eles.

evangélico do Rio que apregoou o método infalível de se combater a criminalidade: a

Não se trata apenas do dinheiro: o mais doloroso é observar, ou imaginar, a humilhação

PM deve atirar, de cima dos helicópteros, “na cabecinha” de supostos bandidos. Para

a que a pessoa se expõe a apresentar sua carência ao respeitável público e se deparar

os ladrões, pena de morte. Fora da lei. Os inocentes atingidos serão computados como

com a indiferença geral. Meu pai, que não seguia nenhuma religião, costumava nos

danos colaterais, inevitáveis em toda luta do bem contra o mal.

dizer, diante de pedintes: “ele precisa mais que você”. E não acredito que seja preciso

abandonar as pessoas ao estado de maior desamparo à espera de que elas se rebelem e “façam a revolução”. Desde Marx já sabemos que o lumpesinato não faz revolução nenhuma. Gastam seu tempo, energia e imaginação na difícil tarefa de sobreviver. Nas crises do capitalismo, percebemos que milhões de pessoas perdem não só seus empregos, mas sua dignidade. Mesmo que conservem carteira de trabalho, RG e títulos de eleitores, são tratados como restos. Mesmo que eventualmente ainda não vivam nas ruas, já estão sem lugar. A sociedade não precisa deles; o país não precisa deles. Nada valem.













Um escritor com problemas respiratórios se refugia em seu quarto onde redige, deitado na cama durante longo tempo, um romance melancólico de conteúdo ficcional, mas com andamento memorialístico, atravessado por um contexto político de divisão social e ideológica, em que discursos de ódio são alimentados por fake news que veiculam xenofobia, racismo e homofobia. É bem possível que, daqui a alguns anos, surja uma obra literária assim, de autoria de um escritor que, portador das famigeradas comorbidades, se encerrou na quarentena para escapar do “vírus chinês” e ruminou suas recordações enquanto escutava o eco dos linchamentos virtuais e dos relinchos genocidas e homofóbicos do inominável messias da novelha política. Mas tal livro já foi escrito. É um dos maiores clássicos da literatura francesa e ocidental: Em busca do tempo perdido, do judeu, gay e asmático Marcel Proust. Começou a ser escrito por volta de 1907 e teve seus sete volumes publicados entre 1913 (No caminho de Swann) e 1927 (O tempo redescoberto) – este último, cinco anos após a morte do autor que, vítima de uma bronquite mal curada, deixou prontos para impressão os manuscritos dos tomos que faltava lançar. Na superfície, Em busca do tempo perdido – obra doravante referida aqui como Recherche (do francês À la recherche du temps perdu) – é uma espécie de romance de feição autobiográfica (não confundir com autoficção, pois o protagonista não se confunde com o autor) que se passa nos salões mundanos de Paris na belle époque. Lido em profundidade, é um monumento literário que promove a reunificação, pela escrita, aquilo que parecia irremediavelmente perdido no tempo e disperso no espaço. Conscientemente ou não, Proust desenvolve dois subgêneros consagrados no século XIX:


o “romance de formação” (cujo maior exemplo é Os anos de aprendizagem de Wilhelm

era, que se trata de um romance decadentista sobre o ocaso da aristocracia, a estação

Meister, de Goethe) e o painel histórico-romanesco (como A comédia humana, de

terminal da joie de vivre do ancien régime – e não o que de fato é: uma epopeia interior

Balzac, ou o ciclo dos Rougon-Macquart, de Zola). Confere a esses subgêneros, porém,

do sujeito que se agarra em desespero a seu mundo ínfimo, em meio às engrenagens

a perspectiva do personagem moderno, o ponto de vista parcial, precário, do anti-herói

esmagadoras e às ruínas da história.

da era da alienação e da cisão entre vida interior e mundo exterior, encapsulado numa

Dito isso, ler a escrita deslumbrante de Proust (maior estilista da língua francesa ao

interioridade que desvela uma nova objetividade.

lado de Montaigne e Pascal) e se impregnar da atmosfera estetizante da Recherche pode

Com suas extensas e sinuosas meditações sobre a construção da própria percepção

bem representar um lenitivo eficaz para os regurgitos toscos da arraia-miúda, um elixir

(memórias voluntárias ou involuntárias sempre imantadas de afeto; ilusões que

civilizatório contra os miasmas das redes sociais. Para estas, aliás, cabe o comentário

constituem a dinâmica do desejo e das relações intersubjetivas), a Recherche é uma

que a duquesa de Guermantes faz, no terceiro volume da obra, sobre a esdrúxulo cravo

espécie de “romance de formação fenomenológico”. Proust capta, como nenhum outro

verde que algum florista com laivos de alquimista houve por bem inventar: “Uma coisa

escritor antes ou depois dele, as nuances da subjetividade e do psiquismo que estavam

que me espanta e não me encanta infinitamente, uma coisa que é espantoso que tenha

sendo sistematizadas por Freud, sem que haja maiores registros de que ele tivesse

sido feita, mas que acho que seria igualmente bom se pudesse não ter sido feita”.

conhecimento da nascente psicanálise.

Reduzir a Recherche a um oásis de urbanidade, entretanto, seria uma atitude escapista,

E, do painel social de Balzac e Zola, Proust absorve a ideia de um grande arco temporal

indigna de um autor que soube cifrar, entre os acordes dilacerantes da sonata de Vinteuil

que, todavia, é restrito àquele ponto de vista parcial e moderno: na perspectiva do

e o cromatismo difuso das telas de Elstir (dois artistas imaginários que encarnam ideais

narrador, os acontecimentos mais frívolos (a hierarquia dos salões, a batalha simbólica

estéticos do narrador proustiano), as desgraças do seu século – e antecipando as

da moda e da etiqueta) têm o mesmo peso que os terremotos políticos que levam da

misérias do nosso.

Guerra Franco-Prussiana à Primeira Guerra Mundial – intervalo no qual ocorre o

Qualquer leitor da Recherche há de notar que, entre flertes e alcovas, aliciamentos

onipresente affaire Dreyfus.

eróticos e sadismos sociais, os intermináveis serões descritos no romance abrem

Essa equalização de acontecimentos tão díspares, pelo olhar de um narrador mais atento

frestas para o grande trauma da cena pública francesa: o caso Dreyfus. Que vem a ser,

a seus próprios avanços na cena mundana do que ao conflito entre partidos no xadrez

nada mais, nada menos, do que o primeiro episódio de fake news – ou seja, de fraude

político, ou mesmo ao deslocamento de tropas no campo de batalha (já ao final do ciclo

realizada em âmbito público, com intenções políticas sórdidas e avassalador alcance

romanesco), é responsável pela impressão de que a Recherche representa o fim de uma

midiático.


A ruidosa polêmica, que dividiu a opinião pública francesa, foi deflagrada quando o

O caso Dreyfus deu origem à figura do artista e do intelectual engajado, que tem como

capitão Alfred Dreyfus, alsaciano de origem judaica, foi acusado de fornecer informações

antecedentes o Pascal das Provinciais, Voltaire e o próprio Zola – e cujos arquétipos

secretas ao exército alemão. A denúncia vinha na esteira da humilhante derrota da França

seriam Sartre, Simone de Beauvoir e Camus (que, aliás, nos legou no romance A Peste

ante a aliança de Prússia e Alemanha pré-unificação, em 1871, tendo como objeto de

uma narrativa que explora todo o poder metafórico das epidemias). Proust é diferente.

disputa justamente as regiões de Alsácia e Lorena. Mas a acusação encobria motivos

Nunca vestiu o traje do intelectual engajado, embora não fosse exatamente um apolítico

mais torpes. A elite monarquista e católica do exército, que desejava recuperar o poder

e tenha sido um empenhado dreyfusista. Seu combate, porém, era mais silencioso, em

após a instauração da Terceira República, mobilizou o antissemitismo francês para fazer

surdina e repleto das ambiguidades típicas da abordagem ficcional.

de Dreyfus seu bode expiatório.

Chama a atenção, por exemplo, que o narrador da Recherche, tão próximo da vivência

Esse imbroglio, mesclando racismo e cinismo político, gerou a reação de várias

mundana e das paixões artísticas de Proust, esteja nos antípodas de seu criador: além de

personalidades da época, tendo à frente Zola – que em 1898 publicou no jornal L’Aurore

pertencer a uma família católica e de ser um femeeiro contumaz, ele dá vazão aos mais

o manifesto J’Accuse! (“Eu Acuso!”), denunciando os vícios e as razões inconfessáveis

odiosos discursos antissemitas e homofóbicos que vicejam nos salões da nobreza e da

do processo. O manifesto incendiou a opinião pública, dividindo-a entre dreyfusards

alta burguesia parisiense.

(republicanos, socialistas ou progressistas, defensores da inocência do oficial) e

Mas a “lei interna” da Recherche consiste exatamente em desconstruir em todos os

antidreyfusards (conservadores, nacionalistas e monarquistas clericais, contrários ao

campos (do amor e da amizade, da ambição social e da doutrina política) as ilusões que

acusado) até a absolvição e reabilitação de Dreyfus, em 1906.

engendram paixões e que, uma vez realizadas, causam uma decepção que gera a busca

O episódio é seminal. De saída, temos um caso de execração pública desencadeado

de um novo objeto, já de antemão destinado a decepcionar. Um pouco à maneira da dúvida

por notícias falsas – antecipando os linchamentos virtuais baseados em fake news.

hiperbólica de Descartes (que começa duvidando de tudo e assim descobre que só não

Depois, uma denúncia de falhas processuais cindindo um país e explicitando convicções

pode duvidar da própria dúvida), resta, do moto contínuo proustiano da ilusão seguida

ideológicas antagônicas e cegas à evidências factuais – nada muito diferentes dos

de desilusão, o próprio movimento da procura, a descoberta das pulsões que o impelem

contextos que levaram ao Brexit e às ascensões de Trump e do nosso inominável asno

de objeto em objeto: tanto quanto uma apreensão dos mecanismos da memória em sua

com patente de capitão. E, enfim, a eclosão de um poder inaudito de intervenção de

relação com o tempo, a Recherche é também uma anatomia do desejo em estado puro.

personalidades públicas na cena política, graças aos meios de comunicação – situação

E esse desejo em estado puro, sendo um substrato de todas as nossas representações,

hoje replicada pelas redes sociais.

unifica os planos do amor e das paixões ideológicas – como na célebre passagem de


Sodoma e Gomorra em que o narrador, perplexo com a descoberta da natureza “invertida”

camadas temporais que se justapõem, a cada momento sensitivo, as reminiscências

de Charlus, desfila uma frase que se estende por duas páginas. Nessa passagem, temos

que determinam e contaminam uma percepção, antecipando a percepção seguinte numa

o apogeu do estilo proustiano de concentrar, num único instante, as determinações e

voluta impressionista e sinestésica que se apropria do tempo. E, quando aplica essa

mutações de nossa forma de apreender a realidade. O narrador começa expressando

modulação a uma reflexão (como no caso dessas páginas de arrepiante beleza sobre o

abjeção e acumulando estereótipos sociais sobre o “homossexualismo”; aos poucos

homoerotismo), Proust faz os pré-conceitos colidirem contra a experiência pura que não

– e isso é fundamental –, passa do plano sexual ao plano político e equipara essa

cabe em qualquer conceito (e, no exemplo citado, num só gesto reabilita o polimorfismo

“enfermidade” à ignomínia dos judeus: inclui homossexuais e judeus nas mesmas teorias

de um desejo intransitivo e dissolve as identidades sexuais, religiosas, raciais etc.).

sobre fatalidade racial e sobre o atavismo de se reunir em cabalas, em sociedades tão

Proust, lembremos, era um burguês judeu e homossexual fascinado pela esfera social

secretas quanto a maçonaria.

da nobreza (por extensão católica, pois não há noção de nobiliarquia entre os judeus)

Progressivamente, porém (e ainda estamos na mesma frase), ele se dá conta de que

em que o casamento heterossexual obedecia menos a normativas morais cristãs do que

essa “parte condenada da coletividade humana” está por toda parte. Elabora então,

a um ethos aristocrático que fazia do domínio de si a garantia de seu sistema político

enlevado pelo próprio fluxo de pensamentos, uma empatia pelos estigmas e pela

de alianças. O escritor da Recherche, por seu turno, lança mão da liberdade do artista

danação que irmanam pederastas e israelitas numa única exclusão. E, após esse longo

burguês para desconstruir igualmente nobreza e burguesia. O narrador transporta a

período que percorre – entre espasmos, soluços inaudíveis de dor e piedade – um

dinâmica das ilusões perdidas, que marca suas infelicidades amorosas, para o conjunto

trajeto que leva da repugnância à compaixão, o narrador faz, alguns parágrafos à frente,

da sociedade, diluindo códigos distintivos de classe, signos de prestígio, máscaras

o seguinte louvor a uma forma de amor que é igual a todo amor, antes de ser recoberto

públicas e identidades sexuais – o judeu e o homossexual desempenhando aí o papel de

pelo opróbrio da sociedade: “Até o que nos repugna é o mais atraente, mais atraente que

símile de todo excluído, daquele que não se encaixa e, portanto, desarranja a ordem do

todas as delicadezas, já que representa um admirável esforço inconsciente da natureza:

mundo.

o reconhecimento do sexo por si mesmo, a despeito das artimanhas do sexo, a tentativa

Passada a delicada e tenaz tempestade que varre as planícies temporais da Recherche,

inconfessada de evadir-se para o que um erro inicial da sociedade pôs longe de seu

“quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a

alcance”.

destruição das coisas”, resta o indivíduo solitário, recluso em sua fragilidade, resistindo

As frases transcontinentais de Proust, concatenando orações subordinadas num

no interior do “edifício imenso da recordação”. Em tempos de pandemia e terror

hipnotizante serpentário sintático, não são maneirismo retórico: elas captam as

pentecostal, só Proust salva.










VÍRUS DELIVERY




























1. SANTOS DUMONT

2. GUANABARA

Mas vai chegar o dia em que a nave atracará no finger

A tarde recolhe os restos

e em vez da maresia o vento mastigado

do dia que não enxerga

em vez do bafo a assepsia.

presos no fundo da rede tímidas lascas de prata

Dia de a fibra arrefecer

resistentes ao ocaso

a pisada do viajante o abraço do sol

Passa a vida feito cega ao esplendor dos contrastes

e um intervalo morto

tudo sobra tudo excede

adiar a refrega

tudo finda antes do prazo.

entre a cidade e o corpo.


3. PONTE AÉREA

4. EDIFÍCIO GUARATIBA

A cidade só não rói o que é de pedra

Eu quero morar no tempo.

o resto é uma inflamação Pretendo quarto modesto trepa pelas escarpas

com rede, lume e varanda

contamina cursos d’água

suspensa sobre a cidade.

febre de quarenta graus.

Outros bens, que não possuo, deixo aos cuidados do mundo.

Do outro lado o oceano bicho bom

Quero janelas sem tranca

não se cansa de lamber as bordas da ferida.

escancaradas ao vento à luz infinda dos dias à escuridão, minha amiga. Não quero flat em São Paulo, não quero apê em Paris: eu quero morar no tempo onde tudo à minha volta seja eterno menos eu





As paredes que viram morrer os homens, que viram fugir o ouro, que viram finar-se o reino, que viram, reviram, viram, já não veem. Também morrem Morte das casas de Ouro Preto - Carlos Drummond de Andrade

Talvez porque seu sobrenome nome seja Terra, talvez porque com a morte de seu pai, escultor de carrancas em madeira e barro, a casa onde passou a infância tenha sido demolida, talvez porque quando criança era levada às cidades históricas mineiras, cidades cujas calçadas, casas, igrejas, têm espessura histórica, e lá impressionavam-na os altares e nichos de ouro, ecos distantes de riqueza que ingenuamente julgava maciços, impressão que foi se dissipando quando começou a perceber as mostras da corrosão de tudo pelo tempo: o desgaste das fachadas, as frestas nas juntas por onde germinam plantinhas que começam pequenas mas que senão lhes presta atenção, avançam por tudo, vão tomando de volta a matéria que lhes foi tirada, numa prova de que todo pacto com a natureza, por imponente que seja o que com ela construímos, é temporário. Pode ser por tudo isso, pode ser por alguma causa próxima, como ter certeza sobre o que leva um artista a fazer o que faz? Aliás, como saber o que nos leva a fazer, o que nos motiva a fazer o que fazemos? Seja como for, seja o que for, esse conjunto de trabalhos de Jeane Terra têm a ver com experiências reativadas com o que ela viu em Atafona, pequeno distrito a beira


mar pertencente a São João da Barra, na região norte Fluminense, que vem sendo

suas pinturas, mas em lugar dos ornamentos abstratos habituais ou da esperada

lentamente engolido pelo Atlântico. Essa queda de braço começou tem mais de 50

representação de flores, foi às fotografias de destruição de Atafona, vistas do casario

anos e já custou mais de 500 casas a Atafona. A culpa? Nossa, é claro, que devastamos

sob risco, e aplicou-as sobre essas telas de ponto cruz. Por que? Vai saber. Talvez por

as matas ciliares ao longo do curso do rio Paraíba do Sul. Com seu leito assoreado e

um impulso de contenção, de compreensão, por meio da geometria, dessa máquina de

fluxo a cada ano menos impetuoso, o rio não consegue fazer frente ao mar. E este,

produção de escombros. Talvez porque assim, sobrepondo os gestos de sua avó aos

gigantesco e ilimitado, vem, implacável, destruindo as casas, calçadas e ruas. Começa

seus próprios gestos, elas se reencontrem e nem tudo fica perdido.

pela combinação de batidas e infiltrações intermitentes das ondas, alternada com as pausas curtas das marés. O mar dispõe de tempo e força. E vem assim, sem tréguas, à razão de 25 centímetros por ano, atacando por todos os lado e por baixo, pelos alicerces, até que as casas vergam, tombam de joelhos, vão se afogando, suas paredes partidas, lanhadas pelo martelo d’água, deixam à mostra a ossatura miserável dos vergalhões enferrujados, a matéria de seus tijolos vai se dissolvendo, convertendo-se outra vez em terra e chão enquanto tingem levemente a água de vermelho. Paraíba em Tupi significa rio ou mar difícil de invadir. Atafona, engenho de moer grão. Paraíba se esvai, Atafona segue sendo macerada e o nome da artista é Terra. Não são mesmo estranhos esses nomes que sugerem destinos?

Nesta prévia a exposição que acontecerá tão logo a pandemia permita, Jeane Terra apresenta alguns trabalhos, todos eles tendo por base os acontecimentos em Atafona. A partir da fotografia dos despojos traseiros e laterais de uma casa suspensa sobre a praia alisada como se até ali nada houvera acontecido, o retrato de uma violência calma, ela produziu um desenho e uma pintura. O desenho tem o feitio de uma receita de ponto cruz, ou seja, o quadriculado mais fechado que a página de um livro de aritmética, numa superfície retangular, com as indicações em preto e branco das cores das linhas a serem aplicadas. Embora o desenho seja a transposição de uma imagem clara e forte de uma ruína, ele mesmo é abstrato, ou quase abstrato: só se adivinha seu conteúdo quando perto da imagem

Outras perdas familiares, todas elas femininas, levaram a artista à avó, à lembrança

que ele tomou de referência. As indicações das cores são feitas por intermédio de

dos seus bordados em ponto cruz que ela fazia: tapetes, toalhas, caminhos de mesa,

hachuras distintas, os assim chamados modelos gráficos, com os quadradinhos

guardanapos, camisas etc, realizadas a partir das tramas quadriculadas, as retículas

ocupados por pontos, riscos, círculos claros rodeados de preto, círculos pretos

uniformes, largas e rígidas ou estreitas e delicadas, por onde fios coloridos são

rodeados de branco, linhas diagonais etc, tudo pequeno, minucioso, produzindo

passados em forma de “x”, obedecendo um desenho, um esquema, um diagrama, na

regiões mais ou menos sombreadas, num conjunto confuso para qualquer um que não

linguagem técnica das bordadeiras, uma “receita”. Jeane retomou essa trama para

seja profissional, que não tenha o olho bem treinado, sobretudo quando a porção do


desenho se refere a construção, à casa dilacerada no alto da encosta. Aí o desenho se

Máscara é o título de uma das duas esculturas trazidas para essa prévia, um pedaço

estilhaça em uma miríade de pontos, como a superfície de uma pintura antiga, toda ela

de concreto, sobra de uma parede azulejada, sob a qual ela aplica uma folha de ouro,

povoada de rachaduras microscópicas, com algumas falhas provocadas por perda de

memória das igrejas visitadas, da Nossa Senhora do Ó, o primeiro impacto, seguida

aderência. Pois também o desenho tem falhas, tem perdas, como se o mapeamento de

das igrejas de Tiradentes, o entendimento do uso dourado nas construções destinadas

um desastre lento como o retratado também fosse acometido pelos mesmos efeitos.

à expiação das almas. A presença do ouro, metal nobre, dado que não reage com o

O que nos leva à pintura de Jeane. A lembrança da avó, da lida diária com os bordados em ponto cruz, linhas redes e receitas, os cálculos e revisões sistemáticas, intensivas, de modo a não fugir do pretendido, levou-a a reinventar sua pintura. Começou aproveitando as sobras de tinta derramadas no chão. As variações cromáticas somada à plasticidade da película, a pele da pintura, propriamente falando, sugeriu a ela que recortasse e colasse pedacinho por pedacinho na receita tomada por base. Menos um bordado, o procedimento faz pensar na construção de um vitral, de uma pintura pontilhista, nos pixels de um monitor. Cadeia de acontecimentos que faz pensar no quanto cada um desses passos implicou na chegada ao outro. A pesquisa do desenvolvimento dessa pintura feita por fragmentos quadriláteros de pele foi assunto que demandou muita pesquisa, até desembocar numa mistura de tinta, aglutinante e pó de mármore, decisivo para sua firmeza e maleabilidade. Esse mesmo material estendido sobre a superfície de uma mesa serviu para impressões a frio, monotipias resultantes de imagens de Atafona. No conjunto ora trazido pela artista, uma outra imagem da mesma família gerou uma impressão dessas, estampada sobre uma pele mole, cartilaginosa, uma paisagem arruinada dos corpos de casas.

oxigênio, não oxida, contradiz o inevitável encontro de tudo o que existe com a decadência e a morte. Tanto maior a ironia quando aplicado a um detrito retirado por moldagem da parede do banheiro, esse espaço reservado a limpeza dos corpos, de uma das casas. O recurso a moldagem é ancestral, remonta ao fundamento mágico que guiava a produção de máscaras mortuárias. No afã de manter viva a memória dos antepassados, garantindo sua presença tutelar, produzia-se, produz-se até hoje, máscaras de seus rostos, o fantasma de bronze tangível, estático, imponente, referência à circulação incessante dos vivos. Totem é simultaneamente escultura e destroço, fragmento de uma das casas arruinadas de Atafona, pedaço de batente (?) vertical, com tijolos, massa e a cobertura de tinta branca. Mas nela há dois tipos de intervenção: um desenho geométrico estreito, escavado no corpo do objeto, semelhante aos produzidos pelos cupins infatigáveis, alheios ao nosso sono, também semelhante aos que os seringueiros fazem nos troncos das árvores, guiando o escorrer da seiva. Parte desse desenho Jeane recobriu de ouro, um resquício do orgulho de quando foram construídas, das vidas e sonhos que abrigaram, e que hoje, como o que delas desapareceu, estão adormecidos ou em vias de adormecer, como o último arfar de uma brasa antes de ser extinta pela água.























LINHAS URGENTES PARA ANIMA-ANIMALE

vivos de uma forma ou outra como se pratica a caça de reservas deles já em extinção, ou

Temos perdido certo respeito pela origem, aquela etimologia que diz anima-animale,

proteína animal, em uma última volta de parafuso de um negócio macabro que parece não

como alma do vivo? Quando a civilização esquece tranquilamente a indústria e consumo da violência fabricada, dirigida, também entramos na indistinção da cultura igual à barbárie. Somos então o mesmo documento, parte de uma maldita equação de extermínio banalizado, cotidiano. O reino da coisificação se extende a todo o vivo, incluído o mundo animal, todo um sintoma, talvez inscrito no território trágico do hediondo, do crime como patrimônio. Já a porosa e melhor conjugação das pessoas do verbo inclui ainda a relação com os animais, também como companheiros de viagem. E não só no âmbito doméstico. Outra ética mais ampla deve considerar que a defesa da biodiversidade não é só uma questão ambiental de cor verde. A visão de toda Anima-animale é recuperar uma linguagem comum de respeito, fora do mito recalcado de que o ser humano está por cima do criado, como deidade laica que se lhe permite tudo, instrumentalizar qualquer coisa, até o último confim da natureza, os bichos, etcetera. Como uma proclama lírica ou uma osmose ética, portanto, qualquer poema, obra, ação, declaração, política alude a outra respiração mais generosa e compartilhada, aquela do sopro vital: anima. Se trata de aspirar a outra convivência e comportamento, uma leitura geral da existência que saiba religar-se a outra cosmologia, a de uma natureza por extenso, seja animal, vegetal de maior respeito á vida. Equilibrando assim o sentido que impede o negócio da morte, a banalidade do sacrifício, a indústria levantada sobre o sofrimento animal, quando não a simples tortura. Ao ponto extremo de que tanto se mortificam animais

então se amplifica a sobre-explotação industrial ou pior, da chamada eufemisticamente ter fim. A tal coisificação que entranham alguns processos alimentares está colocando distintos animais em um certo estado de não existência, de distância e simulação, como se a origem fosse abstrata, derivada mas não procedente, quase alheia ao mundo animal, quando, precisamente, não deixa nunca de proceder dele. Comer sofrimento ou alimentar-se da dor é o tabu a ser desmitificado de sua pesada realidade instrumental, e passa a ser o principal objetivo do esquecimento não só do consumo individual quanto da produção industrializada de carne e alimentos derivados da natureza animal. Para não cair em nenhum mea-culpa funciona toda a publicidade do melhor dos mundos à disposição, a qualquer preço.





ÍNDICE

Capa/contracapa: Retratos de ninguém (detalhes), 2020/Julio Castro **************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************** Nota editorial/AMN ***********************************************************************************************************

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Fronteira, 2020/CAN

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10 ATO

A ideia pode parecer embrionária,****************************************************************************************************************************************** O novo catálogo das espécies (Confabulações), 2020/AMN Conforme as ordenanças vigentes, ****************************************************************************************************************************************************************** De uniforme (Confabulações), 2020/AMN

Oferta (2x1), 2020/Patricio Farías Arremate (4 poemas), 2020/Armando Freitas Filho

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O mito mitômano e o falso, *****************************************************************************************************************************************************************

Desenhos Corona Drawings, 2020/Raul Mourão Tiempo sin tiempo:********************************************************************************************************************************************************************** Três poemas para Pandemônio, 2020/José Ramón Ripoll *****************************************


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20 ATO

Conforme alguma mitologia contempla, *****************************************************************************************************************************************************************Alegórica (Confabulações), 2020/AMN Reza uma advertência ********************************************************************************************************************************************************************************************************** Rumores/Report 1, 2020/AMN

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Fôlego, 2020/Suely Farhi

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30 ATO

Depois de anos no labirinto ******************************************************************************************************************************************************************************** Mitológica II (Confabulações), 2020/AMN

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TABVLA XVII (série Animalis Imaginibvs), 2019/Mauro Espíndola

A arma do silêncio ************************************************************************************************************************************************************************************************************* Silêncio, 2020/Regina Pouchain

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Série Quarentena (Família na quarentena; Sobre a estátua derrubada; Acaso improvável; Subterrâneo; Self-conscious), 2020/Victor Arruda

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40 ATO

Trancado no seu próprio eu, *********************************************************************************************************************************************************************************** Solilóquio (Confabulações), 2020/AMN

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Silêncio, década de 80/Vera Chaves Barcellos

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Textos, década 2020/Guita Soifer

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50 ATO

A realidade, submetida***************************************************************************************************************************************************************************************************Teste (Confabulações), 2020/AMN

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Refúgio 2; Suprematismo caboclo, 2020/Marcelo Cipis

Por causa desses micróbios******************************************************************************************************************************************************************************************* Pandêmicos, 2020/Carlos Castelo


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Touro, sem data/Ronald Polito

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60 ATO

Para ganhar um primeiro exílio******************************************************************************************************************************************************* Para uma teoria do exílio (Confabulações), 2020/AMN

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Mulher na janela, sem data/Vera Chaves Barcellos

Em 1948 Vinícius de Moraes estava em Los Angeles *********************************************************************************************** Copacabana, praia de memórias!, 2020/Edson Luiz André de Sousa

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Vale o escrito; Espacio libre; No hay lugar; Reservado;

(serie Desenho Tambem Es Cultura), 2010-2017/Alexandre Dacosta Não é preciso entender de economia,**************************************************************************************************************************************************************************** Pode piorar, 2020/Maria Rita Kehl

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70 ATO

Na nova torre de Babel************************************************************************************************************************************************************************************************** Babel (Confabulações), 2020/AMN


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Altar, pequeños monumentos, 2020/Cristóbal Ugarte Parra

Um escritor com problemas respiratórios *************************************************************************************************************************************************** Só Proust salva, 2020/Manuel da Costa Pinto Aquele conto de uma linha ****************************************************************************************************************************************************************************************** Errata (Confabulações), 2020/AMN

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80 ATO

Faz séculos que enviei a garrafa ***************************************************************************************************************************************************************************** Robinson (Confabulações), 2020/AMN Agora que o sucesso das reencarnações ************************************************************************************************************************************************************** Neroniana (Pandemonium), 2020/AMN Sempre houve uma linha divisória************************************************************************************************************************************************************************* Mascarada (Pandemonium), 2020/AMN Costuma acontecer quando há testemunhas,***************************************************************************************************************************************Êxtase verde-amarelo (Pandemonium), 2020/AMN Quem não acredita no tal vírus ************************************************************************************************************************************************************************* Vírus delivery (Pandemonium), 2020/AMN

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Pandemic therapeutic drawings, 2020/Marcelo Solá

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90 ATO

A vida sempre esteve contagiada ********************************************************************************************************************************************************************** CUL-DE-SAC (Confabulações), 2020/AMN


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Retratos de ninguém, 2020/Julio Castro

Mas vai chegar o dia,****************************************************************************************************************************************************************************************************** Suíte do Rio, 2020/Maria Rita Kehl

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100 ATO

Era a senha de senhas, a contrasenha *********************************************************************************************************************************************************************** Cifrado (Confabulações), 2020/AMN Talvez porque seu sobrenome *********************************************************************************************************************************************************** A queda das casas de Atafona, 2020/Agnaldo Farias

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Atafona, 2020/Jeane Terra

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110 ATO

Animais que voltam reencarnados em outros, *********************************************************************************************************************** A reencarnção como vingança (Confabulações), 2020/AMN

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TABVLA XXVIII, TABVLA XIX, TABVLA XX, TABVLA XXI, (série Animalis Imaginibvs), 2020/Mauro Espíndola


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Anima Animalia, 2018-2020/CAN

Temos perdido certo respeito pela origem,********************************************************************************************************************************** Linhas urgentes para Anima-Animale, 2018-2020/AMN

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sem título, 2020/Vera Chaves Barcellos

Sonhar, sim, mas só ************************************************************************************************************************************************************************************************* Blackout (Confabulações), 2020/AMN

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Epílogo

Gente escondida atrás das grandes palavras, ************************************************************************************************************************************************** Efeito estufa (Confabulações), 2020/AMN

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Ainda é uma espera, 2020/Camila Leichter

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