ÁLCOOL – TEORIA E CLÍNICA

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Coordenação:

ÁLCOOL Teoria e Clínica

Coordenadores:

Joana Teixeira

João Cabral Fernandes

Teresa Mota

Lidel – edições técnicas, lda. www.lidel.pt
© Lidel –Edições Técnicas V Autores.......................................................................................................... IX Prefácio ......................................................................................................... XV João Marques Palavras prévias ............................................................................................. XVII João Cabral Fernandes Siglas e acrónimos XXI O que é a dependência alcoólica? ......................................................... 3 Violeta da Cruz Nogueira, Inês Pereira, Joana Teixeira Introdução ............................................................................................ 3 Consumo de risco 3 Consumo nocivo ................................................................................... 5 Dependência alcoólica .......................................................................... 6 Critérios de diagnóstico ........................................................................ 8 Conclusão ............................................................................................. 10 Epidemiologia do consumo de álcool e o seu impacto na saúde ........... 15 Ana Vieira da Silva Introdução 15 Consumo de álcool no mundo .............................................................. 15 Consumo de álcool em Portugal ........................................................... 16 Exposição ao álcool ............................................................................... 17 Danos na saúde atribuíveis ao consumo de álcool ................................. 22 Conclusão ............................................................................................. 25 História do álcool e evolução histórica em Portugal ............................. 31 Augusto Pinto, Maria Inês Pinto Lagarto Introdução ............................................................................................ 31 O álcool ao longo dos tempos ............................................................... 31 O álcool em Portugal ............................................................................ 34 Avanços ou retrocessos? ......................................................................... 40 Conclusão ............................................................................................. 41 1 2 3 Índice
Álcool – Teoria e Clínica VI Neuroquímica e fatores psicossociais 47 Guilherme Pereira Introdução 47 Indivíduo, Família e Sociedade ............................................................. 48 Da membrana celular à neurotransmissão............................................. 49 Comportamento e sistemas cerebrais .................................................... 54 Conclusão ............................................................................................. 60 Tipologias e classificações clínicas ........................................................ 69 Joana Teixeira Introdução ............................................................................................ 69 Tipologias comportamentais ................................................................. 70 Tipologias multidimensionais 72 Tipologias clínico-epidemiológicas ....................................................... 74 Classificação clínica integrada ............................................................... 75 Conclusão ............................................................................................. 76 Formas de desenvolvimento dos consumos de álcool ........................... 81 Samuel Pombo Introdução ............................................................................................ 81 Padrões de consumo.............................................................................. 81 Limites e Terminologias ........................................................................ 84 Nomenclaturas ambíguas 85 Adição................................................................................................... 85 Conclusão ............................................................................................. 86 Consumo de álcool no feminino .......................................................... 91 Teresa Mota, Afonso Gouveia, Inês Pereira, Miriam Garrido Introdução ............................................................................................ 91 Especificidades do uso de álcool no sexo feminino ................................ 92 Padrão de consumo ............................................................................... 95 Sequelas ................................................................................................ 95 Tratamento 96 Conclusão ............................................................................................. 98 4 5 6 7
© Lidel –Edições Técnicas Índice VII Populações em risco e de risco – grávidas e idosos 103 Arianna Borelli, Filipe Lança, José António de Brito, Sara de Carvalho Ferreira Introdução ............................................................................................ 103 Álcool e gravidez ................................................................................... 104 Álcool e idosos ...................................................................................... 109 Conclusão ............................................................................................. 114 Álcool, violência e justiça ..................................................................... 119 Sérgio Saraiva, Fátima Barbosa Introdução ............................................................................................ 119 O conceito de violência ......................................................................... 119 Epidemiologia e impacto da violência e sua relação com o álcool .......... 121 Neurobiologia da violência e relação com o álcool ................................ 123 Abordagem do doente agitado com problemática alcoólica – considerações a ter em contexto clínico .............................................. 124 Implicações forenses .............................................................................. 125 Conclusão ............................................................................................. 128 Deriva alcoólica – o álcool e a adolescência .......................................... 135 João Gonçalves, Mafalda Mendes, Sandra Torres Introdução ............................................................................................ 135 Conceitos relacionados com o uso de álcool e a aplicação nos jovens e adolescentes ........................................................................................ 136 As estatísticas do consumo de álcool em jovens – Europa e Portugal .... 137 Impacto do álcool na saúde do adolescente ........................................... 140 Diagnóstico e prevenção 145 Tratamento ........................................................................................... 146 Conclusão ............................................................................................. 148 Tratamento e acompanhamento ........................................................... 153 João Cabral Fernandes Introdução ............................................................................................ 153 Conceitos de base do tratamento de pacientes dependentes do álcool ... 154 Sair do mito da cura ou do tratamento ................................................. 156 Do primeiro encontro/entrevista à desintoxicação ................................. 157 8 9 10 11
Álcool – Teoria e Clínica VIII A desabituação. Sem álcool / Álcool fora 159 Os medicamentos ................................................................................. 160 Conclusão ............................................................................................. 161 Intervenção nos cuidados de saúde primários ....................................... 165 Cristina Ribeiro, Frederico Rosário Introdução ............................................................................................ 165 Deteção precoce dos consumos de álcool .............................................. 167 Intervenções breves ............................................................................... 170 Ciclo de mudança ................................................................................. 172 Entrevista motivacional 173 Conclusão ............................................................................................. 174 Intervenções específicas ........................................................................ 181 Sónia Ferreira, Lídia Moutinho, Paula Diegues, Rita Ramos, Afonso Paixão Introdução ............................................................................................ 181 Unidade de tratamento e reabilitação de alcoólicos ............................... 182 Conclusão ............................................................................................. 191 Álcool e psiquiatria .............................................................................. 197 Joana Teixeira, Margarida Alves Introdução ............................................................................................ 197 Depressão.............................................................................................. 199 Perturbação afetiva bipolar.................................................................... 200 Esquizofrenia e outras doenças psicóticas.............................................. 201 Perturbações de ansiedade e relacionadas com o stress ........................... 202 Perturbações da personalidade .............................................................. 203 Conclusão ............................................................................................. 205 Glossário de alcoologia.................................................................................. 215 João Borba Martins, Margarida Neto Índice remissivo ............................................................................................ 237 12 13 14

Autores

COORDENADORES/AUTORES

Joana Teixeira

Assistente hospitalar de Psiquiatra do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), atualmente a exercer funções de coordenadora da Unidade de Alcoologia e Novas Dependências, com competência em Adictologia Clínica pela Ordem dos Médicos (OM). Membro da direção do Internato Médico do CHPL. Membro da direção da Secção Especializada em Psiquiatria da Adição da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental (SPPSM). Assistente convidada da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL).

João Cabral Fernandes

Ex-diretor clínico do Hospital Júlio de Matos. Esteve envolvido na criação, na dinamização e no desenvolvimento da Psiquiatria Comunitária, sendo fundador da Unidade Comunitária de Cuidados Psiquiátricos de Odivelas (UCCPO). Ex-diretor da Equipa A da Unidade de Tratamento e Reabilitação Alcoológica (UTRA) do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Psiquiatra e clínico em exercício.

Teresa Mota

Assistente graduada sénior de Psiquiatria do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), atualmente a exercer funções como diretora clínica. Exerceu funções de coordenação do Serviço de Alcoologia e Novas Dependências do CHPL até 2017.

AUTORES

Afonso Gouveia

Médico interno de formação especializada em Psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (ULSBA). Docente afiliado na Nova Medical School (NMS) da Universidade Nova de Lisboa. Colaborador no Programa de Gestão Integrada de Riscos Psicossociais (ProGeRPsi) da ULSBA. Mestrando (MA) em Filosofia e Saúde Mental na University of Central Lancashire (UCLan).

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Afonso Paixão

Licenciado em Psicologia Clínica desde 2003 e especialista em Psicologia Clínica desde 2011. Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e especialista em Psicologia Comunitária pela Ordem dos Psicólogos desde 2016. Desde 2004, exerce funções como psicólogo clínico no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), atualmente na categoria de assistente na Unidade de Alcoologia e Novas Dependências no CHPL.

Ana Vieira da Silva

Assistente graduada sénior de Saúde Pública da Unidade de Alcoologia de Lisboa (UAL). Competência em Adictologia Clínica pela Ordem dos Médicos (OM). Coordenadora Técnica da Unidade de Alcoologia de Lisboa da Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (DICAD) da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I. P. (ARSLVT).

Arianna Borelli

Interna de Medicina Geral e Familiar na Unidade de Saúde Familiar Sétima Colina (ACES Lisboa Central). Mestre em Migrações, Inter-etnicidades e Transnacionalismo pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH, UNL).

Augusto Pinto

Assistente graduado sénior de Medicina Geral e Familiar. Antigo diretor do Centro Regional de Alcoologia do Centro (CRAC). Membro do Conselho Científico da Sociedade Portuguesa de Alcoologia (SPA).

Cristina Ribeiro

Assistente graduada em Medicina Geral e Familiar. Doutorada e docente na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), com competência em Adictologia Clínica. Presidente da Associação Portuguesa da Medicina da Adição (APMA). Membro da direção da Federação Europeia de Comportamentos Aditivos (EUFAS). Coordenadora do Grupo de Estudo de Comportamentos Aditivos da Associação

Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF). Membro dos Órgãos Sociais da Associação de Docentes e Orientadores de Medicina Geral e Familiar (ADSO). Médica no Departamento de Qualidade da Direção-Geral da Saúde (DGS) e terapeuta familiar.

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Álcool – Teoria e Clínica

Fátima Barbosa

Assistente hospitalar graduada em Psiquiatria. Competência em Adictologia Clínica pela Ordem dos Médicos (OM). Coordenadora da Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Prisional São João de Deus – Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP).

Filipe Lança

Médico interno de formação específica em Medicina Geral e Familiar na Unidade de Saúde Familiar Sétima Colina (ACES Lisboa Central).

Frederico Rosário

Consultor em Medicina Geral e Familiar da Unidade de Saúde Familiar de Tondela, com competência em Adictologia Clínica. Consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS) para Problemas Ligados ao Álcool. Coordenador da Comissão Executiva para a Investigação em Problemas Ligados ao Álcool do Centro Académico Clínico das Beiras (CACB).

Guilherme Pereira

Assistente hospitalar de psiquiatria na equipa técnica especializada de tratamento de Almada na Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (DICAD) da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I. P. (ARSLVT).

Inês Matos Pereira

Médica interna de formação específica em Psiquiatra no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Pós-graduada em Terapias Cognitivo-Comportamentais em Adultos.

João Borba Martins

Médico interno de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA). Pós-graduado em Psicoterapias Cognitivo-comportamentais e em Sexualidade Humana.

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João Gonçalves

Médico Psiquiatra. Assistente hospitalar de Psiquiatria na Clínica de Alcoologia e Novas Dependências do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Assistente livre da Clínica Universitária de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL). Presidente da Direção da Associação Mental8Works. Membro fundador da Secção de Psiquiatria da Adição da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental (SPPSM).

José de Brito

Assistente graduado de Medicina Geral e Familiar da Unidade de Saúde Familiar Sétima Colina (ACES Lisboa Central). Pós-graduado em Geriatria pela Sociedade Portuguesa de Geriatria e Gerontologia (SPGG). Orientador de formação específica do internato médico de Medicina Geral e Familiar da Zona Sul.

Lídia Moutinho

Enfermeira especialista em Saúde Mental e Psiquiatria na Unidade de Tratamento e Reabilitação Alcoológica (UTRA) do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Professora adjunta convidada na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa (ESEL) e na Escola Superior de Saúde de Leiria (ESSLei).

Mafalda Azevedo Mendes

Assistente hospitalar de Psiquiatria da Equipa de Tratamento de Xabregas – Centro de Respostas Integradas (CRI) de Lisboa Oriental.

Maria Inês Pinto Lagarto

Doutorada em Serviço Social. Professora adjunta da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais (ESECS) do Politécnico de Leiria. Membro da Direção da Sociedade Portuguesa de Alcoologia (SPA).

Margarida Alves

Médica interna de formação específica em Psiquiatria no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar de Setúbal (CHS).

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Álcool – Teoria e Clínica

Margarida Neto

Psiquiatra na Casa de Saúde do Telhal, no Instituto de São João de Deus. É coordenadora da Unidade de Alcoologia – Novo Rumo – na Casa de Saúde do Telhal. Durante o internato de Psiquiatria, trabalhou com a Dra. Gisela Crespo no HMB e GEPTRA, onde se iniciou no conhecimento da clínica da dependência do álcool e respetivo tratamento.

Miriam Marguilho

Médica interna de formação específica em Psiquiatria no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Pós-graduada em Terapias Cognitivo-comportamentais e em Sexologia Clínica.

Paula Diegues

Psicóloga Clínica da Unidade de Alcoologia e Novas Dependências no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Pós-graduada em Psicologia da Consciência pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) e terapeuta de Eye Movement Desensitization and Reprocessing (EMDR).

Rita Ramos

Assistente social da Unidade de Alcoologia e Novas Dependências no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL).

Samuel Pombo

Psicólogo clínico do Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Santa Maria (HSM). Professor auxiliar de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL).

Sandra Torres

Médica interna de Psiquiatria do Centro Hospitalar Barreiro-Montijo (CHBM).

Sara de Carvalho Ferreira

Assistente de Medicina Geral e Familiar em funções na Unidade de Saúde Familiar Sétima Colina da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I. P. (ARSLVT). Orientadora de formação específica do internato médico de Medicina Geral e Familiar da Zona Sul. Sexóloga pela Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica. Médica na Organização Não Governamental Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT) – Espaço Intendente.

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Sérgio Saraiva

Assistente hospitalar de Psiquiatria do Hospital Prisional São João de Deus – Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP). Consultor de Psiquiatria da Delegação Sul do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF). Assistente livre de Psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL).

Sónia Ferreira

Psicóloga clínica e terapeuta familiar sistémica na Unidade de Alcoologia e Novas Dependências do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, em Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações, em Psicologia da Justiça e em Psicoterapias. Mestre em Psicologia Forense e da Exclusão Social. Pós-graduada em Neuropsicologia. Doutoranda em Neurociências na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL).

Violeta da Cruz Nogueira

Interna de formação específica em Psiquiatria da Unidade de Alcoologia e Novas Dependências do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPS).

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Álcool – Teoria e Clínica

Sendo certo que a problemática associada ao uso de álcool tem representado em Portugal uma verdadeira preocupação de saúde pública, a realidade tem permitido entender que muito pouco tem sido feito no sentido de minimizar ou resolver este flagelo.

Se em termos políticos temos assistido a um franco desinteresse na abordagem desta temática, do ponto de vista técnico, ao longo dos últimos 15 anos, temos vivenciado um progressivo desinvestimento, quer a nível de recursos humanos quer a nível de estruturas físicas, essenciais à manutenção de planos terapêuticos diferenciados.

Neste contexto, não será de estranhar que a consequente evolução da área da Alcoologia em Portugal tenha decorrido no sentido do seu empobrecimento científico, com cada vez menos trabalhos publicados, menos congressos e reuniões clínicas, menos partilhas e dinamização entre pares e, claro, com a real desfragmentação e destruturação das equipas especializadas que trabalhavam na área.

No entanto, e em virtude do surgimento de um elevado número de novos conhecimentos associados ao processo da adição ao álcool, outras substâncias e comportamentos, temos assistido a um revitalizar da motivação para o reinvestimento técnico na Alcoologia.

Olhando para os números, este novo interesse não podia surgir em melhor altura. Temos atualmente um dos maiores consumos per capita de etanol do mundo. Os resultados do IV Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias

Psicoativas na População Geral, Portugal 2016/17 evidenciaram um agravamento dos consumos de risco ou dependência na população geral entre os 15 e os 74 anos, bem como outras evoluções negativas preocupantes em alguns subgrupos populacionais, como as mulheres e os mais velhos.

Os resultados apresentados pelo mesmo estudo mostram que entre 2017 e 2019 verificaram-se algumas evoluções preocupantes, com destaque nos mais jovens, nomeadamente o aumento entre 2015 e 2019 do consumo recente e atual de álcool, do binge e da embriaguez nos jovens de 18 anos, assim como em jovens de determinadas idades, em particular nos de 16 anos, e o aumento dos diagnósticos em que crianças/jovens assumem ou são expostos a comportamentos ligados ao consumo de álcool que afetam o seu bem-estar e desenvolvimento.

Ainda o mesmo estudo deixa claro algumas tendências preocupantes, nomeadamente o aumento dos utentes em tratamento, quer dos que o iniciaram em ambulatório quer dos internados em Comunidade Terapêutica;

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Prefácio

a subida, nos dois últimos anos, da prevalência de VHC+ entre os readmitidos em ambulatório e dos internamentos hospitalares atribuídos ao consumo de álcool; o agravamento da mortalidade por doenças atribuíveis ao álcool; e, desde 2015, da mortalidade em acidentes de viação sob a influência do álcool (SICAD, Relatório Anual 2019 – A Situação do País em Matéria de Álcool ).

Esta é, de facto, uma realidade preocupante, que tem necessariamente de ter a nossa atenção e motivação para o regresso ao trabalho, com o interesse que a dimensão do problema assim o exige e com a consequente partilha de informação e conhecimento entre todos.

Assim surge este fantástico livro, que, considerando o exposto, é bem mais do que um livro, constituído por 14 capítulos e 31 autores. É a concretização de um projeto coletivo de técnicos de diversas áreas que têm em comum a experiência e o interesse na problemática associada ao consumo de álcool. O ponto mais entusiasmante neste projeto centra-se na capacidade de voltar a reunir um grupo heterogéneo de técnicos, com as mais diversas idades e experiências, unificando o conhecimento multidisciplinar, atualizado e representativo de diversas visões ou escolas do saber.

Ao percorrer os diferentes capítulos, ficamos com a sincera ideia de que este livro representa a obra mais atual e completa sobre o tema escrita entre nós, constituindo um excelente retrato desta nossa problemática. Ao longo da sua leitura, encontramos abordadas múltiplas facetas da nossa realidade clínica, que vão desde os aspetos históricos à problemática epidemiologia e ao impacto na saúde, passando por particularidades muito nossas, como o problema de consumo nos mais jovens, mulheres e idosos, fornecendo um olhar diferenciado para o plano de tratamento especializado, mas não esquecendo a tão importante intervenção nos cuidados de saúde primários. Paralelamente, as novas bases neurobiológicas também não foram esquecidas, deixando entender a importante relação e integração dos novos conhecimentos na nossa clínica. Justamente por tudo o exposto, não é demais sublinhar a importância da elaboração desta obra no nosso panorama clínico. Gostaria de reforçar a ideia de que, além de uma obra científica, representa um ponto de união de conhecimentos entre todos. Neste contexto, surge o apoio científico e a recomendação da obra pela Sociedade Portuguesa de Alcoologia, que tem lutado ao longo dos anos por manter viva a ciência alcoológica em Portugal, tentando estimular e manter vivo o espírito que levou à realização desta excelente obra.

Álcool –
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Teoria e Clínica

Palavras prévias

Faço parte de uma outra geração de psiquiatras portugueses. Em 1983, comecei a trabalhar no Hospital Júlio de Matos, com características asilares muito marcadas. A psiquiatria assistia então a uma nova era em Portugal, aprofundava-se o debate entre os clínicos, novas perspetivas eram conhecidas, a multidisciplinaridade ganhava um novo fôlego. O Serviço Nacional de Saúde (SNS), criado em 1978, dava os seus primeiros passos.

Hoje, o SNS está a ser paulatinamente desmantelado com o seu constante desinvestimento, causando uma permanente degradação da qualidade dos seus serviços. As experiências comunitárias, como a que ajudei a fundar em Odivelas, e os serviços de alcoologia foram desmantelados nos últimos 20 anos. Instaurou-se uma visão mediática de mera prevenção de saúde pública, subjugou-se a alcoologia à adictologia pública e reduziu-se o tratamento do álcool ao acompanhamento em ambulatório. O álcool foi subordinado às drogas, destruiu-se a perspetiva psiquiátrica sobre este aditivo.

Um exemplo é a abordagem à crise contemporânea da adolescência. Fetichiza-se (clínica e mediaticamente) a alcoolização e o uso e abuso de drogas sem que se aborde, seja na consulta ou na teoria, as razões que levam os jovens a consumir álcool em excesso. Nas consultas, não se fala das condições de trabalho (precariedade, baixos salários, excesso de horas de trabalho) e das suas perspetivas de futuro (dos seus medos e ansiedades), dos seus ambientes familiares, do seu crescimento mental e da sua construção de identidade.

Assim, os jovens ficam à margem dos psiquiatras e os psiquiatras à margem dos jovens. Cria-se um muro invisível que os separa. Não se criam vínculos de confiança nem transformadores da capacidade de pensar e mudanças na sua mundividência. As consultas de 15 a 20 minutos (“toma lá esta pílula para o teu problema”) provam-no bem. A medicação é essencial no exercício da psiquiatria, mas não pode ser o seu foco. No sistema público ou no privado, é o que se constata na generalidade. O psiquiatra transformou-se, muitas vezes, em simples quimiatra.

E, no que diz respeito ao sector público, é o constante reforço da conceção de os hospitais terem de ser empresas e dar obrigatoriamente lucro (ou nenhum “prejuízo”), não satisfazendo as necessidades da população. A pressão sobre os médicos para verem cada vez mais pacientes, como se estivessem num circuito de fábrica, proletarizando-os, é cada vez maior. É a isto que

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assistimos em Portugal, e a saúde mental sempre foi o parente pobre da saúde pública.

Mas esta não é a única razão para considerar que a psiquiatria recuou significativamente nas últimas duas décadas. A perspetiva das neurociências passou a dominar a psiquiatria como um todo, relegando para as margens do debate clínico as restantes perspetivas. Em suma, houve um corte entre a minha geração e as gerações que se seguiram ao nível da abordagem psiquiátrica.

O raciocínio imposto às novas gerações de psiquiatras debruça-se em demasia sobre o cérebro e as estruturas neuronais, e os seus transmissores, como agentes da vida das pessoas. É-lhes estimulado um conhecimento pseudo-objetivo sem que se tenha em conta as relações de autonomia relativa entre a mente e o cérebro num quadro específico de existência de vida. Resumindo, é-lhes incutida a visão de que a neuroquímica é a explicação totalitária e global para o devir alcoólico.

Aos novos psiquiatras não lhes é, em alternativa, estimulado a importância da filosofia, da epistemologia e da Teoria do Conhecimento, o que lhes permitiria não apenas ter uma abordagem mais ampla sobre a realidade como também sobre a relação entre o paciente e o álcool. Ou seja, o alcoolismo não está apenas no cérebro, nos genes e em simples reações químicas; está na pessoa, na sua herança biológica, nas suas dificuldades do viver mental e comportamental e nas condições societárias.

Daí que o seguimento dos pacientes com perturbação de uso de álcool (PUA) tenha de ter um espectro largo, que vai das políticas de prevenção e de saúde pública à intervenção robusta nos doentes mais pesados, o que faz com que 5% dos pacientes com PUA sejam dependentes de álcool. Um ensinamento básico, adquirido ao longo de décadas, que, se não foi esquecido, pelo menos negligenciado o foi. E, por isso, nunca é demais ressalvar o óbvio: os pacientes alcoólicos, sobretudo os dependentes de álcool, têm de ter camas e serviços disponíveis, mesmo com duração limitada. A desintoxicação antecede a desabituação.

Em 2005, a direção do Hospital Júlio de Matos nomeou-me diretor do sector A do hospital. Sabendo a importância do internamento de dependentes de álcool, rejeitando uma abordagem de apenas ambulatório ou de pura rejeição do fenómeno do alcoolismo, tudo fiz para que não faltassem camas para que os pacientes fossem internados. Por vezes, era necessário analisar-se com membros da equipa, médicos e enfermeiros, quais os pacientes que poderiam

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receber alta para outros darem entrada, numa gestão sensível de camas. A minha cultura médica, humana, cultural e social nunca permitiu a exclusão ou discriminação destes doentes da psiquiatria: não eram vulgares aditos. Ao mesmo tempo, uma das prioridades do serviço era o acompanhamento de proximidade, em contacto direto com a comunidade, com consultas semanais para alcoólicos e famílias. Além disso, fazíamos trabalho clínico em grupo com os pacientes. O trabalho em grupo é mais rico e produtivo, pois os pacientes são, simultaneamente, atores no processo de cura enquanto influenciam, com as suas intervenções, a dinâmica do grupo e, portanto, o processo de cura dos restantes pacientes. É uma dinâmica que permite estimular o pensamento criativo e de mudança ao mesmo tempo que envolve mais pacientes. Os grupos podem ser, num quadro de Área de Dia, semanais (ambulatório) ou no próprio internamento.

Anos mais tarde, o sector A recebeu um reforço de profissionais de saúde com a integração da equipa de alcoologia do Hospital Miguel Bombarda – a Unidade de Tratamento e Reabilitação Alcoológica (UTRA). Acrescentou-se um trabalho da Área de Dia e consultas, de médicos, enfermeiros e psicólogos, que se mantém até aos dias de hoje, com os seus profissionais a fazerem-no com enorme resiliência, dedicação e esforço pessoal e profissional perante uma série de fragilidades do SNS. A UTRA continua a sua prática alcoológica global há mais de três décadas.

Hoje, e por causa da não existência de serviços abertos dedicados aos pacientes dependentes de álcool, o refúgio (ou melhor, o pequeno desvio com consequências) é relacionar tudo com as neurociências aos fatores genéticos e cerebrais, relegando para segundo ou terceiro plano as vertentes relacionais, sociais e comunitárias. Os neurotransmissores são a resposta final para as dificuldades de um pensamento livre. Como disse o Professor Pedro Morgado, “a psiquiatria é fundamentalmente o exercício da liberdade”. E as políticas de saúde têm de salvaguardar o risco das tentativas de exclusão do ser humano. É por tudo isto que o livro Álcool – Teoria e Clínica , coordenado por Joana Teixeira, Teresa Mota e por mim, é tão essencial. É uma obra que quebra o silêncio que se instalou nesta área nos últimos 20 anos. Com uma visão crítica, os seus 31 jovens psiquiatras, uma nova geração com especial interesse no tratamento do alcoolismo, abordam temas como a dependência alcoólica, a epidemiologia do consumo, a história do álcool, a neuroquímica e fatores psicossociais, as tipologias e classificações clínicas, entre outros. É uma obra de fôlego que poderá ser um guião para uma nova onda da alcoologia, uma

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Palavras prévias

que nos pode dar respostas de como superar a crise do desmantelamento das unidades de tratamento e da compreensão e conflitualidade de perspetivas de saúde pública e de clínica alcoológica.

Este livro é um primeiro passo num debate que desejamos aprofundar entre os psiquiatras e todos os profissionais de saúde mental. Numa edição posterior, corrigida, aumentada e melhorada, novos temas práticos deverão ser abordados no país em que a natureza nos deu bom vinho e formas capazes de plantar cepas antigas e novas em rebeldia perante a União Europeia, tendo já um lugar no roteiro vinícola europeu e mundial. Atrevo-me a dizer que esta obra de excecional valor e única no plano editorial pode alimentar e dar novo alento à clínica alcoológica nos próximos anos.

Como o psiquiatra Franz Fanon escreveu uma vez, “o que importa não é conhecer o mundo, mas mudá-lo”. Assim seja para a psiquiatria.

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O que é a dependência alcOólica?

Violeta da Cruz Nogueira, Inês Pereira, Joana Teixeira

▪ INTRODUÇÃO

No contexto da classificação dos problemas ligados ao álcool, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera três grandes categorias: o consumo de risco, o consumo nocivo e a dependência. Em relação a sistemas de classificação, a Classificação Internacional de Doenças, 11.ª edição (CID-11)1, define “uso nocivo de álcool” e “dependência de álcool” englobados por um único diagnóstico de “Perturbações Devidas ao Uso de Álcool”. Ao contrário da edição anterior da CID, o conceito de “consumo de risco” encontra-se presente no capítulo “Fatores que Influenciam o Estado de Saúde ou Contacto com Serviços de Saúde” e não no capítulo “Perturbações Mentais, Comportamentais ou do Neurodesenvolvimento”.

No Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, 5.ª edição (DSM-5)2 , abuso e dependência de álcool correspondem aos subtipos ligeiro e moderado a grave da doença, respetivamente.

Vários conceitos têm sido usados para descrever tanto o consumo de álcool como os problemas relacionados com este consumo, evoluindo ao longo do tempo, de acordo com a conceptualização das dependências. Os mais úteis e consistentemente mais bem definidos são apresentados de seguida.

▪ CONSUMO DE RISCO

O conceito de “consumo de risco” (hazardous) foi introduzido em 1994 por Barbor et al . 3 Este termo é utilizado pela OMS pela importância que tem como conceito em Saúde Pública, não figurando no DSM-5. No entanto, foi recentemente incorporado na CID-11 no capítulo “Fatores que Influenciam o Estado de Saúde ou Contacto com Serviços de Saúde”.

Corresponde a um nível ou padrão de consumo, continuado ou ocasional, que pode vir a implicar dano físico ou mental no indivíduo se o consumo persistir.

A CID-11 define consumo de risco (hazardous alcohol use) como um padrão de uso de álcool que aumenta de forma apreciável o risco de consequências

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Capítulo 1

negativas mentais ou físicas (quer para o doente ou para os outros) de tal forma que necessita de atenção e acompanhamento por profissionais de saúde. Considera-se que este aumento de risco pode ser devido à frequência do uso de álcool ou à quantidade consumida numa dada ocasião, ou ainda devido a comportamentos de risco associados com o uso de álcool e/ou o seu contexto. O risco pode estar relacionado com efeitos a curto prazo e ainda com efeitos cumulativos a longo prazo na saúde mental e física ou a nível de funcionamento quotidiano.3 Quando o consumo tem um padrão ocasional, falamos em binge drinking. Por definição, é uma condição que não cumpre critérios de diagnóstico para perturbação de uso de álcool, apesar de ser considerado um fator de risco para a mesma.4 De realçar que a definição de “ bebida-padrão” varia internacionalmente e que, em Portugal5, a bebida-padrão é definida como uma bebida alcoólica que contém um volume de 10 g de álcool puro.

A definição da OMS6,7 de consumo de risco de álcool é a seguinte:

▪ Em mulheres, um consumo médio diário superior a 40 g de álcool;

▪ Em homens, um consumo médio diário superior a 60 g de álcool;

▪ Em padrão de binge drinking, em homens, um consumo ocasional de mais de cinco unidades (superior a 50 g de álcool) numa única ocasião;

▪ Em padrão de binge drinking, em mulheres, um consumo ocasional de quatro ou mais unidades (40 ou mais g de álcool) numa única ocasião.

A título de exemplo, um consumo superior a 40 g por dia duplica o risco de doença hepática (60% após dez anos), hipertensão arterial, neoplasias e morte violenta. Nas mulheres, o consumo superior a cerca de 20 g de etanol aumenta também o risco de doença hepática e neoplasia da mama.6

É igualmente desaconselhado o consumo de bebidas alcoólicas a menores de 18 anos, mulheres grávidas, pessoas que têm atividades de risco, ou que estão sob tratamentos com interações com o álcool, bem como o consumo de outras substâncias psicotrópicas. Considera-se como população de risco jovens, idosos, pessoas com antecedentes familiares de perturbação do uso de álcool e pessoas com doenças psiquiátricas ou não psiquiátricas coexistentes, cujo consumo de álcool constitui um fator de agravamento do prognóstico.8

A psicoeducação eficaz sobre o consumo, com recomendações claras e concisas, orientadas para a redução do mesmo, pode ser benéfica.

Álcool – Teoria e Clínica 4

epidemiOlOgia dO cOnsumO de álcOOl e O seu impactO na saúde

▪ INTRODUÇÃO

O álcool é a substância psicoativa mais consumida no mundo. O seu consumo está presente em muitas práticas culturais, religiosas e sociais e proporciona a perceção de prazer para muitos consumidores. Associa-se também ao desprazer e ao sofrimento, pelas doenças que provoca, a violência que desencadeia e as lesões que causa.1,2

O consumo de álcool está associado a mais de 200 doenças e condições de saúde, numa variabilidade que engloba doenças crónicas não transmissíveis, doenças transmissíveis e lesões (intencionais ou não).

Apesar de ser um dos principais fatores de risco evitáveis para a carga de doença, com impactos substanciais não só para os consumidores mas também para a sociedade em geral, o consumo de álcool contribui significativamente para as diferenças de mortalidade, carga de doença e esperança de vida entre países e regiões do mundo.2-4

A epidemiologia dedica-se ao estudo do consumo de álcool e das suas consequências para a saúde, procurando a melhoria da qualidade das fontes de recolha de dados e das estimativas sobre o consumo, bem como das estimativas da carga de doenças atribuíveis ao álcool, de forma a poder intervir na prevenção do consumo e no tratamento das perturbações de uso de álcool. Serve também de suporte para a definição das políticas públicas nesta área.5

▪ CONSUMO DE ÁLCOOL NO MUNDO

Em 2016, o consumo per capita de álcool puro na população mundial com 15 ou mais anos foi de 6,4 l, valor que se manteve inalterável desde 2010, após um crescimento substancial ocorrido desde 2005, quando o valor era de 5,5 l.1

Existem diferenças ao nível das regiões da Organização Mundial da Saúde (OMS) (africana, das américas, do mediterrâneo oriental, europeia,

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Capítulo 2

Álcool – Teoria e Clínica

do sudoeste da Ásia, do pacífico ocidental), com os consumos mais elevados a ocorrerem na região europeia, com 9,8 l, e os mais baixos na região do mediterrâneo oriental, com um valor de 0,6 l.1

Adicionalmente, verificam-se variações entre os países que constituem cada região, em resultado de interações complexas que incluem fatores sociodemográficos (género e idade), normas culturais e religiosas, níveis de desenvolvimento socioeconómico, prevalência das taxas de abstinentes e tipos de bebidas alcoólicas preferidas.

Apesar de o consumo de álcool ocorrer em todo o mundo, a maioria da população mundial não consome álcool. Dados de 2016 referem que 57% da população mundial com 15 ou mais anos não consumiu álcool nos 12 meses anteriores e que 44,5% nunca consumiu álcool ao longo da vida.1

Somente em três regiões da OMS o álcool é consumido por mais de metade da sua população adulta – região europeia (59,9%), região das américas (54,1%) e região do pacífico ocidental (53,8%).

O consumo de álcool nos países da União Europeia é quase o dobro do consumo mundial (6,4 l), situando-se nos 11,3 l de álcool puro per capita em adulto, compreendendo 9,9 l de álcool puro registado e 1,4 l de álcool puro não registado. Se considerarmos apenas os consumos em consumidores correntes, os valores sobem para 17,2 l, sendo de 23,8 l para o género masculino e 8,3 l para o género feminino.1,6

▪ CONSUMO DE ÁLCOOL EM PORTUGAL

Segundo as estimativas do Global Information System on Alcohol and Health para 2016, e atualizadas em 2018, em Portugal, o consumo per capita de álcool puro na população de 15 e mais anos foi de 12,3 l, representando uma diminuição face a 2010 (13,5 l). Este valor compreende o consumo de álcool registado (10,6 l) e não registado (estimado em 2,1 l). Por géneros, verifica-se que o consumo no género masculino foi de 20,5 l e no género feminino de 5,1 l.1,7,8

A população de abstinentes no ano anterior (2015) foi estimada em 30,8%, sendo 18,4% no género masculino e 41,7% no género feminino.1

O consumo per capita de álcool puro por consumidor foi estimado em 17,8 l (25,1 l no género masculino e 8,7 l no género feminino), o que corresponde a uma ingestão média diária de 38,4 g.7,8

16

Capítulo 5

tipOlOgias e classificações clínicas

▪ INTRODUÇÃO

Os critérios de diagnóstico para dependência de álcool estão bem definidos nos sistemas de classificação de doenças já desde há vários anos, podendo ser consultados os critérios atualmente em vigor na Classificação Internacional de Doenças, 11.ª edição (CID-11)1, e no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, 5.ª edição (DSM-5)2 . Apesar das diferenças na nomenclatura do diagnóstico desta patologia entre os sistemas de classificação, de uso nocivo e dependência de álcool na CID-111, e de perturbação do uso de álcool com três níveis de gravidade possíveis – ligeiro, moderado e grave – no DSM-52 , os critérios utilizados para diagnóstico das entidades clínicas são muito semelhantes entre si na CID-111 e no DSM-52 . Não obstante a elevada estabilidade dos critérios de diagnóstico nas diferentes classificações diagnósticas ao longo das décadas, a heterogeneidade das apresentações clínicas encontradas nos doentes com dependência de álcool levou a que vários autores se dedicassem ao estudo das designadas tipologias de alcoolismo e que propusessem modelos de classificação com subtipos distintos.3

O surgimento deste movimento de classificação da heterogeneidade das apresentações clínicas da dependência de álcool em tipologias, ainda no final do século xix, justifica a utilização frequente do termo “alcoolismo”, designação à data muito utilizada e que, entretanto, caiu em desuso pelo seu carácter inespecífico e pouco científico. No entanto, por ser uma designação clássica para a temática abordada neste capítulo, e que ainda hoje é utilizada quando há referência a este tema, utilizar-se-á este termo e a designação de “tipologias de alcoolismo” ao longo do capítulo quando pertinente.

O interesse dos diversos autores que se dedicaram ao estudo das tipologias e classificação foi a crença de que ao identificarem os grupos de doentes com características comuns entre si passaria a ser possível adaptar a escolha do tratamento para os diferentes grupos de doentes, adequando o tratamento ao tipo de doente, e aumentando assim a eficácia do tratamento proposto 4–8 .

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Adicionalmente, a classificação em diferentes tipologias seria também útil para perspetivar o prognóstico dos doentes.3

Existem diferentes tipos de classificação, desde as mais descritivas das apresentações clínicas, que fazem frequentemente a distinção fundamentalmente em alcoolizações agudas, episódicas ou crónicas, até às classificações em autênticas tipologias com uma descrição que pretende ser baseada num maior rigor científico.9,10

As tipologias de alcoolismo podem ser divididas, consoante os critérios utilizados pelos autores para definir os subtipos propostos, em três grandes grupos: tipologias comportamentais, tipologias multidimensionais e tipologias clínico-epidemiológicas.11

As tipologias comportamentais, também designadas de tipologias psicocomportamentais, são baseadas em critérios clínicos, comportamentais, psicopatológicos e evolutivos. As tipologias multidimensionais são baseadas na análise estatística dos dados epidemiológicos e clínicos, sugerindo a existência de clusters sindromáticos. As tipologias clínico-epidemiológicas são baseadas no estudo das comorbilidades entre perturbações mentais e alcoolismo e na sua evolução. Este tipo de classificação implica a coexistência do alcoolismo com pelo menos uma perturbação psiquiátrica, independentemente da sua natureza.

De seguida, vão ser abordadas algumas das principais tipologias de alcoolismo descritas pelos autores e os subtipos nelas propostos.

▪ TIPOLOGIAS COMPORTAMENTAIS

As tipologias comportamentais são baseadas em critérios clínicos, comportamentais, psicopatológicos e evolutivos.

O modelo clássico das tipologias comportamentais é a classificação apresentada por Jellineck em 196012 . Nesta classificação, surge, além da descrição clínica, a integração de outros fatores na classificação, representando este modelo uma transição das descrições anteriormente apresentadas, de ordem puramente clínica, para os modelos de classificação mais sofisticados resultantes de dados de investigação empírica.

Até à classificação de Jellineck, as descrições clínicas do alcoolismo faziam fundamentalmente a distinção em alcoolizações agudas, episódicas ou crónicas.9

Álcool – Teoria e Clínica 70

álcOOl , viOlência e justiça

▪ INTRODUÇÃO

Apesar da associação entre perturbação mental e violência ser controversa, os dados existentes apontam para uma maior incidência de comportamentos agressivos na população psiquiátrica face à população não doente.1 Todavia, será de salientar que a maioria dos doentes psiquiátricos não são agressivos.2 Desta forma, apenas uma parte reduzida da população doente será responsável pelos comportamentos violentos frequentemente associados aos doentes psiquiátricos. Por outro lado, a associação entre álcool e violência apresenta uma relação evidente independentemente da população, seja ela doente ou não.3 Este capítulo não pretende ser uma referência exaustiva sobre um assunto tão vasto. Pretende ser um roteiro, uma súmula ou um guia que permite ter as noções fundamentais sobre a violência, a sua relação com o álcool, e as suas implicações legais.

▪ O CONCEITO DE VIOLÊNCIA

A história da violência é paralela à história da vida sendo transversal a todas as espécies animais, inclusive a humana, dado ter vindo a constituir um mecanismo adaptativo necessário à sobrevivência, face à competição perante uma escassez de recursos.4 No entanto, com a modernização da sociedade humana e consequente eliminação desta escassez, a violência perdeu a sua dimensão adaptativa e passou a ser um importante problema económico e social mundial.5-9 A dimensão deste problema determinou que, em 1996, a 49.ª Assembleia Mundial de Saúde adotasse a resolução WHA49.25 que declarou a violência como um problema de saúde pública determinando a prioridade da sua prevenção, culminando na elaboração em 2002 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) do Relatório Mundial sobre a Violência e Saúde (RMVS). De acordo com a resolução WHA49.25, a violência pode ser definida como o “uso intencional da força física ou do poder, sob a forma de ato ou de ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou comunidade, que cause ou tenha muitas probabilidades de causar lesões,

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Capítulo 9

morte, danos psicológicos, perturbações do desenvolvimento ou privação”.10

Este conceito apresenta cinco aspetos ou características essenciais:

▪ A existência de intencionalidade;

▪ A presença de uma relação de poder assimétrica ou hierárquica de dominância entre vítima e agressor;

▪ A divisão em três grandes grupos de alvos da violência:

• Autoinfligida (que inclui o comportamento suicida e a autoagressão);

• Interpessoal (que inclui a violência familiar/entre parceiros íntimos e a violência na comunidade);

• Coletiva (que pode ser dividida em social, política e económica).

▪ A caracterização de acordo com a natureza do comportamento (que pode ser física, sexual, psicológica ou de privação/negligência);

▪ A existência de um impacto ou dano real ou potencial.

Destes aspetos, o alvo e a natureza da violência permitem a organização de uma tipologia da violência que permite visualizar melhor os padrões complexos de violência (Figura 9.1).

Álcool – Teoria e Clínica 120
Violência Interpessoal Coletiva Económica Pública Social Atos suicidas Comportamentos autolesivos Conhecidos Estranhos Parceiros íntimos Pessoas idosas Crianças Familar/Parceiros íntimos Comunidade Autodirigida Natureza da violência Física ü ü ü ü ü ü ü ü ü ü Sexual ü ü ü ü ü ü ü ü Psicológica ü ü ü ü ü ü ü ü ü ü Privação/ /Negligência ü ü ü ü ü ü ü ü ü ü
Figura 9.1 – Tipologia da violência (adaptado de Krug et al., 2002)10

Álcool – Teoria e Clínica

Violência, 119

– características de, 120

– conceito de, 119

– epidemiologia e relação com o álcool, 121

neurobiologia e relação com o álcool, 123

Volume global de álcool consumido, 17

Vulnerabilidade

– fisiológica, 92

– para adições, 92

As bebidas alcoólicas são produzidas e utilizadas pelo Homem desde a Antiguidade, mas apenas no século XIX foram reconhecidas as implicações para a saúde que decorrem do seu consumo crónico e foi descrita a dependência de álcool como entidade patológica. Álcool – Teoria e Clínica analisa o tema da dependência de álcool em várias perspetivas: como surge, o que a caracteriza, como se classi ca e como se manifesta na sua apresentação clínica. Aqui, é abordada toda a complexidade desta patologia, as suas particularidades e formas de incidência em subgrupos populacionais mais vulneráveis, bem como as estratégias terapêuticas e intervenções disponíveis para o seu tratamento.

Wernicke, encefalopatia de, Z Zoópsia, 234

Escrita por um conjunto de especialistas reconhecidos na área da Alcoologia, esta obra reúne o conhecimento teórico atualmente disponível sobre o tema, incluindo também um componente valioso de observações práticas aplicáveis na prática clínica.

É uma referência para todos os pro ssionais de saúde que pretendem aprofundar os seus conhecimentos nesta área: médicos psiquiatras, internistas, de Medicina Geral e Familiar e de outras especialidades, mas também Enfermeiros, Psicólogos, Assistentes Sociais e outros pro ssionais de saúde que trabalhem na área da Alcoologia e da Saúde Mental.

Joana Teixeira

Assistente hospitalar do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), onde é coordenadora da Unidade de Alcoologia e Novas Dependências. Assistente convidada da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL).

João Cabral Fernandes

Ex-diretor da Equipa A da Unidade de Tratamento e Reabilitação Alcoológica (UTRA) do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Psiquiatra e clínico em exercício.

Teresa Mota

Coordenação: Apoio cientí co:

Assistente graduada sénior de Psiquiatria do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), atualmente a exercer funções como diretora clínica. ISBN

240
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