Quarenta Anos de Impunidade na Guiné-Bissau

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pode servir um objectivo geral de justiça em sentido estrito ou de outros valores sociais igualmente importantes, como a reconciliação, a estabilidade política ou a paz jurídica. A origem histórica das amnistias situa-a como uma variante do direito ao perdão, isto é, uma medida de clemência individual fundamentada num direito divino exercido pelo rei. «A natureza divina do perdão estava relacionada com o carácter sagrado do rei, quer este último fosse ele próprio um deus ou um intermediário entre os deuses e os homens»13. A amnistia desenvolveu-se desde as repúblicas da Antiguidade Clássica como uma prerrogativa do Estado ou, pelo menos, como um poder social, em relação directa, por isso, com a tentativa ou a possibilidade legal de contrariar os excessos da «acusação privada». Esta evolução reflectiu portanto uma preocupação de remediar as imperfeições da lei penal. A acusação privada foi, nesse sentido, colocada em contraste com a acusação pública. «O exercício do poder amnistiante é, de facto, uma forma de reforçar o poder estadual, uma forma de demonstrar e afirmar esse mesmo poder. Esta temática constituiu sempre uma questão muito complexa para qualquer forma de Estado, em qualquer tempo e em qualquer lugar14. O aparecimento, no século XVI, de leis cujo objectivo último era a paz, deu novo ímpeto à evolução de amnistias como um meio cada vez mais usado para assegurar a paz social («tranquilidade geral e universal») e até a paz política («evitando a desordem e a insubordinação»)15. «Também no território hoje designado de Guiné-Bissau, ao observarmos o riquíssimo património costumeiro desta sociedade multicultural, encontramos algumas referências explícitas, embora com outras designações e abrangendo conteúdos estranhos ao actual sentido da figura, ao exercício deste poder ou prerrogativa de punir»16.

Transições e refundação política

E/CN.4/Sub.2/1985/16, de 21 de Junho, p.5, «A administração da Justiça e os direitos humanos dos detidos», Resolução da Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e Protecção das Minorias, Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Importa referir que este documento foi redigido por Louis Joinet, mais tarde relator dos principais documentos das Nações Unidas em matéria de luta contra a impunidade e dos princípios em que se fundamenta o essencial dos mecanismos de justiça de transição internacionalmente aceites.

13

14

FOVIAUX Jacques, La Rémission des peines et des condamnations: droit monarchique et droit moderne, Paris, Presses universitaires de France, 1970, 191 pp., p.11ss. 15

16

Conforme é visível em sucessivos documentos programáticos das Nações Unidas, a percepção das amnistias como instrumento de «salvaguarda e promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais»17 foi substituída pela condenação crescente das leis de amnistia como formas de impunidade. Em teoria, a amnistia pode facilitar uma refundação política. Na Guiné-Bissau, o recurso à amnistia tem confirmado que este mecanismo pode ser uma porta escancarada para a impunidade. O vício da autoamnistia na cúpula do Estado e das Forças Armadas tem sido um obstáculo à justiça e tem legitimado a irresponsabilização dos culpados por crimes da maior gravidade. As amnistias, e em concreto as amnistias por crimes políticos, podem servir vários objectivos, mas invariavelmente resultam de um interesse directo de quem ocupa o poder num determinado momento. Um dos efeitos pretendidos com mais frequência pelos proponentes das amnistias é a regulação de tensões, agindo de forma peródica por exemplo em datas solenes ou comemorações nacionais. Outro, em relação com esse, é a neutralização da oposição. Outro ensinamento que convém recordar ao analisar hoje as amnistias na Guiné-Bissau: «A amnistia apenas lida com os efeitos e não com as causas do desacordo nacional»18.

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CAMPOS, op.cit., p.25.

CAMPOS, op.cit., p.26.

17 E/CN.4/Sub.2/ RES/1983/34, de 6 de Setembro, que precedeu e originou o documento E/CN.4/Sub.2/1985/16, referido supra).

E/CN.4/Sub.2/1985/16, p.22.

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