Quarenta Anos de Impunidade na Guiné-Bissau

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GUINÉ-BISSAU: 40 ANOS DE IMPUNIDADE

LGDH Liga Guineense dos Direitos Humanos




Ficha Técnica Coordenação e Redacção Pedro Rosa Mendes Colaboração Augusto Mário da Silva Bubacar Turé Luís Vaz Martins Yasmine Cabral Fátima Proença Entrevistadores Eusébio Rasul Carlos Pedreira Edmundo Antero Luís Alfama Hernesto Higino Correia Lesmes Monteiro Umaru Camara Criação gráfica Ana Filipa Oliveira Ilustração da capa Henrique Cayatte Impressão Guide, Artes Gráficas Edição LGDH / 2013 Agradecimentos A Liga Guineense dos Direitos Humanos agradece a todos aqueles que aceitaram partilhar no âmbito deste estudo sobre a impunidade as suas reflexões sobre um tema que implica directamente as suas emoções e memórias pessoais - incluindo as menos felizes e as mais dolorosas. Projecto “Impunidade, injustiça, insegurança – violações intoleráveis dos Direitos Humanos”, iniciativa da LGDH – Liga Guineense de Direitos Humanos, em associação com a ACEP – Associação para a Cooperação Entre os Povos Financiamento UE – União Europeia | Programa de Apoio aos Actores Não Estatais, LGDH, ACEP Esta publicação foi realizada com o apoio financeiro da União Europeia (UE). O seu conteúdo é da exclusiva responsabilidade da LGDH e não pode, em caso nenhum, ser considerado como reflectindo a posição oficial da UE.


Quarenta anos de Impunidade na GuinĂŠ-Bissau


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O ESTUDO 9 INTRODUÇÃO

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PARTE II. Causas e tipologia da impunidade na guiné-bissau 34 Um Estado em risco

10 TERMOS DE REFERÊNCIA

Impunidade, elemento de fragilidade

12 SUMÁRIO EXECUTIVO

Uma sociedade sem regras

15 SOMMAIRE EXÉCUTIF 18 EXECUTIVE SUMMARY

Guiné traída, Guiné adiada 14 de Novembro e a impunidade de Estado Impunidade como privilégio «Militares» vs. «políticos» O papel dos civis Os casos sempre em aberto

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PARTE I. AS MUITAS FACES DA IMPUNIDADE

A «morte do Estado»?

45 Sector da Segurança: a desordem pública A impunidade armada

25 DEFINIÇÃO, GENEALOGIA

O fracasso das reformas

26 UMA TIPOLOGIA ALARGADA

50 O disfuncionamento do sector judicial

27 VERDADE, MEMÓRIA, REPARAÇÃO

Paz armada e segurança privada

Um sistema de «outros poderes»

Os Princípios de Joinet/Orentlicher

A perda do poder dissuasor

28 CORRUPÇÃO, UM ATAQUE A DIREITOS FUNDAMENTAIS

Justiça e militares

A «lacuna de impunidade»

Ordem jurídica colonial

Usar mecanismos, estabelecer precedentes

A teimosia da amnistia geral

28 Amnistias: «esquecer» para repetir

O justiciamento pela polícia As infraestruturas

58 GÉNERO, IDADE, FRAGILIDADE A casa, local de agressão

Um instrumento controverso

Violação e casamento forçado

Transições e refundação política

Mutilação genital: mais grave, mais cedo


Crianças entre violência e crueldade

63 O RESSURGIMENTO DO PODER TRADICIONAL A substituição do Estado Continuidade de autoridade Djokraenda e «leis» paralelas

77 O CONGRESSO DE CASSACÁ 79 A PRIMEIRA MORTE DE CABRAL 80 RADICALIZAÇÃO E REPRESSÃO APÓS A INDEPENDÊNCIA

«Adulteração» da base cultural

82 1980: A SEGUNDA MORTE DE amílcar

67 A ETNICIZAÇÃO DOS CONFLITOS sociais

84 17 DE OUTUBRO DE 1985: «FOMOS TODOS TORTURADOS»

Regressão por tribalização

85 17 DE MARÇO DE 1993: INVENTONA CONTRA A OPOSIÇÃO

O irã cego

68 DA MÁ GESTÃO AOS CRIMES ECONÓMICOS Cultural patrimonial na gestão pública Inoperância do Tribunal de Contas Narcotráfico na cúpula do Estado A erosão do património simbólico

72 O ASSALTO AOS RECURSOS NATURAIS Desmatação a grande ritmo

86 7 DE JUNHO: TRÁFICO, DESAGREGAÇÃO E GUERRA 87 O VÍCIO DA AUTOAMNISTIA 88 PÓS-1999: UM PAÍS EM DESMANTELAMENTO 89 2009: ASSASSÍNIOS NA CÚPULA DO ESTADO 91 UM ANO DE DITADURA MILITAR

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PARTE III. O PESO DA HISTÓRIA LONGA 75 ESCRAVATURA E COLONIALISMO 76 PIDJIGUITI, O MASSACRE DOS GREVISTAS 77 UNIDADE E LUTA

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PARTE IV. CONCLUSÃO: QUARENTA ANOS A MATAR CABRAL



o ESTUDO: CONTEXTO, CONTEÚDO E PROCESSO

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Introdução A Guiné-Bissau enfrenta em 2013 um dos maiores desafios da sua história como nação independente: a criação de condições de regresso à normalidade constitucional como ponto de inversão de uma tendência de destruição e alienação do Estado, que se acentuou e acelerou claramente desde o golpe de Abril de 2012. O momento – sabem-no todos os guineenses – é da maior gravidade. Ou recuperamos, colectivamente, um sentido mínimo do Estado de Direito, para enfrentar os grandes desafios da reconciliação, do desenvolvimento e da realização dos direitos humanos que temos pela frente. Ou continuaremos no caminho actual e em breve atingiremos o ponto de não retorno na substituição do Estado por interesses e grupos privados e por lógicas abusivas e criminosas, num território onde a única regra será a lei do mais forte. Nunca, como agora, o nosso país enfrentou a conjugação de factores que hoje ameaçam a própria existência da República da Guiné-Bissau enquanto projecto colectivo soberano, com alicerces na justiça e na liberdade ao serviço de uma ideia de dignidade do indivíduo e da nossa Nação – pois lutámos também «para mostrar à face do mundo que somos gente com dignidade». Sabemos todos, também - sabemo-lo na carne e na memória dos vivos -, que a construção de uma sociedade livre e justa, sendo um caminho de sacrifícios e obstáculos, é ainda assim uma tarefa menos ingrata do que a reconstrução de uma sociedade sem estruturas, sem paz e sem recursos. Dos sonhos muito se pode esperar; das cinzas pouco se pode conseguir. A Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH) acredita que os valores do Estado de Direito são uma das condições para a realização do projecto de uma sociedade justa para todos. É também convicção da Liga, por outro lado, que a violação sistemática dos direitos fundamentais dos guineenses, ao longo de quase meio século, minou progressivamente aquilo que, enquanto sociedade, obtivemos após uma longa guerra de libertação. A nossa história como país independente é, também, uma história de impunidade. No seguimento de um trabalho de duas décadas em defesa dos Direitos Humanos, a LGDH considerou que as respostas à situação a que o País chegou exigem um melhor conhecimento do fenómeno da impunidade, em toda a sua extensão e complexidade.

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Lançámos, por isso, a ideia de um trabalho aprofundado sobre este tema, que incluiu a realização de um estudo sobre as causas e a tipologia da impunidade na Guiné-Bissau e que terá outras iniciativas consequentes. A oportunidade da sua realização criámo-la com a apresentação de uma proposta, em colaboração com a Associação para a Cooperação Entre os Povos (ACEP), de um conjunto de iniciativas sobre impunidade, para financiamento pelo Programa de Apoio aos Actores Não Estatais da União Europeia, em 2011, proposta que veio a ser aprovada em 2012. O presente relatório é assim um dos resultados do processo de estudo sobre aquele tema, que incluiu um inquériro a um conjunto representativo de pessoas realizado nos primeiros meses de 2013. O documento que se segue não é a versão integral do trabalho realizado, já que prioriza os resultados do trabalho de terreno realizado no país. A totalidade do relatório, inclui um corpo bastante mais aprofundado de pesquisa sobre conceitos e normativos internacionais, uma descrição dos termos de referência de partida e também uma descrição do processo de preparação e de concretização do estudo, bem como um conjunto de anexos pertinentes. Este relatório integral encontra-se disponível para consulta no sítio da Liga. O relatório revela, por um lado, um leque significativo de opiniões sobre o fenómeno da impunidade e, por outro, abre o debate sobre as formas de ultrapassar a crise grave em que o País mergulhou. A Guiné-Bissau que temos hoje não é – como concluiu este estudo – o país que queremos. Não se chega à realidade actual de um dia nem de um ano para o outro. Também a impunidade se foi consolidando ao longo de muito tempo e chegou a altura de enfrentar o problema analisando-o de uma forma abrangente e não apenas à luz do mais recente incidente político. O estudo sobre a impunidade espera corresponder à intenção que norteou o trabalho no terreno: ser uma contribuição positiva para a discussão do futuro da Guiné-Bissau, num momento crucial da nossa existência como nação independente

Termos de referência A realização deste inquérito pela LGDH insere-se num programa mais alargado de iniciativas dedicadas à impunidade, injustiça e insegurança abordadas na perspectiva das violações intoleráveis dos Direitos Humanos. O programa intervém em domínios centrais da promoção da boa governação e do reforço do Estado de direito – os domínios da luta contra a impunidade, da promoção dos valores da justiça e igualdade perante a lei e do dever do Estado de criação de condições de protecção dos cidadãos e do reconhecimento pró-activo do seu direito à segurança humana nas suas múltiplas dimensões. Esta intervenção assenta na promoção da participação co-responsável das Organizações da Sociedade Civil guineense activas no domínio dos Direitos Humanos, em diálogo e colaboração com as outras instituições concernentes ao nível nacional e também a nível internacional. Pretende contribuir para a edificação de um modelo de Estado que tem o dever de proteger e de fazer cumprir a lei, que previne violações, garante o acesso à justiça e obriga os responsáveis a prestar contas. Pretendemos nesta fase realizar uma intervenção que sensibilize os recursos humanos e institucionais existentes, reforce capacidades, articule complementaridades numa cultura de co-responsabilização, para a mudança de mentalidades e para a consciência

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da necessidade de criação de condições de garantia do exercício e do direito à justiça. Num quadro de anormalidade constitucional como a que o País vive, precisamos construir instrumentos que permitam uma melhor compreensão das raízes dos problemas, aproveitar as bases de legalidade existentes, reforçar redes internas e suas capacidades e buscar as solidariedades necessárias e as boas práticas existentes no país. Esta inter-venção norteia-se também por uma intenção de reforçar o diálogo e a articulação entre instituições nacionais e internacionais, cruzando perspectivas, identificando boas prácticas disponíveis no contexto sub-regional ou continental e tornando-as acessíveis internamente ao país. A realização do estudo incluiu uma fase inicial de concepção da metodologia, formação de entrevistadores para realização de entrevistas em todas as regiões da Guiné-Bissau e a diversos informantes privilegiados, elaboração do guião de entrevistas e de critérios de selecção dos entrevistados. Esta primeira fase envolveu uma equipa da LGDH, um responsável da ACEP e um consultor externo. Os critérios determinantes para a escolha do consultor externo foram o domínio cumulativo das técnicas de entrevista jornalística e da recolha e análise de informação, das metodologias de trabalho de campo e de pesquisa em ciências sociais, conjugados com um conhecimento directo da realidade guineense ao longo de duas décadas. Trabalhou-se, nomeadamente, as técnicas de entrevista, tendo em atenção o carácter especial de um inquérito em direitos humanos, abordando questões como as regras de confidencialidade e os problemas e desafios da interacção entre o entrevistador e potenciais interlocutores vítimas de diferentes formas de violência. Insistiu-se especialmente na diferença entre a entrevista biográfica e a entrevista temática, articulando os percursos individuais e as experiências de um grupo ou de uma comunidade alargada. A formação incluiu a execução das primeiras entrevistas experimentais pelo grupo da LGDH, testando os formatos e seguindo um guião bastante rígido. Os entrevistadores puderam também relacionar a escolha do modelo da entrevista individual com diferentes mecanismos de memória histórica, de processos de diálogo e de missões de investigação. A utilização da entrevista foi também enquadrada em modelos e padrões de comissões internacionais de inquérito e de instituições do tipo das comissões de verdade, que poderão ser pertinentes em acções futuras da LGDH. A preparação dos entrevistadores norteou-se por uma ideia – com relevância conceptual mas também metodológica – de que cada entrevista seria, como o foi, uma auscultação de um fragmento da experiência colectiva de impunidade. Neste sentido, o inquérito reflectiu a procura do «arquivo na testemunha»i. A realização de entrevistas individuais, feitas numa base de estrita confidencialidade, foi escolhida como a que melhor poderia corresponder à necessidade de obter um panorama completo sobre as raízes da impunidade na Guiné-Bissau e sobre as múltiplas formas de que se tem revestido o fenómeno. Cada pessoa entrevistada foi escolhida pela sua representatividade social, ideológica, de género, económica, profissional, religiosa, étnica, etc., de forma a poder captar, em cada indivíduo entrevistado, a visão de um grupo alargado e uniforme no seio da sociedade guineense. A elaboração da lista de entrevistados obedeceu a uma necessidade de coerência do conjunto, em termos de obter um resultado que não operasse apenas como soma de opiniões isoladas. A soma de cerca de meia centena de entrevistas resulta, nesse sentido, num corpus orgânico de vozes de onde emerge uma voz densa, uma voz possível da sociedade guineense.

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i RIAÑO-ALCALÁ Pilar e BAINES Erin, «The archive in the witness: Documentation in settings of chronic insecurity», International Journal of Transitional Justice, 2011, pp. 1-22.


Sumário executivo O estudo sobre a impunidade na Guiné-Bissau revela um consenso sobre o momento dramático em que o país se encontra, resumindo-se na ideia de que «estamos em risco» e de que «o Estado morreu». A definição de impunidade é formulada de diferentes maneiras por interlocutores com diferentes níveis de formação, diferentes alinhamentos políticos, contextos étnicos diversos e experiências de vida que são singulares mas, em substância, é identificada por todos como a falta de sanção para a violação de uma regra de vida em sociedade. É consensual a constatação de que a sociedade guineense é vítima de uma impunidade de Estado – pela ausência deste – e que as diferentes manifestações da impunidade decorrem, em primeiro lugar, da fragilidade das instituições do Estado, que deixou de assegurar funções de soberania como a justiça e a segurança. O Estado já não cumpre a sua responsabilidade de defender os direitos fundamentais dos cidadãos, incluindo o mais elementar – o direito à vida. Na Parte I da versão integral do relatório, recordamos o processo de consolidação de uma jurisprudência internacional em resposta a violações graves de direitos humanos que têm em comum resultarem de processos violentos. O relatório passa em revista os documentos de referência existentes de luta contra a impunidade e relaciona o actual contexto guineense com os mecanismos disponíveis para enfrentar «o desafio formidável» que constitui o restabelecimento do Estado de Direito em países em transição de uma situação «de conflito generalizado ou de um regime repressivo». A pertinência deste quadro de referência no actual momento da Guiné-Bissau é reforçada por se constatar que o país corresponde a um «contexto de colapso institucional, exaustão de recursos, segurança reduzida e uma população angustiada e dividida»,num contexto de pauperização económica e social que em si mesmos manifestam outras formas de violência e agressão.. Uma atenção demorada é dedicada aos Princípios de Joinet/Orentlicher e à evolução de regras de direito e jurisprudência que estabelecem a responsabilidade dos Estados no que respeita a violações graves de direitos humanos internacionais e de direito humanitário e que define a noção de «vítima». Recorda-se também que a confiança e responsabilização na sociedade implica a necessidade de reconhecer publicamente os abusos ocorridos, de responsabilizar aqueles que planearam, ordenaram e cometeram tais violações e de reabilitar ou compensar as vítimas. Ainda na Parte I, articula-se o padrão de violência na Guiné-Bissau com os Princípios Básicos e Regras para compensação das vítimas de violações graves de direitos humanos, aprovados pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2005. São quatro as áreas cruciais de intervenção, abordadas em pormenor pelo relatório: o direito de saber, o direito à justiça, o direito de compensação e as garantias de não repetição. Recorda-se também que «cada povo tem o direito inalienável a conhecer a verdade sobre acontecimentos passados relativos à perpetuação de acontecimentos odiosos, assim como sobre as circunstâncias e as razões que conduziram» à continuação desses crimes. Por outro lado, sublinha-se, como já foi referido, a responsabilidade principal na luta contra a impunidade: «Os Estados devem realizar rapidamente investigações aprofundadas, independentes e imparciais sobre as violações de direitos humanos e do direito internacional humanitário e tomar medidas adequadas em relação aos seus autores, nomeadamente no campo da justiça penal». O Estado guineense não cumpre as suas obrigações mínimas nesta área.

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A Parte II trata das causas e tipologia da impunidade na Guiné-Bissau, a partir da noção alargada de manifestações de impunidade adoptada no inquérito. As respostas obtidas a mais de meia centena de pessoas, criteriosamente escolhidas, são analisadas e sistematizadas de forma a obter um retrato fiável da complexidade do problema. Primeira conclusão: a impunidade é causa e consequência da fragilidade do Estado. A impunidade é também um sistema de estratificação social, entre os que podem cometer crimes sem pagar por isso e «os outros», o cidadão normal, sem acesso a algum tipo de privilégio político ou económico que compra a impunidade. Impunidade é poder e poder oferece impunidade. As Forças Armadas surgem claramente como o cerne do fenómeno da impunidade. Por definição, a impunidade dos militares é uma impunidade armada, o que explica a dimensão das suas manifestações. O relatório assinala também uma banalização da política como factor determinante da relação nefasta entre militares e políticos. Uma constatação é que as Forças Armadas deixaram progressivamente de ser um exército republicano, sendo hoje um corpo heterogéneo de clientelas, a que se tornou permeável aos crimes organizados, em particular ao ingrediente do narcotráfico que multiplicou a volatilidade da instituição. A falta de independência dos agentes judiciais – por receios de segurança pessoal dos magistrados ou porque o próprio sector não é imune à corrupção de todo o aparelho de Estado – é denunciada com pormenores inquietantes. A fragilidade do sector judicial, acentuada por falta de recursos e de estruturas, é apontada como um dos problemas mais graves. A fragilidade do sistema de justiça facilita em certa medida a perpetuação de impunidade. Outro dado preocupante revelado pelo estudo é a extensão da substituição das funções de soberania por outros agentes à margem do, e por vezes contra o, Estado. A inoperância da Polícia deixa o terreno livre a milícias privadas e grupos de vigilantes comunitários que se multiplicam pelo país. Por sua vez, é a Polícia que, em muitas regiões, assegura o exercício quotidiano da justiça, recorrendo se necessário for aos colaboradores em função das necessidade locais a margem dos critérios normais de admissão do pessoal de segurança. As Forças Armadas, neste cenário, exercem uma capital sobre ambos (Polícia e Sistema Judicial). O vazio de Estado, em expansão acelerada tanto a nível estrutural como a nível territorial, é ocupado também por formas questionáveis de autoridade «tradicional», que ressurgem onde o antigo partido único julgava tê-las abolido. Esta invasão do terreno do Estado é visível na aplicação da justiça, por exemplo com mecanismos como o irã cego e o djokraenda, mas também ganha terreno nas funções de administração territorial. O livre arbítrio e o carácter não democrático destas formas «tradicionais» de autoridade são analisados de diferentes perspectivas no relatório. O inquérito produziu elementos que indiciam motivos de preocupação quanto à etnicização de conflitos sociais. Há também elementos que relacionam a emeregência do elemento étnico com problemas já abordados de surgimento de sistemas privados ou comunitários de segurança e de «policiamento». A situação é preocupante porque – outro dado do inquérito – o tipo de incidentes frequentes em zonas mais voláteis confirma a existência de grande número de armas, incluindo de guerra, na mão das populações. A violência contra as mulheres é outro motivo de preocupação, constatando-se que o espaço doméstico e familiar continua a ser aquele onde, paradoxalmente, acontecem as maiores agressões. O casamento precoce e a violência sexual são apontados como fenó-

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menos recorrentes. A questão da mutilação genital feminina é também indicada como um problema a merecer atenção urgente: o êxito das campanhas contra a excisão feminina teve, paralelamente, como efeito perverso, como consequência a generalização dessa agressão a meninas cada vez mais novas, muitas ainda na primeira infância. A Parte II descreve também como os crimes económicos e financeiros foram uma das formas mais persistentes e lesivas de impunidade ao longo de décadas. Os entrevistados articulam este tipo de crime com as condições para a instalação mais recente na Guiné-Bissau das redes internacionais de narcotráfico que operam hoje em total impunidade: a situação atingiu o ponto que se conhece porque as lideranças militares e a cúpula hierárquica do Estado é conivente e parte integrante do narcotráfico, elevando para um patamar mais perigoso o problema da criminalidade económica. Por último, nesta tipificação da impunidade, o relatório aborda casos de crimes ambientais, relacionados com a exploração desregrada e ilegal dos recursos florestais, minerais e haliêuticos da Guiné-Bissau. A Parte III do relatório oferece um panorama histórico da impunidade na Guiné-Bissau, articulando a informação obtida nas entrevistas feitas pela LGDH, em primeiro lugar das percepções sobre o fenómeno, com elementos disponíveis numa vasta bibliografia sobre a luta de libertação e o pós-independência. A Parte III corresponde, assim, a uma linha do tempo do fenómeno da impunidade, recuando à herança do regime colonial e da escravatura mas concentrando-se no meio século posterior ao lançamento da guerra pelo PAIGC de Cabral e nas formas de violência das forças de resistência e libertação. Ficam em evidência as raízes longas da impunidade, relacionadas com a própria natureza de um movimento armado e de uma situação de conflito militar. O Congresso de Cassacá e o assassínio de Amílcar Cabral são momentos marcantes de uma história de impunidade. A eliminação dos Comandos Africanos e de outros opositores ao regime, após 1974, aparece, contudo, como a primeira oportunidade perdida de construir o Estado de Direito, mesmo numa situação de partido único, inaugurando, a bem do projecto nacional, uma longa lista de eliminações extra-judiciais. Duas datas são, no entanto, fixadas como momentos cruciais na vitória da impunidade sobre o Estado. Uma é o golpe do 14 de Novembro de 1980, liderado por João Bernardo «Nino» Vieira, que abriu o precedente da conquista do poder por meios não democráticos e a usurpação dos destinos do país pelo Estado-Maior – até hoje. A outra é o 7 de Junho de 1998, um acontecimento que neste relatório é reavaliado como aquilo que foi – um golpe de estado que desencadeou uma guerra civil mortífera e que não produziu nenhum dos suposos resultados prometidos pela Junta Militar. A Parte III termina com a análise de uma década pós-guerra, de políticas caóticas, de empobrecimento da população, de disputas violentas no seio do poder e de decadência de todas as instituições do Estado, em paralelo com o aumento da violência política e a entrada em jogo do narcotráfico internacional. Em conclusão, o relatório dá conta das três notas marcantes: desespero, cansaço e, apesar de tudo, esperança em que o tremendo problema em que a Guiné-Bissau mergulhou não seja um ponto de chegada mas um obstáculo mais a ultrapassar. A ideia de uma refundação do projecto de Amílcar Cabral, isto é, a construção de um estado novo alicerçado nos valores da paz, democracia e dignidade da pessoa humana, emerge como a única verdadeira saída para o apoucamento que constitui, para os guineenses, o presente da Guiné-Bissau.

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Sommaire Exécutif Le rapport sur l’impunité en Guinée-Bissau révèle un consensus sur le moment dramatique dans lequel se trouve le pays et qu’on peut résumer dans l’idée que “nous sommes en danger” et que ”l’État est mort”. La définition d’impunité est articulée de différentes façons par des interlocuteurs avec divers niveaux de formation, différents alignements politiques, divers contextes ethniques et avec des éxpériences de vie qui sont particulières. En substance, de toute façon, l’impunité est identifiée par tous comme l´absence de sanction et la violation d´une règle de vie en société. C’est consensuel aussi la constatation que la société bissau-guinéenne est elle-même victime de l’impunité de l’État, lequel n’a pas garanti les fonctions de souveraineté aussi bien que la justice et la sécurité. L’État n’accompli plus sa responsabilité de défendre les droits fondamentaux des citoyens y inclus le plus élémentaire – le droit à la vie. Dans la Partie I de la version intégrale du rapport, en ce qui concerne la définition de l’impunité, nous rappelons le procès de consolidation d’une jurisprudence internationale entant que réponse à des graves violations des droits de l’homme qui ont en commun le fait d’être le résultat de processus violents. Le rapport fait l’état des lieux des documents de référence dans la lutte contre l’impunité et analyse le contexte actuel en Guinée-Bissau en articulation avec les mécanismes disponibles pour répondre au “défi formidable” du rétablissement de l’État de Droit dans des pays en transition d’une situation “de conflit répandu où bien d’un régime répressif”. La pertinence d´un cadre de référence comme celui là, dans la situation actuel en Guinée-Bissau, est renforcée par la constatation de que le pays est dans un “contexte de collapsus institutionnel, épuisement de ressources, conditions de sécurité réduite et une population en état d´angoisse et désunie», dans un cadre de paupérisation économique et sociale, qui sont, eux-mêmes, manifestations d´autres formes de violence et d´agression. Une attention toute spéciale est dédiée aux Principes de Joinet/Orentlicher et à l’évolution des normes de droit et de jurisprudence qui établissent la responsabilité des États en ce qui concerne les violations graves des droits de l’homme et du droit humanitaire et qui définissent la notion de “victime”. On rappelle aussi que la confiance et la résponsabilization en société engagent le besoin de reconnaitre publiquement les abus et violations commis, de rendre responsables ceux qui les ont préparés, ordonnés et accomplit, et finalement, de réhabiliter ou récompenser les victimes. Encore, en Partie I, nous faisons l´articulation du modèle de violence en Guinée-Bissau avec les Principes de Base et les Règles pour récompenser les victimes des violations graves des droits humains, approuvés par l’Assemblée Général des Nations Unies, en 2005. Les thèmes cruciaux d’intervention, évoqués dans ce rapport, sont quatre le droit de savoir, le droit à la justice, le droit à réparation et les garanties de non-renouvellement des violations. On nous fait aussi remarquer que «chaque peuple a le droit inaliénable de connaître la vérité sur les événements passés relatifs à la perpétration de crimes odieux, ainsi que sur les circonstances et les raisons qui ont conduit, par la violation massive ou systématique des droits de l’homme, à la perpétration de ces crimes». Tout de même on signale, comme on a déjà fait mention, la responsabilité principal de la lutte contre l’impunité: les

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États «doivent mener rapidement des enquêtes approfondies, indépendantes et impartiales sur les violations des droits de l’homme et du droit international humanitaire et prendre des mesures adéquates à l’égard de leurs auteurs, notamment dans le domaine de la justice pénale». L’État en Guinée-Bissau n’accompli pas du tout ses obligations à ce sujet. La Partie II du rapport nous renvoie vers les causes et la typologie sur l’impunité en Guinée-Bissau d’après la notion élargie des manifestations de l’impunité adoptées dans l’enquête. Les réponses de plus d’une cinquantaine de personnes soigneusement choisies sont analysées et systématisées à fin d’obtenir un portrait fiable de la complexité du problème. Première conclusion : l’impunité est cause et conséquence de la fragilité de l’État en Guinée-Bissau. L’impunité est aussi un système de stratification social, entre ceux qui peuvent commettre des crimes sans répondre ou subir aucune sanction et «les autres», le citoyen ordinaire, sans accès à aucun type de privilège politique et économique pour acheter l’impunité. L’impunité c’est le pouvoir et le pouvoir offre l’impunité. Les Forces Armées émergent, en ce sens, comme le cerne de l’impunité, dans la mesure où le pouvoir politique est soumis au pouvoir militaire au même temps que la classe politique s’en sert des militaires – comme par ailleurs c’est le cas de toute la société bissau-guinéenne, d’après les réponses obtenus dans cette enquête. Par définition, l’impunité des militaires est une impunité armée, ce qui explique la dimension de ses manifestations. Le rapport explique aussi comment la banalisation politique est un facteur déterminant de cette relation néfaste entre militaires et classe politique. C’est une constatation largement partagée que les Forces Armées ont cessé d’être progressivement une armée républicaine, pour devenir à nos jours une amalgame de clientèles hétérogènes. Le phénomène du narcotrafic a multiplié la volatilité de l’institution militaire. Le manque d’indépendance des acteurs judiciaires - par des craintes de sécurité personnelle des magistrats où parce que le secteur de la justice est aussi touché par la corruption de tout l’appareil de l’État – est dénoncée dans ce rapport avec des signes inquiétants. La fragilité du secteur judiciaire est soulignée par la pauvreté de structures e la pénurie de ressources. Elle est citée comme un des problèmes les plus graves exigeant une réponse urgente, D’une certaine façon, la fragilité du secteur de la justice ne fait que nourrir et perpétuer l’impunité. L’étude sur l’impunité nous révèle aussi une donnée dérangeante, à savoir, l’extension de la substitution de l’État dans ses fonctions de souveraineté par des agents autres, en marge de, au même contre l’État. L’inefficacité de la police, en autre, laisse faire à des milices privées et à des groupes vigilants communautaires qui prolifèrent un peu partout. Dans plusieurs régions, c’est la Police qui assure l’exercice quotidien de la justice, puisque le système judiciaire est absent ou est devenu obsolète, car il n’est pas respecté ou recherché par les citoyens. Dans ce cadre, les Forces Armées exercent une tutelle officieuse sur la police et le système judiciaire. L’absence de l’État, en expansion accéléré tant au niveau structurelle comme au niveau territorial, est remplacé par des formes douteuses d’autorité «traditionnelle», là où l’ancien Parti unique pensait les avoir éradiquées. Cette invasion du champ de l’État est plus nette dans ce qui concerne l’application de la justice, notamment avec des institutions coutumières comme l’irã cego («le génie aveugle») et le djokraenda. Ce type d’autorité traditionnelle gagne aussi du terrain par rapport aux fonctions

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d’administration du territoire. Le côté de libre-arbitre et le caractère non-démocratique de telles formes «traditionnelles» de pouvoir et autorité sont analysés dans ce rapport. L’enquête nous rend compte des éléments effrayants autour des conflits sociaux parmi les diverses ethnies. Le vol du bétail, notamment, peut dégénérer en «guerre tribale» en plusieurs régions. Il y en a aussi des éléments qui rapportent l’occurrence du facteur ethnique avec l’émergence des systèmes privés ou communautaires de sécurité et de «surveillance». Les interlocuteurs font état aussi d’une situation bien inquiétante concernant le type d’incidents habituels en situations de grande volatilité : la prolifération d’armes, voire d’armement lourd, entre la population. Un autre motif de souci est la violence envers les femmes, constatant que c’est dans les ménages et en milieu familiale que les grandes agressions ont lieu. Le mariage précoce et la violence sexuelle sont repérés comme des phénomènes récurrents. La question de la mutilation génitale féminine est aussi cité comme un problème qui demande une réponse urgente : le succès des croisades contre l’excision féminine a eût en revanche et comme conséquence perverse la généralisation de cette agression à des filles très jeunes, encore même dans la première enfance. En Partie II on décrit comment les crimes économiques et financiers, tout au long de quatre décennies, ont constitué les formes les plus persistantes et plus nuisibles de l’impunité. Ceux qui ont répondu à l’enquête confirment l’articulation de ce type de crime avec les conditions pour l’installation plus récent des réseaux internationaux de narcotrafic en Guinée-Bissau, qui y opèrent aujourd’hui à l’abri d’une grande impunité. La situation est arrivé à ce point parce que les chefs militaires et la hiérarchie de l’administration de l’État sont connivents et font part entière du narcotrafic, soulevant à un palier plus dangereux le problème de la criminalité économique. En face de cette caractéristique de l’impunité, le rapport touche à des situations de criminalité environnementale, en relation avec l’exploration désordonnée et illégale des ressources forestiers, minéraux et halieutiques de la Guinée-Bissau. La Partie III du rapport contient un tableau historique de l’impunité en Guinée-Bissau, articulant l’information obtenue dans les propos recueillis par la LGDH, d’abord sur les perceptions du phénomène, avec des éléments disponibles dans une vaste bibliographie sur la lutte de libération et la période de l’après-indépendance. La Partie III correspond en ce sens à une ligne du temps de l’impunité, prenant compte de l’héritage du régime colonial et de l’esclavage pour se concentrer sur le demi-siècle après le début de la guerre du PAIGC d’Amílcar Cabral et sur ses formes de violence, de résistance et de libération. Les longues racines de l’impunité sont mises en évidence, notamment dans le fait qu’elles ont aussi origine dans la nature même d’un mouvement armé et dans une situation de conflit militaire. Le Congrès de Cassacá et l’assassinat d’Amílcar Cabral sont des moments remarquables de l’histoire de l’impunité en Guinée-Bissau. L’élimination des Commandos Africains et des autres opposants au régime du PAIGC, après 1974, a été effectivement une opportunité unique et perdue de construire un État de Droit, quoique en situation de parti unique, instaurant, au nom du projet national, une longue liste d’éliminations extra-judiciaires. Néanmoins, deux événements font date dans l’histoire de l’impunité de l’État. Le premier, le coup du 14 de Novembre de 1980, dirigé par João Bernardo «Nino» Vieira, qui a établi le précédent de la conquête du pouvoir par des moyens non-démocratiques et l’usurpation de la direction du Pays par l‘État-Major - jusqu’à présent. L’autre, le 7

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Juin de 1998, un évènement qui est réévalué dans ce rapport pour analyser ce qu’il a été en réalité : un coup d’État qui a déclenché une guerre civil meurtrière et qui n’a pas produit aucun des résultats souhaités et promis para la Junta Militaire. En Partie III, on analyse aussi la décennie du pos-guerre, avec ses politiques chaotiques, l’appauvrissement de la population, des disputes acharnées au sein du pouvoir et la décadence de toutes les institutions de l’État, en ligne avec l’accroissement de la violence et de la mise en jeu du narcotrafic international. En conclusion, le rapport fait état des trois repères les plus significatifs de l’enquête: le désespoir, l’épuisement et, malgré tout, l’espoir que la crise profonde dans laquelle se trouve la Guinée-Bissau ne soit pas un point d’arrivé, mais plutôt un nouveau obstacle qu’il faut vaincre. L’idée d’Amílcar Cabral d’un projet de transformation profonde ressort donc comme la seule et la vraie issue, en ce moment vraiment angoissant qui vivent les gens de la Guinée-Bissau.

Executive Summary The report on impunity in Guinea-Bissau reveals a wide consensus about the critical situation of the country. This grievous moment is well rendered by the idea that «we are at risk» and that «the State has died». The definition of impunity is articulated in different ways by different people with different educational and cultural backgrounds, from diverse political constituencies and ethnic affiliations and particular experiences in life. Nonetheless, the underlying concept of impunity refers to the absence of sanction for a crime or an offense to the established norms that rule our society. It is widely accepted the notion that Guinea-Bissau is prey to State impunity – rooted in the very absence of the State – and that the different forms of impunity originate, in the first place, in the fragility of the State institutions. The State no longer fulfills several core functions of sovereignty, including those of justice and security. The State has also failed its responsibility to protect the most fundamental human rights, including the right to life. In Part I of the report, on the definition of impunity, we recall the process leading to the consolidation of an international jurisprudence in response to serious violations of human rights with a common origin in violent events. The report reviews the key reference documents of the fight against impunity and articulates these standards and guidance with the present situation in Guinea-Bissau. In particular, the report assesses the mechanisms available to face the «daunting challenge» of rebuilding the Rule of Law in societies «devastated by conflict or emerging from repressive rule». The relevance of this normative standard in the present condition of Guinea-Bissau is underlined by the fact that the country reached a situation of «large-scale human rights violations, especially within a context marked by broken institutions, exhausted resources, diminished security, and a distressed and divided population», also in a context of social and economic destitution that in turn reflect other forms of violence and aggression. The report includes a thorough explanation about the Joinet/Orentlicher Principles and about the development of legal standards and norms and jurisprudence setting the responsibility of each State to respect and protect international humanitarian law and

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international human rights and the establishment of a normative definition of «victim». It is also highlighted that the public acknowledgment of past abuses, the prosecution, trial and duly punishment of those responsible for serious violations and the reparation on the part of the victims are crucial to build trust in society. Also in Part I, the pattern of human rights violations in Guinea-Bissau is assessed in reference to the Set of Principles to Combat Impunity, more specifically to the standard rules and mechanisms that provide compensation to the victims, as approved by the United Nations General Assembly in 2005. The action to combat impunity encompasses four main areas: the right to know, the right to justice, the right to reparation and the guarantees of non-recurrence. The report reminds that « every people has the inalienable right to know the truth about past events concerning the perpetration of heinous crimes and about the circumstances and reasons that led, through massive or systematic violations, to the perpetration of those crimes». It reminds also the general obligations of States to take effective steps to combat impunity. «States shall undertake prompt, thorough, independent and impartial investigations of violations of human rights and international humanitarian law and take appropriate measures in respect of the perpetrators, particularly in the area of criminal justice». The State in Guinea-Bissau doesn’t meet any of these obligations. Part II of the report deals with the causes and the types of impunity in Guinea-Bissau, based on a wide concept of impunity adopted in the inquiry. The answers obtained from more than fifty persons interviewed – and carefully chosen according to strict criteria – are analysed and systematised in order to get an accurate assessment of this complex problem. The first conclusion: impunity is both the cause and the consequence of the institutional fragility of the State. Impunity is also a system of social stratification, setting apart those who can perpetrate violations without being accountable for it from those, all «the others», the ordinary citizens without the resources and the means or other form of privilege that would allow them to pay for immunity. Impunity is power and grants impunity. The Armed Forces are clearly at the core of the problem of impunity in Guinea-Bissau, since the politicians, even if they are under the control of the Military, take advantage of the institution in multiple ways, indeed in the same way as the whole society, as this report sharply illustrates. The impunity of the Military is by definition an armed impunity, a fact that explains the impact of many actions by the Armed Forces. Our report also pays attention to the trivialization of politics as a major contribution to the deterioration of the – unwholesome - relation between military and politicians. In fact the Armed Forces are no longer an army under civilian control and they became over time a heterogeneous body of scattered clienteles. To this, the growing influence of drug trafficking networks only brought an ingredient of greater volatility to the equation. The report produces disturbing evidence of the lack of independence from the judicial agents – out of fears for personal security or because the justice sector as a whole is not immune to the corruption affecting all structures of the State. The fragility of the justice sector, aggravated by inadequate resources and poor facilities and structures, is singled out as one of the most serious problems to be urgently addressed. To some extent, the fragility of the justice sector helps to perpetuate impunity. Equally disturbing are the elements concerning a consistent takeover of several functions

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of State sovereignty by agents and interests working outside or even against the State. In fact, Police is so inefficient that it leaves the stage to private militias and vigilante community groups mushrooming all over the country. At the same time, it is the Police that in many areas perform functions related to the provision of justice to the population, resorting at random to the use of local staff without respecting the rules for transparent recruitment into the Security Forces. In this scenario, the Armed Forces exert an effective influence over both the Police and the Judiciary. The absence of the State – in relation to its own structures as well to our national territory - is expanding fast. This vacuum meanwhile is being filled by dubious forms of «traditional» authority that emerge where the once State-Party thought they were eradicated. This loss of ground by the State is more obvious in the justice sector, undermined by institutions or traditions like the irã cego (which can roughly translate as «blind ghost») or the djokraenda. Such «traditional» forms of authority are essentially non-democratic and are not subject to scrutiny as the report underlines. No less disturbing is the perception of brewing social conflicts with ethnic undertones. There are also indications that relate some of the problems mentioned earlier, including private «policing», community security providers, militias and vigilantes, with increased ethnic tensions. The situation is worrying because, as shown in the report, the pattern of incidents in the most volatile areas confirms the widespread existence of small and light arms, and indeed of combat weapons, in the hands of many civilians. Gender-based violence is another source of great preoccupation, with a pattern of violence against women that occurs mostly in the context of their immediate families and households. Early marriage and sexual violence are recurrent according to testimonies heard for our inquiry. The issue of female genital mutilation needs to be urgently addressed since the success of the campaigns against female excision had one collateral consequence: such form of violence became more common among younger girls, often during their earliest childhood. Part II proceeds with an evaluation of how economic and financial crimes were consistently one of the most entrenched forms of impunity in Guinea-Bissau over several decades. Many among those interviewed for the report establish a link between this form of impunity with the breeding of conditions favorable to the entrenchment of international networks of drug trafficking in the country, which operate nowadays in absolute impunity. The situation reached the critical point known to everyone because the senior leadership of the Armed Forces is privy with the drug traffickers, which in itself raises the economic criminality in Guinea-Bissau to a dangerous level. This chapter finishes with an assessment of impunity related to crimes against the environment resulting from the uncontrolled exploitation of our mineral and natural resources. Part III of the report comprises a historical overview of impunity in Guinea-Bissau, combining relevant information obtained in the interviews with records compiled in a wide bibliography about the liberation struggle in Guinea-Bissau and the period after the country declared its independence. Part III is thus organized as a timeline of impunity, going back to the legacy of colonial rule and the slave trade in the region while focusing on the period starting with the liberation war by the PAIGC of Amílcar Cabral and on the forms of violence specific to the liberation and resistance movement. This overview sheds light on the deep roots of impunity related to the very nature of an armed movement engaged in a long armed conflict. The Congress of Cassacá

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and the murder of Amílcar Cabral are milestones of a history of impunity in Guinea-Bissau. In any case, the elimination of the so called African Commandos and of other people considered to pose a threat to the regime after 1974 stand out as the first missed opportunity to build a State based on the Rule of Law, even considered the context of a one-party State. Those events inaugurated, on behalf of the national project, a long list of extra-judicial killings. Two dates are nonetheless singled out as major contributions to the overall victory of impunity over the State. One is the coup d’état of 14th of November 1980, carried out by João Bernardo «Nino» Vieira, which set the double precedent of the use of non-democratic ways to take power and of the takeover of the reigns of the State by the Military – to this day. The other date is the 7th June 1998, an event that this report reassesses and analyses according what it really was: a coup d’état that triggered a destructive civil war that didn’t accomplish any of the results promised by the Junta. Part III ends with an analysis of the aftermath of that conflict, a decade of chaotic policies, of impoverishment of the population, of violent internal disputes and of institutional decay at all levels of the State. At the same time, the decade after the civil war saw a sharp rise in political violence and an increase influence of international drug trafficking groups. In conclusion, the report highlights the three underlying impressions of the whole inquiry: despair, fatigue and, in spite of everything, hope that the current crisis that engulfed Guinea-Bissau is not the end but a new, major obstacle that our nation has to overcome. The idea of a new beginning – a new foundation – for the project laid out by Amílcar Cabral emerges as the only way out of a situation which, for the people of Guinea-Bissau, is itself a degrading state of affairs.

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Parte I. As muitas faces da impunidade

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Definição, genealogia No direito e jurisprudência internacionais, bem como na prática e nos padrões de organizações como as Nações Unidas e a OCDE, afirmou-se na última década um conjunto de princípios de luta contra a impunidade por violações graves de direitos humanos. No cerne deste edifício normativo está «o direito inalienável à verdade», que por seu turno implica «um dever de memória». O enunciado destes princípios deixa também claro que «o conhecimento por um povo da história da sua opressão pertence ao seu património»1. O presente Relatório, na linha de um trabalho de muitos anos da Liga Guineense dos Direitos Humanos, encara de frente o fenómeno da impunidade na Guiné-Bissau, abordando-o numa dupla vertente. Por um lado, afirmando a absoluta necessidade de justiça perante a acumulação e recorrência de crimes contra os mais elementares direitos dos guineenses. Por outro, evidenciando a urgência de uma reflexão séria da sociedade no seu todo sobre impunidade nas últimas quatro décadas, um tempo em que a Guiné-Bissau passou de referência mundial das lutas de libertação à categoria de «Estado frágil»2 e que hoje «enfrenta como Nação uma ameaça existencial»3. Ao questionar os guineenses sobre as manifestações e as causas da impunidade, perguntámos em primeiro lugar o que é, para cada cidadão, a impunidade. Obtivemos, naturalmente, um igual número de ideias sobre o fenómeno, das mais emotivas às mais analíticas. Comecemos, no entanto, por uma definição de referência, que consubstancia afinal a ideia essencial das muitas formas de falar a injustiça vivida e sentida na Guiné-Bissau. «A impunidade define-se pela ausência, de direito ou de facto, de responsabilidade penal dos autores de violações, bem como da sua responsabilidade civil, administrativa ou disciplinar, na medida em que estes escapam a todas as tentativas de investigação tendentes a possibilitar a sua acusação, a sua detenção, o seu julgamento e, no caso de serem considerados culpados, a sua condenação a penas apropriadas, incluindo a de reparar o dano sofrido pelas suas vítimas»4. Neste sentido, são incluídos no âmbito da expressão «crimes graves segundo o direito internacional» as infracções graves às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 e ao seu Protocolo adicional de 1977 e outras violações de direito internacional

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Relatório E/ CN.4/2005/102/Add.1 de 08 de Fevereiro de 2005, adenda ao Relatório da especialista independente mandatada para actualizar o conjunto dos princípios para a luta contra a impunidade, Diane Orentlicher. Princípio 3, «Dever de memória».

1

Com diferentes formulações, a Guiné-Bissau tem sido referida como um Estado frágil ou fraco, quer por organizações internacionais como o Banco Mundial (que prefere a designação de «situação frágil») e a OCDE, quer por instituições como o Fundo para a Paz e a revista Foreign Policy, que anualmente publicam o seu Index de Estados Falhados (http:// www.foreignpolicy. com/failed_states_index_2012_interactive).

2

3 SRSG José Ramos-Horta, declarações à imprensa em Bissau, 08 Abril 2013.

4 Relatório E/ CN.4/2005/102/Add.1 «Definições, A. Impunidade»


5 Nota de Orientação do Secretário-Geral, «A Perspectiva das Nações Unidas sobre Justiça Transitória», Junho 2010.

humanitário que constituem crimes graves segundo o direito internacional, o genocídio, os crimes contra a humanidade e outras violações dos direitos humanos protegidos internacionalmente. Aos Estados é exigido que sancionem penalmente este tipo de crimes. Num importante documento que define o quadro de referência das Nações Unidas na luta contra a impunidade, o Secretário-Geral sublinha «o desafio formidável» que constitui o restabelecimento do Estado de Direito em países em transição de uma situação «de conflito generalizado ou de um regime repressivo». O desafio é ainda maior «especialmente num contexto de colapso institucional, exaustão de recursos, segurança reduzida e uma população angustiada e dividida»5. Como é sublinhado pelo SG da ONU, a justiça transitória engloba processos e mecanismos judiciais e extra-judiciais, incluindo «acusações formais, busca da verdade, programas de compensação, reforma institucional ou qualquer combinação deste conjunto». Um ponto a reter é que, qualquer que seja a modalidade escolhida, terá que ser conforme às obrigações e padrões legais internacionais.

Uma tipologia alargada

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7

SG, Recomendações….

E/CN.4/2004/88, para.11.

Ao propor que a sociedade guineense encare de frente o fenómeno da impunidade e que escolha uma via tendente a ultrapassar a situção de violência recorrente, a LGDH partilha a convicação enunciada pelo SG sobre a necessidade de os mecanismos de justiça transitória «procurarem levar em conta as causas profundas de conflito e as violações de todos os direitos delas resultantes, incluindo civis, políticos, económicos, sociais e culturais». O relatório que agora a LGDH apresenta considerou uma tipologia alargada de manifestações de impunidade e garantiu que o perfil dos entrevistados reflectisse não apenas a diversidade de opiniões mas também o leque alargado de violações de direitos. Neste sentido, a violência política e a impunidade ao nível do topo da hierarquia política e militar é, na Guiné-Bissau, a ponta de um icebergue de violência quotidiana que esconde as fracturas profundas da sociedade guineense e a banalização progressiva de situações de injustiça grave para a maior parte da população, com contornos especialmente preocupantes em grupos mais vulneráveis como são as mulheres e as crianças. Ao abrir pistas para uma solução duradoura do cenário actual, a LGDH tem presente que, «ao esforçar-se por responder ao espectro de violações de forma integrada e inderdependente, a justiça transitória pode contribuir para alcançar os objectivos mais abrangentes de prevenção de novos conflitos, de paz e reconciliação»6. A Liga sublinha, ao mesmo tempo, a absoluta necessidade de entender o exame da impunidade como um processo que permita responder ao espectro de violações de direitos sociais, económicos e culturais e não apenas à violação de direitos cívicos e políticos. O leque de entrevistados confirma que, para a maioria dos guineenses, e no tempo longo da violência estrutural, o desrespeito pelos seus direitos sociais e económicos é o que tem mais impacto nas suas vidas. Não pode, portanto, ser escamoteado por uma interpretação restritiva de justiça transitória (v.capítulo seguinte). O inquérito sobre as causas profundas da impunidade na Guiné-Bissau levou em consideração desenvolvimentos nos últimos anos na área da justiça transitória que mostram a importância de promover «a participação de vítimas e outros cidadãos» na «definição

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de políticas de combate à impunidade»7. Conforme salienta o preâmbulo à actualização dos princípios da ONU de luta contra a impunidade, esta participação assegura que as políticas respondem às necessidades reais das vítimas e, em si mesma, «pode contribuir para reconstituir a plena integração cívica daqueles a quem foi negada a protecção da lei no passado»8. Qualquer que seja(m) o(s) mecanismo(s) para ultrapassar o quadro de impunidade generalizada e continuada em que vive a Guiné-Bissau, a primeira responsabilidade de garantir justiça continua a recair sobre o Estado, na concretização das suas obrigações constitucionais e legais e no respeito pelos relevantes tratados intrnacionais. É ao Estado que incumbe a investigação e o julgamento de violações graves de direitos humanos e de atentados sérios ao direito humanitário, incluindo os crimes sexuais. Essas iniciativas terão também de contemplar o direito à compensação das vítimas, o direito das vítimas e da sociedade de saber a verdade sobre as atrocidades cometidas e garantias de não recorrência das violações, conforme os padrões hoje aceites na legislação internacional. Antes de analisar em detalhe cada um destes princípios, é fundamental insistir num ponto inequívoco: as normas e princípios contra a impunidade enunciados pelas Nações Unidas e outras organizações internacionais constituem em si mesmos um quadro obrigatório de actuação para qualquer parceiro externo da transição guineense. Este quadro é uma garantia adicional contra hipotéticos desvios de princípio, tanto pela via da radicalização da justiça penal como pela natural tendência dos actores políticos em diminuir por via negocial a possibilidade da sua própria responsabilização. O reflexo natural dos responsáveis pelas violações de direitos humanos é autoamnistiarem-se, numa tradição que vem de longe e cujas raízes são recordadas neste relatório. É necessário evitar a recorrência das amnistias a bem de uma suposta reconciliação, como no passado. As amnistias têm sido o expediente de irresponsabilização de um grupo bastante numeroso de autores materiais ou morais de atentados aos direitos dos guineenses e os seus efeitos nefastos estão tristemente à vista.

8

Idem

Verdade, memória, reparação Os Princípios de Joinet/Orentlicher Os princípios contra a impunidade foram inicialmente formulados por Louis Joinet no seu relatório final sobre mecanismos de justiça e a questão da impunidade perante a Subcomissão da ONU em 1997. Esses princípios foram mais tarde actualizados por Diane Orentlicher, em 2005, por iniciativa da Comissão de Direitos Humanos: os «Princípios de Joinet/Orentlicher»9. A adopção, em Dezembro de 2005, pela Assembleia-Geral da ONU, dos Princípios Básicos e Regras para compensação das vítimas de violações graves de direitos humanos culminou uma década de elaboração de elementos específicos de direito e jurisprudência internacional de uma forma mais consistente. De forma significativa, este documento estabelece a responsabilidade dos Estados no que respeita a violações graves de direitos humanos internacionais e de direito humanitário e define o termo «vítima».

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A actualização tocou pouco nos princípios de Joinet, preocupando-se antes em formular um conjunto de boas prácticas de luta contra a impunidade.

9


10

E/CN.4/2004/88, para.11..

Esses princípios, quer de um ponto de vista normativo quer de um ponto de vista legal, oferecem uma plataforma conceptual para encarar os mecanismos de luta contra a impunidade. São quatro as áreas cruciais de intervenção identificadas por Joinet e Orentlicher, oferecendo por sua vez um quadro alargado de actuação em processos de transição e de análise de violações no passado10: o direito de saber; o direito à justiça; o direito de compensação; garantias de não repetição.

Corrupção, um ataque a direitos fundamentais A «lacuna de impunidade»

CARRANZA Ruben, «Plunder and Pain: Should Transitional Justice Engage with Corruption and Economic Crimes?», The International Journal of Transitional Justice, vol. 2 2008, pp. 310 330 11

A LGDH encara a luta contra a impunidade de forma abrangente, numa abordagem que insiste na necessidade de investigar e punir também as violações dos direitos sociais e económicos e, em particular, da grande corrupção. A exclusão dos crimes económicos do leque de violações graves de direitos humanos contribui grandemente para perpetuar as injustiças do passado, reforçando a chamada «lacuna de impunidade»11. O combate à grande criminalidade que ameaça hoje a existência do Estado guineense não pode ser dissociado de uma investigação profunda e da responsabilização efectiva dos que espoliaram a Nação anteriormente. São esses os mesmos indivíduos e grupos que, afinal, continuam a usar o produto do saque anterior e da corrupção para financiar as suas actividades, lavando na economia e nos negócios os frutos de uma riqueza ilegalmentemente obtida.

Usar mecanismos, estabelecer precedentes Colocar a fasquia da nossa transição democrática no simples regresso à legalidade constitucional, seria concordar em punir algumas manifestações da violação de direitos deixando intacto parte importante do sistema que as produziu – e que, inevitavelmente, continuará no futuro, como o foi no passado, a ser um obstáculo à democracia. Uma estratégia de luta contra a impunidade em casos como a da Guiné-Bissau terá de colocar as «pessoas politicamente expostas» no centro das investigações sobre a pilhagem operada a partir do Estado, com a ambição expressa de recuperar os fundos ilicitamente obtidos e as rendas que produziram e continuam a produzir.

Amnistias: «esquecer» para repetir CAMPOS João Pedro C. Alves de, A amnistia na Guiné-Bissau: um olhar lusófono, Coimbra, Almedina, 2008, 349 pp, p.26. 12

Um instrumento controverso A amnistia localiza-se «no limbo entre o exclusivamente político e o exclusivamente jurídico, para não ser nem uma coisa, nem outra»12 Instrumento polémico e complexo, a amnistia, dependendo do contexto, do fundamento e da modalidade de aplicação,

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pode servir um objectivo geral de justiça em sentido estrito ou de outros valores sociais igualmente importantes, como a reconciliação, a estabilidade política ou a paz jurídica. A origem histórica das amnistias situa-a como uma variante do direito ao perdão, isto é, uma medida de clemência individual fundamentada num direito divino exercido pelo rei. «A natureza divina do perdão estava relacionada com o carácter sagrado do rei, quer este último fosse ele próprio um deus ou um intermediário entre os deuses e os homens»13. A amnistia desenvolveu-se desde as repúblicas da Antiguidade Clássica como uma prerrogativa do Estado ou, pelo menos, como um poder social, em relação directa, por isso, com a tentativa ou a possibilidade legal de contrariar os excessos da «acusação privada». Esta evolução reflectiu portanto uma preocupação de remediar as imperfeições da lei penal. A acusação privada foi, nesse sentido, colocada em contraste com a acusação pública. «O exercício do poder amnistiante é, de facto, uma forma de reforçar o poder estadual, uma forma de demonstrar e afirmar esse mesmo poder. Esta temática constituiu sempre uma questão muito complexa para qualquer forma de Estado, em qualquer tempo e em qualquer lugar14. O aparecimento, no século XVI, de leis cujo objectivo último era a paz, deu novo ímpeto à evolução de amnistias como um meio cada vez mais usado para assegurar a paz social («tranquilidade geral e universal») e até a paz política («evitando a desordem e a insubordinação»)15. «Também no território hoje designado de Guiné-Bissau, ao observarmos o riquíssimo património costumeiro desta sociedade multicultural, encontramos algumas referências explícitas, embora com outras designações e abrangendo conteúdos estranhos ao actual sentido da figura, ao exercício deste poder ou prerrogativa de punir»16.

Transições e refundação política

E/CN.4/Sub.2/1985/16, de 21 de Junho, p.5, «A administração da Justiça e os direitos humanos dos detidos», Resolução da Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e Protecção das Minorias, Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Importa referir que este documento foi redigido por Louis Joinet, mais tarde relator dos principais documentos das Nações Unidas em matéria de luta contra a impunidade e dos princípios em que se fundamenta o essencial dos mecanismos de justiça de transição internacionalmente aceites.

13

14

FOVIAUX Jacques, La Rémission des peines et des condamnations: droit monarchique et droit moderne, Paris, Presses universitaires de France, 1970, 191 pp., p.11ss. 15

16

Conforme é visível em sucessivos documentos programáticos das Nações Unidas, a percepção das amnistias como instrumento de «salvaguarda e promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais»17 foi substituída pela condenação crescente das leis de amnistia como formas de impunidade. Em teoria, a amnistia pode facilitar uma refundação política. Na Guiné-Bissau, o recurso à amnistia tem confirmado que este mecanismo pode ser uma porta escancarada para a impunidade. O vício da autoamnistia na cúpula do Estado e das Forças Armadas tem sido um obstáculo à justiça e tem legitimado a irresponsabilização dos culpados por crimes da maior gravidade. As amnistias, e em concreto as amnistias por crimes políticos, podem servir vários objectivos, mas invariavelmente resultam de um interesse directo de quem ocupa o poder num determinado momento. Um dos efeitos pretendidos com mais frequência pelos proponentes das amnistias é a regulação de tensões, agindo de forma peródica por exemplo em datas solenes ou comemorações nacionais. Outro, em relação com esse, é a neutralização da oposição. Outro ensinamento que convém recordar ao analisar hoje as amnistias na Guiné-Bissau: «A amnistia apenas lida com os efeitos e não com as causas do desacordo nacional»18.

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CAMPOS, op.cit., p.25.

CAMPOS, op.cit., p.26.

17 E/CN.4/Sub.2/ RES/1983/34, de 6 de Setembro, que precedeu e originou o documento E/CN.4/Sub.2/1985/16, referido supra).

E/CN.4/Sub.2/1985/16, p.22.

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Parte II. Causas e tipologia da impunidade na GuinĂŠ-Bissau

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A impunidade na Guiné-Bissau tem causas estruturais relacionadas com a fragilização do Estado, em particular no sector da Justiça, de que é exemplo a fraca cobertura territorial das instâncias judiciais. Padrões culturais, alguns de origem recente mas outros com raízes profundas nos valores reconhecidos pelo todo ou por parte da sociedade guineense, acentuaram ou deram espaço ao agravamento da impunidade. Isso fica, aliás, bem claro em várias análises recolhidas no âmbito deste estudo, onde se questiona a persistência do culto da violência, o prestígio o mais forte ou a relativização de direitos fundamentais diante de preceitos e preconceitos de grupo (sejam eles de base religiosa, ideológica, étnica ou outras). A instabilidade política e a situação de anormalidade constitucional acrescentaram factores conjunturais à impunidade, como ilustra de forma cabal o vazio de mandato do Procurado-geral da República. As relações entre poder político (sobretudo dos dois maiores partidos, PAIGC e PRS), poder judicial e Forças Armadas, com a interferência crescente dos militares nos assuntos de Estado, são também causas importantes da impunidade no país. Antes de aprofundar as reflexões recolhidas sobre a impunidade e de traçar a sua tipologia segundo os resultados do inquérito da LGDH, façamos uma lista breve das ideias mais consensuais no conjunto das entrevistas realizadas: • A impunidade é a falta de aplicação de uma sanção prevista para a violação de uma determinada regra de vida em comum; • A impunidade é um privilégio de poder ou de relação: «Sabes quem eu sou»; • «Militares» e «políticos» são apontados num maior número de entrevistas como principais responsáveis pela impunidade reinante no País mas integrados numa sociedade que valoriza a matchuindade e «a lei do mais forte»; • A impunidade reflecte-se mais abertamente na inoperância do sector da justiça; • Outra dimensão da impunidade é relacionada com a generalização da corrupção e com a estratificação entre o poder do dinheiro de alguns e a extrema fragilidade económica da maioria; • A sociedade guineense tem valores que facilita(ra)m o agravamento da impunidade; • A justiça é exercida cada vez com mais frequência pelas forças de segurança (Polícia ou Forças Armadas); vigora na prática o princípio da «presunção da culpa» e do favor ao primeiro queixoso;

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• O falhanço do Estado em providenciar justiça abriu espaço à reemergência da justiça tradicional e a formas de defesa popular do tipo milícias e vigilantes: • A má gestão ou inexistência de mecanismos pacíficos de resolução de conflitos tem aumentado o risco de etnicização de disputas comunitárias; • Falta hoje aos guineenses uma referência comum; • A impunidade agravou-se a partir de 1980; por isso, a Guiné-Bissau enfrenta não apenas o desafio da reforma das instituições mas de refundação de uma ordem constitucional que sofre há três décadas de ataques sucessivos.

Um Estado em risco Impunidade, elemento de fragilidade

«a própria impunidade está a ditar o futuro da Guiné-Bissau»

Todos os depoimentos das Partes II e III, com esta formatação, referem-se às entrevistas realizadas pela Liga Guineense dos Direitos Humanos entre Janeiro e Maio de 2013 19

O inquérito feito pela LGDH, apesar do espectro muito alargado de sensibilidades consultadas, reflecte um sentido agudo da existência de uma cultura de impunidade no país. A gravidade da situação faz também unanimidade entre cerca de meia centena de entrevistados. O primeiro facto saliente, com efeito, é que ninguém no universo dos entrevistados coloca em causa a existência do problema e a sua amplitude. «Estamos numa fase muito crítica»19, resume um magistrado sobre o ponto a que o país chegou. «A instabilidade chegou a este ponto por causa da própria impunidade», constata um oficial de investigação. Uma outra indicação clara do relatório é que, na maioria das entrevistas, a impunidade aparece relacionada directamente com a fragilidade das instituições do Estado ou até com a ameaça clara à existência da República da Guiné-Bissau. Esta ligação tem duas cambiantes importantes: para muitos, a impunidade é o resultado visível do fracasso das instituições do Estado e o seu agravamento acompanha a dissolução das funções de soberania; para um número igualmente significativo de pessoas, pelo contrário, é a impunidade que surge como origem da situação em que se encontra a Guiné-Bissau. O nosso país vive, em qualquer caso, a situação bizarra de níveis de impunidade que são normalmente atingidos em conflito aberto, como lembra um magistrado. «Os direitos e liberdades fundamentais são mais violados nos períodos de instabilidade e conflitos. Contudo, nós na Guiné-Bissau tivemos situações de graves violações dos direitos humanos em tempos de paz, mesmo que possamos dizer que se agravou a partir do 7 de Junho e dos sucessivos ‘casos’ que aconteceram depois» . Um terceiro ponto sublinhado no conjunto das respostas é a urgência com que o fenómeno da impunidade tem de ser enfrentado. Ressalta deste inquérito que a impunidade é o principal inimigo do futuro do País. Na expressão certeira de um oficial de investigação, «a própria impunidade está a ditar o futuro da Guiné-Bissau». Este oficial cita, como outros entrevistados, a situação em que o País mergulhou com

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o golpe militar de 12 de Abril de 2012. «Já temos pessoas alheias à política a decidir o destino da política e a decidir o tempo da transição. Isto são pessoas que entendem que são elas que devem ditar quem é punível e quem deve ser punido. Isso é muito perigoso» . O conjunto dos inquiridos constata uma acentuada perda de valores da sociedade guineense, ou dito de outro modo, de referentes positivos. «Somos um país sem referências. Quando se folheia os manuais de educação feitos para as escolas, não há referência de coisas positivas. A única referência está resumida duma forma muito inteligente à figura de Amílcar Cabral». Ora, continua um conhecido intelectual guineense, «mesmo que este estivesse vivo não aceitaria isso». Segundo este intelectual, «temos que reformar a nossa História. Estamos perdidos e estamos constantemente a ludibriar a história. Hoje, os que devem cantar não o podem fazer porque não há condições para o fazer; os que devem falar não o podem fazer porque não têm língua. As pessoas estão a deformar a nossa História… Devemos render-nos perante a história e pedir desculpas a Cabral e entregar o país aos estrangeiros para estes o gerirem». Declarações semelhantes de sarcasmo, desespero e desencanto surgem noutros contextos, como o de um animador local na zona de Buba, que diz simplesmente: «A esperança de viver tenho mas de melhorar a vida, não».

Guiné traída, Guiné adiada

«O próprio Amílcar Cabral foi morto porque ninguém aceitou conversar» A Guiné-Bissau retratada pelos inquiridos da LGDH é um país que corresponde pouco ou nada ao que foi sonhado pelos seus cidadãos, conforme perguntámos também no inquérito: a Guiné-Bissau da impunidade é ao mesmo tempo uma Guiné traída e uma Guiné adiada. No âmago do problema está uma questão de Estado. «Estamos de tal forma baralhados, [que] eu já não tenho confiança nos órgãos de Estado», admite um investigador universitário. «Eu acredito que o que nos resta com as nossas fragilidades ao nível interno é a sociedade civil. Deve ser valorizada, apesar dos problemas internos que conhecemos, para levar a cabo as reformas pois estamos a lidar com pessoas que dizem aceitá-las mas na prática não as aceitam. Refiro-me ao Sector de Defesa e Segurança. Será um erro atribuir a reforma ao governo que irá sair das [próximas] eleições sem contar com o envolvimento da sociedade civil» . O desencanto patente nas entrevistas é sublinhado com uma – mal contida – crispação, mesmo por quem friamente identifica um dos problemas nos valores de exclusão e confronto que urge combater. «A minha única esperança é que a comunidade internacional entenda de uma vez por todas que os guineenses não sabem conversar. Na Guine nin-

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guém diz o que pensa. As pessoas [são assim:] eu hoje quero fazer as pazes ou falar como irmão porque tenho vantagem nisso, [mas] amanhã eu vou matar. Não há conversa, ninguém disse o que pensa, as pessoas dizem aquilo que é do seu interesse ou aquilo que os outros querem ouvir. Ou não dizem porque têm medo. Portanto, acabem com essa história de que os guineenses têm que sentar e conversar. Há 39 anos que estamos a falar disso. O próprio Amílcar Cabral foi morto porque ninguém aceitou conversar. O País, como está neste momento, não tem futuro» . A mesma responsabilidade colectiva é identificada por um intelectual que sublinha que «a impunidade tem que ver com a forma como gerimos todo o país onde nos encontramos. Cada um de nós carrega um símbolo e o mesmo tem que ver com a forma como nós entendemos e tratamos os nossos assuntos. Aquele que está à frente da gestão do bem comum deve geri-lo para que todos possam usufruir desse tal bem. Mas quando a gestão do comum é aproveitada para beneficiar o gestor, os seus familiares ou amigos, aí começam problemas que dão azo à impunidade» . De uma forma recorrente, os autores da impunidade aparecem neste inquérito articulados várias vezes numa fórmula em que políticos, militares e poderosos em geral (ou porque dominam o poder da justiça ou porque controlam o poder do dinheiro, ou ambos), são afinal o produto da «sociedade» como um todo. Uma sociedade que, como diz ainda o mesmo oficial de investigação, «protege e ajuda os criminosos». Como resume a dirigente de uma rede associativa: «Na Guiné, quem desinforma é considerado sábio» . Vários dos entrevistados acusam o peso deste «senso-comum da impunidade», que recusa a defesa de direitos e princípios fundamentais. Um empresário concorda que os grandes agentes da impunidade manobram numa cultura reinante de «promoção dos incompetentes a que temos assistido desde há muitos anos. Tem a ver muito com a noção de valores. O país está praticamente à deriva. Os cidadãos não sentem a presença do Estado, sobretudo aqueles que sofrem na pele todos os tipos da descriminação. E os [líderes] que lá estão não foram promovidos com base no mérito. Quando isso acontece e as pessoas que lidam com matéria de lei não têm nenhum conhecimento básico, então automaticamente passam a defender os interesses de quem os pôs lá».

Uma sociedade sem regras

«O poder do Estado está a ser dirigido por via da força» A impunidade é também um «sistema» viciado, acrescenta o empresário, lembrando um princípio que tem sido espezinhado no País: «Na democracia, a escolha é importante». Um dirigente partidário acentua o mesmo ponto, colocando em evidência uma determinada ideia de poder da geração pós-independência.

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«Para quem nasceu no período da guerra de libertação e depois, logo a seguir, teve uma situação de partido único, consolida-se na mente a percepção de que o exercício do poder não é resultado de uma dinãmica societária. Para nós, achamos que não: há gente que tem o poder e nós temos que respeitá-los como gente do poder; e nós somos os outros..A justiça só pode funcionar quando é a sociedade a decidir que é preciso impor um conjunto de regras que vai regular a forma como nos relacionamos». «Estamos a falar de regras virtuais orientadas na nossa mente e que variam conforme a pessoa», nota um académico. «Os mesmos valores que proclamamos, dignos de Estados modernos, são diferentes dos que, na verdade, nós apropriamos. Daí essa cultura de matchuindade e outros fenómenos estranhos à construção duma sociedade de bem». As grandes limitações de formação de quem ocupa funções de Estado é, à semelhança do que diz este investigador, apontada por muitos outros entrevistados. «Pessoas com quadros de referência positivos, dignas de dirigir a sociedade, não são chamadas a assumir esse papel e, em contrapartida, os que estão despidos dessas referências são investidos no papel de autoridade. Refiro-me a pessoas de baixo nível ou sem nível mesmo, que se orientam com o que tem como carga e como valores e nos é difícil compreender às vezes o que lhes obriga ou motiva» . A falta de sentido de Estado daqueles que desempenham funções de Estado é um dos problemas claramente identificados neste inquérito, com diferenças de tom e de vocabulário mas com uma crítica inequívoca aos protagonistas da vida pública. A constatação de que não são os melhores filhos da nação aqueles que geren os seus destinos é evocada em diversos registos. «Não se pode pegar no poder e entregá-lo a qualquer pessoa. Não se pode entregar as forças armadas a qualquer pessoa porque um dirigente tem que ter alguns ingredientes, alguns requisitos, [alguma] noção para assumir determinadas funções», nota um magistrado, para quem qualquer titular de cargo público deveria «primeiro ter noção de Estado e das suas funções, das suas responsabilidades e dos limites das suas intervenções. O Estado não pode funcionar sem regras. Aquilo a que estamos a assistir neste momento é ao desmoronamento das instituições. O poder do Estado está a ser dirigido por via da força. É inaceitável pensar que a ditadura pode ter lugar no século XXI. [Não pode] em lado nenhum, mesmo nas forças armadas, nas nossas residências etc.» Este magistrado sublinha também que a construção e o respeito pelas instituições do Estado exige competências. «Com um chefe de estado-maior das Forças Armadas sem nível, é impossível, você não pode pensar no desenvolvimento do país com ministros analfabetos, é impossível, você não pode aspirar a um Estado de direito com deputados analfabetos, é impossível. São eles é que definem as políticas do Estado.» Uma magistrada lembra que o Estado guineense se debateu desde o início com escassez de quadros qualificados e que, mesmo em 1975, «a primeira sangria de funcionários da máquina administrativa por terem servido o regime colonial»,

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um êxodo acelerado por uma decisão do governo português de exigir a presença das pessoas que pretendiam ser beneficiárias de subsídio de aposentação .

14 de Novembro e a impunidade de Estado

«Viemos da cultura do partido único - ‘sabes quem sou’ há gente que está acima da lei e há gente abaixo da lei» O actual momento político da Guiné-Bissau é, por isso, lido como corolário infeliz de um longo processo de deterioração do Estado. «O que está acontecendo no país é a falta de uma governação desejável. Não anseio o tipo de governo que temos neste momento porque é um governo largamente corrupto; um governo personalista; um governo individualista; um governo sectário; um governo paternalista. Quer dizer, neste tipo de governação encontramos um conjunto de coisas que temos desde 1980». O golpe do «14 de Novembro» (ou Movimento Reajustador) é nitidiamente indicado por uma maioria de entrevistados como o momento fundador do que se poderia chamar de impunidade de Estado. O inquérito revela, nesse sentido, uma consciência de que o 14 de Novembro marcou a abertura de uma via extra- ou anti-constitucional de legitimação do poder e a inauguração de uma tradição de correctivos políticos aplicados por força militar. Do tempo de Luís Cabral para o tempo de «Nino» Vieira, no entanto, é também identificada a continuidade de um sistema de partido único, com a origem de um tipo específico de impunidade associada aos privilégios reservados a dirigentes e quadros. «Viemos da cultura do partido único – ‘sabes quem sou’ – [onde] há gente que está acima da lei e há gente abaixo da lei. Isto faz parte da nossa cultura, podes fazer tudo e nada acontecerá, porque assumimos que é assim», explica um oficial superior das Forças Armadas . A consolidação da impunidade «foi um processo muito complexo, que atravessou toda a nossa história», reflecte ainda um investigador entrevistado para o inquérito. «É muito difícil precisar o momento exacto, embora o impacto e dimensão sejam diferentes em cada momento. Se olharmos a partir do pós-independência, houve os privilegiados cujos actos ficaram impunes. Havia duas categorias de cidadãos: os que eram responsabilizados e os que nem por isso. Havia dois pesos e duas medidas no período partido-Estado». Uma jurista recorda que «determinados titulares do poder eram intocáveis. Por exemplo, quando algum membro do Partido fazia algum desvio ou alguma situação delituosa, a sanção era tirá-los de Bissau. Muitos iam parar a Cuba ou às embaixadas. Não iram parar à prisão. Isto acentuou-se ainda mais após 1980», A continuidade dessas práticas marcou também a abertura democrática, «gradualmente, nos últimos vinte anos. Foi a partir dessa altura que as autoridades se viram coniventes. Não houve firmeza no sentido de se tomar uma posição. Ninguém ousa porque todos são coniventes. A partir desta altura, os

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delinquentes passaram a assumir o destino do Estado e os cidadãos tornaram-se reféns do sistema. Foi um descalabro até aos dias de hoje» . Uma dirigente partidária reconhece que o «descarrilamento» iniciado em 1980-82 só se tornou perceptível em 1998, mesmo que durante todos esses anos «as coisas começassem a escapar-nos». Até que chegou o 7 de Junho, «onde caímos no lodo e [de onde] ninguém consegue sair. Esta foi a maior desgraça que o país conheceu enquanto nação e para mim é uma vergonha nacional porque ninguém consegue explicar o porquê» . Um responsável pelo acompanhamento das questões do sector da Justiça concorda que 1998 marca uma aceleração da impunidade. «As coisas voltaram a virar com a guerra do 7 de Junho. A impunidade voltou em força, voltou a vingar, a consolidar-se» .

Impunidade como privilégio

«Quem são os presos? São essencialmente aqueles que podemos chamar de Zé Ninguém» O que distingue a nova camada superior da sociedade – pois já não se trata de uma «classe» no sentido ideológico dos anos da luta e do partido único -, diz uma advogada, é o privilégio e o poder de não prestar contas do que faz. «Temos os militares, os políticos, os agentes económicos poderosos, todos eles têm a força da impunidade a gerir os seus comportamentos. Fazem o que entendem fazer porque sabem que nada lhes vai acontecer. O cidadão comum tem fragilidades, sabe que se cometer algo ilícito pode ser punido. A cadeia da 2ª esquadra está cheia de presos. Quem são os presos? São essencialmente aqueles que podemos chamar de Zé Ninguém. Os grandes transgressores estão bem, em bons carros, em boas casas, com uma vida confortável» . Se, para uns, a impunidade implica uma vitimização, inversamente ela significa um privilégio de «estatuto divino na Terra», nas palavras de um advogado. «Se os impunes estão acima das regras e das leias. Ou prsta contas àqueles grupos de pessoas que são igualmente impunes ou prestam contas a alguém um dia, como o Bubo Na Tchuto que foi agora preso pelos americanos». Um dirigente da sociedade civil evoca a mesma estratificação social pela impunidade: «Costumamos aqui dizer que pode-se furtar uma cabra e ser preso mas se se furtar o Estado não se vai preso. É uma questão de proteção. A impunidade em geral de um simples agricultor não se nota», conclui o dirigente com sarcasmo. «O Estado, quando quer, exerce os seus poderes e até ultrapassa o seu mandamento no cumprimento daquilo que considera uma lei que não

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existe. Porém, quando se trata das mesmas pessoas que traficam drogas e percorrem os mesmos caminhos, nunca são parados quando se deslocam nem as cordas são esticadas [para eles].Nunca são parados para pagar seja lá o que for», conclui. Uma outra vertente de análise sobre as causas de impunidade prende-se com o que genericamente os entrevistados referem como sendo elementos culturais. «O guineense, para se sentir superior (chefe) tem que violar a regra para se diferenciar dos seus subordinados», diz um oficial das Forças Armadas. Conclui-se do inquérito que a participação cidadã e a consciência do bem comum não são hoje valores centrais da sociedade guineense ou, na melhor das hipóteses, as obrigações de cidadania apenas existem para os governantes. Dito de outro modo, «só quando estiver no poder é que posso ajudar o país, então só os ministros é que podem ajudar a construir o país», ironiza uma advogada que critica o desinteresse de cada um na defesa dos direitos que são de todos . Um estudante universitário alude à «inexistência daquele espírito de denúncia da parte dos cidadãos. As pessoas pautam-se mais pelo amiguismo, pois eu não vou denunciar o meu irmão porque passamos todo o tempo juntos». Um magistrado concorda que «falta o sentido de cidadania para fazer a justiça funcionar pela parte da própria população. As pessoas não denunciam os crimes e não colaboram com as autoridades para fazer as provas. Tudo isso acaba por frustrar os fins da justiça» . A advogada salienta o mesmo problema e afirma que «agora caímos na situação oposta à de 2010. Houve situações de marchas publicas exigindo do Ministerio Público acusações contra certas pessoas sobre as quais não havia nenhum processo. Muitos indivíduos que participaram nas manifestações eram políticos e eram advogados das famílias das vitimas; não instauraram processos, fizeram manifestações publicas. Na altura [no entanto] havia liberdade para isso. Hoje estes indivíduos estão no poder e continuam a não instaurar processos por esses crimes. Não há um único processo pelos crimes pelos quais se fizeram manifestações e acusações. Continuamos na impunidade» .

«Militares» vs. «políticos»

«os nossos políticos, quando percebem que não têm expressão no terreno, arranjam alianças com os militares para provocar a instabilidade» Uma parte substancial dos inquiridos responsabiliza directamente «os militares» sozinhos ou em interacção com os «maus políticos» - pelo agravamento da impunidade

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na Guiné-Bissau. Esta opinião é bem representada por um músico que considera que os militares estão na origem de «noventa por cento dos conflitos registados no País, embora com algum cunho político. Os nossos políticos não facilitam, não têm a cultura jurídica de perceber que, embora estando na oposição, têm a responsabilidade de pautar as suas actuações segundo princípios democráticos. Se o regime no poder tentar ir contra as regras democráticas, os políticos devem dizer que não vão pactuar com isso. [Mas] os nossos políticos, quando percebem que não têm expressão no terreno, arranjam alianças com os militares para provocar a instabilidade». Em defesa própria, há militares que concordam com essa análise… atacando a classe política. Um oficial das Forças Armadas assinala, a propósito, que «um político, com as suas palavras, move montanhas. Se todos eles tivessem uma visão de defesa dos princípios de Estado, dizendo que, apesar das suas divergências políticas, tais aspectos são comuns e vitais para o País, os militares não poderiam fazer nada. Mas como os políticos guineenses não têm nada na cabeça, o que fazer? Temos políticos para todos os gostos. São como cordões de violão. O som que você quiser é o que ele lhe oferece. Basta carregar a nota, recebe a melodia que quiser. Por isso é que a reforma deveria ser feita na política mas não a pode fazer: é ela que acaba por a fazer». O mesmo oficial argumenta com aquilo a que chama de «negociatas no Parlamento» e não poupa a classe política: «Agora as coisas arrefeceram mas quantas vezes é que assistimos a deputados que, sem que tenham problemas com o seu partido, tornam-se independentes, assumindo-se como autênticas prostitutas, através de negociatas, violando assim a disciplina partidária e o mandato que lhes foi confiado pelo povo? No Parlamento temos ainda deputados [que estão lá] desde 1973. Vendo as suas produções, se pudessemos fazer uma avaliação em termos de anos de serviço, não ultrapassaria quatro anos. E o Parlamento continua a ser o único órgão de Estado onde um analfabeto é admitido, apesar de isso não ser aceite na administração pública» . Este é um ponto de convergência de opiniões entre pessoas de perfis muito diferentes. «Não é possível um país com quarenta anos de independência possuir analfabetos ou semianalfabetos como governantes. Há até uns que ainda nessa condição pretendem tomar o Partido [PAIGC] para implementar os ideais de Cabral. Isso é estar a gozar com Cabral porque, se ele estivesse vivo, não teríamos nenhum analfabeto na direcção do Partido. Essas pessoas, mesmo transformando o livro de Cabral no chá que bebem, não iriam conseguir nada», comenta o mesmo músico, apontando o dedo a «uma categoria social falsa. Quando falamos de políticos, estamos a falar de políticos com estruturas de uma entidade política, [em vez disso]temos partidos que apenas surgem nos períodos conturbados e cujas sedes estão nas pastas diplomáticas dos seus presidentes. Há partidos que não têm direcção e, se lhes perguntar quem são os membros do bureau politico ou do comité central, quem é o chefe ou o adjunto, não existem, nem sequer têm secretários para receber documentos. Esse tipo de banalização da política

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só interessa às pessoas que dão golpes de Estado ou que querem chegar ao poder por vias ilegais. Quando há um golpe, eles aparecem a apoiar as cartas de transição ou os pactos. Esses partidos nem sequer conseguem encher um saco de pão. Aí é que está a desgraça pois é a partir dai que começam os movimentos entre os militares e a sociedade civil» . «Não sei se há sociedade civil porque não os conheço simplesmente», contrapõe um intelectual para quem «o problema não são apenas os militares mas é a própria sociedade que está perdida e descomandada. Urge que seja retornada ao sitio certo. A forma como vivemos é um problema em sí. A Guiné-Bissau deve ser reformada no seu todo. As pessoas devem ser reformadas. A reforma não deve confinar-se apenas ao Ministério da Defesa e à Segurança, temos que reformar os nossos comportamentos, temos que reeducar as pessoas». Este intelectual estende o debate sobre a impunidade para fora da violência política, «a violência não é só tiros ou disparos de canhão. Esta é [a violência] mais sonante mas também é violento aquele que urina na rua e ainda se dá ao luxo de cumprimentar ou conversar com a pessoa que passa ao lado, como se nada de estranho estivesse a acontecer» . Um dos magistrados entrevistados para o inquérito refere que «ainda há uma simbiose no relacionamento entre os diferentes poderes do Estado, onde as Forças Armadas não se subordinam ao poder político. Ou seja, existe uma sobreposição do poder militar em relação ao poder político para além da promiscuidade existente entre ambos. Estas situações acabam por ser um bloqueio ao funcionamento das instituições. O poder judicial não escapa deste esquema» . Para lá da esgrima de responsabilidades entre políticos e militares, há a noção de que «todo o sistema está viciado», para citar ainda o mesmo graduado das FARP. «Neste país estamos todos desorganizados. A instituição da República está bastante fraca. Quem detém o poder governa como quer e o resto da população não o respeita porque não actua em nome da instituição, mas sim em seu nome. Todos nós estamos à deriva. Puxar culpa para militar e empurrar culpa para políticos, ou qualquer coisa do género, é uma perda de tempo. Temos que identificar os nossos problemas».

O papel dos civis

«Todos nós temos familiares nos quartéis. Tudo aquilo que dizemos nas aldeias nas cerimónias de toca-choro não são conversas banais» A outro nível, há quem aponte a relação de interesse e aproveitamento da sociedade com a instituição castrense. «Todos nós temos familiares nos quartéis. Tudo aquilo que dizemos nas aldeias nas cerimónias de toca-choro não são conversas banais, são informações

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que chegam junto dos militares e que ganham determinadas dimensões, acabando por dar azo a golpes de Estado», afirma um economista, pondo desta forma também, nas entrelinhas, a questão da projecção das rivalidades étnicas na instituição militar. «São os civis que fazem golpes de Estado: são eles que influenciam os militares porque estes ganham bem, têm uma vida condigna. As pessoas dizem que os civis devem sair dos quartéis, não é verdade, eles vão sempre lá. Se alguém te fizer um mal e porventura tens um general no quartel como família, vais transmitir-lhe a [tua] dor. Ele por sua vez vai comentar com outras pessoas e assim sucessivamente, até resultar num mal maior». Este economista liga esta questão a prácticas de exclusão, um factor «cultural» que outros entrevistados também identificaram: «As pessoas devem parar de fazer exclusão. Pelo facto de fulano ser chamado Iala, ele tem que ser nomeado para um determinado posto, [enquanto] Eusébio, pelo facto de ter este nome, não pode ser nomeado. Hoje utilizam a famosa frase ‘ele não é do nosso grupo’ e isso tem que terminar» . Uma jurista chama a atenção para prácticas culturais que resultam em violações graves dos direitos humanos. «Muitos desses actos atentam contra a integridade da pessoa humana, mas há uma cultura secular que se sobrepõe em algumas etnias guineenses e que leva a considerar tais actos como praxis costumeira e permissiva na sociedade. Por exemplo, a excisão feminina e o infanticídio dos gémeos em determinadas culturas. Vou às vezes a estas causas profundas para poder justificar alguns sintomas de que padece a sociedade em relação à impunidade. Mas tudo isto seria diverso se o Estado tivesse conseguido assumir a prerrogativa de administrar a justiça em nome do Povo», diz a jurista .

Os casos sempre em aberto

«ninguém é responsável, ninguém é culpado, ninguém é vítima. Estamos todos no mesmo saco» A impunidade na Guiné-Bissau é também associada, expressa ou indirectamente, à própria história do país e à cronologia de violência política e de crimes ao mais alto nível do Estado que ficaram até hoje por explicar ou julgar. São os chamados «casos», desde o «14 de Novembro» ao «17 de Outubro», do «17 de Março» ao «7 de Junho», ou ao «12 de Abril». Os «casos» são tantos e tão marcantes que a história do pós-independência pode também ser lida como uma história de impunidade e nesse sentido se pronunciou uma clara maioria dos entrevistados. «Falamos de ‘casos’ porque nunca são devidamente fechados. Nós só podemos reportar a essas situações como ‘casos’ porque ficam sempre em aberto. Em certa medida, transformamo-nos em cúmplices da manutenção do status quo e da não promoção da justiça. A história política da Guiné-Bissau já é feita de ‘casos’. Não conheço nenhum ‘caso’ sobre o qual a História já

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tenha permitido ao povo guineense dizer que nós compreendemos aquilo que aconteceu», explica um dirigente partidário. Não é apenas «a incapacidade tremenda que temos mostrado de esclarecer os ‘casos’» que é referida como causa e manifestação de impunidade. O problema é também o efeito profundo da impunidade ao deteriorar o relacionamento dos guineenses com os valores da justiça, acrescenta o mesmo dirigente. «Sempre que, perante o relato de factos, formamos um juízo mas sem nunca ter acesso a elementos suficientes para daí criar uma percepção do que de facto aconteceu, nós corremos vários riscos. Corremos o risco de querer despenalizar pessoas que eventualmente possam ser culpadas. Ou o risco de, por via disso, estar a confrontar pessoas que sabem aquilo que aconteceu e não sentem a nossa solidariedade, enfraquecendo as instituições», explica esse dirigente. Este responsável defende que um passo importante seria tentar estabelecer factos sobre o passado, «mesmo que depois se mantivesse a impunidade. Bastaria que a justiça fizesse o seu trabalho para esclarecer. A construção da justiça depende da capacidade que nós temos, mesmo que historicamente, de repôr a realidade dos factos. Sem isso as instituições não têm a segurança necessária para realizar a justiça. Todos estão sempre a jogar pelo seguro e a dizer: terei eu todos os elementos para fazer um juízo? Se estamos todos aquém dessa percepção real, a coisa fica diluída, ninguém é responsável, ninguém é culpado, ninguém é vítima. Estamos todos no mesmo saco» . Uma jurista realça o facto de a impunidade se tornar afinal um território comum onde se movem líderes e responsáveis da Nação que, na política ou até na História, nem sempre estiveram no mesmo campo. A impunidade aparece, deste modo, como uma nova forma de solidariedade negativa – no sentido em que aprofunda as fragilidades do Estado. A jurista cita a propósito o acontecimento do regresso de «Nino» Vieira ao país, o regresso de «um indivíduo que fez tudo o que fez contra a Guiné-Bissau». A jurista recorda o dia em que toda a população de Bissau, perante a notícia do regresso iminente de «Nino», acorreu «a dizer desce ou não desce? E ele não desceu? Ninguém tugiu nem mugiu. Aquele helicóptero, para onde é que se levou? Não foi o Bubo? O Tagme estava lá a recepcionar. Como é possível?!» «Nós também nos revemos nos nossos líderes», assinala a jurista. Apesar de «todas as barbaridades cometidas, na primeira oportunidade, o órgão soberano da Guiné-Bissau vota amnistias. É automático».

A «morte do Estado»?

«Ninguém tem protecção a partir do momento em que o primeiro magistrado da nação foi decapitado à frente das pessoas» Um antigo governante fala da «morte do Estado» em resultado de décadas de impunidade e aponta o assassínio de «Nino» Vieira como o ponto culminante desse processo.

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«Ninguém tem protecção a partir do momento em que o primeiro magistrado da nação foi decapitado à frente das pessoas e os autores foram vistos na casa do malogrado; e que o deputado [Helder Proença] foi assassinado na sua residência sem que os autores tivessem mandato de a invadir». Para este dirigente partidário, a herança da impunidade é marcante a partir desses acontecimentos. «A consciência social das pessoas é algo implacável porque retém imagens. Mesmo que tivessemos morto todas estas pessoas que cometeram crimes, a geração vindoura ficará com os traços de consciência social, porque as pessoas viram os agentes do Estado da Guiné-Bissau numa acção criminosa que não foi punida. Os mandantes, não sabemos, mas pelo menos os autores foram vistos a cometer crimes em nome do Estado da Guiné-Bissau, que se transformou num Estado terrorista porque as pessoas cometem crimes em seu nome e não são punidas. Ou seja, foi vista uma parte da instituição estatal a reprimir em directo perante as câmaras de televisão sem que nada acontecesse». Num cenário de institucionalização da impunidade, «a única esperança que eu tenho é que um dia façamos a justiça como aconteceu no Chile com o general Augusto Pinochet, que depois dos 80 anos foi obrigado a ir para a cadeia», conclui um magistrado. «Mas não pensa que isto será para breve porque já tivemos tantas revoluções que não mudaram nada. Isto está montado de tal modo que não é fácil resolver de imediato. A não ser que façamos uma revolução e voltemos para o pior» .

Sector da Segurança: a desordem pública A impunidade armada

«Precisamos de militares republicanos e não de guerrilheiros como temos - guerrilheiros e com precipício de mercena-rismo porque todos aqueles que lutam e, em troca de luta armada, pedem a compensação financeira são mercenários» Abuso da força, excesso de poder, indisciplina, interferência política, permeabilidade ao crime: estes são os traços marcantes da análise das forças de segurança na Guiné-Bissau pela lente da impunidade. «As surras que estão acontecendo neste momento no país, estamos vendo as pessoas a serem espancadas à esquerda e à direita e os responsáveis ficam impunes. Ninguém diz nada. Esta não é a forma de conduzir um país», sintetiza o dirigente de uma organização comunitária. Os civis queixam-se duramente das «fardas» que temos e estas, por seu lado, não negam os problemas que têm ou que

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provocam, colocando-os no contexto nacional, como espelho da nossa sociedade. É inegável que a fragilidade do Estado guineense e a recorrência de práticas de impunidade se conjugam de forma mais directa no Sector de Defesa e Segurança (englobando as várias forças policiais, de informação e as Forças Armadas). É importante salientar que nenhuma das questões do inquérito da LGHD enunciava de alguma forma (directa ou indirecta) o Sector de Segurança. Pelo contrário, foi ao nível das respostas que «polícias» e «militares» surgiram referidos como epicentro – para muitos o mais importante, seguramente o mais visível e dramático na actual conjuntura – da impunidade no País. «Precisamos de militares republicanos e não de guerrilheiros como temos - guerrilheiros e com precipício de mercenarismo porque todos aqueles que lutam e, em troca de luta armada, pedem a compensação financeira são mercenários. O nosso exercito tem uma quadrilha de mercenários», acusou mesmo um jurista entrevistado . Pela sua natureza particular, os problemas de impunidade com origem no Sector de Segurança aparecem também relacionados com outras formas de impunidade, dentro e fora do aparelho de Estado, de grupo ou individual, de natureza económica ou social e também de género. A gravidade da impunidade no Sector de Segurança decorre ainda do facto de ser uma impunidade armada: é enorme, como ilustram os exemplos recolhidos neste inquérito, o potencial de violência, desestabilização e injustiça de forças de segurança desenquadradas de uma obediência rigorosa a um poder democrático civil e, muitas vezes, desligadas de uma adequada disciplina institucional e operacional (o que não iliba a cadeia de comando de ser, como efectivamente é as mais das vezes, responsável directa dos desmandos cometidos). O inquérito da LGDH revela, nesse sentido, um espectro preocupante de formas de impunidade com origem na Polícia e nas Forças Armadas. Não é intenção da LGDH privilegiar neste inquérito as manifestações mais recentes da impunidade (ver infra o enquadramento histórico do problema com maior fôlego) nem reduzir a grande complexidade do fenómeno a acusações superficiais contra este ou aquele protagonista da violência política. A denúncia do momento crítico que vive a Guiné-Bissau, antes e depois do golpe de 12 de Abril de 2012, já foi feita pela Liga no momento e na forma pertinentes. O resultado do inquérito, se não poupa as críticas às forças de segurança, confirma que os guineenses - mesmo as vítimas directas da impunidade – mantêm a capacidade de contextualizar os problemas da Polícia e Forças Armadas nas insuficiências institucionais do Estado e nos graves problemas políticos, sociais e económicos que afectam o País há muitos anos. A primeira obrigação de análise é, por isso, a de remeter a impunidade aos valores originais das nossas forças de segurança, tanto em resultado da luta de libertação como do seu papel num Estado não democrático – como foi a Guiné-Bissau, de forma óbvia, até às primeiras eleições multipartidárias e, depois, de forma mais sinuosa mas não menos rígida na persistência de reflexos totalitários por quem ocupava o poder. «Não podemos atribuir a responsabilidade deste fracasso a uma só instituição. Cada um tem a sua quota-parte. Temos os militares que esta sociedade nos permitiu ter», constata um dirigente político. «Logo a seguir à independência, as Forças Armadas que tínhamos não têm nada ver com as actuais. E as pessoas que se formavam nos Serviços

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de Segurança [era] para reprimir. Os Serviços de Segurança eram um Estado dentro do Estado» . Este mesmo dirigente enumera por isso o que é a genealogia da impunidade no Sector de Segurança, começando no Movimento Reajustador. «Depois do golpe, as coisas pioraram. Começámos a assistir à desagregação do pouco que existia de Estado. A liberalização económica complicou ainda mais as coisas. Os valores começaram a inverter-se. Hoje, quem é ‘macho’ não é quele que conquista a sua posição social através do trabalho, dedicação e mérito. ‘Macho’ é aquele que consegue enganar mais pessoas para atingir o lugar que pretende. A titulo de exemplo, um dia, quando era deputado, estava a andar rumo à sede da ANP quando, de repente, encontrei um grupo de jovens; ao mesmo tempo passou um carro de luxo; estes jovens começaram a dizer que o proprietário daquela viatura era ‘macho’. Perguntei-lhes porque é que o dono da viatura era ‘macho’. Eles respon-deram-me que o homem era ‘macho’ porque andava numa viatura de luxo. Eu disse-lhes que queremos que os guineenses andem com carros de luxo desde que sejam adquiridos licitamente. Isto é um exemplo claro da desagregação dos valores na nossa sociedade». Para um investigador académico, a «conivência» entre militares e civis tem servido de «escudo e cortina para todo o tipo de barbaridade», situando o marco da desorganização do País na guerra de 1998 e na «governação de 2003» com reflexos negativos nos quartéis. «Foram momentos mais marcantes da anarquia no País e da dinâmica de substituição nas Forças Armadas sem quaisquer regras, desta avalanche de promoção de analfabetos ao nível das nossas FA. [São] Pessoas que cultivam outros valores diferentes dos que assistem a democracia e é um grande desafio ou estrangulamento ao funcionamento normal das instituições. Estamos a ser governados por pessoas que, para além de não terem legitimidade, colocam também a questão dos valores que as regem» .

O fracasso das reformas

«Eu grito: não quero ouvir falar das gloriosas Forças Armadas! Eu quero forças armadas normais, iguais às que todos os outros países têm, e viver em paz e progresso» Os problemas do Sector de Segurança estão supostamente identificados por sucessivas missões de iniciativa nacional e internacional, em torno da Reforma do Sector. «Todos eles falharam porque há um factor fundamental que é a confiança. A persistência da desconfiança entre o poder político e os militares contribuiu para o falhanço dos programas anteriores. As pessoas auferem apenas benefícios para depois irem embora. Um outro elemento relacionado com as reformas tem que ver com a sua sustentabilidade e a necessidade de assegurar que os reformados não serão perseguidos. Este aspecto é difícil de concretizar pois, mesmo com a aprovação das leis de amnistia tal como fazem, não as-

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seguram garantias totais para as pessoas responsáveis de crimes de sangue» . Um dirigente de uma ONG local assinala o problema grave da inexistência de recrutamento militar. «As tropas chegam ao quartel duma forma espontânea, ou por motivos amigáveis, ou motivos étnicos. Porque é que os governantes guineenses há trinta anos não estão pensando num recrutamento militar obrigatório? Tem também ligação a um certo interesse pois a pessoa entende: se eu e os meus filhos ficamos neste espaço, então ninguém pode chegar aqui; aqui está a força.» Uma das formas de responder à impunidade do Sector de Segurança, evocada por alguns – uma minoria – dos entrevistados é justificá-la ou diluí-la na impunidade geral. «Muitas das vezes é mais fácil dizer que são os militares, mas, numa visão atenta, também podemos questionar sobre a gestão da coisa pública», nota um empresário. «O que dá direito, por exemplo, a um funcionário das Alfândegas a fazer sair uma viatura no porto sem pagar nada? Quem dá direito a uma pessoa que trabalha nos Serviços de Imposto de isentar a sua loja ou o seu armazém de qualquer tipo de imposto? Então eu diria que, se essas pessoas têm o direito de fazer coisas assim, também digo que os militares usam as suas vias, porque os outros apoderam-se do bem comum e os militares ficam de fora.» Um oficial superior chama a atenção que «todas a falhas existentes nos diversos sectores se reflectem nas Forças Armadas, devido outrossim à fragilidade das nossas instituições, que não sabem resolver os problemas. Estes problemas acabam por culminar na violência». Para este oficial, a necessidade de reforma do sector é indiscutível, «sobretudo com militares e sistemas que temos hoje», mas não relaciona forçosamente reforma a desmobilização. «Reforma é muito mais que isso, ou seja, desmobilizar é também modernizar. A modernização das FA começa com escolas e promoção de competências. Isso não existe. Estamos a promover-nos uns aos outros de forma arbitrária, com base na antiguidade de posto, e isto está a acontecer na ausência de critérios.» Olhada da sociedade civil, a impunidade associada às Forças Armadas tem um sabor amargo porque existe nos guineenses a noção do papel histórico crucial que as FARP tiveram na luta pela independência. «As palavras perderam sentido. Os discursos são muito bem elaborados mas depois estão vazios de conteúdo. Não há aplicabilidade das palavras. Depois do golpe [de 2012], as pessoas continuam a falar das gloriosas Forças Armadas. Eu grito: não quero ouvir falar das gloriosas Forças Armadas! Eu quero forças armadas normais, iguais às que todos os outros países têm, e viver em paz e progresso», declarou uma advogada. «Porque é que eu preciso de forças armadas gloriosas que deixam o país de rastos? Dessa glória, eu prescindo. É uma glória que eles sabem que não tem respeito. Já tiveram mas deixaram perder tudo.» A crise de comando nas Forças Armadas é marcada pela fragilidade institucional, insuficiência de recursos humanos, forte resistência à inovação num contexto de conflito de gerações, promoções com base em clientelismo e afinidade étnica, envolvimento ao mais alto nível no narcotráfico e degradação evidente de infraestruturas.

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Paz armada e segurança privada

«esta situação de insegurança geral incentiva a justiça privada» Se as causas longínquas da impunidade mereceram a atenção dos entrevistados, o inquérito produziu uma compilação ainda mais completa das consequências ou manifestações quotidianas, actuais, da violação de direitos fundamentais do indivíduo. No Sector da Segurança, as respostas permitem desenhar um mapa da impunidade que afecta todas as regiões do país, por acção ou omissão. Estão no primeiro caso os abusos de poder e o uso indevido da força pela Polícia ou as Forças Armadas, contra pessoas isoladas normalmente mas também em conflito directo entre polícias e militares. Cabe também incluir nesse capítulo o aumento da violência armada em contexto ci-vil, com o uso de armas de guerra, por exemplo, no roubo de gado. A existência, em várias regiões do interior, de armas de guerra em mãos de civis – salteadores, grupos de defesa popular ou simplesmente de salteadores ou traficantes – é outro dado alarmante a que aludiram, em número significativo, os entrevistados. As omissões mais graves prendem-se com o recuo, por vezes total, das forças policiais de vastas zonas do território nacional, ou a sua irrelevância em número e a sua escassez de meios. Canchungo é uma janela para esta realidade. «Neste momento, os populares é que fazem a sua patrulha para evitar o roubo de gado, em detrimento das autoridades de segurança, por dois motivos: falta de confiança e de capacidade de resposta», explica um professor local. As armas de guerra «estão dispersas nas mãos das populações» desde, pelo menos, a guerra do 7 de Junho, diz o mesmo professor, que lança um apelo para uma campanha de recolha ou mesmo «compra» de armas nas tabancas. Outra proposta concreta é a criação de um curral comunitário para fazer face ao problema do roubo de gado. Note-se que a ideia é colocar guardas «em defesa do interesse comum e os produtores assumirão os custos da segurança». Devia ser o Estado, em circunstâncias normais, a resolver este problema. «Vamos reunir para adoptar medidas em colaboração com as autoridades locais e estatais para evitar uma situação de imprevisibilidade», explica o professor a esse respeito. «Devo reconhecer que reina um sentimento de revolta nas populações. Quero acrescentar também que se verifica muita interferência na administração da justiça, o que indicia uma falta de independência das autoridades judiciai. Por vários vezes, ministros, governantes, policias e militares ligam aos agentes da justiça para libertar [suspeitos] ou abandonar o processo porque está em causa os seus familiares». Ao confirmar o sentimento de «grande revolta» da população, um régulo explicou que «se uma pessoa que não é desta área for apanhada, pode ser morta devido ao clima de desconfiança e à falta de segurança». Confirma que, no sentido de outros entrevistados da área de Canchungo, «ultimamente, as populações é que assumem a vigia e patrulha para evitar casos de roubos e furtos de gado».

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Evidentemente, esta situação de insegurança geral incentiva a justiça privada». Um activista local explica que em Canchungo «é difícil acabar com o roubo de gado porque a própria comunidade lida com os gatunos» . No sector de Bedanda, existiam recentemente apenas dois efectivos policiais. «Por causa da insuficiência de efectivos, a Polícia local iniciou o processo de recrutamento de novos agentes no seio da população, aos quais designam de colaboradores, sem qualquer qualificação nem noção mínima de segurança», conta um professor e animador local. No sector de Tite, «a revolução já começou», diz um activista dos direitos humanos que refere os «confrontos entre populações munidas com catanas e armas de caça. Já este ano, houve um tirroteio que culminou em vários feridos, sem qualquer reacção das autoridades». O sector de Komo, «geograficamente muito complexo», tem apenas um agente de polícia e um auxiliar, insuficientes para garantir a segurança em áreas de acesso difícil como Catungo, onde a ligação se faz atravessando dois rios. «Os infractores fogem à justiça e procuram refúgio noutras zonas e na prática ficam impunes.»

O disfuncionamento do sector judicial Um sistema de «outros poderes»

«Não se sabe quem manda em quem, embora se saiba que, de facto, há um poder de sombra de que todos os outros dependem» A Guiné-Bissau, que chegou à independência com um regime de partido único, enveredou nos anos 1990 pelo multipartidarismo, adaptando a sua Constituição e legislação ao quadro de um verdadeiro Estado democrático e de direito. A realidade é, porém, de fragilidade institucional, em sectores cruciais para o respeito dos direitos e liberdades fundamentais como é o da Justiça. O inquérito da LGDH identificou problemas graves neste sector como uma das causas da impunidade na Guiné-Bissau, revelando também um quotidiano de aplicação da justiça em que o Estado recuou em cobertura geográfica e onde formas alternativas de justiça ganham terreno. «Continuamos a ter um sistema judiciário corrupto extremamente frágil e vulnerável», afirma um deputado. «A independência da justiça não tem só a ver com a equidistância da justiça perante o poder político mas sim pela forma como ela deve ser exercida em função da consciência e da lei. Ela é cega perante alguns casos concretos mas nem sempre é assim para toda a gente. Alguns continuam a tê-la, outros não».

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Um investigador académico sustenta que «o sector, à semelhança de outros, foi transformado em empresas privadas e está viciado com problemas estruturais acentuados. Há uma politização do sector da justiça e assistimos a nomeações com vista à realização de aspirações políticas, sem pretensão de curar os males de que o sistema padece. Neste contexto, não se pode falar de uma justiça independente». Um dirigente de uma ONG concorda que «a impunidade resulta de uma correlação de forças em que o poder politico e militar tem uma força superior em relação ao poder judicial. O poder judicial na sua maioria está ao serviço do poder militar e político». A falta de independência dos tribunais é também analisada por um economista em termos de ingerência de poderes: «Mesmo no Supremo Tribunal de Justiça, quando organizam os processos eleitorais, os políticos exercem influências e metem dinheiro para assegurar a vitória de pessoas da sua conveniência, que ficam dependentes deles». Também um músico alude à existência de «outros poderes» tomando o lugar do Estado fraco ou, nas suas palavras, de «vários Estados dentro do Estado formal. No fundo, não se sabe onde está o poder. Não se sabe quem manda em quem, embora se saiba que, de facto, há um poder de sombra de que todos os outros dependem e a que prestam vassalagem. Isso leva à impunidade porque, quando se coloca a [questão da] tradução de determinadas pessoas à justiça, faz-se vista grossa. Nestas situações, os próprios aplicadores da lei pensam primeiro na sua situação de segurança e vida porque, se forem aplicar rigorosamente a lei em cada caso e em cada delito, correm o risco de perder o emprego ou serem espancados violentamente..Tudo isso é consequência da falta de um Estado forte, da falta de aplicação da lei e da própria fragilidade dos aplicadores da lei. Assim perpetua-se a impunidade» . A impotência das instâncias judiciais para esclarecer as sucessivas eliminações políticas ao mais alto nível da hierarquia da República foi apontada por vários entrevistados como o sinal mais claro de um sistema em falência. «Todos os dias somos informados das ondas de assassinatos nesta cidade. Infelizmente, os autores são presos mas postos em liberdade. Dizem sempre que os factos foram consumados e que não vale a pena insistir. Eles fazem isso porque sabem que a justiça não funciona e por isso será aceite a resolução dos casos por vias extrajudiciais», nota o responsável de uma rede de organizações comunitárias. «Actualmente, quando as pessoas deparam com problemas procuram a comunicação social para os expor, como se fosse a comunicação social a resolvê-los», constata um engenheiro civil . «A gente opta por essa via para fazer a população ouvir-se e a população, por sua vez, leva os casos para as organizações da sociedade civil. Estas juntam as suas vozes através da comunicação social, como forma de pressionar para que haja justiça. Estes são sinais evidentes que mostram que realmente há problemas no seio da justiça».

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A perda do poder dissuasor

«nenhum poder na Guiné-Bissau tem a liberdade de decidir conforme a sua consciência ou conforme manda a lei» «Um país em que o Presidente da República foi assassinado e até hoje ninguém nos disse nada… A população quer saber quem foram os responsáveis e o que é que está a ser feito. É a primeira vez na História do nosso país que o primeiro magistrado da Nação foi assassinado. Sabemos que as pessoas que o assassinaram têm as suas motivações mas, por mais que cometamos erros, cabe à justiça a tarefa de sancionar os violadores da lei e, em função disso, decidir quem tem a razão. Fala-se sistematicamente da criação das comissões de inquérito mas nunca nenhuma comissão concluiu o seu trabalho, o que incentiva outros crimes» . Um magistrado assinala sobre o mesmo problema que «o poder judicial é um poder dissuasor, é o poder de equilibrar a conduta dos cidadãos, é o poder de amedrontar os potenciais criminosos. Se ele não está a funcionar, todo o mundo está livre de fazer aquilo que entender porque não receia nada». O impacto da impunidade e o contexto de segurança em que ocorre são de tal ordem que exigem a criação de um tribunal penal internacional «especial para a Guiné-Bissau», defende este magistrado. «O problema não é a falta de capacidade técnica dos magistrados [guineenses] mas sim a protecção ou a falta de condições de segurança para fazer cumprir a lei». O magistrado realça o «trabalho brilhante e corajoso» de muitos colegas seus, notando o pouco resultado. «Muitas vezes cumpriram com as suas obrigações de despachar, mandaram notificar ou pediram a comparência do fulano de tal no âmbito de um processo e ele não compareceu porque era militar. Os funcionários judiciais vão lá notificar e ninguém aparece. Os polícias, que são braços armados, não aceitam colaborar em casos que envolvam militares e os seus familiares. Significa que nenhum poder na Guiné-Bissau tem a liberdade de decidir conforme a sua consciência ou conforme manda a lei porque tem que obedecer às orientações dos detentores do poder real». O que se passa actualmente, diz também, é uma «justiça de malhas finas» que apanha apenas o chamado peixe miúdo – o peixe graúdo não é apanhado, sendo notoriamente o caso dos militares envolvidos em crimes. O magistrado, que reconhece alguma responsabilidade dos agentes judiciais na morosidade processual, interroga-se contudo quantos processos estão parados neste momento. Assinala a recusa sistemática por parte dos militares, dos polícias, dos deputados e membros do governo em responder a notificações judiciais. «Há situações em que quando um deputado é notificado eles dizem que o deputado não pode ser ouvido no Ministério Público, são os magistrados

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que têm de deslocar-se até à sede da Assembleia Nacional para ouvi-lo. Isso criou dificuldades de relacionamento entre as duas instituições uns tempos atrás. A ANP é a casa da democracia, eles devem ser os primeiros a cumprir a lei porque são eles que as aprovaram. Infelizmente, tem sido o contrário». O problema da segurança pessoal é identificado por um antigo primeiro-ministro: «A nossa justiça não tem condições de fazer a justiça. Falta aos seus operadores condições de trabalho mas sobretudo condições de protecção para juízes e técnicos judiciais. Hoje em dia, um general tem braços para mexer em qualquer assunto e posso afirmar que a Guiné-Bissau está refém das forças de defesa e segurança».

Justiça e militares

«se um magistrado tem medo de mouro ou feiticeiro, como vai poder aplicar a lei?» Responde, indirectamente, um oficial das Forças Armadas: «Às vezes, quando os nossos juízes não querem julgar, alegam pressão política. Os magistrados têm que assumir a profissão como tal e assumir os riscos a ela inerentes. É, portanto, uma profissão ingrata. Ora, se têm medo, então saiam da profissão» Este militar oferece também outra visão sobre a investigação dos «casos» do passado. «Agarrar factos do passado por vezes não é uma boa orientação. O caso ‘17 de Outubro’, apesar de ser doloroso, aconteceu num contexto muito particular, no partido único. Quando se contextualiza a justiça é bom começar a partir da época em que o país entrou na democracia multipartidária. Agora, no actual contexto, comecemos por alguns casos depois de 1994 ou 1996, como referência. É a partir daí que podemos falar em independência dos tribunais. Ora, a independência dos tribunais é uma conquista. Se os tribunais estão à espera que um dia os políticos lhes dêem a liberdade no exercício das funções, que tirem o ‘cavalinho da chuva’ pois isso jamais vai acontecer. Mas se um magistrado ter medo de mouro ou feiticeiro, como vai poder aplicar a lei?» Uma situação que merece atenção particular, conforme vem alertando a LGDH nos últimos anos, é a necessidade imperiosa de se estabelecer a diferença entre foro pessoal e foro material na justiça militar. Deve impedir-se uma situação em que a especificidade dos crimes cometidos por membros das Forças Armadas criem afinal situações de privilégio e, em última análise, de desresponsabilização efectiva perante a lei. A jurisdição militar encontra-se, com efeito, praticamente paralisada e a causa principal é a sua dependência orgânica do Estado-Maior General das Forças Armadas. De acordo com a legislação em vigor20, a justiça militar é composta de duas categorias de tribunais: o Tribunal Militar Superior e os Tribunais Regionais Militares, com sede em cada uma das regiões administrativas do país. Contudo, apenas se encontra a funcionar o Tribunal Regional Militar de Bissau. A Constituição estabelece que compete aos tribunais militares julgar os crimes

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Lei n.º 02/78, de 20 de Maio 20


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Alínea a) do n.º 2 do artigo 121.º

essencialmente militares21 mas remeteu para o legislador ordinário a tarefa de definir essa tipologia. Trata-se de saber se a jurisdição militar constitui foro material (os tribunais militares julgam certas categorias de crimes) ou se se traduz num foro pessoal (os tribunais militares julgariam quaisquer crimes de membros das forças armadas, os quais gozariam, deste modo, de foro especial). Relativamente a esta questão, tem-se assistido nos últimos anos a vários casos de conflito, ora positivo, ora negativo, de competências entre a Promotoria da Justiça Militar e o Ministério Público. A resolução do problema passa pela alteração à Lei da justiça militar. A LGDH insiste na necessidade de colocar o Promotor de justiça militar na dependência da Procuradoria-Geral da República, como forma de assegurar a sua independência face ao Estado-Maior General das Forças Armadas. É também urgente introduzir reformas profundas no sistema da justiça criminal militar que passa necessariamente pela adopção de um Código de Justiça Militar e pela definição dos crimes de natureza militar para evitar confitos de competências. Uma outra medida é aadopção do regulamento da disciplina militar enquanto único instrumento capaz de assegurar o funcionamento eficaz e regular das instituições castrenses, em prol da estabilidade político-militar.

O «justiciamento» pela Polícia

«Basta a pessoa apresentar a queixa em primeiro lugar para ser considerada detentora da razão e consequente vencedora do processo» O quotidiano da impunidade na Guiné-Bissau faz-se também através de um sistema judicial ausente de parte significativa do território nacional e da substituição de funções de justiça por agentes de segurança. «O principal interveniente no sector de justiça, em vez de ser o tribunal, é a Polícia, que em vez de conduzir o processo para o tribunal tenta fazer justiça através do gabinete de intervenção pública», denuncia um professor. «Muitas vezes, mandam prender o culpado mas, mal o queixoso se retira, mandam soltá-lo. Aconteceu mesmo comigo: roubaram uma máquina e descobrimos os jovens responsáveis [pelo crime], que conduzimos à Policia. Mas logo nessa noite eles foram encontrados na discoteca porque subornaram os agentes e saíram». Este professor assinala, aliás, que, a nível local, «aquilo a que chamamos cela não o é propriamente: é um pequeno quarto sem condições de segurança e muitos são os detidos que fogem». Um dirigente partidário conta por exemplo que, em Canchungo, «os agentes da Polícia não têm competência para administrar a justiça mas fazem-no. Julgam processos sem ter preparação para tal. Aplicam multas desproporcionadas sem ter competências para o efeito». Na mesma cidade, o tribunal sectorial deixou de funcionr desde a morte do juiz, desde Dezembro de 2012.

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«As pessoas recorrem ao tribunal para a reparação de danos causados pelos terceiros, mas em várias ocasiões as vítimas acabam por ser considerados culpadas. Ou seja, há uma inversão da pirâmide», relata o dirigente. O inquérito recolheu outros testemunhos que apontam para uma inversão de presunção nesta «justiça» aplicada por polícias, como conta um activista dos direitos humanos: «Funciona na administração local da justiça uma espécie de presunção de culpa. Basta a pessoa apresentar a queixa em primeiro lugar para ser considerada detentora da razão e consequente vencedora do processo». Outro problema repetidamente apontado nas entrevistas é a corrupção no tribunal, «não obstante ser uma cidade de baixa renda mas, do pouco que existe, as pessoas tentam usá-lo para subornar o pessoal judicial». Um professor de outra região ilustra a relevância da falta de tribunal: Falta de capacitação dos agentes da POP, são pessoas recrutadas clandestinamente, muitos deles sem formação e conhecimentos básicos. Quando um processo é submetido ao tribunal acaba sempre em situação de impunidade devido à corrupção. «Se a pessoa tiver um problema em Quebo, é obrigada a percorrer entre 120 a 150 quilómetros até ao sector de Cossé, Região de Bafatá, para apresentar a queixa ao tribunal de sector desta localidade. Na maioria das vezes, as pessoas que lutam dia a dia para a sobrevivência acabam por desistir pela distância e a falta de recursos para ir e vir». As disfunções na justiça concretizam a lei do mais forte, conclui uma advogada. «Quando se vai ao tribunal não há um processo que decorra com normalidade em que os culpados sejam punidos e sancionados,. Quando há pessoas que sentem que podem fazer tudo sem limites, a vitima sente que não tem que recorrer [aos tribunais] e aceita a sua condição de vitima. Nós temos situações de mortes e assassinatos e não há processos ou, se existirem, não andam, ninguém tem conhecimento deles. Isso gera uma sensação de fragilidade muito grande para o cidadão comum e uma sensação de poder para quem está ao lado dos malfeitores».

As infraestruturas

«o caso mais grave é que desde a guerra de 1998 nunca mais se fez uma prisão na Guiné» O regular funcionamento das instituições de justiça é também afectado pela falta de infraestruturas correccionais, mesmo levando em consideração que as prisões de Bafatá e de Mansôa foram renovadas. Uma jurista salienta que «o caso mais grave é que desde a guerra de 1998 nunca mais se fez uma prisão na Guiné. Pergunta: onde estão as pessoas que tinham sido condenadas com pena de prisão antes da guerra e que estavam na prisão de Brá? Diz-se que alguns estão inseridos no Ministério do Interior. Onde estão? Não eram menos de sessenta pessoas mas nunca mais os apanharam» Outro exemplo apontado pela jurista é o do Tribunal Regional de Bissau, «que funciona desde a Independência num anexo do Ministério da Justiça».

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Ordem jurídica colonial

«uma ordem jurídica colonial num país saído de uma guerra de libertação» Uma análise completa dos problemas actuais do sector da Justiça tem que levar em linha de conta as origens das instituições e quadros judiciais no pós-independência. «A Guiné deve ser dos Estados que menos Estado tinha para o ser», resume um advogado que exerceu actividade em Bissau nos primeiros anos de independência. Este advogado recorda que «o sistema era paroquial, de dimensão mínima»: em termos simples, «a justiça das leis escritas não existia fora de Bissau, onde, verdade seja dita, as questões eram resolvidas pela justiça tradicional». Quanto à legislação, este e outros advogados ouvidos pela LGDH no inquériro reconhecem que após 1975 «continuaram em vigor na Guiné-Bissau leis menos progressistas do que a adoptada em Portugal após o 25 de Abril, uma vez que nenhuma legislação nova chegou após a declaração unilateral de independência em 1973». Por exemplo, aplicava-se nessa época na Guiné-Bissau a legislação de Família ou de Arrendamento mais conservadora do que na antiga metrópole, visto que «a Guiné não tinha capacidade de produção legislativa própria. Os quadros que havia, originários sobretudo do Leste, tinham um pendor mais ideológico do que jurídico», assinala o advogado. No todo, a Guiné-Bissau tinha uma ordem jurídica colonial num país saído de uma guerra de libertação».

A teimosia da amnistia geral

«A amnistia não pode ser amnésia, isto é apagar a memória histórica de um povo, que foi submetido a sofrimentos inenarráveis» A 10 de Outubro de 2004, o general Seabra foi morto durante mais um «levantamento militar», conforme a designação do Memorando de Entendimento assinado dias depois. Este documento propunha, entre as «medidas de ordem política», a necessidade de se «promover diligências» junto do Presidente da República para um «indulto ou comutação de pena» aos militares envolvidos nos casos de 22 e 23 de Novembro de 2001 e de 2 de Dezembro de 2002. Sugeria também idênticas «diligências» junto da Assembleia Nacional Popular para obter «uma amnistia aos implicados nos acontecimentos de 14 de Novembro de 1980, 17 de Outubro de 1985, 17 de Março de 1993, 7 de Junho de 1998, 22 e 23 de Novembro de 2001, 2 de Dezembro de 2002, 14 de Setembro de 2003 e 6 de Outubro de 2004». A ANP, após um debate de urgência que realizou «uma radiografia da (…) situação política vigente no país», aprovou uma Resolução em que concluiu ser «imperativo do poder político o lançamento de um véu sobre o passado». A Resolução acrescentou

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que, a bem da «Reconciliação Nacional e Estabilidade futura da nossa Pátria», não deveria haver impedimento ao exercício de cargos políticos ou funções militares por diminuição de direitos ocorridos desde 1974 até à aprovação do documento. É importante notar que, na Resolução, este tipo de amnistia foi legitimada com a consideração de que «a paz e a reconciliação, são valores fundamentais e inerentes ao Estado de Direito Democrático para o pleno exercício dos direitos de cidadania, assentes na dignidade e respeito da pessoa humana» (sic). Este argumento foi reforçado com a referência à «concórdia nacional como forma de consolidação do Estado de Direito Democrático, marcando uma viragem política definitiva, excluindo todas as formas de tolerância de uso da força como meio de acesso ao poder, assim como de solução de diferendos». Esta Resolução da ANP resultou por sua vez em dois documentos distintos. O primeiro foi o projecto designado por «Lei Geral de Amnistia», apresentado em Novembro de 2004. O segundo, no mês seguinte, veio do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em Nova Iorque, com um apelo aos deputados guineenses para, «ao abordar questão de conceder amnistias a todos aqueles envolidos em intervenções militares desde 1980, tenha em conta os princípios de justiça e de combte à impunidade»22. Um segundo Projecto-Lei foi apresentado em Dezembo de 2006, alargando a proposta de amnistia a vários crimes e infracções. A Lei da Amnistia foi finalmente publicada em 200823 invocando o objectivo de «encontrar um justo equilíbrio entre a generosidade e a necessidade de garantir a paz pública. A figura da amnistia constitui, ela própria, uma espécie de barómetro da situação político-social de um país». Num sentido oposto ao que lhe foi dado pelos deputados da Nação, é isto, exactamente, que a LGDH considera de grande preocupação. Foram amnistiados «os crimes e infracções cometidos tanto na Guiné-Bissau como no estrangeiro, resultantes de motivações político-militares», cometidos até 6 de Outubro de 2004. O artigo 3 da Lei de Amnistia esclarece, com um detalhe penoso, o que passa incólume em sucessivos atentados contra a República e, no fundo, contra um projecto nacional democrático na Guiné-Bissau. Assim, «consideram-se crimes ou infracções políticomilitares, os cometidos contra a segurança exterior e interior do Estado, nomeadamente os Golpes de Estado [sic], as respectivas tentativas, bem como os cometidos durante os conflitos e por causa deles, por militares ou pessoal recrutado e enquadrados [sic] numa das partes do conflito». Após o golpe militar de 12 de Abril, um grupo de partidos com e sem representação militar assinou um «Acordo Político» em que se comprometeram a adoptar, na Assembleia Nacional Popular, uma amnistia para os autores do golpe-de-estado. O documento foi assinado em Bissau a 18 de Maio de 2012 por 25 dos 30 partidos que apoiaram o golpe desde o início. A amnistia para os participantes no golpe de Abril de 2012 foi também incluído no Pacto de Transição e no Acordo Político assinados pouco depois. A proposta de lei submetida ao Parlamento pelo Governo de Transição foi chumbada por imprecisão e falta de consenso a nível nacional. Ao apresentar uma «noção geral» de amnistia, o Projecto-Lei de 2004, repetindo um reflexo recorrente, referiu-a como um «acto do poder político que lança um véu sobre o passado, proibindo a perseguição das pessoas, apagando o crime e todas as suas consequências penais». Este argumento inscreve-se num «direito ao esquecimento» das sociedades em transição que em si está inscrito numa longa genealogia24. Nunca se equacionou cabalmente a inclusão de contrapartidas e de condições à concessão de amnistias, sobretudo as que envolvem a obrigação de contar ou admitir a

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22 Resolução 1580 (2004) do Conselho de Segurança das Nações Unidas, de 22 de Dezembro de 2004.

Lei nº 5/2008, de 18 de Abril, publicada no Boletim Oficial n.15. 23

24 MISZTAL Barbara A, Theories of social remembering, Maidenhead, Berkshire, England; Philadelphia, PA, Open University Press, 2003, 191 pp. p.146.


verdade e a absoluta necessidade de essa declaração acontecer no âmbito de um processo judicialmente enquadrado – e não na informalidade que não garante uma efectiva identificação e responsabilização dos culpados. «Tivemos que constatar, nestes últimos tempos, o hábito de uma utilização por vezes errada e abusiva de termos como “perdão”, “reconciliação”, “amnistia”», denunciaram os bispos católicos em 2005, veiculando preocupações generalizadas da população. «O perdão pode ser concedido a quem se mostrar arrependido e decidido a reparar o mal feito, mas isso não pode nem deve impedir que a justiça siga o seu curso. A verdade deve ser encontrada, a culpa reconhecida, o julgamento feito, as legítimas reivindicações dos lesados devem ser satisfeitas. É este o sentido autêntico da auspiciada Comissão “Verdade e Reconciliação”, baseada nos princípios da Verdade e da Justiça». «A amnistia não pode ser amnésia, isto é apagar a memória histórica de um povo, que foi submetido a sofrimentos inenarráveis, físicos e morais, desde a luta de libertação até hoje, e particularmente durante o conflito sangrento de 1998-99», concluíam também os bispos, resumindo uma posição de princípio que o tempo apenas tornou (ainda) mais pertinente. Os factos demonstram de forma inequívoca que a opção pela via de amnistia na realidade guineense não só consubstancia um desvio aos seus fins, mas também serve de incentivo à institucionalização da impunidade e às violações sistemáticas dos direitos humanos.

Género, idade, fragilidade A casa, local de agressão

«na Guiné pelo facto de se ser mulher já é uma injustiça» Entre as formas de violência directa individual, a violência contra as mulheres, também associada a formas de violência estrutural e a factores culturais, é talvez a mais escondida na sociedade guineense. Não forçosamente por ser condenada de igual forma em diferentes meios sociais, religiosos e étnicos. «Uma coisa é certa, na Guiné pelo facto de se ser mulher já é uma injustiça», resume uma dirigente associativa . «As mulheres são afectadas pela impunidade todos os dias porque, por natureza, elas representam a camada mais vulnerável», explica a responsável de uma organização de luta contra a violência de género. «O homem sempre tem a tendência de abusar do seu poder em relação à mulher. Enquanto prevalecer a impunidade, o homem sente-se à vontade para exercer violência contra as mulheres. Muita das vezes, as mulheres recorrem aos tribunais mas por causa da falta de meios acabam por desistir. Felizmente, hoje temos os centros de acesso à justiça mas, mesmo assim,por vezes as mulheres nem sequer sabem como fazer para beneficiar dos apoios destes centros» . Os indicadores disponíveis quantificam a gravidade do problema a vários níveis:

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51,5% das mulheres guineenses consideram aceitável que o marido lhes bata por diferentes motivos; 45% das mulheres guineenses são afectadas por formas de mutilação genital; 48% dos casamentos apresenta uma diferença de idades entre o homem e a mulher de 20 a 24 anos; a taxa de mortalidade materna é de 405 mortes por 100.000 nascimentos, bastante elevada, apesar da diminuição recente25. «A maior parte das prácticas relacionadas com a violência física, psicológica, sexual e económica contra as mulheres identificadas têm origem sobretudo na família, quer na original, quer na de acolhimento/casamento», revelou um estudo sobre a percepção da violência de género na Guiné-Bissau. «Os principais agressores directos são os maridos, namorados ou companheiros ou ainda os pais e família alargada e a família do marido, conforme a faixa etária. Esta distribuição da violência segue os padrões globais e é a normal numa sociedade com baixa criminalidade e sem um confronto armado declarado. Para além da casa, encontramos como locais de potencial agressão: a escola e o local de trabalho e ainda a rua, mais raramente. Além disso, foram frequentemente identificadas as instituições públicas – polícia, centros de saúde, etc. – e o próprio Estado como locais e actores violentos não só por via da agressão directa mas sobretudo por via da omissão e falta de prestação de serviços, quase sempre dependentes do poder económico de quem os solicita»26. No que concerce à violência com base no género, já existe uma lei contra a violência doméstica na Guiné-Bissau, que aguarda neste momento a promulgação. Esta pesquisa prévia demonstrou que «os crimes contra as mulheres são os mais escondidos», diz uma responsável política que constata também que os colegas homens na ANP «têm menos sensibilidade para o problema». No decurso da consulta nacional, «tudo o que encontrámos, é sério porque há muitos casos daquele género que continum impunes. Há muitas prácticas que não são punidas porque a pessoa não deve ir à justiça, ou porque a vítima ignora que pode queixar-se, ou porque a justiça não actua por desconhecer a situação de violação ou agressão, não podendo agir sem uma denúncia da vítima».

Violação e casamento forçado

«Eu estava a estudar e fui dada em casamento pelo meu tio. O meu pai não quis mas ele não tinha voz» Entre os principais tipos de violência identificados no trabalho de preparação do projecto-de-lei contam-se os casos em que «por uma questão de cultura, a vítima nunca se irá queixar, mesmo que esteja a sofrer vai sofrer até morrer. O caso comum é a violação da mulher pelo marido, entre os casais». O casamento forçado é «outro grande problema na Guiné-Bissau»,

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MICS 2006, cf. ROQUE Sílvia, Violências contra mulheres na Guiné-Bissau: uma análise de percepções e de regras sociais de sexo e seu papel na legitimação da violência, RENLUV, Bissau, 2010, 2 pp, p. 5. 25

26 ROQUE Sílvia, op.cit., p. 2.


diz a mesma responsável política, que conta o seu próprio caso. «Eu estava a estudar e fui dada em casamento pelo meu tio. O meu pai não quis mas ele não tinha voz, não tinha o direito nem de falar. O meu tio assumiu a decisão e obrigou-me a entrar naquele casamento ao fim de três anos. E, como era um casamento que eu não quis, não gostava, em que eu não tinha qualquer sensibilidade para me envolver com aquele homem, ele passou o tempo a bater-me. Incluindo com fivela de ferro», conta a responsável política mostrando a marca de uma fivela de cinto. «Até que tive que aceitar mesmo. Na altura, eu não tinha recursos nem informação e não percebia da justiça o que sei hoje. Passado um ano, nasceu o primeiro filho… A impunidade ganhou». Vário entrevistados para este relatório confirmam o padrão de agressões físicas e abusos sexuais como um problema recorrente. O segredo em torno deste tipo de violência parece ser a regra. Na zona de Canchungo, uma professora referiu que «estas práticas são frequentes mas perpetradas essencialmente por estrangeiros, imigrantes de alguns países como a Guiné-Conacri, Nigéria e Gana. Temos sensibilizado estas pessoas no sentido de as fazer entender que a violência contra as mulheres atenta contra os direitos das mulheres e contra a própria democracia, mas continuamos com enormes dificuldades para ter sucesso nesta luta. São casos que ficam na sua maioria no foro familiar, não são apresentados perante a justiça formal. Nas situações em que a vítima tiver a coragem de denunciar a violência, na maior parte dos casos, as autoridades policiais não dão seguimento até ao fim, premiando assim a impunidade» . Também a responsável de uma organização de luta contra a violência refere casos específicos envolvendo cidadãos estrangeiros, como o que foi «protagonizado por um homem da Guiné-Conacri que amarrou a sua esposa com cordas. Depois de me terem informado do caso dirigí-me imediatamente ao local. Falei com o marido acerca da ilegalidade do seu acto mas ele disse-me que se tratou de uma tradição no seu país» . O casamento forçado, entretanto, existe com diferenças significativas de contexto regional e de rigem étnica, como explica um professor e animador cultural na região de Cantanhez. «Verifica-se com muita frequência casos de casamento precoce e forçado, em particular na cultura balanta. As esposas vão procurar as suas sobrinhas para os maridos para no futuro serem a segunda esposa dele. Geralmente, entre os balantas, a menina não tem direito de escolha do seu parceiro. Antes de atingir a maturidade já vem uma pessoa com dote (pano, dinheiro, prenda etc..) para garantir a mão da menina ainda durante a infância. Por vezes, justificam que é assim para evitar a gravidez precoce das raparigas junto aos seus pais» . Um professor de Catió conta que «nas nossas comunidades, as mulheres são analfabetas e continuam a viver no regime da cultura tradicional das respectivas etnias. A mulher não é tida nem achada. Elas apenas têm uma representante no comité da tabanca. No comité de gestão de escolas nunca chamam as mulheres para integrar o órgão. Nas tabancas que contam com escolas comunitárias, nenhuma. O papel

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da mulher resume-se no cuidado dos filhos e em preparar refeições para a família». Um activista dos direitos humanos conta o caso que acompanhou de uma menor casada com um militar. «Aconteceu comigo um caso em que um oficial da Marinha Nacional casou uma crianca, filha do Comité de Tabanca. Depois da minha reacção, sustentando a tese de que se tratava de um casamento precoce, fui ameaçado pelo oficial. Finalmente, ele acabou por casar com a menor, a qual já deixou de estudar. Esta problemática acontece devido á pobreza. Em situação de dificuldades, muitos pais dão as filhas em casamento com o propósito de melhorar a condição de vida da família». O mesmo activista constata, no entanto, que «agora há mulheres que começam a reinvendicar os seus direitos. Por exemplo, em Djabada Porto, as mulheres assumem as suas responsabilidades comunitárias e exprimem as suas opiniões quando é necessário. Neste momento, estamos também a desenvolver programas de alfabetização funcional para as mulheres».

Mutilação genital: mais grave, mais cedo

«até hoje lembro-me, claro: aquela tia que me pegou a parte do peito e outra que me agarrou uma perna, as duas já morreram e eu não fui assistir ao funeral» A mutilação genital é um problema de contornos complexos. «Hoje existe um pouco menos mas é muito mais grave do que antes. Mudou. Há alguns anos atrás, faziam às meninas mais crescidas. Mas hoje preferem fazer e estão a fazer excisão às bebés recém-nascidas que nem podem pronunciar nada. E mesmo aqueles bebés a sangrar não são levados ao hospital, ficam com os pai e acabam às vezes por morrer», diz. Apesar de haver legislação que pune a mutilação genital, a cerimónia do fanado continua a ser comum e não apenas em meio rural27. «Cada qual pode fazer. Por exemplo, os meus familiares são de família de fanatecas: a minha avó fazia o fanado. Eu mesma sou vítima daquela prática. Foi por isso que fiz questão de chegar à Assembleia para poder um dia discutir lá esta questão. Foi essa a razão por que comecei a fazer política. Eu perdi o primeiro filho por causa da mutilação porque no momento do parto eu estava insuficiente pois não tenho as partes completas e o tempo de nascer a criança passou. Tinha 19 anos. A mutilação foi aos 11. Lembro-me muito bem, até hoje. É uma coisa muito feia. Até hoje lembro-me, claro: aquela tia que me pegou a parte do peito e outra que me agarrou uma perna, as duas já morreram e eu não fui assistir ao funeral» . Esta responsável política assinala que «as pessoas que conhecem o Alcorão dizem que a mutilação não tem motivo religioso. O que se passa é que o fanado é feito por motivos económicos.

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«O fanado é o ritual de passagem à idade adulta, para homens e mulheres. Nem todas as etnias da Guiné-Bissau praticam o fanado das mulheres e, nem todas, embora a maioria, sobretudo as islamizadas , incluem na cerimónia do fanado o acto do corte, prática também conhecida como mutilação genital feminina», cf. ROQUE Sílvia, op.cit., p. 42. 27


Na Guiné-Bissau, 57% das crianças com idade entre 5-14 anos estão envolvidas no trabalho infantil. O fenómeno é potencialmente mais grave nas zonas rurais, onde as crianças têm mais probabilidade de estarem envolvidas que as crianças em meio urbano (65% contra 45% da zona urbana), entre as quais 60% são meninas e 55% são rapazes, segundo o Instituto Nacional de Estatística (dados do MICS 2010). No universo das crianças de 5 a 11 anos, 63% estão implicadas no trabalho, com maior incidência nas atividades económicas fora de casa. No que se refere às atividades domésticas, 27% das crianças estão ocupadas com estas tarefas, impossibilitando-as de frequentar regularmente a escola. 28

Cf. Relatório 2007 da Liga, para mais detalhe sobre este problema.

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A fanateca é alguém que tem o poder. Basta excisar uma menina e os pais pagam-lhe». O fenómeno hoje «é transversal porque acabaram mesmo por perceber que, no meio rural, não ganham tanto como cá em Bissau. Nas barracas que montam aqui, chegam a ter lá 400 crianças, cada uma a pagar 15 mil CFA. Quando acaba aquele ciclo, começam a construir a casa». O combate a este tipo de violência é hoje mais difícil do que há alguns anos, afirmaram alguns entrevistados. Vários casos foram relatados de cobertura das autoridades a estas práticas, como em Gabú, onde «um senhor que vive no estrangeiro veio excisar quatro crianças da sua família», segundo a responsável de uma ONG que combate a violência contra as mulheres. «Um dos nossos colaboradores naquela cidade soube do acontecimento e foi denunciar o caso junto dos tribunais. Infelizmente, o próprio governador desta região foi solicitar a libertação deste senhor alegando que a população local estava a preparar uma manifestação contra a detenção do suspeito. O segundo argumento que invocou era que o suspeito vivia no estrangeiro há 19 anos e, por isso, não sabia da existência da lei contra a mutilação genital feminina na Guiné-Bissau». A situação da mulher guineense, por último, não é favorecida pela legislação antiquada em matéria de Família, por exemplo, uma vez que o Código Civil português de 1966 continua em vigor na Guiné-Bissau.

Crianças entre violência e crueldade

«a criança deitava espuma pela boca» Cumulativamente às formas de violência resultantes ou inerentes à pobreza28, a brutalidade e crueldade dirigida aos mais novos e desprotegidos ultrapassa o admissível e humanamente tolerável. A violência contra as crianças é, aliás, uma área que revela alguns dos aspectos mais chocantes da equação entre autoridadee tradicional, atrasado cultural e desagregação social. Grave, também, é a denúncia de que o poder judicial e as autoridades policiais não agem ou agem em favor dos que brutalizam de várias formas os mais pequenos. A LGDH ouviu, a esse respeito, relatos credíveis sobre a impunidade em crimes contra as crianças e adolescentes. Uma delas, que apenas situaremos genericamente no Leste do país, denuncia a existência de um homem que terá morto «dezenas» de crianças, levadas á sua tabanca pelos pais que esperam uma cura para algum tipo de doença. Um caso documentado pela responsável de uma organização de apoio à criança foi o de um menino levado a essa tabanca pelos pais porque «a criança deitava espuma pela boca». O menino foi morto selvaticamente à pancada. Apesar de provas indiscutíveis do crime terem sido entregues às autoridades, o responsável continuava impune á data em que esta responsável foi entrevistada29.

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A mesma responsável denunciou também a recorrência do casamento forçado de menores, por motivações religiosas ou culturais, entre famílias ou comunidades onde «uma rapariga não pode estar sem homem». Outros casos ouvidos no âmbito do inquérito à impunidade abrangem situações de trafico de crianças, de mendicidade obrigatória e de violência doméstica. O panorama é de uma incapacidade, e por vezes falta de vontade, das autoridades em responder a crimes como violação de menores ou exploração sexual. A prostituição infantil, nomeadamente, está a agravar-se nas Ilhas, acompanhando o aumento de actividades e a chegada de forasteiros. Não existem tão-pouco mecanismos e instituições pensadas para lidar com a delinquência juvenil e a assistência a menores envolvidos em violência – como vítimas tanto como autores. O Tribunal de Menores só funciona em Bissau e com muitas limitações, com consequências directas na fragilidade do direito à prestação de alimentos e do exercicio do poder parental, que não são fiscalizados. Outros relatos recolhidos apontam para a multiplicação de casos de mendicidade forçada das crianças nos centros urbanos a mando dos mestres ou professores corânicos. Um fenómeno para o qual têm alertado a LGDH e outras organizações da sociedade civil é o das crianças talibé. Cerca de duzentas crianças guineenses são enviadas todos os anos para os países da Subregião, sobretudo para o Senegal e República da Guiné, com o objectivo de aí frequentarem escolas corânicas. Muitas dessas crianças acabam afinal por ser transformadas em mendigos, ou mesmo em escravos, conforme os casos que vieram a público de grupos de meninos guineenses nas ruas de Dacar. Estas situações resultam em geral de uma obrigação de as crianças angariarem diariamente um montante fixado pelo mestre, sob a ameaça de tratamentos degradantes e de maus-tratos. O resultado é que muitas crianças fugiram das escolas, deambulando pelas ruas e sujeitas a todo o tipo de situações, incluindo prostituição e delinquência. A dimensão do problema é patente nos dois centros de acolhimento que existem em Dacar, onde 80% das crianças são originárias da Guiné-Bissau. O fenómeno, comum a todos os países da Subregião, precisa de medidas de fundo da parte das autoridades guineenses, numa perspectiva de resolução de violações de direitos humanos das crianças muito para além de um problema cultural.

O ressurgimento do poder tradicional A substituição do Estado

«às vezes a sua justiça é um pouco deficiente, sobretudo se estiver envolvido um familiar do régulo» Uma das consequências mais nefastas do recuo do Estado é a sua substituição por estruturas paralelas que vão ganhando terreno em sectores como a justiça, a ordem pública ou a administração territorial. Este fenómeno é tanto mais preocupante quanto se trata de formas não democráticas do exercício do poder, muitas vezes em violação dos

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direitos fundamentais, alimentando o ciclo de impunidade e multiplicando as dinâmicas de fragilização do Estado. Como constata um dos magistrados entrevistados, «as pessoas começam a não acreditar na justiça, nos tribunais e nos juízes. Há quem recorra à justiça tradicional, ou a uma justiça à sua maneira, porque já não reconhece crédito a ninguém. É por isso necessário resgatar esta imagem negativa da justiça e para isso a impunidade tem que ser atenuada». O dirigente de uma organização local nota que o Estado é hoje, na Guiné-Bissau, apenas uma de entre outras estruturas de poder, que muitas comunidades colocam no mesmo plano que as autoridades tradicionais e as autoridades religiosas. No quotidiano, as pessoas fazem apelo a uma dessas instâncias, por exemplo apresentando uma queixa num tribunal por causa de uma decisão aplicada por um régulo, «porque muitas vezes ele também é subornado com vacas, o régulo não trabalha, não tem outra forma de angariar fundos». Isso acontece, diz o mesmo responsável, apenas «porque o Estado não trabalha bem». De outra forma, as autoridades tradicionais não teriam sequer encontrado oportunidade para aumentar a sua influência. O mesmo para as autoridades religiosas. «A casa do imam é um local de reconciliação e ele reconcilia mas às vezes a sua justiça é um pouco deficiente, sobretudo se estiver envolvido um familiar do régulo…»

Continuidade de autoridade

«Muitas coisas, incluindo assassinatos, precisam de algumas respostas tradicionais» Para os régulos, o exercício de funções de administração local ou de justiça, ou mesmo de cobrança de impostos, faz parte das competências que outrora eram reconhecidas às autoridades tradicionais antes da luta de libertação e da independência. Com ou sem referência directa ao tempo do PAIGC como partido único, a presença revigorada das autoridades tradicionais corresponde, por isso, à continuidade de formas de organização consideradas autênticas e que a ideologia e prática do PAIGC de Amílcar Cabral nunca conseguiram enquadrar por completo. «Eu sou régulo e tenho autoridade sobre as diferentes etnias que habitam o meu regulado», explica taxativo um líder tradicional da região de Canchungo, acrescentando que a obrigação de os cidadãos pagarem impostos deve ser cumprida através dos regulados. O poder tradicional surge na melhor das hipóteses como coadjuvante das instituições de soberania, numa relação de «colaboração» que se estende ao sector da Justiça. «Muitas coisas, incluindo assassinatos, precisam de algumas respostas tradicionais. Queremos que o poder de autoridade seja reconhecido como dantes. Hoje surgiram com ideias de estatutos. [Mas] desde quando o poder tradicional precisa de estatutos para funcionar?» A vulgarização da ideia de anterioridade do poder tradicional em relação ao Estado tem um efeito de erosão na legitimidade do Estado junto da população, tão mais eficaz

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quanto os detentores deste tipo de autoridade não reconhecem escrutínio exterior, nem mesmo quando repetem os mesmos vícios. «Os comités e chefes de tabanca devem ser pessoas que devem estar na vanguarda da promoção de medidas com vista a minimizar os efeitos negativos da fragilidade do Estado. Porém, se os comités, os chefes de tabanca e as autoridades locais são nomeados por critérios de amizade, os problemas vão continuar», chama a atenção um activista dos direitos humanos.

Djokraenda e «leis» paralelas

«Eu próprio fui convidado a escrever a lei da minha aldeia» Um professor do Sul do país confirma que «as pessoas recorrem mais ao direito costumeiro» e cada bairro ou tabanca na sua região tem leis próprias. «Eu próprio fui convidado a escrever a lei da minha aldeia. Só evitei fazê-lo por causa do meu trabalho». Outro professor, na região de Buba, faz referência ao sistema de mediação e conciliação tradicional conhecido por Djokraenda, cada vez mais frequente no sector do Quebo. «O Djokraenda, muitas vezes, complica ainda mais o problema».

O irã cego

«Depois, justifica-se que a causa da morte foi uma serpente» Igualmente relacionado com mecanismos tradicionais de autoridade e a interferência de supostos factores culturais na administração da justiça é o fenómeno chamado de irã cego. A práctica do irã cego «é desenvolvida por um núcleo de pessoas que agora tem despertado uma atenção especial dos membros da comunidade. Ocorre quando existe a suspeita de que uma pessoa é feiticeira e tenha originado a morte de uma pessoa por superstição». O mapa dos fenómenos de irã cego coincide bastante com as tabancas onde as autoridades do Estado não chegam, diz o mesmo professor, «e praticamente são as comunidades que criam as próprias leis e assumem a justiça de natureza tradicional» . Um activista em Buba faz uma breve lista de situações que permitem aferir a gravidade do problema. Num dos casos, conta, um homem acusado de feitiçaria procurou a sua ajuda para mediar o conflito. «Aparentemente a questão ficou resolvida. Porém, quando o homem voltou para casa, fomos informados que desapareceu. Até hoje não é conhecido o seu paradeiro. Tudo isto não é normal. Ele desapareceu sem qualquer explicação plausível e a sua família ficou desamparada».

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Na secção de São José a população também expulsou um homem acusado de feitiçaria «devido à sua riqueza». O conflito foi mediado pelo governador da região de Quínara, sem resultado. Uma segunda tentativa de mediação, com agentes do comando regional de Buba, redundou em fracasso. Finalmente, foi pedida uma intervenção policial a Bissau e durante a operação vários «infractores» foram detidos. «Foi uma das poucas vezes em que senti a presença do Estado», nota o activista. «Mesmo assim, a população local decidiu não acatar a decisão das autoridades judiciais. Para pôr cobro definitivamente ao conflito, o homen teve que mudar para uma outra tabanca próxima da onde foi expulso». Já este ano, mais cinco pessoas (incluindo duas mulheres) foram acusadas de feitiçaria e conduzidos às matas onde foram severamente espancados. «Actos deste género têm acontecido com muita frequência por causa da fragilidade e da fraca capacidade das autoridades do Estado», conclui o activista.

«Adulteração» da base cultural

«se formos analisar a nossa sociedade dita tradicional, é difícil encontrar aquilo a que assistirmos hoje» Segundo um investigador, a ideia de que estas manifestações de poder «tradicional» têm um fundo cultural autêntico não tem fundamento. «Não podemos falar de aspectos culturais porque, se formos analisar a nossa sociedade dita tradicional, é difícil encontrar aquilo a que assistirmos hoje, no seu aspecto genuíno. Só se isso for visto na perspectiva de adulteração de base cultural». O investigador acrescenta que o problema da (re)emergência do poder tradicional é o resultado do abandono de um sistema e a adopção de um outro sem que a sociedade tenha verdadeiramente operado uma apropriação. «Os valores foram banalizados. É um problema de valores. Hoje é mais fácil mentir perante o tribunal do que frente à baloba. Se devemos chamar a isso questões culturais, eu duvido. Estamos num sistema que não diz respeito à maior parte das pessoas. Daí a banalização. Dificilmente esse sistema irá funcionar como balizador das regras de jogo. Temos um regime com que nos autoidentificamos mas que não respeitamos». Os constrangimentos de ordem cultural na aplicação da justiça não são desprezíveis como factor de impunidade. «Muitas vezes, a forma de gerir a nossa cultura representa um dos aspectos importantes a registar, ao incidir muito no incumprimento da lei. Por exemplo: quando alguém é morto por esfaqueamento ou por atropelamento e, em consequência, o autor é levado à Polícia ou à Justiça, os próprios familiares da vítima aparecem responsabilizando os feiticeiros e bruxas por tal acto e dizendo que o autor material do acto serviu apenas de bode expiatório»,

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explica um oficial das Forças Armadas. «Qual é a importância disto? Do ponto de vista jurídico-penal, sobretudo na aplicação de sanções, como consequência do crime, digamos que a pena quando é aplicada tem o objectivo de corrigir o indivíduo criminoso e de chamar a atenção para as demais pessoas que, eventualmente, no futuro poderiam ser criminosos. Ora, se na consciência colectiva destas pessoas figura que o individuo sancionado pela lei é inocente ou foi apenas objecto do destino, mesmo que seja punido por mil anos, jamais os outros estarão convencidos ou vão interiorizar a sentença como um elemento dissuasor. Não acreditam que o tal condenado é o autor real do crime mas sim que foi praticado por um feiticeiro. E, se o próprio criminoso acreditar também que na verdade o feiticeiro foi responsável pela morte da vítima, não pode corrigir, rejeitando a sua culpa. Portanto, esta mentalidade não ajuda o poder judicial, leva, aliás, os juízes a terem medo de fazer julgamento. Afinal, os juízes são pessoas, nasceram aqui e cresceram nesta cultura - até porque muitos juízes acreditam que os feiticeiros matam».

A etnicização dos conflitos sociais Regressão por tribalização

«quando se busca a quota do mercado de voto, se não se dispõe de competência e arte política recorre-se a factores étnicos» A Guiné-Bissau, «que atingiu um certo patamar, hoje está a regredir e a sociedade está a fragmentar-se». Estas palavras simples, proferidas por um músico, sintetizam a preocupação manifestada por muitos entrevistados em relação ao aumento da conflitualidade de base étnica ou o aproveitamento de diferenças para as transformar em rivalidades violentas. «Como é possível que, numa sociedade onde os grupos étnicos se casam mutuamente, apareçam pessoas com pretensão de ser um grupo à parte? Isso é só paranóia de pessoas que não têm a cabeça a funcionar bem», acrescenta. «Na política, quando se busca a quota do mercado de voto, se não se dispõe de competência e arte política recorre-se a factores étnicos para poder obter mais votos. Fala-se de paz, mas nós não temos o problema da falta de paz. Temos, sim, políticos malfeitores que instrumentalizam e utilizam a religião e os grupos étnicos para aumentar o seu número de votos» . Em chão manjaco, acrescenta um activista local, o roubo de gado poderá degenerar «numa guerra étnica entre a etnia manjaca e os balantas. Os populares daquela zona já falam abertamente nesta eventualidade.Na reunião em que estes problemas foram abordados, foi avançada uma lista de nomes de altos responsáveis políticos que instigam estes actos violentos. As autori-

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dades policiais não dispõem de condições nem capacidade para fazer face a estas situações. Permanecem impávidos». Um líder tradicional na mesma região fala também no «perigo de uma guerra tribal» se nada se fizer para evitar a escalada do conflito.O mesmo líder, fazendo eco de acusações no mesmo sentido repetidas noutras entrevistas, alude à colaboração de elementos das Forças Armadas no roubo de gado, alegadamente fornecendo «armas e munições» à população. Se todos parecem ver, poucos parecem conseguir verbalizar o problema «da etnicização das Forças Armadas», segundo formula um dirigente partidário. «Esta situação não era assim no início, até porque as pessoas aderiram às Forças Armadas inadvertidamente. Só mais tarde é que houve aproveitamento político de tudo isso. Por isso, hoje questiona-se se temos forças armadas republicanas ou misturadas com milícias fiéis a determinados chefes».

Da má gestão aos crimes económicos Cultura patrimonial na gestão pública

«Nós testemunhámos quantas pontas existiam através daquele crédito que não foi pago» O inquérito revela uma consciência exacta da forma como a gestão da coisa pública, desde muito cedo na história nacional, não foi feita servindo o bem comum, confirmando que a gestão irresponsável do património de todos é um dos agentes mais corrosivos na fragilização do Estado e na perpetuação de padrões de corrupção, abuso e irresponsabilidade. A impunidade visível quanto à violência política acompanhou-se de uma prática silenciosa de crimes económicos e financeiros, desde o desvio de fundos públicos até à utilização recorrente dos cargos – na Administração, nas Forças Armadas, nos órgãos de soberania – a bem de clientelas pessoais ou partidárias. A impunidade significou, neste campo, a instalação de uma cultura patrimonial do poder fora do escrutínio dos cidadãos. Outro dado que resulta do inquérito é que a impunidade de crimes económicos alimentou e alimentou-se da situação de pobreza generalizada do país e do alastramento de prácticas de corrupção aos mais variados níveis. Alguns entrevistados recordam que o período do Presidente Luís Cabral deixou um legado ambivalente (também) neste aspecto. Por um lado, uma época de grande controlo social pelo Partido, de moralização forçada da vida pública. Por outro, uma possibilidade efectiva de impunidade ao mais alto nível por má gestão, favorecimento ou abuso de bens públicos, iniciando vícios no exercício do poder jamais reparados ou corrigidos. «Naquela altura, as pessoas tinham medo da prisão e o roubo diminuiu. Mas depois de Luís Cabral as coisas mudaram porque entraram [no poder] pessoas com uma certa ambição pessoal. Começaram logo com des-

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vios económicos de Estado; criaram políticas de interesse. Mais tarde, veio o comércio livre. As pessoas tinham a liberdade de fazer o comércio, mas também era um buraco criado para que os governantes pudessem ter proveitos, pudessem fazer investimentos, abrindo empresas pessoais com os fundos do Estado. Portanto, fizeram o que lhes apeteceu», conta o dirigente de uma organização não-governamental. Dá um exemplo: «O BIG (Banco Internacional da Guiné-Bissau) abriu para conceder créditos, dizem créditos agrícolas… Nós testemunhámos quantas pontas existiam através daquele crédito que não foi pago. Talvez aquilo tenha estado na origem da decadência do BIG, que nunca mais emergiu. Pegaram dinheiro, abriram pontas, compraram tractores, camiões: a partir deste momento surgiu a impunidade. A justiça já não funcionava porque, se eu pegasse no dinheiro [a crédito] e não pagasse, enquanto governante, o banco não me levava ao tribunal. As coisas foram-se arrastando assim. A justiça deixou de funcionar porque ensinaram as pessoas a fazer trafulhices, pois se eu tenho uma dívida de cem milhões de CFA, basta-me dar dois milhões ao funcionário da justiça para ele ficar adiando o processo por cinco ou dez anos sem fazer nada».

Inoperância do Tribunal de Contas

«o Tribunal nunca emitiu uma nota de pagamento de multas. Ora, se não emite uma nota, também não pode castigar» Um antigo governante assinalou a existência de «situações de enriquecimento ilícito», salientando que, «neste âmbito, quanto maior for a impunidade maior será o enriquecimento ilícito, porque sabe-se que, furtando alguma coisa, não há sanção porque os tribunais não funcionam. As próprias pessoas que aparentemente devem julgar os corruptos também estão envolvidos neste fenómeno». Um magistrado com conhecimento directo deste tipo de crimes e «preocupado com as fraudes nas contas públicas» refere que, em princípio, uma parte da luta contra a impunidade neste campo deveria ser a missão principal do Tribunal de Contas. O TC foi criado há vinte anos e uma das suas principais competências «é responsabilizar as pessoas que são gestores das coisas públicas mas que as aproveitam para seu proveito próprio. A responsabilização que o TC pode aplicar a estas pessoas não é igual à dos tribunais comuns, ou seja, o TC não têm competências para responsabilizar quem quer que seja na matéria penal, mas actua sim em situações em que há indivíduos com contas por pagar ou em resposta a infrações financeiras. Se o TC constatar que efetivamente houve essas prácticas, o tribunal obriga a repor o montante em causa, apurado através de auditorias. Também pode aplicar uma multa a quem violar os dispositivos legais. Mas repare: o Tribunal de Contas já completou 20

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anos e nunca aplicou uma dessas medidas. Não só: o Tribunal nunca emitiu uma nota de pagamento de multas. Ora, se não emite uma nota, também não pode castigar ou sancionar». O mesmo magistrado acrescenta que igual inoperância se verifica quanto às competências de fiscalização prévia ou sucessiva: o TC nunca sancionou os contratos assinados pelo governo, do recrutamento do pessoal para a Administração Pública e outros actos em que o tribunal tem competência. Por um lado, diz ainda este magistrado, o Estado nunca criou condições para o funcionamento normal do Tribunal de Contas; por outro, «a sociedade guineense nem sequer compreende o papel que deveria ter o tribunal». Por ambas as vias, o TC contribui, afinal, para acentuar a impunidade.

Narcotráfico na cúpula do Estado

«A corrupção começou a ser uma corrupção de Estado. Isto vai atender de novo àquela mentalidade de que quem consegue abusar dos bens públicos é esperto»

O’REGAN David e THOMPSON Peter, Advancing Stability and Reconciliation in Guinea-Bissau: Lessons from Africa’s First NarcoState, African Center for Strategic Studies, 2013, 58 pp., p.1. 30

O fenómeno mais preocupante é, sem dúvida, a instalação de lógicas «delituosas ou mesmo criminosas» na mais alta hierarquia do Estado, para usar a expressão de uma jurista. Não é objectivo da LGDH participar no debate sobre se a Guiné-Bissau é ou não um narco-estado – discussão estéril, aliás, em estratégias de longo alcance para combater este flagelo e que tem sido alimentada pela mera preocupação de catalogar o País sem na verdade compreender as dinâmicas envolvidas. É, ao mesmo tempo, inegável que a ambição pessoal e o ganho a qualquer preço levaram altos responsáveis do Estado a entrarem em aliança, ou pelo menos em negócio, com redes internacionais de narcotráfico. A recente detenção do contra-almirante Bubo Na Tchuto e as acusações da justiça americana aos mais altos titulares do poder político e militar apenas vieram expor à luz do dia uma realidade que ameaça a própria existência da Guiné-Bissau enquanto nação independente. Diferentes relatórios e investigações chamaram a atenção para as dimensões interna e externa do problema, sendo certo que a comunidade internacional tem reagido com mais preocupação às consequências externas (regionais e globais) do tráfico e não tanto aos reflexos quotidianos para a população guineense e para o Estado. «Explorando a volatilidade [política], redes de tráfico cooptaram elementos ao mais alto nível da liderança política e militar e transformaram a Guiné-Bissau num ponto de cruzamento de comércio ilegal, em particular do negócio internacional milionário da cocaína. Isto contribuiu directamente para a instabilidade no Senegal, na República da Guiné, na Libéria, Mali, Mauritânia, Nigéria e noutros pontos de África. Do mesmo modo, grupos de crime organizado de África e da Europa estabeleceram laços com o tráfico na Guiné-Bissau».30 Outras ligações perigosas, segundo diferentes estudos, relacionam este nó de tráfico altamente lucrativo com as redes do integrismo islâmico no Sahel (incluindo a Al-Qaida no Magrebe Islâmico, AQMI). A dimensão do negócio, a extensão das redes na cúpula

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do Estado e a profundidade dos danos no tecido social são, de algum modo, o corolário de uma cultura de impunidade que se agravou na última década mas que tem raízes nas práticas nocivas de poder desde o nascimento da Guiné-Bissau independente. «A corrupção tem sempre benefícios económicos», resume a mesma jurista . «As apreensões e operações feitas pela polícia em 2004, 2005 e 2007, e os relatórios de organismos internacionais, sugerem não só a presença de grupos latino-americanos de tráfico de droga no país, mas também o escalonamento das suas actividades e uso do nosso país como um centro de armazenamento de cocaína, ocorrendo esse tráfico tanto por mar como pelo ar. A estes, juntam-se grupos organizados de criminosos nigerianos, envolvidos no tráfico de droga que, cada vez mais, têm utilizado a Guiné-Bissau como um ponto de partida e fornecedor de indivíduos que são usados como “mulas”, segundo designação corrente».31 A diferença, nos últimos anos, foi de escala e de substância. «A corrupção começou a ser uma corrupção de Estado. Isto vai atender de novo àquela mentalidade de que quem consegue abusar dos bens públicos é esperto, tanto mais que nunca é preso, nunca é julgado, nunca é apanhado. As pessoas acabam por ver a possibilidade de ascender aos mais altos cargos porque é uma forma de ter acesso a fundos públicos e de poder utilizá-los em benefício próprio e de familiares. A dificuldade em trabalhar o fenómeno da droga é que um Bubo não é só ele, serve uma rede de interessados», diz a jurista. Perante situações flagrantes e provadas de envolvimento em operações que extravasam o exercício das suas funções, nada acontece a altos titulares. «Temos o António Indjai que assina uma confissão perante o Procurador-Geral da República e o CEMGFA da altura, Zamora Induta, e que diz que esteve em Cufar numa operação de droga e assina uma confissão. Indjai devia ter ido de viagem. Não só não foi como, no 1 de Abril, indiciado por narcotráfico, vai buscar o Bubo nas Nações Unidas…» O narcotráfico, para além de servir uma forma de enriquecimento ilícito e principal factor da instabilidade política na Guiné-Bissau, devido às ligações entre certos elementos das forças armadas e as redes de tráfico de droga, servem de mecanismos adicionais pelos quais oficiais superiores têm vindo a consolidar o seu poder.

A erosão do património simbólico

«De combatente da Liberdade da Pátria a um narcotraficante internacional o que há no meio? É iliteracia, em primeiro lugar» A gravidade do narcotráfico tem a ver obviamente com a grande criminalidade associada a lucros colossais e a um tipo de violência antes desconhecido na Guiné-Bissau. Mas o dano é, também, no património simbólico da Nação, pois os guineenses descobrem algumas das suas referências históricas – recordemos o papel de Bubo Na Tchuto na Junta Militar – expostas ao mundo, e por jurisdição estrangeira, como elementos acusados de tráfico e terrorismo. A delapidação do passado é chocante

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31 Cf. Processo Referente às Aeronaves Retidas no Aeroporto Osvaldo Vieira.


mas, diz a mesma jurista, não surpreende. «De combatente da Liberdade da Pátria a um narcotraficante internacional o que há no meio? É iliteracia, em primeiro lugar. E, em segundo lugar, é uma mentalidade generalizada ao mais alto nível, que começa com aqueles que não têm escola aos outros que se formaram bem, de que a droga arranjou outros países. Dizem: se Miami é o que é, se Cabo Verde tem um par de palmarejo, há que fazer bem a coisa também na Guiné-Bissau. O Tagme disse-me isso: ‘Se as pessoas pararem de falar, a [nossa] terra arranja-se com esta coisa’ [da droga] (...) Isto até podia ser muito bonito se eles não a fossem pôr no Tesouro Público - 700 quilos de cocaína, que foram lá postas com autorização do PGR!»

O assalto aos recursos naturais Desmatação a grande ritmo

«Está sendo feita por uma cúpula de pessoas, maioritariamente estrangeiros, que se associaram a nacionais» A proporção e o ritmo da desflorestação na Guiné-Bissau são dramáticos, avaliando por várias entrevistas que referem conhecimento directo do terreno. «Estamos em perigo», alerta o dirigente de uma organização no sector de Tombali. «Hoje, a devastação florestal não é apenas numa região, é quase em todo o território nacional, de Gabu até Cacine. Está sendo feita por uma cúpula de pessoas, maioritariamente estrangeiros, que se associaram a nacionais para alegarem ter donos de empresas [guineenses], quer dizer, aquelas pessoas que têm licenças de abate. Mas o abate anteriormente autorizado era para sustentar as serrações». Desmatações em grande escala estão também a acontecer em Iemberém e noutras áreas da zona de Guiledje, dizem outros entrevistados. A responsabilidade é também de populações guineenses. Também no Cantanhez há estrangeiros da Guiné-Conacri «que também participam muito no processo de desmatação com o cultivo de mancarra e mandioca, que depois exportam para o seu país». O ataque aos recursos naturais e a degradação ambiental atingiram também proporções alarmantes no sector de Buba, diz um artesão. «O sector está a ser ocupado por estrangeiros vindos de Conacri, do Senegal, da Serra Leoa, do Mali. Estão a desmatar os mangais nas zonas costeiras para fumagem de peixe. Além da pesca ilegal que está a pôr em causa a reserva haliêutica» . Um dirigente da sociedade civil alerta para o risco grave de desertificação do território guineense, à semelhança do que aconteceu no Senegal, que acusa de usar a relação de forças na integração regional para capitalizar com os recursos guineenses.

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Parte III. O peso da Hist贸ria longa

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Escravatura e colonialismo Não é possível compreender a impunidade hoje reinante na Guiné-Bissau sem antes encarar a forma como ela ganhou terreno gradualmente nas práticas de poder, nos valores de sociedade e nas relações humanas – ao longo de séculos, não apenas de décadas. «Antes do surgimento do Estado já havia a impunidade; aqueles que estavam a fazer o trabalho para a criação de um novo Estado não estavam a fazer um trabalho eficaz que permitisse que aquelas situações desaparecessem com o novo Estado», constata um líder religioso guineense inquirido para este relatório. A pré-história da impunidade na Guiné-Bissau, digamos, deve ser encarada em três planos. Um, o das condições da guerra de libertação nos anos 1960-70 contra o regime português. Outro, o da consideração do extenso legado de violência, injustiça e atraso das relações da chamada Senegâmbia com Portugal e o mundo ocidental. Por último, importa não ignorar (ou desconsiderar) as condições de violência interna nas sociedades pré-coloniais no território que hoje corresponde à Guiné-Bissau. «A colaboração entre comerciantes e elites que incentivou as razias de escravos e o tráfico negreiro devem ser reconhecidas como uma das principais razões do envolvimento progressivo das sociedades oeste-africanas em guerras e fracturas sociais tragicamente destrutivas»32. Estes processos complexos permanecem na memória dos grupos envolvidos, com o exemplo significativo da formação do espaço kaabunké33. Por outro lado, o controlo efectivo de todo o território pela Administração portuguesa foi bastante débil até às primeiras décadas do século passado (o que, aliás, determinou um padrão de campanhas militares de grande brutalidade para conseguir a «pacificação» dos africanos). Isso significou que as relações de confronto e competição não se operaram apenas entre «estrangeiros» (portugueses e caboverdianos, sobretudo) e «guineenses» mas também dentro do mosaico étnico que cabe nesta última categoria34. É correcto afirmar que a luta de libertação guineense, liderada por Amílcar Cabral, foi imposta pela perpetuação de uma impunidade irredutível: a opressão colonial dos povos da Guiné e Cabo Verde por Portugal, que na segunda metade do século XX permanecia como último reduto do imperalismo europeu do século XIX. A questão da impunidade deve ser portanto enquadrada neste tempo longo que foi o da

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32 BROOKS Georges E, Landlords and strangers : ecology, society, and trade in Western Africa, 1000-1630, Boulder, Westview Press, 1993, p.57.

33 LOPES Carlos, Kaabunké: espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, 302 p.

34 Sobre a pauperização, por vezes anedótica, do projecto colonial português na Guiné ao longo do século XIX leia-se Pélissier (1989), op.cit.


MCGUIRE Harriet C., «Vinte anos de cooperação para a formação de quadros», in GuinéBissau Vinte anos de Independência, coord. CARDOSO, Carlos e AUGEL, Johannes, Bissau, INEP, 1993, 406 p., pp 79-92.

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36 CABRAL Luís, Crónica da libertação, Lisboa, O Jornal, 1984, 464 p., p.73Bissau, INEP, 1993, 406 p., pp 79-92.

37 A Guerra, série televisiva dirigida por Joaquim Furtado para a RTP.

relação dos Rios da Guiné e Cabo Verde com a Europa desde o século XV e nas relações intra/intertribais. As movimentações de populações nesta região são feitas de forma violenta. A discussão da impunidade no presente da Guiné-Bissau não pode iludir ou ofuscar o reconhecimento de que a exploração, violência e humilhação inerentes à escravatura deixou uma dívida moral e sequelas económicas e culturais que ficaram até hoje sem compensação efectiva Abolida a escravatura, o sistema de impunidade continuou, resistiu e reinventou-se pela força, claro está, com a continuação das «campanhas de pacificação» até bem dentro dos anos 1930. Mas também por via legislativa, nomeadamente com o Acto Colonial de 1930 e o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, de 1954, bases legais para a espoliação da dignidade individual de milhões de africanos sob dominação portuguesa. Também aqui, é possível quantificar algumas consequências, por exemplo na educação, para fazer uma ideia do fenómeno: «Vale a pena lembrar que o país, ao conquistar a sua independência, dispunha somente de 14 pessoas com formação superior»35.

Pidjiguiti, o massacre dos grevistas No final dos anos 1950, era convicção entre os anticolonialistas que estiveram na génese do PAIGC e de outros movimentos de libertação que o derrube do regime de Oliveira Salazar iria ter como consequência natural a independência das colónias portuguesas. O anticolonialismo identificava-se, também, com o antifascismo. As eleições presidenciais em Portugal em 1958, em que Humberto Delgado concorreu contra o candidato do regime, marcaram, porém, o fim das ilusões. Na Guiné, o momento clarificador sobre a natureza do regime português e a obstinação de Oliveira Salazar em manter a ordem colonial, fosse à custa ainda de maior violência, surgiu a 3 de Agosto de 1959. Nessa data, um protesto de trabalhadores do porto de Pidjiguiti teve como resposta um banho de sangue: forças policiais e paramilitares portuguesas dispararam contra os grevistas, causando um número indeterminado de mortos, rondando uma centena. «Na reunião com o Amilcar (19/9/959), depois do nosso relatório sobre os trágicos acontecimentos de 3 de Agosto, ele referiu-se longamente às lições que o Partido devia tirar desses acontecimentos, de maneira que não ficassem vãos os sacrifícios dos mártires de Pijiguiti», recordou mais tarde Luís Cabral nas suas memórias da luta de libertação36. Como recordou mais tarde um dos militantes históricos do PAIGC, Rafael Barbosa, «com o caso do Pidjiguiti vimos que, mesmo a morrer, era necessário avançar com a luta de libertação»37. O Pidjiguiti passou a ser assinalado anualmente como data nacional. No primeiro 3 de Agosto vivido após o derrube de Marcello Caetano, Aristides Pereira analisou um outro ponto importante do massacre de 1959: no cerne desse esmagamento brutal de um protesto laboral estava, afinal, uma incapacidade profunda de Portugal se habituar à ideia de uma África fora do controlo colonial ou imperial. O secretário-geral do PAIGC afirmava no seu discurso em Madina do Boé, em 1974, que «o povo português não pode sonhar em ser livre enquanto se teimar na ocupação do nosso país e que a triste herança colonial-fascista será ainda mais agravada em Por-

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tugal se os aventureiros reaccionários e neo-colonialistas portugueses levarem avante os seus planos contra os direitos do nosso povo»38.

Unidade e luta Na segunda metade do século XX, Amílcar Cabral analisou «a situação absurda» em que se encontravam os povos sob dominação colonial portuguesa, que ele resumiu como uma realidade de «miséria extrema, ignorância e medo», ao discursar em Dacar durante a Conferência das organizações nacionalistas da Guiné, organizada de 12 a 14 de Julho de 1961. «Os direitos fundamentais do homem, as liberdades essenciais, o respeito pela dignidade humana – tudo isso é desconhecido nos nossos países»39. Cabral analisou correctamente a situação colonial como um quadro de violência transversal e generalizada, onde os colonizados eram impunemente sujeitos a vários níveis de agressão na sua integridade e na sua dignidade. Os textos fundadores da nossa luta de libertação são muito ricos em ensinamentos, por um lado, sobre as diferentes formas de violência a que uma sociedade pode estar sujeita, por outro, da necessidade de, em última análise, entender a luta contra a impunidade como uma questão que toca problemas mais vastos do que as questões políticas e de Estado. Neste sentido, o lançamento da luta de libertação teve uma sólida base de compreensão de que a impunidade colonial fazia-se de muito mais do que da realidade da polícia política, das prisões e da censura – algo que afectava, como Cabral também denunciou, toda a população portuguesa sob a ditadura. O quadro colonial era também feito de leis e regras que perpetuavam a condição infra-humana dos africanos. A realidade, porém, em relação ao tempo longo de contacto entre Portugueses e Guineenses, como também identificou Cabral, é uma continuidade de resistência: não apenas a «pacificação» da Guiné ocorreu bastante tarde (quase nas vésperas da Segunda Guerra Mundial), como o povo guineense nunca deixou de responder à colonização com revoltas, resistências passivas, emigrações em massa para os territórios vizinhos ou, como foi o caso dos Bijagós de Canhabaque, recusa total de pagar o imposto de soberania portuguesa.

38 Mensagem do Camarada Aristides Pereira, secretário-geral do PAIGC, por ocasião do 15º aniversário do massacre de Pidjiguiti, CIDAC (S/D).

39 CABRAL Amílcar, Unité et lutte - L’arme de la théorie, Paris, Maspero, 1975, 315 p., p.89.

O Congresso de Cassacá O Congresso de Cassacá, em 1964, constituiu o momento de perda de inocência ou, dito de outro modo, do primeiro grande confronto entre ideais e realidades no seio da luta armada de libertação guineense. «Depois de um ano de luta armada, o partido já está doente», notou Cabral40. Apesar do nítido avanço do PAIGC no terreno, os problemas políticos e militares ameaçavam a própria existência do partido e punham seriamente em causa a liderança de Cabral. «O problema de longe mais grave dizia respeito ao que Cabral referia ser uma tendência para o militarismo; um segundo problema tinha a ver com uma tendência para o localismo étnico e um terceiro com factores culturais»41. O militarismo afirmava-se nas zonas que tinham sido libertadas com sucesso pela guerrilha, como explicou Luiz Cabral sem rodeios: «Muitos nacionalistas cometeram erros

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CABRAL Amílcar, «Fizemos o Congresso de Cassacá para pormos o partido no caminho certo», Nô Pintcha, II, 137 (17 Fevereiro 1976). 40

CHABAL Patrick, Amilcar Cabral: revolutionary leadership and people’s war, C. Hurst & Co. Publishers, 2002, 292 p., p.78. 41


CABRAL Luiz, «Da formação do partido à proclamação do Estado», Nô Pintcha, II, 228 (19 Setembro 1976). 42

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CHABAL Patrick, op.cit., p.78.

ANDRADE Mário de e PAIGC, A geração de Cabral: palestra feita no Escola-Piloto, em 8 de fevereio de 1973, Instituto Amizade, 1973. 44

45 CABRAL Amilcar, Unité et lutte - L’arme de la théorie, Paris, Maspero, 1975, 315 pp., p. 176

46 CABRAL Amílcar, «Fizemos o Congresso de Cassacá para pormos o partido no caminho certo», Nô Pintcha, II, 137 (17 Fevereiro 1976).

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Valorização da força e dos atributos do homem «macho».

48 CABRAL Amilcar, Unité et lutte. 2 La pratique révolutionnaire / Amilcar Cabral ; [textos reunidos par Mário de Andrade], Paris, Maspero, coll. «Cahiers libres ; 282», 1975, 358 p., p.190. Itálicos no original.

graves e abusos contra a população que controlavam. (…) Houve crimes abomináveis e as pessoas começaram a fugir das áreas libertadas»42. A luta armada tinha-se tornado um catalisador para muitas ambições pessoais43. Um antigo combatente, actual patente superior das Forças Armadas, que, em 1985, viria a ser ele próprio vítima da grande violência política de Nino Vieira, confirma os abusos da fase inicial da luta e a forma como Cabral conseguiu combatê-los. «Na luta de libertação, Cabral fez uma reflexão rápida, depois de começarem a praticar alguns actos que fugiam à ideologia do partido, o que deu azo ao Congresso de Cassacá. A partir de 1962, algumas pessoas foram acusadas de bruxaria e foram assassinados. E, à margem disso, começou a haver algumas desobediências, comandantes que faziam das respectivas zonas autênticos reinos onde eram senhores da situação». «Houve casos de exercício de um poder absoluto, o que permitiu o uso da repressão em função da origem étnica», registou Mário de Andrade44, acrescentando que, para alguns jovens, «a guerra tinha-se tornado simplesmente uma forma de desporto. Não tinham nenhuma intenção de seguir as instruções do PAIGC e estavam de facto, se não de propósito, trabalhando contra o partido ao tentar eliminar as autoridades tradicionais de aldeia de quem não gostavam mas de quem o PAIGC dependia para a mobilização política»45. Estes elementos foram armados para o Congresso de Cassacá mas Cabral preparou-se em conformidade. Todos os guerrilheiros foram desarmados e os comandantes responderam às acusações apresentadas pelas populações à direcção do partido. O líder não cedeu: «Em resumo, os que foram considerados culpados foram feitos prisioneiros no final do congresso e mandámos trazer os que não compareceram. Eles resistiram e foram liquidados»46. Cassacá «levou à implantação de uma dinâmica de responsabilização. Foi criado o Centro Madina de Boé, onde os responsáveis de determinados actos iam cumprir as respectivas penas», diz o mesmo antigo combatente . Cabral combateu a impunidade com rispidez e inflexibilidade. «O país foi para a independência com pouco números de quadros e isto permitiu o desenvolvimento daquilo que chamamos na linguagem terra-a-terra de ‘cultura de matchundadi’47 nas pessoas. Se notarmos, é uma das razões que fez com que o Partido antes da independência convocasse um congresso, que mais tarde foi denominado de Congresso de Cassacá», explica o mesmo líder religioso entrevistado. «Os mais velhos diziam que era um congresso para acabar com os feiticeiros. Naquele período, os feiticeiros eram mortos: eu posso sentar aqui, sei lá com que meios, e posso concluir que o senhor ali é feiticeiro; sem ter provas, faço com que aquela pessoa apanhe a pena capital. Quer dizer que antes do surgimento do Estado já havia a impunidade». Em todo o caso, nas palavras do antigo combatente, «foi com a responsabilização das pessoas que permitiu que a luta chegasse ao fim e com sucesso, porque todos tinham noção que os desmandos e indisciplina eram responsabilizados». Tratou-se, na análise posterior de Cabral, de um confronto entre militantes armados e militaristas48. «A Guiné-Bissau conquistou a sua independência depois de uma luta brilhante,

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não foi uma luta sem casos, mas sim, houve várias situações em que as pessoas foram assassinadas. Devemos buscar a origem das coisas na luta de libertação, onde as pessoas utilizaram a violência revolucionária como forma de resolver os problemas. Hoje constatamos várias situações de violência que tentamos gerir que tiveram origem nessa época», admite um dirigente da oposição, antigo combatente e antigo dissidente do PAIGC.

A primeira morte de Cabral Amílcar Cabral identificava a «mentira» - entendida num contexto de incapacidade de fazer justiça e da tentação de pactuar com os desvios e de trair a causa - como o principal inimigo do projecto guineense. A consciência do potencial destruidor da impunidade está expressa de forma clara num discurso premonitório perante o Conselho Superior da Luta. «Nós desde o princípio da nossa luta pusemos claro que a nossa luta não é contra os tugas, a nossa maior luta é a da verdade contra a mentira. Mas os camaradas não têm coragem para pôr a verdade, porque sabem que as suas verdades não são a verdade do nosso interesse fundamental que é a liberdade do nosso povo. É a verdade das intriguinhas, quando não é de ambições, de tribalismos e outras coisas do género. Mas outra maneira de se evitar a crítica é a seguinte: é que quem vê fazer erros, mesmo que veja o erro, não diz nada porque saber que também tem as suas culpas»49. Cabral acrescentava: «Quem tem culpas não tem autoridade nenhuma». Amílcar Cabral foi morto a tiro na noite de 20 de Janeiro de 1973 em Conacri. A sua morte foi anunciada no dia seguinte pelo Presidente da República da Guiné, Sékou Touré. As circunstâncias da morte de Cabral continuam, até hoje, por apurar. Até hoje não se sabe com certeza, sequer, a hora exacta do crime. «A impunidade começou no dia em que assassinaram o Amílcar Cabral. Cada dia que passa, descobrimos quem estava na sombra disso», analisa um dirigente da sociedade civil. «De facto, este acontecimento acabou por ser abafado devido à correlação das forças entre as pessoas que participaram na execução e os autores intelectuais. Isso fez com que este acontecimento seja a primeira grande impunidade. Os autores nunca foram castigados. A única pessoa que foi castigada foi Inocêncio Cani que deu os tiros. Quem foi ele? Quem o mandatou? A partir daí, começou a lei da força. A partir daí, todas as pessoas dizem: Esta é a ultima vez que desencadeámos um golpe de Estado» . O assassínio de Cabral, deixado sem uma explicação taxativa, continua a assombrar toda a vida posterior da Guiné-Bissau: a morte do fundador marcou a fundação do País. Neste sentido, a morte de Cabral não terminou a 20 de Janeiro de 1973: como marco de impunidade, podemos dizer que Amílcar foi morto pela primeira vez no dia em que Inocêncio Cani disparou sobre ele; outros golpes viriam nos anos e décadas seguintes. O julgamento dos suspeitos começou em Conacri mas o PAIGC decidiu prosseguir os inquéritos em território libertado. Diferentes relatos revelam que vários dos acusados, incluindo Inocêncio Cani, foram torturados e sujeitos a sevícias, «coisas absolutamente abomináveis, actos de verdadeira selvajaria». Pedro Pires assistiu aos interrogatórios

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49 CABRAL Amílcar, «Sobre a agressão à República da Guiné e os acontecimentos ulteriores nesse país - intervenção do camarada Amílcar Cabral na Reunião do Conselho Superior da Luta (9 a 16 de Agosto de 1971)», PAIGC, s/l, Agosto de 1971 (documento dactilografado), 30 pp.


CASTANHEIRA José Pedro, Quem mandou matar Amílcar Cabral?, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1995, 327 p., pp 92 ss. para todas as citações e informações contidas neste parágrafo.. 50

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Idem, p. 97.

da Frente Sul. «Notava-se nos combatentes um enorme sentimento de raiva, de ódio, de desejo de vingança muito difícil de conter. Não se procedeu como estava estabelecido. Não pude influenciar uma atitude diferente». É de Pedro Pires um dos raros relatos publicados até hoje sobre o justiciamento dos assassinos de Cabral. «Houve um curto interrogatório e foram condenados por unanimidade. Não houve propriamente sentença, foi uma condenação expedita, própria da guerra. Alguns queriam que eu não assistisse aos fuzilamentos, mas eu dei ordens claras: todos nós estaremos presentes, porque todos somos responsáveis pela condenação (…) Formou-se um pelotão ‘ad hoc’ e foi o chefe do pelotão quem deu a ordem de disparar – já não me lembro quem era»50. Cerca de uma centena de conjurados foram fuzilados. Ninguém tem uma ideia exacta de quantos. Sabe-se, pelo contrário, que, entre os executados, havia muitos inocentes. Luís Cabral admitiu, vinte anos depois, que «não houve, da parte do partido, um interrogatório sereno. Fomos ultrapassados pelos acontecimentos». Carlos Correia admitiu que «tenha havido maldade em algumas denúncias». Enfim, Aristides Pereira reconheceu que, «se as coisas tivessem sido feitas com cabeça, tronco e membros, estou certo que seriam poucos os fuzilados»51. Vale a pena recordar outra passagem do mesmo discurso de Amílcar Cabral ao Conselho Superior da Luta: «Do nosso comportamento moral depende, amanhã, a nossa capacidade de traição».

Radicalização e repressão após a Independência

52 Cf LOPES Carlos, A transição histórica na Guiné-Bissau : do movimento de libertação nacional ao estado, Bissau, Guiné-Bissau, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 1987, 296 p., p.62; POWELL Mike, «A Tribute to Amílcar Cabral, 12 September 1924-20 January 1973», Review of African Political Economy, London, Merlin Press, 1993, vol. 20,, no 58, pp. 61 63.

RUDEBECK Lars, «Reading Cabral in 1993», Review of African Political Economy Review of African Political Economy, London, Merlin Press, 1993, vol. 20, no 58, pp. 63 70. 53

Amílcar Cabral imaginava um Estado que não teria uma capital num meio urbano, situando-a fora de Bissau e com uma administração em que os ministérios seriam instalados em diferentes zonas do país52. O líder guineense pretendia também um Estado em que o poder político fosse apoiado por Assembleias Populares descentralizadas. As funções do Estado seriam reduzidas ao mínimo, naquilo que o líder definiu a um historiador como «democracia cooperativa»53. No entanto, o que aconteceu depois na Guiné-Bissau independente seguiu a linha oposta: a de um Estado fortemente centralizado e onde uma deriva totalitária foi sustentada por uma rápida expansão do aparelho repressivo. «Podemos falar de impunidade de Estado quando, por razões ditas de salvaguarda dos interesses da independência, o poder legitimado pela luta armada de libertação acabou por achar-se no direito de acusar, julgar, condenar e em alguns casos até fuzilar aqueles que outrora tinham sido seus adversários, não obstante ter havido um acordo que foi mais do que um acordo de cavalheiros, pois foi um acordo de Estados. Houve nesses anos iniciais uma situação de impunidade sob a capa da bandeira e da independência recentemente conquistada», recohece um jornalista guineense. Ao mesmo tempo, salienta um factor que considera positivo, ainda que paradoxal. «Sentia-se que havia intenção de conferir um espaço para alguma separação de poderes, o que parece um contrasenso num regime monolítico. Havia uma figura importante, a do comissário político, que congregava em si os valores políticos e doutrinais baseados

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no pensamento de Amílcar Cabral, que fazia com que os militares se assumissem antes como militantes armados que, num determinado momento, eram chamados a defender a Pátria» . «A desmobilização e o divórcio entre o partido/Estado nascido da luta de libertação e as massas citadinas eram de tal maneira evidentes nos primeiros anos da independência que o PAIGC, ciente do revés político sofrido, enveredou pela via da repressão, entre 1977 e 1980»54. Uma jurista recorda, dessa época, «a organização de grupos de jovens, que se diziam provenientes da Escola Piloto embora nem todos [o] fossem. Esses grupos, em cada bairro, começaram a fazer espécie de listagem de pessoas que não compactuavam com o PAIGC. E havia, pessoas que não tinham ido à Luta, ou que queriam nascer e morrer portuguesas. Não havia objectores de consciência. Assistimos a perseguições, a confisco de bens não só de portugueses mas no geral. Houve famílias destroçadas. As famílias, aliás, foram sempre destroçadas porque fugiam ao poder durante anos e anos». «Temos que ter coragem de aceitar que, depois da luta de libertação, ao invés de procurarmos reconciliar, que é próprio de uma revolução armada, elegemos inimigos aqueles que lutaram contra a independência. Não admitimos que outras pessoas pudessem ter uma outra visão diferente da sociedade. Os libertadores começaram a punir, agir e matar as pessoas através dos tribunais expeditivos com julgamentos expeditivos», diz um líder político. «Ao invés de procurarmos reconciliar a sociedade, criámos mais ódios, mais vontade de vingança na sociedade. Isso aconteceu na primeira fase do partido único que era ‘luz e guia do povo’. Os tribunais eram vinculados ao poder político e agiam em nome deste poder político com os chamados tribunais populares, tudo num contexto político histórico específico», analisa esse líder partidário . A luta armada legitimou o PAIGC como único interveniente do pós-independência. Os 40 mil (ex-)Comandos Africanos representavam um perigo real para o novo regime, embora tivessem sido desarmados nos meses seguintes ao 25 de Abril de 1974. Meses mais tarde, os comandos africanos começaram a ser presos e torturados. «Com a entrada do PAIGC foram acusados de tentativa de golpe e acabaram por ser eliminados numa única noite. Tudo foi montado pelos Serviços de Segurança», conta um antigo combatente do PAIGC que na época esteve directamente envolvido nos contactos das autoridades com os «traidores». Um conhecido intelectual guineense, da mesma geração, reconhece que o caso dos Comandos Africanos foi um dos «casos de excesso que houve depois da independência, que o país deve aceitar com toda a sua consequência, apesar de ser uma mancha que ficará para sempre na nossa história». O problema, acrescenta, é que outras violências se sucederam nos anos e décadas seguintes. «Não sei quantos foram fuzilados – na Guiné havia a pena capital – mas não são esses números que andam para aí a dizer. O Nino é que sabe de tudo porque ele é que estava à frente»55.

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54 SOUSA Julião Soares, Amílcar Cabral, 19241973: vida e morte de um revolucionário africano, Lisboa, Nova Vega, 2011, 576 p., pp 442.

55 Entrevista do autor a Luís Cabral, Lisboa, 27 Março 2001, in NÓBREGA Álvaro, A luta pelo poder…, p.215.


56 Numa análise da «estrutura social» da população guineense, Amílcar Cabral referiu os Fulas como os representantes de um grupo «que identificamos como semifeudal», por oposição aos Balantas, «que nós chamaremos de sociedade ‘sem Estado’». Cf., CABRAL Amílcar, Unité et lutte - L’arme de la théorie, Paris, Maspero, 1975, 315 p.139.

57 CIDAC (Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral), Relatório sobre a situação actual na Guiné-Bissau, Dezembro de 1980 (documento dactilografado).

Outro alvo do novo regime foi o poder tradicional, acusado de colaboração com os colonialistas e de «práticas retrógradas». Os régulos foram destituídos pelo PAIGC e muitos foram executados. Em chão manjaco, uma das regiões mais disputadas durante a guerra, tiveram lugar alguns dos fuzilamentos mais emblemáticos do ajuste de contas com o poder tradicional ou «semi-feudal»56, como os fuzilamentos de Canchungo, de Joaquim Baticã Ferreira, ex-régulo, de seu irmão Cristiano Baticã Ferreira e de Anastácio Sidi, ex-furriel das FA portuguesas. Um dos familiares recorda hoje que os seus parentes, vítimas de um tribunal popular, «foram executados sem processo nem sentença condenatória, promovendo o ódio. Por isso, se diz que a justiça precisa de funcionar para garantir a paz e a segurança pública». E acrescenta que o poder tradicional deve ter, hoje como antes – antes da independência, segundo ele -, um lugar de relevo na administração da justiça a nível das comunidades. Quanto ao que se passou em 1975, acrescenta, «temos que unir, esquecer o passado mas sempre com justiça». «É insuficiente a condenação emocional dos fuzilamentos e da descoberta das ‘valas comuns’, omitindo a análise política acerca da natureza dos crimes praticados por traidores e as condições históricas em que foram eliminados», assinalava, em 1980, uma organização anti-colonial portuguesa após o golpe do 14 de Novembro. «Se é iníqua a liquidação física de opositores sem julgamento, em tempo de paz, não é isso que transforma em vítimas inocentes os ‘pides’ e os ‘comandos’ (sic) que foram os maiores criminosos ao serviço da opressão colonial e da luta armada contra o PAIGC, mesmo depois da independência»57. Uma outra linha importante de reflexão actual sobre as raízes da impunidade deve contribuir para elucidar todas as consequências que trouxe ao país aquilo que poderíamos designar de nacionalismo de exclusão. Antes e depois da independência, nomeadamente durante o período de Luís Cabral, as hipóteses de integração de sectores alternativos ou opostos ao PAIGC no projecto nacional guineense estavam à partida eliminadas pelas exigências de firmeza ideológica. «Acho que a Guiné-Bissau perdeu a oportunidade de marcar a existência de Estado de Direito», conclui um antigo primeiro-ministro. «O Estado de Direito não existe só na democracia, mas também no sistema de partido único desde que as leis sejam respeitadas e cumpridas. Se, depois da independência, tivesse sido organizado um processo sério de julgamento das pessoas que eram chamadas agentes do colonialismo, mesmo que houvesse uma ou outra execução, porque havia pena de morte naquela altura, ao menos seria um processo que marcaria uma tradição de Direito, ou seja, de respeito pela lei e obediência aos tribunais».

1980: A segunda morte de Amílcar Luís Cabral foi derrubado por um golpe militar liderado por João Bernardo Vieira, o líder e o rosto do chamado Movimento Reajustador. Nino ficaria no poder por mais duas décadas, durante as quais a Guiné-Bissau conheceu episódios recorrentes de

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brutalidade política, perseguições, eliminações, purgas e violações sistemáticas de direitos e liberdades fundamentais, tanto dos titulares do poder como do cidadão comum. O 14 de Novembro de 1980 inaugurou também uma tradição nefasta de tomada do poder por meios violentos ou não-democráticos e a interferência dos militares na gestão do Estado - até hoje. Para as dezenas de participantes no inquérito da LGDH, o 14 de Novembro é apontado como uma data fundadora da impunidade na Guiné-Bissau, mesmo para aqueles que atribuem ao golpe de Nino Vieira um segundo lugar no pódio dos atentados ao Estado de Direito, atrás do levantamento militar do 7 de Junho de 1998 (ver infra). «O golpe atentou contrra os aloicerces do Estado e foi a partir daí que as Forças Armadas passaram a ter outro protagonismo que os levou a abeirar-se da esfera do poder. Muitos, sem qualquer preparação, foram sendo chamados para funções para as quais não tinham perfil. Em muitos casos, de forma inexplicável. Assistimos aos primeiros actos de impunidade de gente que se colocava acima da lei, acima do poder judicial e foram criando um primado do quero-posso-e-mando em nome da suposta legitimidade histórica». No entanto, em 1980, o golpe foi acolhido com alívio e júbilo pela população e «verifica[va]-se na Guiné-Bissau uma unanimidade no que diz respeito à confiança no comandante Nino, considerado como um homem justo, dotado de autoridade indiscutível, garante da fidelidade ao espírito de Amílcar Cabral e ao PAIGC, bem como da unidade nacional da Guiné-Bissau»58. «Eu acompanhei o 14 de Novembro de forma directa», recorda um dirigente partidário que na altura era um jovem estudante do liceu em Bissau. «Eu participei, dois dias depois, na manifestação que teve lugar à frente do Palácio e deixei-me embriagar pelas palavras do então presidente do Conselho de Revolução quando ele chamava os nomes das pessoas que tinham desaparecido e ele perguntava, Onde é que estão essas pessoas?!, e as pessoas respondiam em coro, Foi morto!», conta também o mesmo entrevistado . Um dos factores de tensão que terá acelerado o golpe foi a aprovação da nova Consti-tuição do país pela Assembleia Nacional Popular. Os trabalhos terminaram a 10 de Novembro, num ambiente de polémica e insatisfação. Uma alta patente militar recorda «a agitação provocada pelo anteprojecto de lei que permitia a pena de morte para os ex-tropas colonias na Guiné e não em Cabo-Verde. O tratamento dos que serviram os colonialistas devia ser igual para todos». Não era. O golpe de 1980 é uma evidência de que a contemporização com métodos violentos de mudança de poder conduz apenas a mais impunidade e a mais violência. À época, contudo, o pragmatismo levou a melhor sobre as questões de princípio de prática democrática, pois «o bloqueamento das estruturas de direcção no partido e no Estado, impedindo o diálogo e o debate e forçando certos dirigentes à marginalização, parecia não deixar alternativa»59.

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55 Entrevista do autor a Luís Cabral, Lisboa, 27 Março 2001, in NÓBREGA Álvaro, A luta pelo poder…, p.215.

59 BARROS Filinto de, Testemunho, Bissau, Inacep, 2011, 11 p., p.87.


17 de Outubro de 1985: «Fomos todos torturados» O caso que ficou conhecido como «17 de Outubro» é um dos momentos culminantes da gestão política característica de Nino Vieira e da distorção que introduziu no aparelho de Estado: os supostos adversários são eliminados ou neutralizados através de uma combinação de intriga palaciana, violência de bastidores e subversão institucional. Tudo para dar um verniz de legalidade ao que constituiu, finalmente, um crime político brutal. Acusados de preparar um golpe de Estado, sujeitos durante meses a interrogatórios e a torturas atrozes, um grupo de doze titulares e oficiais superiores das Forças Armadas, incluindo o número dois do regime, foram condenados à pena capital pelo Supremo Tribunal Militar. É importante notar que, sendo o mais conhecido e talvez o mais brutal, o «17 de Outubro» não foi o primeiro – nem seria o último – episódio de eliminação política no tempo de Nino Vieira, como assinala um dos sobreviventes do processo. «Aproximadamente em 1982, foram assassinados o grupo do comandante Nabrink, Tunecas, etc. Na altura, foram identificados os responsáveis desses actos e não foram responsabilizados. [Depois], as acusações de tentativas de golpes de Estado foram-se sucedendo, fragmentando cada vez mais o já fragmentado país, considerado do ponto de vista do mosaico étnico cultural». «Fomos todos torturados na 2ª esquadra, com choques eléctricos, amarrados com correntes na mão, etc.», recorda hoje um dos sobreviventes do «inquérito», uma alta patente militar ligada. «Eu perdi a sensibilidade na perna. Às vezes, se calço o chinelo, ele chega a sair sem que me aperceba disso. É por isso que já não uso chinelos. Às vezes, a tortura começa[va] das 9h00 da manhã e termina[va] às 4h00 da madrugada, e obriga[va]m-te a chamar o nome de outro que já se encontrava na lista deles e [iam] apanhar a pessoa. Depois fazem-vos confrontar, Se negares confirmar a calúnia, voltas a levar [pancada] e assim sucessivamente até não aguentares. Havia dois grupos de torturadores: um de manhã e outro da noite. Amaravam-nos um pano no rosto. Acho que alguns até vinham bêbados. Havia um quarto no fundo que baptizámos como Ntory que utilizavam para torturar pessoas. Quando sentíamos o barulho da porta, a abrir e a fechar, era porque alguém tinha acabado de ser torturado e arrastavam a vítima com vida ou sem ela para fora». Segundo o mesmo testemunho, «os que morreram no calabouço por causas diversas, como os fuzilados ou em consequência de torturas e doenças, são 44. Os condenados eram para cima de quarenta, porque 69 foi o número total dos detidos. Entre oficiais superiores e subalternos, estavam acima de cinquenta indivíduos. Os comandantes de unidades no activo foram quase todos indiciados. Para quem conhece a arte militar, é difícil não consumar o golpe com o envolvimento destes, ou seja, era impossível o golpe falhar se todos estes comandantes no activo estivessem realmente envolvidos», acrescenta este sobrevivente do 17 de Outubro sobre a forma grosseira como toda a acusação de golpe foi montada pelo regime. O Conselho de Estado, convocado por Nino Vieira em 15 e 16 de Julho de 1986 para analisar os pedidos de clemência apresentados pelos advogados, comutou as penas

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de seis dos sentenciados mas deliberou «recusar a graça» aos outros seis. Assinalemos, nesta decisão do Conselho de Estado sobre o 17 de Outubro, que o poder absoluto era exercido por um homem mas a violência absoluta foi normalmente um trabalho de grupo. «O pior de tudo é que os actores da minha desgraça deambulam pelas ruas de Bissau sem mais sem nada, como se nada tivesse acontecido», comenta ainda o sobrevivente, oficial de topo das Forças Armadas, «Se eu não fosse forte, estaria a pensar em vingança, Mas isso não nos leva a lugar algum, porque será um ciclo vicioso que nunca mais acaba». Até 1998, Nino Vieira continuou a usar a máquina de inventar golpes para afastar os seus rivais em total impunidade. Outros, sem ele e mais tarde contra ele, continuaram depois da guerra a exercer o poder pelo mesmo modelo. «Sem sombra de dúvida a impunidade falou mais alto na era do Nino. Tudo o que estamos a assistir hoje é a consequência disso. Hoje é a continuação dos métodos daquela altura».

17 de Março de 1993: inventona contra a oposição A elaboração de uma lista de alegados golpes, inventonas e intentonas sob o longo reino de Nino Vieira tem algo de aleatório, de tão numerosa mas também de tão obscura. O alvo foi, em 1993, o líder da oposição João da Costa, combatente e militante histórico do PAIGC desde 1962 e Comissário de Estado da Saúde de 1973 a 1980. Assinalemos que João da Costa escapou in extremis a uma primeira trama do regime para o eliminar, em 1982, quando foi evacuado para Portugal após ter quase sucumbido aos maus-tratos. «Depois de 14 de Novembro de 1980 fui preso por discordar com o método utilizado. Estive quase dois anos na prisão», escreveu o próprio anos depois numa nota biográfica – por ocasião de novo ataque pessoal60. João da Costa, líder do PRD, anunciou que seria candidato ás primeiras eleições presidenciais democráticas na Guiné-Bissau. Para muitos analistas, e provavelmente para o próprio «Nino» Vieira, seria o vencedor natural, razão bastante para que Nino tentasse neutralizá-lo. João da Costa – dissidente do PAIGC61 – e Tagme Na Waye – um dos sobreviventes do «17 de Outubo» e membro da Resistência da Guiné-Bissau – Movimento Bafatá (RGB)62 – foram detidos a 14 de Abril de 1993 em relação com uma alegada tentativa de golpe de Estado. Para incriminar João da Costa e Tagme Na Waye, as autoridades usaram um dos poucos factos indiscutíveis do caso: no dia 17 de Março de 1993, o major Robalo Gomes de Pina, chefe da Força de Intervenção Rápida, foi morto a tiro em Bissau. Alegadamente, o major foi eliminado pelo sargento Amadú Mané. Contudo, outras versões emergiram até hoje, incluindo uma, credível mas nunca investigada, segundo a qual o crime foi cometido na Presidência da República. A leitura das peças de acusação e condenação dos arguidos do «17 de Março» oferece o triste espectáculo dos bastidores da impunidade ao mais alto nível da hierarquia do Estado, servida mais uma vez pela justiça militar. Para envolver o líder

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60 PRD (Partido de Renovação Democrática), nota biográfica de João da Costa distribuída a 19 Abril 1993 na sequência da sua detenção por alegado envolvimento no «17 de Março».

61 Integrou em 1991 a «Carta dos 121», que reunia alguns dos quadros intelectuais do PAIGC que viriam a abandonar o partido e a fundar o PRD em 1993.

Tagme Na Waye, condenado a 15 anos de prisão em 1986, saiu em liberdade em Setembro de 1991 por uma amnistia.

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do PRD e outros opositores do regime, o Tribunal Militar construiu uma narrativa rocambolesca, digna de um mau filme de conspiração. A inventona do 17 de Março de 1993 tem outra ramificação para outro crime até hoje impune, o do jornalista português Jorge Quadros, responsável pela assessoria de comunicação da Presidência da República. «No caso da morte de Robalo, todos nós sabemos como aconteceu… O poder militar na altura estava na governação. A justiça militar também não é independente, funcionam fazendo recado de pessoas que as nomearam. Às vezes responsabilizamos os juízes mas não são culpados porque a coisa vem de cima», analisa um oficial de alta patente. A morte de Quadros terá sido precipitada quando ele recusou devolver as cassetes com gravações do circuito interno de segurança do Palácio, onde estaria filmada a cena do assassínio do major Robalo de Pina comprometedora para Nino Vieira. Jorge Quadros foi encontrado morto, esquartejado no quarto em Bissau, em 1993. João da Costa morreu em Outubro de 1998 em Canchungo, impossibilitado de vir a Bissau para se tratar ou ser evacuado para tratamento médico, em situação de doença grave.

7 de Junho: Tráfico, desagregação e guerra A 7 de Junho de 1998, um levantamento militar contra o regime do Presidente Nino Vieira desencadeou uma guerra de onze meses que provocou um número indeterminado de vítimas e a destruição.material, sobretudo em Bissau, além de uma crise de refugiados que afectou cerca de um terço da população guineense. O recurso de «Nino» Vieira a tropas estrangeiras e a insatisfação da população após duas décadas de regime contribuíram para criar uma vaga de apoio à Junta Militar que iludiu no imediato a natureza do movimento: o 7 de Junho foi, em primeiro lugar, um golpe militar, isto é, mais uma anomalia constitucional no seguimento de tantas outras, independentemente dos motivos justos ou não que lhe deram origem. É relevante que muitos dos entrevistados recordem hoje, com ironia e pesar, o «J» maiúsculo da «Justiça» prometida que, afinal, inauguraram uma década de descalabro institucional e dissolução do Estado. O golpe e a guerra tão-pouco introduziram uma reforma da prática política no sentido de maior democracia e de compromisso dos titulares políticos e militares com o exercício ético das suas funções - talvez sem surpresas. Entre o grupo em torno de Ansumane Mané, incluíam-se homens como o almirante Bubo Na Tchuto, acusado recentemente de envolvimento no narcotráfico e a contas com a justiça americana. O 14 de Novembro de 1980 e o 7 de Junho de 1998 – o golpe que pôs «Nino» no poder e o que o empurrou para sair - aparecem, pois, para muitos inquiridos, os dois marcos da impunidade na nossa história. «A partir de 14 de Novembro 1980, a impunidade começou a ser uma moda no país, ‘Nino’ Vieira tentou fazer algo mas não conseguiu. Veio depois o conflito político-militar de 7 de Junho de 1998, com palavras de ordem de justiça com J grande. Esse J grande confunde-se agora com i pequeno porque ninguém consegue vê-la. A partir desta data, a impunidade começou a arrastar e subir de tom», afirma o presidente de uma fundação privada.

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Na origem do levantamento militar estiveram, entre outros factores, um agravamento do conflito político interno ao PAIGC, após a intransigência da facção de Nino Vieira no último congresso do partido, e a rápida deterioração das relações entre o chefe de Estado e o CEMGFA, brigadeiro Ansumane Mané. Com base numa investigação ao tráfico de armas, Mané foi suspenso das suas funções por Nino Vieira no início de 1998. «Todo aquele processo começou com a necessidade de garantir ao MFDLC63 algum poder de influência, pois entendia-se que enquanto o Senegal se ocupava da questão de Casamança nós ficaríamos mais tranquilos. Era um negócio que era feito em nome do Estado guineense mas que beneficia[va] um grupo reduzido de pessoas», revela um antigo deputado que fez parte da Comissão Parlamentar de Inquérito Sobre o Tráfico Ilegal de Armas (CPITIA). O mesmo deputado reconhece que «as Forças Armadas estavam em situação avançada de desagregação», algo constatado pelo inquérito parlamentar. Apurou-se que, «sobretudo após o conflito fronteiriço entre a Guiné-Bissau e o Senegal, se verificou uma proliferação de redes de tráfico de armas, favorecidas pela profunda desorganização das Forças Armadas»64. Uma das conclusões de maior impacto político da CPITIA foi o relatório apontar «verificar-se por um lado uma guerra surda no interior das Forças Armadas, tendente a afastar algumas altas patentes, entendidas como afectas ao suspenso CEMGFA, Brigadeiro Ansumane Mané e por outro, uma grave descoordenação tanto na cadeia de comando como no processo de requisição e levantamento de armas e munições». A Comissão Parlamentar de Inquérito, concluiu igualmente que o tráfico de armas «é favorecido pela profunda desorganização interna das Forças Armadas, agravada pelo péssimo estado de conservação dos paiôis e pela inexistência de um controle rigoroso e sistematizado dos stocks de armamento, para além da ausência de condições de vigilância nos quartéis». O relatório tem data de 8 de Junho, uma segunda-feira, o dia em que seria oficialmente apresentado e divulgado. O golpe ocorreu na véspera e a guerra inviabilizou a aplicação de qualquer das iniciativas judiciais preconizadas pela CPITIA. «Depois deste acontecimento, temos os casos de assassinatos do major Baciro Dabó, do deputado Hélder Proença, do Presidente da República etc. Ninguém foi responsabilizado por estes casos. Fala-se sistematicamente da criação das comissões de inquérito mas nunca nenhuma comissão concluiu o seu trabalho. Isso incentiva outros casos de crimes» .

O vício da autoamnistia À semelhança do fenómeno da impunidade, a utilização da amnistia tem antecedentes na época colonial. A primeira amnistia da Guiné Portuguesa ocorreu em Maio de 1967, em ligação com a visita do Papa Paulo VI a Portugal, «por ocasião das cerimónias comemorativas do Cinquentenário das Aparições de Nossa Senhora de Fátima»65. Na proclamação da independência, o princípio seguido não foi o da revogação total e imediata dos normativos jurídicos deixados pelo regime colonial. Manteve-se em vigor

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63 Movimento das Forças Democráticas de Libertação de Casamança.

64 Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito Sobre o Tráfico Ilegal de Armas, Assembleia Nacional Popular, Bissau, 8 de Junho de 1998.

65 Decreto-Lei nº 47 702, in Boletim Oficial da Guiné, n.21 (27 de Maio de 1967). A Presidência do Conselho publicou no Boletim Oficial da Guiné n.32, de 12 de Agosto de 1967, uma rectificação ao artigo 10º deste Decreto-Lei.


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CAMPOS, op.cit., p.28.

toda a legislação anterior a 24 de Setembro de 1973 em tudo o que não fosse contrário à soberania nacional, à Constituição da República, às leis ordinárias e aos princípios do PAIGC. Continuou por isso em vigor o Código Penal de 1852, profundamente alterado em 1884 e resultando no Código Penal de 1886, incluindo as disposições sobre a amnistia que nele constavam. Este código vigorou por mais de cem anos na Guiné-Bissau, pois apenas em 1993 foi aprovado o primeiro Código Penal do país (inspirado no CP português de 1982). A primeira utilização da figura da amnistia na República da Guiné-Bissau aconteceu em Dezembro de 1974, abrangendo «os crimes de insubordinação, de roubo, de furto, de vigarice, de ofensa corporal, de mau trato (sevícias), de violação e de homicídio involuntário cometidos antes do dia 10 de Setembro de 1974 e julgados pelo Tribunal de Guerra do PAIGC». Posteriormente, a figura da amnistia «foi sucessivamente utilizada na Guiné-Bissau, duas vezes em 1976, uma vez em 1980, 1983, 1986, 1991 e (…) em 1994»66. O conflito iniciado em Junho de 1998 resultou também em amnistias, enquadradas de forma diferente em resultado e em relação directa com a instabilidade das instituições. Assim, na sequência do levantamento militar de 14 de Setembro de 2003, liderado pelo chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, general Veríssimo Correia Seabra, foi posto fim ao regime do Presidente Kumba Ialá.. Em simultâneo, é assinada a carta de Transição Política para «a condução à legalidade e à normalidade constitucionais». Os signatários da carta «compromete[ra]m-se solenemente a adoptar uma lei de amnistia para os membros do Comité Militar que participaram no levantamento militar».

Pós-1999: Um país em desmantelamento

PROENÇA Carlos Sangreman, As políticas de ajustamento e o bem-estar das famílias, na cidade de Bissau, na República da Guiné-Bissau, no período de 1986-2001, Dissertação apresentada no ISCTE para obtenção do grau de Doutor em Estudos Africanos Interdisciplinares em Ciências Sociais (não publicada), Lisboa, 2003, 307 p., p.260. 67

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Idem, p.186.

A 7 de Maio de 1999, o Presidente «Nino» Vieira foi deposto e obrigado a sair do país após uma rendição incondicional. O conflito militar teve desde logo duas consequências directas: degradaram-se ainda mais as já deficientes estruturas físicas do país e, logo desde Junho de 1998, uma parte significativa dos quadros qualificados abandonou a Guiné-Bissau e não regressaria do estrangeiro. A conjugação destes e de outros factores traduziu-se «num retrocesso importante na evolução do país, que agravou todas as tendências negativas de períodos anteriores e anulou alguns sinais positivos detectados no período 1994 – 1997»67. As eleições legislativas e presidenciais de Novembro de 1999 – que marcaram o fim da hegemonia do PAIGC, com a vitória do PRS - marcaram a abertura de um período de instabilidade «caótica», dizem alguns especialistas. «A designação de ‘caótica’, decorre da imprevisibilidade na execução das políticas, devido às constantes substituições dos titulares das pastas ministeriais, e do facto da capacidade institucional depender cada vez mais da pessoa que está à frente do Ministério»68. O pós-guerra não trouxe a consolidação da paz. Pelo contrário, na década entre a deposição de «Nino» Vieira em 1999 e o seu assassínio em 2009, registaram-se pelo menos dois golpes de estado, a eliminação de um Presidente da República e de três chefes do Estado-Maior das Forças Armadas, tendo a Guiné-Bissau conhecido cinco chefes de Estado, onze governos e outros tantos primeiros-ministros sem que nenhum deles tenha concluído o mandato.

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Esta década de injustiças flagrantes e de crimes nunca esclarecidos começou com o homicídio por espancamento de Nicandro Barreto, ministro da Administração Territorial e antigo Procurador-geral da República, a 22 de Agosto de 1999. Nicandro Barreto estava alegadamente a par de informações comprometedoras. Um ano depois das eleições de transição – e da eleição do Presidente Kumba Ialá na segunda volta, em Janeiro de 2000 -, o brigadeiro Ansumane Mané foi morto em condições de grande brutalidade na periferia de Bissau, alegadamente por forças governamentais, a 30 de Novemro de 2000. Em 2003, um dos lugares-tenente de Ansumane Mané durante a Junta Militar, o general Veríssimo Seabra, liderou um golpe de estado contra o Presidente Kumba Ialá, a 14 de Setembro de 2003. No ano seguinte, Veríssimo Seabra foi morto na sequência de um levantamento de militares do contingente guineense na missão das Nações Unidas na Libéria. O motim dos soldados terá começado como um protesto exigindo o pagamento do pré em atraso. Com o general Seabra foi também morto o seu adjunto, tenente-coronel Domingos Barros. A 6 de Janeiro de 2007, outro apoiante de Ansumane Mané na guerra de 1998 foi eliminado: Mohammed Lamine Sanhá, ex-chefe do Estado-Maior da Armada. A 6 de Agosto de 2008, o almirante Bubo Na Tchuto foi detido na Gâmbia, onde estava exilado, na sequência de um golpe de estado falhado em Bissau. A 23 de Novembro do mesmo ano, um primeiro ataque à residência de «Nino» Vieira, do qual o Presidente escapou ileso, anuncia o desfecho de Março de 2009, num ambiente de intoxiação das mais altas instâncias públicas da Guiné-Bissau por interesses e estratégias ligadas ao narcotráfico internacional. Já no início da década, o ex-primeiro-ministro Francisco Fadul, chefe do Governo de Unidade Nacional do imediato pós-guerra, identificava a «crise institucional permanente» como um dos traços característicos do país. «As sucessivas alegações de golpes de estado e as sequentes depurações físicas e políticas, desde o período do monopartidarismo, a que acrescem, no período da liberalização política formal, as denúncias parlamentares e sociais dos impasses governativos; das situações – criminais – de usurpação de funções públicas; de obstrução à acção da Justiça; de excesso de poder (abuso de autoridade, noutras ordens jurídicas); de peculato; de corrupção; colocam em crise institucional permanente o Estado, desequilibrando política, económica e socialmente o sistema global nacional, a dignidade e a função societal do Estado como enquadrador, moderador e representante de todas as outras comunidades e associações por si integradas ou em curso de integração»69. A simples cronologia de atentados e golpes revela o descalabro da normalidade institucional e a persistente fragilização do Estado, em paralelo com a progressiva consolidação das Forças Armadas como centro efectivo da decisão política.

2009: assassínios na cúpula do Estado Na madrugada de 2 de Março de 2009, o Presidente democraticamente eleito, «Nino» Vieira, foi morto por soldados na sua residência, num ataque alegadamente motivado por vingança: a morte de «Nino» teria sido a resposta ao assassinato, horas antes, do chefe do Estado-Maior general das Forças Armadas, Tagmé Na Waye, vítima de um atentado á bomba no quartel-general em Bissau.

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69 FADUL Francisco José, Para um Estado transversal - da socioeconomia política a uma estratégia de desenvolvimento a longo-prazo para a GuinéBissau,ULHT, Lisboa, 2002, 319 p., p.41.


Relatório sobre a situação dos Direitos Humanos na Guiné-Bissau 2008/2009, Bissau, LGDH, 2009. 70

As imagens dos restos mortais do Presidente da República foram exibidas na Internet, espelhando a crueldade de uma sociedade ou de sectores que se sentem autorizados a comportamentos sem qualquer baliza humana, invocando por vezes a legitimidade da simples participação na Luta de Libertação Nacional. O narcotráfico foi um ingrediente determinante para aquele que é provavelmente o período de maior volatilidade institucional da nossa História. Os efeitos perversos e desastrosos da invasão do terreno político pela instituição militar ficaram bem patentes neste período, que de certa forma preparou a interferência mais clara do Estado-Maior com o golpe de 12 de Abril de 2012. Recordemos que houve outros crimes envolvendo directamente as forças de ordem e segurança, incluindo a execução de um agente da Polícia Judiciária, Liberato Nunes, a 13 de Abril de 2008, por agentes da Polícia de Intervenção Rápida, em retaliação pela morte acidental de um seu colega. Também neste caso o processo aberto pelo Ministério Público não produziu conclusões que se conheçam, nunca conheceu acusação, tendo os advogados de defesa e o Ministério do Interior considerado que a única instância competente para julgar o caso era o Tribunal Militar. Esta decisão foi tomada ao arrepio do que deveria ser a correcta interpretação e aplicação da nossa legislação: a morte de Liberato Nunes foi um crime civil e não militar, apesar de ter sido imputado a militares ou paramilitares. Volvidos poucos meses sobre a morte de «Nino» Vieira e de Tagme Na Waie, a 5 de Junho, surgiu o anúncio de mais uma tentativa de golpe de estado, pelos Serviços de Informação do Estado, que reivindicaram os assassinatos – em legítima defesa, conforme foi dito – de Hélder Magno Proença, antigo ministro da Defesa e deputado da Nação, e mais três cidadãos, alegadamente o seu motorista, o seu segurança pessoal, além do major Baciro Dabó, candidato às presidenciais e então ministro da Administração Territorial, também antigo responsável da Segurança de Estado. Ainda em resposta à alegada tentativa de golpe, ocorreram várias detenções de cidadãosque foram submetidos a tortura, incluindo o ex-primeiro-ministro Faustino Imbali, o coronel Antero João Correia, ex-director da Segurança de Estado, Iaia Dabó (irmão do major Baciro Dabó) e o músico Domingos Brosca. Os Serviços de Informação do Estado divulgaram também uma lista com mais «suspeitos», todos figuras próximas do Presidente assassinado, o que indiciava uma perseguição ou intimidação de adversários políticos. Conforme alertou na altura a LGDH, a vaga de assassinatos de 2009 «inaugurou uma nova estratégia de liquidação física dos adversários políticos ou abertura de novo círculo de vingança cujas causas e alvos são desconhecidos até à consumação do acto»70. A 26 de Dezembro de 2011 foi tornada pública mais uma tentativa de golpe de estado durante a qual dois agentes da Forças de Segurança foram assassinados sem motivos plausíveis. O primeiro (sargento Vladimir Lenine Crato) aconteceu supostamente no momento em que as autoridades de Segurança se dirigiram para a residência de Roberto Ferreira Cacheu para desmantelar a alegada tentativa de golpe; no decurso da operação foi atingido com disparos que lhe causaram ferimentos graves, tendo sido mais tarde evacuado para Dacar (Senegal), onde morreu horas depois. Este incidente despertou nos agentes da PIR um sentimento de vingança que acabou com mais uma vítima: executaram sumariamente o major Iaia Dabó, a quem acusaram de ser um dos autores materiais do assassinato do agente do seu colega da PIR, Vladimir Crato.

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Recordemos que, ainda em resultado da alegada tentativa de golpe, desapareceu Roberto Ferreira Cacheu, antigo secretário de Estado de Cooperação e deputado da Nação. O seu paradeiro continua até hoje por apurar, embora as autoridades de transição já admitam que tenha sido morto. Três meses depois do alegado golpe de Dezembro de 2011, o coronel Samba Djalo, antigo chefe da Contra-Inteligência Militar e ex-director-adjunto do Serviço de Informação do Estado (actuais Serviços de Informação e Segurança, SIS), foi atingido mortalmente por um grupo de indivíduos não identificados na sua residência em Bissau, a 18 de Março de 2012. Tanto os processos relativos à morte de Iaia Dabó como de Samba Djalo registaram evoluções mínimas, mesmo se no primeiro foi identificado um suspeito, comandante da PIR. O clima de total impunidade em que operam as Forças de Defesa e Segurança ficou também patente num episódio inaceitável em Julho de 2010, quando cinco agentes da Polícia de Trânsito, incluindo quatro mulheres, foram espancados por um grupo de militares na principal avenida de Bissau. A política de interferência e intimidação de outros órgãos de Estado, do poder judicial ou simplesmente de facções rivais no seio dos militares ficou patente no decurso da alegada sublevação militar de 1 de Abril de 2010. O antigo chefe do Estado-Maior, vice-almirante José Zamora Induta, e o ex-chefe dos Serviços da Contra-Inteligência Militar foram presos arbitrariamente nas instalações prisionais militares em Bissau e Mansôa, a mando do Estado-Maior General das Forças Armadas. A corrida desenfreada para o poder, o enriquecimento ilícito decorrente do tráfico de drogas, a insubordinação das Forças Armadas ao poder político e consequentes atentados recorrentes à ordem constitucional criaram bases para a anarquia e desordem que têm desestruturado claramente os alicerces do Estado guineense, tornando-o incapaz de oferecer confiança aos cidadãos e assegurar a efectivação da sua autoridade.

Um ano de ditadura militar O golpe de estado de 12 de Abril de 2012 foi a expressão máxima da intriga política e da tutela militar do poder político. Um comunicado do Comando Militar justificou o golpe como uma medida de defesa legítima face às tropas angolanas no país, que teriam um plano para destruir as Forças Armadas guineenses em conluio com Carlos Gomes Júnior – acusação rejeitada por Angola71. A retirada da MISSANG tinha sido anunciada na antevéspera do golpe pelo ministro dos Negócios Estrangeiros angolano, devido às críticas em relação á presença do contingente estrangeiro. Este acontecimento veio descredibilizar mais uma vez a Guiné-Bissau no plano internacional, cujos efeitos acabaram por suplantar todos os esforços reconhecidos nos últimos anos pelas instituições internacionais em prol da estabilização política e económica. A suspensão da ajuda e cooperação internacional, com o congelamento de linhas de crédito e de muitos projectos de desenvolvimento, teve de imediato repercussões desastrosas. O golpe de estado traduziu-se, assim, no maior retrocesso social dos últimos anos. No plano da impunidade, o golpe teve o mérito infeliz de oficializar o parêntesis da ordem constitucional que foi sendo engendrado pelas hierarquias militares nos últimos anos, instaurando na Guiné-Bissau um regime de medo e intimidação. Os guineense vivem

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Tropas angolanas chegaram à Guiné-Bissau em finais de Março de 2011, integradas na MISSANG (Missão Técnica Angolana de Apoio ao Processo de Reforma do sector de Defesa guineense).

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por isso um tempo de excepção democrática, de aversão violenta ao diálogo e à crítica, de supressão da dissenção e da vulgarização da violência primária como procedimento corrente, traços típicos de uma ditadura. A deenção e acusação de Bubo Na Tchuto e o mandado de captura lançado pelos EUA contra várias entidades ao mais alto nível, incluindo o CEMGFA António Indjai, levanta questões constitucionais e penais, bem entendido, mas também do foro simbólico: uma jovem nação como a Guiné-Bissau necessita de referentes históricos e mal vão as coisas quando são os protagonistas da História a ser apontados como traficantes de droga e de armas perante autoridades estrangeiras. Neste contexto de impunidade institucionalizada, ganhou terreno a banalização da violência desencadeada por militares, incluindo novos incidentes e agressões contra agentes de segurança. Um deles aconteceu no quadro das eleições presidenciais antecipadas de 18 de Março de 2012, quando um grupo de agentes da Polícia de Ordem Pública foi agredido, espancado e humilhado publicamente pelos militares afectos ao Estado-Maior quando aquele tentava dispersar manifestantes que protestavam contra o não recenseamento dos jovens eleitores, incendiando pneus em frente da Comissão Nacional de Eleições. Noutro incidente grave, um grupo de militares afectos ao Regimento de Páracomandos invadiu as instalações da Polícia Judiciária no dia 31 de Maio de 2012, sequestrando o agente Rafael da Silva por este ter notificado um militar no âmbito de um processo judicial. O agente em causa foi detido e conduzido, primeiro, para a casa de uma das partes em conflito, onde foi humilhado, e posteriormente transportado para as instalações dos Páracomandos, tendo sido espancado violentamente por elementos da unidade. No decorrer do golpe de 12 de Abril, o primeiro-ministro e o Presidente da República interino foram presos e conduzidos para as unidades militares de Mansôa e São Vicente. Ao mesmo tempo, a residência do primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior foi totalmente vandalizada e a cantora Dulce Neves, que se dirigiu mais tarde para o local, foi agredida pelos militares e conduzida ao Estado-Maior General das Forças Armadas, onde foi sequestrada por mais de 24 horas. O secretário de Estado dos Combatentes da Liberdade da Pátria, brigadeiro-general Fodé Cassamá, foi sequestrado e espancado na cidade de Farim por ter sido infundadamente acusado de estar a mobilizar os rebeldes de Casamança para um eventual contragolpe. Os três só foram libertados dias depois, graças à intervenção da Comunidade Económica dos Estados da Africa Ocidental (CEDEAO). Nesses dias, vários dirigentes procuraram refúgio nas instalações diplomáticas. Os profissionais da imprensa e alguns cidadãos não escaparam também à onda de perseguições desencadeada nos dias subsequentes ao golpe, nomeadamente o blogger António Aly Silva, que foi vítima de agressões e tratamento desumano pelos militares. Um empresário residente na cidade de São Domingos, Octávio Ilídio Morais, foi também espancado. Após o golpe de Abril de 2012, instalou-se no país um clima de autêntica afronta aos direitos humanos e de ameaças sérias à consolidação da paz e do estado de direito. As autoridades militares continuam a restringir os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos sem quaisquer fundamentos legais, visando apenas silenciar os cidadãos e instaurar um regime antidemocrático.

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Parte IV. conclus達o: quarenta anos a matar cabral

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No alinhamento das perguntas que constituíram o guião de entrevista, a questão final abria a problemática da impunidade ao problema mais abrangente da equação entre realidade e projecto. Por palavras simples, que eram as da formulação da pergunta: é esta a Guiné-Bissau que quer(emos) ter? A resposta foi unânime e liminar: o presente da Guiné-Bissau não corresponde ao país por que se lutou no passado. Não era sequer possível imaginar, há trinta anos, que a pátria estaria na encruzilhada em que se encontra. «Se, naquela altura, me dissesse que a Guiné-Bissau ia estar assim tal como está hoje, não só iria insultá-lo como também dir-lhe-ia que você não tinha consciência politica porque, ao contrário de outros países, nós fizemos uma luta, temos uma herança que tem que ser preservada e os ensinamentos da luta também. Depois, vi que a degradação começou com as próprias pessoas que fizeram aquela luta. Foram esquecendo os seus berços». O elemento de voluntarismo na construção do projecto colectivo guineense é importante e precisa de ser recordado numa altura crucial da nossa história, como é sem qualquer dúvida aquela em que nos encontramos. A República da Guiné-Bissau existe porque os guineenses quiseram. Há um elemento forte de memória da dignidade dessa luta na esperança que a maior parte dos entrevistados no estudo sobre a impunidade colocam na possibilidade de reslução da crise estrutural que atravessamos. Essa esperança é formulada de formas diferentes mas que convergem num sentido: ainda não é demasiado tarde mas começa a ser tarde para escolher outro caminho, outro modelo, outro futuro. A análise da história da Guiné-Bissau revela tristemente, como vimos, que quatro décadas de impunidade foram sendo feitas sempre com Cabral na boca, invocando as formas mais insultuosas de legitimação para formas cada vez mais brutais de violência. «Cabral não morreu», ouvimos dizer. Talvez Cabral tenha que continuar vivo para que possam continuar a matá-lo todos os dias. O facto de a morte de Amílcar Cabral ser a primeira de muitas que continuam por esclarecer no nosso país é apenas a metáfora de uma sociedade que, como demonstra este estudo, perdeu os seus valores de referência. Daí que as outras notas – muito pesadas – que atravessam este estudo sejam o desespero generalizado e o cansaço. Cansaço dos golpes, cansaço das mentiras, cansaço das violências, cansaço da miséria e dos roubos da coisa pública, cansaço do medo que voltou, cansaço também da vergonha que alguns deitam sobre a pátria de todos. Canseira de impunidade. Esse é um elemento que, em conclusão, levamos à atenção de quem tem mais responsabilidades no destino comum. É possível, acreditamos nisso, uma outra realidade para a Guiné-Bissau. As respostas de um painel representativo da sociedade guineense apontam o único caminho possível: a refundação do Estado como veículo de justiça.

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