Espaços Públicos Urbanos: das políticas planejadas à política cotidiana

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ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS: das políticas planejadas à política cotidiana



Lucia Capanema Alvares Jorge Luiz Barbosa (organizadores)

ESPAÇOS PÚBLICOS URBANOS: das políticas planejadas à política cotidiana


Copyright © Lucia Capanema Alvares e Jorge Luiz Barbosa (organizadores), 2019 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida por meio impresso ou eletrônico, sem a autorização prévia por escrito da Editora/Autor.

Editor: João Baptista Pinto Capa e Editoração: Luiz Guimarães

Revisão: Dos autores

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

E73 Espaços públicos urbanos: das políticas planejadas à política cotidiana / organização Lucia Capanema Alvares, Jorge Luiz Barbosa. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2019. 224 p. : il. ; 15,5x23 cm.

Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-654-1

1. Espaços públicos. 2. Planejamento urbano. I. Capanema Alvares, Lucia. II. Barbosa, Jorge Luiz. 19-55653 CDD: 307.76 CDU: 316.334.56 Leandra Felix da Cruz - Bibliotecária - CRB-7/6135

Letra Capital Editora Telefone (21) 22153781 / 35532236 www. letracapital.com.br


Sumário Prefácio................................................................................................ 7 Roger W. Caves Apresentação à edição brasileira....................................................... 9 Silvio Soares Macedo Introdução......................................................................................... 11 Lucia Capanema Alvares Jorge Luiz Barbosa Uma proposta multidimensional para analisar as políticas dos e a política nos Espaços Públicos Urbanos........... 19 Lucia Capanema Alvares Jorge Luiz Barbosa

Primeira Parte : Sobre pessoas. E espaços.......................................................... 53 O poder do corpo no espaço público: o urbano como privação e o direito à cidade................................................. 54 Ana Fani Alessandri Carlos Reinventando espaços públicos: políticas de si e política com muitos outros............................................................................ 75 Jorge Luiz Barbosa Ilaina Damasceno Uma democracia encurralada: os ecos das manifestações de 2013 no Rio de Janeiro e a arquitetura de uma crise............... 94 Lia Beatriz Teixeira Torraca Lazer e trabalho no espaço urbano-metropolitano contemporâneo: perspectivas, tendências e utopias.................... 115 Angelo Serpa


Segunda Parte : Sobre o espaço. E sobre pessoas.......................................... 137 Os espaços públicos e a vita activa................................................ 138 Eugenio Fernandes Queiroga Sistemas espaciais abertos no Rio de Janeiro: as esferas pública e privada refletidas na paisagem urbana......................... 160 Vera Regina Tângari A “reinvenção” da cidade a partir dos espaços populares........... 183 Cristovão Fernandes Duarte À guisa de uma compreensão global: uma análise multidimensional dos Espaços públicos urbanos por meio dos autores selecionados................................................................ 199 Lucia Capanema Alvares Sobre os autores.............................................................................. 221


Prefácio

Qualquer discussão crítica dos espaços públicos urbanos requer que isso seja feito através de perspectivas multidisciplinares. Isso é habilmente feito por Lucia Capanema Alvares e Jorge Luiz Barbosa em “Espaços públicos urbanos: das Políticas Planejadas à Política Cotidiana”. À medida que a população mundial se tornou cada vez mais urbana, assistimos a uma redução dos Espaços Públicos Urbanos (EPU). Seja por causa de ação ou inação do governo ou avanços na tecnologia da informação, estamos vendo uma redução na quantidade de oportunidades para interação pública. Para compreender verdadeiramente as muitas dimensões de como as pessoas usam os espaços públicos urbanos e como as políticas públicas (direta e indiretamente) afetam a disponibilidade e uso de tais espaços, devemos explorar essa fascinante área de investigação através de discussões em tópicos inter-relacionados como políticas públicas, design, arquitetura, economia, estudos ambientais, sociologia, paisagismo e planejamento urbano. É importante reconhecermos que os EPU são mais do que simplesmente os parques de uma cidade. Existem muitos tipos de espaços. Podem ser hortas comunitárias, mercados públicos, edifícios públicos, ruas, shoppings, escolas, praças públicas, praças, estacionamentos, etc. Conforme ilustrado pelos vários colaboradores deste livro, há uma miríade de benefícios associados aos EPU. A disponibilidade pode ajudar a criar um senso de comunidade, oferecendo às pessoas a oportunidade de se unirem por várias razões, como recreação, apoio às ações comunitárias, exposições de arte, festivais, shows e dança, e até mesmo para as manifestações de conflitos. Os EPU podem ter início com uma função e, como mediadores da ação humana, evoluir para outra coisa. Eles podem começar como espaços temporários para um propósito e então evoluir para espaços permanentes com múltiplos propósitos. Isso é consonante com a noção de que as cidades não são entidades estáticas. Elas evoluem com o tempo e, como tal, os espaços públicos urbanos também evoluem. 7


Prefácio

Por outro lado, a falta de espaços públicos urbanos pode causar conflitos e falta de confiança no governo. Os vários capítulos do livro mostram claramente que os cidadãos e o governo podem ter opiniões diferentes sobre os espaços públicos urbanos. Os cidadãos podem ressentir-se de políticas de desenvolvimento econômico do governo que estão forçando-os a se mudar para áreas com poucos espaços públicos urbanos. Nesses casos, os cidadãos precisarão ser criativos no desenvolvimento de seus EPU, o que é evidente no caso dos moradores das favelas. Para esses moradores, as políticas governamentais que pioram a desigualdade aumentam as tensões com o governo. Este é um livro poderoso, que oferece aos leitores compreensões diferenciadas sobre a criação, a disponibilidade e o uso de EPU nas cidades brasileiras. É um acréscimo oportuno e significativo à pesquisa sobre os espaços públicos urbanos; um livro bem pesquisado e documentado que deve ser lido por profissionais, professores, estudantes e cidadãos interessados em ​​ compreender as questões associadas aos espaços públicos urbanos. Roger W. Caves Professor Emérito de Planejamento Urbano San Diego State University

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Apresentação à edição brasileira Até 2015, ia frequentemente comprar pão a duas quadras de casa. Moro em um bairro de classe média de São Paulo, por onde andava devagar, flanando, tomando sol, admirando o céu, as edificações de interesse arquitetônico, jardins e pessoas, enfim, o cenário da rua. Em 2019, devido a um problema físico factual, uso bengala, e o percurso em busca de pão – que permanece morfologicamente igual – se transformou em tormento. Percebo que há obstáculos pelo caminho, escadas com degraus altos, raízes de árvores nos pisos, rampas muito inclinadas. As calçadas fazem parte da rua, o principal elemento dos sistemas de espaços livres urbanos. Nos últimos anos, tenho dado entrevistas a respeito para rádios e TVs, percebendo que, nesse tempo, nada evoluiu. Providências a favor da mobilidade não foram tomadas, todos os entraves para a circulação continuam existindo – fatos comuns em todo o país. Pode parecer estranho ao leitor que, em uma cidade como São Paulo, medidas de acessibilidade no espaço público ainda não se apresentem efetivadas, afinal, são os proprietários dos imóveis lindeiros que constroem e mantêm as calçadas – e não o Poder Público. Em geral, os proprietários não têm interesse em fazer calçadas de boa qualidade para a circulação de pedestres, mas apenas para as suas propriedades. Mesmo que apresentem cuidados, simplesmente se preocupam em colocar pisos bonitos, belas plantas em grandes vasos, arbustos espinhudos, tornando-as praticamente intransitáveis. Não pensam em oferecer aos pedestres tipos confortáveis de circulação. A situação se repete em todas as cidades do país, tanto em bairros populares como em bairros de elite. Ao mesmo tempo, concentrados na melhoria da pavimentação para a circulação de veículos, os investimentos do poder público não visam à melhoria da circulação de pedestres. Este livro apresenta uma causa muito importante para mim: a discussão em andamento no Brasil sobre os espaços públicos urbanos, presentes em todas as cidades do país. O termo, em contínuo debate, é lentamente incorporado em Planos Diretores. O que está em pauta se refere ao interesse de investir nesses espaços. Cada autor(a) também expõe ideias sobre segregação espacial e conflitos, fatos óbvios em qualquer cidade de um país como o Brasil, onde as disparidades socioeconômicas são marcantes. 9


Apresentação à edição brasileira

No contexto urbano brasileiro, os investimentos nos Sistemas de Espaços Livres incidem sempre em áreas especiais, como as turísticas e bairros residenciais destinados às classes média e alta no centro das cidades. Vez por outra, atendem a bairros populares. Tal fato pode ser visto em cidades de todos os portes, a exemplo de Santa Rita do Jacutinga (MG) e Sorocaba (SP). Os espaços livres têm sido objeto de políticas expressivas, em diversos pontos do Brasil, nos últimos 20 anos. Consequentemente, a população passou a ter espaços com maior qualificação espacial e paisagística: bem dimensionados, acessíveis, orientados em relação à insolação e ventos, seguindo critérios mínimos para a qualidade espacial, oferecendo conforto aos usuários. Paralelamente é comum, em todas as partes do país, a falta de manutenção continuada de equipamentos, pisos e vegetação. Encontramos árvores tomadas por cupins e graves problemas nas calçadas e passeios. A partir dos últimos anos do século XX e primeiras décadas do XXI, políticas públicas causaram grande efeito paisagístico sobre os espaços públicos de muitas cidades. Como exemplos: o Programa Viva Bairro, em São Luís do Maranhão (MA), implementado nos anos 1960 pelo governo do estado, transformou antigos terreiros e largos – utilizados tradicionalmente pela população para festas e manifestações culturais – em espaços equipados para tais atividades. O sucesso da ação foi tal que, mesmo após 20 anos, os espaços continuam íntegros e atendendo à demanda da população; o tratamento da orla da cidade de Rio das Ostras (RJ) no início dos anos 1960; a reformulação do sistema de espaços livres públicos da cidade de Rio Branco (AC) em função de um Plano Diretor do início do século XXI; o programa 100 Parques, em São Paulo, executado pelo Departamento de Parques e Áreas Verdes (Depave) entre 2006 e 2013, permitindo a criação de dezenas de novos parques; o grande investimento, entre 2013 e 2017, em ciclofaixas, ciclovias e corredores de ônibus, fato que alterou significativamente ruas e avenidas dos principais espaços livres paulistanos. Este livro requer uma leitura atenta, pois cada texto consiste em provocações que merecem e devem ser pensadas e rebatidas na cidade de origem do leitor. Por fim, convido-o a aceitar as provocações dos autores – com certeza, os melhores especialistas do assunto no Brasil. Dr. Silvio Soares Macedo Professor Titular de Paisagismo do Departamento de Projeto da FAUSP Carnaval de 2019. 10


Introdução Espaços públicos urbanos: das políticas planejadas às políticas cotidianas Caro(a) leitor(a), este livro apresenta um conjunto de contribuições sobre o espaço público em diferentes abordagens teóricas, conceituais e metodológicas. Os estilos são plurais por vários motivos, entre eles as questões que mobilizam os autores ao lerem o espaço público na cidade contemporânea e as interlocuções intelectuais que buscam em cada contexto de escrita original. Apesar dessas diferenças, prevalece o entendimento sobre a relevância de analisar os usos e apropriações da cidade por sujeitos e grupos sociais, pois eles representam a diferença. As semelhanças entre os capítulos também podem ser notadas e isso não é coincidência. Os autores entendem a cidade como um lugar para compartilhar experiências de vida; dessa forma, os locais de uso público devem ser pensados e entendidos como conceito e como prática social. Juntos, eles sugerem um escopo de pesquisa centrado na observação, descrição e análise da cidade e das ações políticas que valorizam os espaços públicos como lócus da esfera pública. Em oposição à análise que identifica o declínio do homem público na cidade, seja devido à violência, a modelos urbanos de auto-enclausuramento na forma de condomínios privados e shopping centers, ou à mobilidade limitada, partimos da premissa de que a cidade é um espaço público criado e vivido em formas contraditórias e processos conflitantes. Ao invés de vê-la como algo em extinção ou decadência, vemos a necessidade de compreender a complexa dinâmica constitutiva do exercício da cidadania. Construir novas formas de pensar o espaço público é, portanto, propor uma compreensão das condições sociais, econômicas e ambientais como caminho para compreender as lutas e demandas por equidade e dignidade no mundo urbano contemporâneo. Este livro trata da compreensão, contextualização e realização de análises críticas das políticas pretendidas e/ou implementadas pelos diversos atores públicos e privados nos espaços públicos urbanos, bem como a política cotidiana, ou eventual, exercida pela 11


Introdução

sociedade civil organizada e pelos citadinos. Há indubitavelmente uma miríade de atores a considerar em seus múltiplos papéis e em suas múltiplas escalas de eventos espaço-temporais. O objetivo intrínseco é trazer à tona uma compreensão dos espaços públicos urbanos que não apenas reconhece, mas também valoriza as diferenças, as desigualdades e as múltiplas formas de exclusão e segregação na cidade, pois elas são fatores de afirmação e/ou negação de uma conduta urbana imposta aos habitantes das cidades contemporâneas. O objetivo, afinal, é nos perguntarmos sobre as relações sociais, instituições, conceitos e práticas que contribuem para uma cidade da utopia onde todas as diferenças ocorrem, e/ou para uma acentuação das desigualdades, da segregação e da exclusão; é, enfim, entender como cada cidade traz essas marcas para seus espaços públicos e como estas conformam igualdades/ desigualdades que produzem conflito e/ou cooperação. O próprio conceito de Espaços Públicos Urbanos está aberto e em construção no encontro dos estudos da paisagem e das ciências sociais, baseado nas práticas físicas, ambientais e sociais, e trazendo um desejo transdisciplinar. É no ponto de encontro de tais estudos e práticas que o conceito emerge, como se detalhará no primeiro capítulo. Nesse livro, ‘Espaços Públicos Urbanos’ significarão aqueles lugares de livre acesso do povo, caindo principalmente em áreas livres de edifícios, mas não limitados a eles. Eles são o lócus da esfera pública, onde é possível observar as interações sociais, bem como as relações entre elementos construídos e livres, e entre fluxos de pessoas, bens e elementos naturais. Apesar das novas ideologias disseminadas argumentando que a era informacional cancela as distâncias, transformando o mundo em uma “aldeia global”, os espaços públicos urbanos sempre constituirão uma totalidade concreta na qual a sociedade se desenvolve; esse desenvolvimento é de fato um processo socioespacial: não há história ou técnica separada dos espaços concretos. A esfera da vida pública é realizada em espaços concretos, como tem sido demonstrado mundialmente por movimentos populares recentes (como a “Primavera Árabe” e os numerosos protestos “Ocupa”). Uma perspectiva crítica também requer a contextualização das políticas e práticas dos EPU na estrutura do capital e do trabalho; em verdade, e lançando mão das ideias de Lefebvre, Harvey e outros, argumentamos que a luta travada no espaço urbano é, em úl12


Introdução

tima análise, entre o capital e suas várias frações e o trabalho. Os grandes empreiteiros, o sistema de financiamento, as corporações multinacionais, os especuladores imobiliários e toda uma miríade de atores capitalistas têm e exercem interesses diretos e indiretos na cidade e, portanto, nos espaços públicos urbanos. Do outro lado está a força de trabalho, que tem no espaço não apenas seus meios de produção, mas também seus meios de reprodução, dependendo dele para exercer muitas de suas atividades e para sobreviver. O terceiro maior componente da equação é o Estado, que, embora teoricamente pudesse apoiar qualquer lado, tem ficado consistentemente do lado do capital. Para enfrentar este ousado objetivo, alguns dos autores mais importantes que trabalham com espaços públicos urbanos no Brasil foram chamados a compartilhar esse esforço com os organizadores. O livro é dividido em duas partes complementares; o primeiro é sobre pessoas (e espaços): discute como os seres humanos se expressam no espaço-tempo e como as diferenças são tratadas no encontro individual e/ou coletivo, mais genuinamente ou mais manipulados pela grande mídia e pelo capital corporativo. Enquanto os quatro capítulos, em diferentes graus, descrevem situações hegemônicas que empurram os citadinos para posições limítrofes, todos defendem uma cidade de direitos e vislumbram uma saída para os cenários atuais por meio de expressões culturais e apropriações de nossos espaços públicos urbanos. A segunda parte é sobre o espaço (e pessoas). Os três autores discutem como políticas públicas voltadas aos espaços públicos urbanos podem dificultar ou contribuir para a apropriação, a participação e o cuidado desses espaços, seja promovendo/restringindo o encontro, seja mantendo ou desprezando totalmente o espaço como base para o direito à cidade. É a partir da perspectiva do encontro entre conteúdo e prática que Lúcia Capanema Alvares e Jorge Luiz Barbosa abrem a coletânea com o capítulo “Uma proposta multidimensional para a analisar as políticas dos e a política nos Espaços Públicos Urbanos”. Eles examinam, sob a lógica da apropriação de espaços públicos urbanos, como os cidadãos conformam a cidade e como a cidade conforma as desigualdades de lugares, possibilidades e comportamentos. Como ferramenta analítica, oferecem um modelo com quatro dimensões de conteúdo local - socioeconômico, sociocultural, socioambiental e político-administrativo, e uma 13


Introdução

dimensão externa. Através dessas dimensões, exploram como as pessoas se relacionam com as tarefas da vida cotidiana enquanto se envolvem em conflitos que confrontam desigualdades em seus locais de encontro e nos locais de manifestações individuais e coletivas, de lutas e de apropriações simbólicas de espaços públicos; todos eles processos inerentes ao capitalismo tardio agora em voga (liderados por grandes corporações, globalização e indústria do turismo). Os autores buscam debater os conceitos e práticas sociais que contribuem para uma cidade da utopia, onde todas as diferenças podem ser vistas e tratadas em espaços públicos e onde indivíduos livres podem se apresentar e se envolver em uma vita activa. Ana Fani Alessandri Carlos enfoca a presença do corpo no espaço público por meio de demonstrações socioculturais como os ‘rolezinhos’. “O poder do corpo no espaço público: o urbano como privação do direito à cidade” analisa o processo de ocupação de ruas e praças no Brasil como forma de reafirmar o espaço público; esse processo se desdobra em lutas pela cidade, impulsionado pela necessidade de apropriar-se do espaço urbano para realizar uma “outra vida”, na qual a privação de direitos vivenciada por uma parte significativa da sociedade pode ser superada. As diversas formas de ocupação podem ser interpretadas como a capacidade de resistir no cotidiano e em oposição à produção hegemônica e à reprodução do capital. Jorge Luiz Barbosa e Ilaina Damasceno, em seu “Reinventando espaços públicos: políticas de si e política com muitos outros”, analisam o espaço público como um conjunto de múltiplos poderes e atos de auto-revelação espacialmente situados que se tornam reais quando sujeitos sociais buscam reconhecimento político. Esses poderes são expressos em estar, em viver, em experimentar, em estar-no-mundo e no revelar-se em relação às condições materiais, socioespaciais e simbólicas de homens e mulheres em suas diversas experiências urbanas. Nos argumentos dos autores, a ação política ganha o sentido de viver em sociedade, porque os sujeitos afirmam suas próprias diferenças na possibilidade das diferenças dos outros. Trazem à tona um debate sobre espaços públicos em que a presença de sujeitos na cidade - com suas lutas e demandas por visibilidade, e suas consequentes diferenças de afirmação - pode ser a unidade de garantia de direitos compartilhados. 14


Introdução

Em “Democracia Encurralada: os ecos das manifestações de 2013 no Rio de Janeiro e a arquitetura de uma crise” Lia Beatriz Teixeira Torraca inova em sua avaliação crítica ao considerar a dimensão geopolítica dos espaços públicos, especialmente ao discutir as violentas condições de exclusão das diferenças e dos diferentes considerados indesejáveis. As relações de exceção que fragmentam a sociedade e quebram as cidades estão inscritas nos muros visíveis e invisíveis que impedem e separam os sujeitos sociais. A autora também chama a atenção para o poder da arte e da cultura para superar uma democracia aprisionada pelas desigualdades urbanas. Os movimentos de ocupação dos espaços públicos nas cidades brasileiras, destacando os que ocorreram em junho e julho de 2013 e suas consequências para o país, demonstraram uma crise da ordem urbana e da construção da realidade pela grande mídia, trazendo novas perspectivas políticas para a ressignificação dos espaços públicos e da própria democracia política. O capítulo “Lazer e trabalho no espaço urbano-metropolitano contemporâneo: perspectivas, tendências e utopias”, de Ângelo Serpa, parte da premissa de que a produção de espaços de lazer está dialética e inseparavelmente ligada à produção de espaços de trabalho no contexto atual. O autor procura caracterizar as transformações econômicas, políticas, sociais e culturais das relações capital-trabalho/trabalho-lazer no mundo contemporâneo, a partir da consolidação da sociedade industrial e da era moderna. Em seguida, apresenta um estudo de caso específico de bairros populares em Salvador e Feira de Santana, que trata do trabalho e do lazer de microempresários, pequenos empresários e consumidores. Baseada principalmente nos conceitos de “ócio criativo” e “teletrabalho”, amplia-se a discussão para pensar as mudanças nas relações capital-trabalho/trabalho-lazer e seus impactos nos espaços públicos de nossas cidades e metrópoles. Eugênio Fernandes Queiroga, em seu “Os espaços públicos e a vita activa”, aborda a relevância destes nas cidades brasileiras de grande e médio porte em cenários contemporâneos. Distinguindo os conceitos de esfera pública, espaços públicos e espaços abertos, o autor apresenta um sistema de conceitos que permite uma melhor compreensão do tema, fornecendo elaborações úteis acerca da potencialidade dos espaço-tempos multifuncionais (e temporários) que podem ser aplicados no desenvolvimento de políticas públicas 15


Introdução

genuinamente interessadas em melhorar a qualidade dos espaços urbanos. Utilizando exemplos de todo o país, ele defende um paradigma de planejamento urbano mais inclusivo, mais distributivo e mais participativo. Vera Regina Tângari apresenta, no capítulo “Sistemas espaciais abertos no Rio de Janeiro: as esferas pública e privada refletidas na paisagem urbana”, os resultados preliminares de seu projeto de pesquisa em equipe sobre o papel dos espaços abertos nas paisagens urbanas. Estes espaços têm um papel importante na configuração da morfologia urbana, na forma do tecido urbano e na definição de centralidades que se concentram em torno e ao longo dos sistemas de circulação e permanência: ruas, avenidas e praças. Por outro lado, são determinados pelas contradições de um processo de ocupação que expressa a alta concentração de renda e recursos em alguns setores e áreas, e a omissão do estado em outros. Essas contradições resultam em um desequilíbrio na oferta e na acessibilidade e apropriação de espaços abertos pela população, afetando diretamente a qualidade do ambiente físico e as condições de sociabilidade que podem ocorrer em espaços abertos, e mais especificamente aqueles pertencentes à esfera pública. O capítulo de Cristovão Fernandes Duarte “A ‘reinvenção’ da cidade a partir dos espaços populares” aborda a importância dos territórios populares na produção cultural e na vitalidade do Rio de Janeiro. O autor indica que enquanto as favelas começaram como assentamentos temporários e precários, elas se tornaram, em menos de um século, grandes bairros populares, dotados de grande visibilidade cultural e demonstrando uma clara consciência crítica sobre os processos segregacionistas e excludentes associados à sua origem. O autor discute a resistência demonstrada nas favelas e seu papel de liderança na produção e reprodução de espaços para os pobres na cidade do Rio de Janeiro. Segundo o autor, a solução é reconhecer que as favelas representam legitimamente a “reinvenção” da própria cidade, entendida como local de encontro e troca entre indivíduos diferentes. Se na década de 1970 o mutirão e a autoconstrução significaram abrir a porta para a retirada dos programas de investimentos governamentais em favelas, na era pós-industrial, marcada pelas políticas neoliberais de acumulação por desapropriação, como Harvey colocou em várias ocasiões, e a retirada da maioria das ajudas inter16


Introdução

nacionais (incluindo as que vêm de ONGs estrangeiras), Duarte vê agora uma solidariedade diferente, de baixo para cima, que transforma as favelas em lugares habitáveis e viáveis. Contrapondo-se ao paradigma das remoções forçadas, as favelas que são capazes de permanecer em seus territórios fornecem um exemplo vivo do potencial social dos conflitos, propondo um diálogo com a cidade formal e ganhando apoio de vários setores. Ao fazê-lo, recriam espaços da vida política e econômica na cidade e restabelecem a esfera pública. Não renunciando a seu quinhão de investimentos públicos, as favelas mais antigas e mais bem estabelecidas estão nos dizendo que os pobres do Terceiro Mundo não precisam de conselho ou direção, mas sim de respeito e confiança em seu modo de ser no mundo. No último capítulo, testando o modelo proposto como uma ferramenta analítica privilegiada, Lucia Capanema Alvares tenta mostrar como os capítulos de conteúdo são entrelaçados na vida real e como os Espaços Públicos Urbanos brasileiros encenam fenômenos globais em sua própria mundanidade, às vezes imitando-os, às vezes nos surpreendendo a todos. Como “as visadas a serem adquiridas do ponto de vista do Sul global têm uma relevância crescente para o planejamento radical na era do neoliberalismo global” (Miraftab, 2009, p. 33), nós, juntamente com os autores, esperamos que os leitores apreciem esta viagem aos Espaços Públicos Urbanos no Brasil. Lucia Capanema Alvares Jorge Luiz Barbosa

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Uma proposta multidimensional para analisar as políticas dos e a política nos Espaços Públicos Urbanos Lucia Capanema Alvares Jorge Luiz Barbosa

Introdução Aos estudiosos das cidades parece ainda faltar uma metodologia de análise multidisciplinar dos espaços públicos como lócus da vita activa, como produtores e produto da sociedade da diferença, como vêm demandando autores da categoria de Milton Santos (1996) – com sua abordagem de conteúdo socioespacial - e vêm tentando responder alguns pesquisadores. Dentro desta perspectiva, este livro analisa, sob a lógica das políticas e apropriações dos Espaços Públicos Urbanos (EPU), como as políticas públicas conformam a cidade e como esta conforma lugares desiguais, imaginários, comportamentos, identidades, conflitos e segregações. Essas questões, embora relacionadas aos EPU mais especificamente, também parecem ecoar o desejo de Holston (1998) e Miraftab (2009) de considerar o Planejamento Urbano vis-à-vis espaços convidados e espaços inventados (de cidadania insurgente). Há uma década, Irazábal, ao introduzir seu livro “Ordinary Place/Extraordinary Events”, afirmou que “nenhum estudo havia perscrutado explicitamente o desenvolvimento da democracia e da cidadania no espaço físico urbano” (2008, p. 2) nem procurado “interrogar o destino da relação entre os espaços públicos e a construção da cidadania e da democracia nessa era” (2008, p. 3). Ao fazê-lo, Irazábal não se concentra, no entanto, nos usos diários dos EPU; diferentemente, analisa como os principais espaços urbanos - como o Zócalo da Cidade do México e outras praças centrais da América Latina - abrigam o ativismo político: os capítulos apresentados “focalizam particularmente os momentos em que ‘fissuras’ no mundo da vida deram lugar a transições dos processos da vida para fazer episódios da história: eventos extraordinários em lugares comuns” (p. 3-4). Como 19


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