
3 minute read
RECORDAÇÕES DA PROVÍNCIA NA METRÓPOLE
CERES COSTA FERNANDES
Um colégio no Alto da Boa Vista. Interna, aprendi uma canção sobre um menino que tendo perdido seu canário, apregoava, num canto muito triste, a venda da gaiola agora vazia de seu inquilino. “Mon Canari s’est Envolé”, acho que era o nome. Cantávamos essa e outras canções, fazendo roda em torno da fogueira, nas noites muito frias, antes de subirmos ao dormitório. Nestes dias, em que estive fora, com a missão de começar a esvaziar o apartamento da minha mãe de seus objetos pessoais, antes de tentar vendê-lo, esta canção se fez muito presente em minha memória. A mulher personalíssima, que ali habitara por mais de 40 anos, havia alçado voo para outras paragens, mas seu modo alegre e colorido de ver o mundo, estava impresso em todos os cômodos, nos móveis, nas faianças, nos quadros. Devo acrescentar que não fui feliz em minha missão. Além de falar da minha mãe, esse imóvel guarda parte da minha história. Quando meu pai o comprou, financiado pela Caixa Econômica, em longas e suaves prestações, a diminuírem o valor com o passar do tempo, o bairro chique do Rio era Copacabana. Não se falava em Leblon. Apaixonei-me pelo bairro, sua praia, seu moderno cinema e, certa do meu poder, finquei o pé: Quero o Leblon. Meu pai cedeu e minha mãe, depois, agradeceu a escolha. Não fui garota de Ipanema, nem menina do Leblon. Provinciana de São Luís, meu único interesse era o mar, onde me lançava sem medo. Durante anos, foi minha segunda casa, com vantagem de um café na cama, da despreocupação de qualquer responsabilidade doméstica e do carinho de mamãe.
Advertisement
. O quadrilátero ou a figura geométrica que o valha, onde está incluído o apartamento ainda é um dos lugares que permanecem gostosos no Rio, que têm essa coisa do provinciano dentro da metrópole: uma banca de jornal com um jornaleiro amigo, um bar defronte, para a cerveja do fim de tarde, a Livraria Argumento, a dois passos, onde a gente pode ler livros, longamente, ao lado de um escritor famoso ou de uma celebridade, um supermercado sofisticado e sortido, 24 horas, restaurantes e botecos para todas as tribos. Nesse cantinho, ainda se pode andar a pé, portando celular. Não há favela próxima. Mas, na banca, não está mais seu Carlinhos, pergunto ao substituto e ele me diz, Numa cidade praiana, aposentado. E a Farmácia Edith? Farmácia familiar, bem ao lado, descia-se de chinelo, pertencente a mais de três gerações da mesma família, fechou. Não resistiu às cadeias das grandes farmácias. Ao lado, também fechou o Armarinho, joia preciosa, não mais encontrável nas grandes cidades. Onde comprar botões, elásticos, fitilhos, linhas, colchetes, zíperes, agulhas? Alguém ainda compra? Eu compro. Comprava. Sinto falta do remendão, na pracinha, que consertava sapatos, bolsas e o que mais se levasse. Um gato enorme, amarelo, parecia ser o dono do lugar, esparramava-se no balcão e os clientes que se apertassem. Serviço de qualidade. O Boteco Belmonte se mantém há alguns anos. Comida boa, ambiente bom. Só incomoda dia de jogo do Flamengo. Os torcedores correm para lá, buzinas em punho. Onde estão os ônibus chamados frescões, primeiros refrigerados do Rio, linha direta à rodoviária e ao aeroporto? O metrô tornou-os obsoletos. Grandes passeios à região serrana, fazíamos eu e Antonio Carlos, quando da pós-graduação. Comer carneiro com tabule e beber cerveja Boêmia, em Petrópolis, era um dos nossos modestos passeios. O Leblon continua aconchegante. Em que pese ter perdido grande parte das minhas referências. E a maior delas: a mulher, pomba-rola que voou. Hélas, elle est partie. Maison à vendre, como diria a canção.