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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 23 DE JUNHO DE 2012

ensaio por MARIANA PASSOS RAMALHETE

A CRÔNICA VERÍSSIMA A maneira de Luis Fernando Verissimo tratar a realidade por meio das maquiagens e traquinagens da palavra é uma marca única de sua produção literária, aponta autora

E

m linhas gerais, a crônica pode ser compreendida como um gênero narrativo que trata de temas da atualidade e sua casa, inicialmente, é o jornal. Os assuntos, mesmo que variados, são banais e refletem o cotidiano. Algumas delas, após atenta observação e cuidadosa seleção, são editadas em livro, para garantir, dentre outros, sua durabilidade. Retiradas dos jornais, muitas vezes transcendem a ele: oscilam entre a descartabilidade e a permanência, entre a literatura e o jornalismo. No Brasil, Luis Fernando Verissimo é uma notável referência. Com um universo literário vasto, é um dos mais respeitados escritores brasileiros, talentoso, imaginativo e de humor refinado em plena produção. Assim, o título deste ensaio é uma jocosidade que aponta para o que especificamente se anseia retratar. A crônica do autor, Verissimo, e o caráter dela: “Veríssima”, verdadeira. Se alguém começar a leitura das produções veríssimas ficará com a impressão de que o cronista está apresentando um tipo de história que já nos habituamos a vivenciar: os costumes, o dia a dia, à moda bem brasileira, descritos frequentemente com ironia, simplicidade, num tom isento de refino demasiado na linguagem. Quem fala é o povo, o malandro, a esposa furiosa, o político, a criança, o empregado..., o que se expõe são as falcatruas, as gafes, as compulsões, as promessas nunca cumpridas, aquilo que a nação tem de vício, de mácula, de podre. Nesse sentido, Verissimo não se mostra alienado em relação ao que no mundo ocorre; delineia os contornos da vida, faz das mensagens conteúdos artísticos e dá uma pincelada de leveza sobre a dureza das informações: um pouco de riso, abstração e jogo, para tolerar o nó e as duras realidades do país. Ele mexe com nossos vícios, brios, vaidades, ambições, compulsões, nas esferas políticas, familiares, relacionais, profissionais, estudantis. Ele nos arranca o riso, mostrando-nos e obrigando-nos a olhar nos olhos tudo o que de ridículo há em nós.

MARCELLO CASAL JR./ABR

comuns, quando, enfim, se exerce, lança suas marcas e palavras, que não se podem confundir com quaisquer outras sobre o mesmo tema. O segundo aspecto diz respeito à fidelidade ao cotidiano, mas nunca o relatando “sem se meter na história”. A diferença entre dizer “Depois da separação veio o momento da divisão das coisas” e “Depois da separação veio aquele momento difícil da divisão das coisas”, na crônica “Enquanto Dure”, registrada em “O melhor das Comédias da Vida Privada”, ilustra as interferências ortográficas aparentemente pequenas, mas extremamente representativas e alteradoras dos sentidos que caracterizam a estética veríssima. Finalmente, sobre o detalhe, edificam-se não apenas desenhos de mundo, modos de ver esse mundo, mas modos de percebê-lo, de senti-lo, com um olhar metonímico, ou seja, olhar para a situação da família, ou da pobreza da condição humana atual, por exemplo, tomando apenas um núcleo familiar ou um único humano como modelo.

Humor

Escritor lança olhar impiedoso e bem-humorado sobre a vida pública brasileira

Aspectos

Nesse sentido, é imprescindível reafirmar que a crônica de Luis Fernando é veríssima. Isso pelo menos em três aspectos muito especiais. Primeiro: a crônica de Verissimo é muito dele. Sua maneira de tratar a realidade por meio das maquiagens e traquinagens da e com a palavra dificilmente poderá ser confundida com a de outro cronista deste país: é uma marca, sua e única. Por exemplo, tratar com seriedade ni-

tidamente falsa a permanência de um político corrupto no poder é um gesto que não pode ser visto sem estranheza pelo espectador: e nem deve. Eis, atingido, o objetivo do autor: gerar o estranhamento daquilo que é estranho, mas que, por descuido, já se olha com olhos acostumados. Quando o cronista brinca com as situações conjugais, quando abusa das palavras, em rearranjos aparentemente desinteressados, quando faz comparações das mais in-

O deslindamento de valores sociais, culturais, morais ou de qualquer outra espécie parece fazer parte da natureza significante do humor, entretanto, determinadas manifestações não parecem estar exclusivamente a serviço do riso, embora essa seja uma consequência inevitável. Assim sendo, um texto humorístico tanto pode revelar agressão a instituições vigentes, quanto aspectos encobertos por discursos oficiais, cristalizados ou tido como sérios. A importância da obra está, então, nos artifícios empregados para revestir de traços de arte o corriqueiro, isto é, perceber nos fatos cotidianos algo que faça jus a menção. Nesse sentido, o olhar impiedoso e bem-humorado de Verissimo repousa sobre os absurdos da vida pública e sua sátira dispara o gatilho dum irônico riso do brasileiro: o humor, ao sabor da crônica, sobre a realidade que, na obra, representação, é motivo de riso, mas na vida representada, é motivo da miséria desse povo – que ri.


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