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Para especialista, Anne Ventura institui dicção própria na literatura brasileira com o livro “Teia tecendo aranha”. PÁG. 4

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Castello Branco - 15.04.1964 a 15.03.1967

Vitória (ES), sábado, 7 de maio de 2011

Costa e Silva - 15.03.1967 a 31.08.1969

Emílio Garrastazu Médici - 30.10.1969 a 15.03.1974

A arte driblou a censura Ator e dramaturgo conta como artistas capixabas desafiaram o regime militar ao fazer teatro e cinema durante a repressão. Ernesto Geisel - 15.03.1974 a 15.03.1979

João Batista Figueiredo - 15.03.1979 a 15.03.1985

PÁGS. 6 E 7


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Preciosa memória

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F A L A N D O

D E

M Ú S I C A

Joyce e Tutty Moreno celebram união em CD impecável SAMBA-JAZZ.

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Caros leitores,

Brinde às bodas de vinil José Roberto Santos Neves

jrneves@redegazeta.com.br

JOSÉ ROBERTO SANTOS NEVES .

é editor do Caderno Pensar, novo espaço para discussão e reflexão cultural, que circula aos sábados, mensalmente, em A GAZETA

Pensar na web: No site www.agazeta. com.br, você encontra trechos de livros, músicas, trailers e depoimentos de colaboradores que participaram desta edição.

verso “Quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado”, do samba“Dançadasolidão”,dePaulinhoda Viola, sintetiza em forma de poesia a importância da memória para responderaperguntasquejamaisdeixarão de fazer parte das nossas vidas: afinal, quem somos, de onde viemos, para onde vamos? É com esse espírito que a segunda edição do Caderno Pensar traz dois artigos sobre aspectos até então obscuros do cenário cultural capixaba: nas páginas 6 e 7, Milson Henriques contacomoartistasdeteatroecinema enfrentaramacensuraemmeioaoendurecimento do regime militar; e, na página10,JôDrumondrevelaàsnovas gerações o pioneirismo de Guilly Furtado,aprimeiramulhernascidanoEstado a lançar um livro, em 1914. O Pensardestemêsofereceaindaoutrosdeleites, como a crítica do maestro Helder Trefzger para a obra do compositor russo Igor Stravinsky e um artigo de Regina Trindade destacando as inovaçõesestéticasdodocumentarista Eduardo Coutinho. Boa leitura e até a próxima edição!

Pensar:

P

arafraseando o poeta Vinicius de Moraes, a música popular é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro por aí. É o enlace de letra e melodia, acordes e harmonias,baixoebateriajuntosem busca da levada perfeita. Felizmente, não são raros os exemplos de uniões bem-sucedidas, e Joyce e Tutty Moreno estão entre eles. O casal celebra 30 anos de cama, mesa, palco e estúdio com o CD “Samba-jazz & outras bossas”, lançado em 2007 na Inglaterra pela gravadora Far Out e que só agora chega ao Brasil sob a chancela da Biscoito Fino, que muitos consideram a Elenco dos anos 2000, em referência ao célebre selo de Aloysio de Oliveira que sedimentou a bossa nova nos anos 60. Não é de se estranhar que esse trabalho de Joyce tenha conquistado inicialmente o mercado internacional. Nos anos 90, seus discos foram descobertos na Europa e embalaram as pistas da Alemanha em sua versão original. Em “Samba-jazz & outras bossas”, a compositora prolífica e o baterista de técnica

JOYCE E TUTTY MORENO

CD SAMBA-JAZZ & OUTRAS BOSSAS GRAVADORA: BISCOITO FINO. 14 FAIXAS QUANTO: R$ 33, EM MÉDIA

refinada celebram suas “bodas de vinil” (título de uma das músicas) com material inéditodeboacepaereferências a mestres como Moacir Santos, Baden Powell, Garoto, Luiz Reis e Haroldo BarbosaeTenórioJr,pianistadesaparecido misteriosamente na Argentina em 1976 durante uma turnê com Vinicius e Toquinho. Difícildestacarumaououtra canção quando o todo fala mais alto, mas a releitura de “Berimbau”, com arranjo elegante de Dori Caymmi para o afro-samba de Baden e Vinicius,easduasversõesde“Garoto”, que Joyce dedica ao músico homônimo que modernizou o violão brasileiro, são exemplos superlativos de um álbum que prima ainda pelo conteúdo lírico, como se pode apreciar no samba “Compositor”,defesaapaixonada do autor musical feita a quatro mãos por Joyce e PauloCésarPinheiro:“Compositor, compositor/Mas como é que vive o compositor?/Que équevaisernofimdomês/Se ninguém gravar a canção que elefez?/Esegravar,nãolevea mal/Não dá pra viver de direito autoral/Compositor/Tem muito sócio, sim senhor/Ecad, sociedade, leão, gravadora, editor”. Em tempos de revisão da Lei de Direitos Autorais, mais oportuno – e genial – impossível.

EXPEDIENTE – Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Editor de Qualidade: Carlos Henrique Boninsenha; Design gráfico: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Arquivo A GAZETA; Textos: Colaboradores; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória-ES, Cep: 29.053-315; Fax: 3321-8642.

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N A S P R AT E L E I R A S E N T R E L I N H A S

LAURA DE MELLO E SOUZA

No livro “Variações sobre o prazer”, Rubem Alves convida o leitor a deliciar-se com a sabedoria

OBRA.

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é que as coisas vivas sabem sem saber. E esse conhecimento atávico pode nos ser revelado vida afora. Mas seu lugar não é apenas a academia ou a alta cultura. Encontrá-lo é a chave para a verdadeira felicidade, ou para a ideia dela, se o pedido for desconsiderar sua existência. Sempre haverá tempo, ainda que sob a luz bruxuleante. “Os filósofos pensam sob a luz de lâmpadas fluorescentes. Os poetas pensam sob a luz de velas”, diz ele.

A vida como ato de devo(ra)ção Caê Guimarães é

jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br

O

que nos alimenta, seja você carnívoro ou vegan, é algo que morre para que possamos viver. Uma refeição, frugal ou lauta, deve ser encarada como um ato que vai além da imperiosa necessidade de matar a fome. A vida nos devora. A morte também. Neste intervalo, também devoramos. Conhecimento, pessoas, livros, paisagens. Somos um biodigestor sofisticado, ainda que muitos sequer o saibam. Comer, mais do que carburar combustíveis para a manutenção do corpo, é um ato gerador de prazer. Que é, afinal,oquebuscamosnavida. Disso trata “Variações sobre o prazer”, do pedagogo, poeta, cronista, ensaísta e psicanalista Rubem Alves.

O texto, fluido e suave como a entrada de um banquete, apresenta ao leitor quatro perspectivas do prazer, com uma referência para cada um. Na perspectiva religiosa, Santo Agostinho. Na filosófica, Nietzsche. Na política, Marx. E na culinária, fonte de comparação e espelho para todas as outras, o filme “A festa de Babette”. MOSAICO

A receita é um mosaico que passa por Barthes, Manoel de Barros, Fernando Pessoa, Kant, Pierce, pré-socráticos, Bashô e Leminski, Camus, Monet, Octávio Paz, Murilo Mendes, Guimarães Rosa, Lewis Caroll, Paulo Freire, Freud, Lacan, William Blake, Schuman, Borges, Neruda, Adélia Prado e Emily Dickinson. O que pode parecer uma combinação carregada e indigestaaosestômagosfracosrevela-se um prato leve, apesar de profundo. A mão de Rubem conduz com maestria o que é comum a estes homens emulheres–ofatodeteremse debruçado de forma corajosa

CLÁUDIO MANUEL DA COSTA. O poeta mineiro tem sua vida decifrada neste perfil que transporta o leitor para a Minas Gerais do século XVIII, palco de insurreições, traições e mortes. COMPANHIA DAS LETRAS. 248 PÁGINAS QUANTO: R$ 39, EM MÉDIA

JORGE AMADO

GANDHI

sobre o mistério da vida. Para Jean Paul Sartre, estamos condenados à liberdade, oqueimplicaemumaresponsabilidade enorme. “Disciplina é liberdade”, citou-o transversalmente no começo dos anos 90 o compositor Renato Russo. Rubem aposta que estamos condenados à felicidade, o que requer, também, uma enorme responsabilidade. E um enorme deleite. A nãodissociaçãodeambastorna a leitura de “Variações sobre o prazer” ainda mais instigante ao sugerir que deixemos o lugar dos saberes – sala de aula – pelo lugar dos sabores – cozinha, já que a raiz da palavra sapiência é sapore, que tanto vale para saber quanto para sabor. Sapientia, então, é o conhecimento saboroso. Daí surge um contraponto que pode nortear essa leitura,eoutrasadvindasdela, já que o livro pode ser visto como um espelho de prismas variados.Eespelhovemdeespeculum, ou seja, especular. Refletir é pensar os reflexos, especular sobre eles. A aposta de Rubem Alves

Por acreditar, Rubem fez o livro.Eoabrecomumahistória que pode ser um astrolábio nos mares agitados do prazer dessa leitura. Ele conta que uma vez, reunido com um grupo de amigos para ler poesia, uma citação de Mahatma Gandhi fez com que todos refletissem e propusessem um jogo, um exercício espiritual que parte da seguinte premissa:façadecontaquevocêsabe ter apenas mais um ano de vida. Como então viveria ao saber que as areias da ampulhetateimpingemumtempusfugit? Como prazer, em suas variações, é sua aposta.

O PAÍS DO CARNAVAL. O primeiro romance de Jorge Amado, escrito quando ele tinha 18 anos, condensa as angústias de uma geração a partir do olhar de um personagem que mantém uma relação de estranhamento com o país. COMPANHIA DAS LETRAS. 104 PÁGINAS QUANTO: R$ 31, EM MÉDIA

ANNE PLANTAGENET RUBEM ALVES

VARIAÇÕES SOBRE O PRAZER EDITORA PLANETA. 192 PÁGINAS QUANTO: R$ 20, EM MÉDIA

MARILYN MONROE. A autora francesa percorre a trajetória da atriz e símbolo sexual do século XX com habilidade e refinamento. TRADUÇÃO: REJANE JANOWITZER L&PM EDITORES. 224 PÁGINAS QUANTO: R$ 16, EM MÉDIA


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CONTOS. Para especialista, escritora já instituiu dicção própria na

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literatura brasileira, marcada pelo olhar feminino agudo sobre a vida

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O novo livro de Anne Ventura vai morrer humano

IGUARIA.

Capixaba radicada em Portugal, Anne Ventura oferta seu livro “Teia Tecendo Aranha”

Maria Amélia Dalvi é mestre em Letras, doutora em Educação e professora da Ufes. Autora de “Drummond, do corpo ao corpus” (2009) e coorganizadora de “A crítica literária: percursos, métodos, exercícios” (2010). mariaameliadalvi@ gmail.com.

A

ntes que o leitor me chame de maluca, o título desta resenha alude ao belíssimo poema “ressaca”, de Anne Ventura, dedicado ao poeta Paulo Sodré. Autora de “O amor, o ódio e outros detalhes da vida” (1996), “Enquantamento” (2006) e, mais recentemente, “Teia tecendo aranha” (2010), além de textos publicados em antologias coletivas – como “No canto do olho” (1998), “Escritos entre dois séculos” (2000) e “Instantâneos” (2005) –, Anne Ventura já instituiu uma dicção própria na literatura capixaba, e brasileira: diálogo com autores locais, nacionais e estrangeiros; convivência pacificada entre erudição e ninharia; abordagem do cotidiano por um olhar feminino agudo; ironia ante a vida (e a literatura)

aguada. Além disso, as questões de corpo e gênero e as preocupações sociais não estão ausentes, todavia perpassadas por um delicado tratamento estético, de modo que o que poderia soar panfletário se desestabiliza: e exige uma reflexão sem apriorismos. Seu mais recente livro é prova do vigor com que a escritora capixaba radicada em Portugal dedica-se à fiação de personas literárias cujas sobreposições de traços factuais e fantásticos caracterizam uma investida inegável da produção literária em prosa no Brasil dos anos 2000 – como aponta Flávio Carneiro em seu painel da ficção brasileira de início de século(“Nopaísdopresente”.Riode Janeiro: Rocco, 2005). Nesse sentido, Anne se faz da mesma linha-

gem que Bernadette Lyra, Andréia Delmaschio e Márcia Denser – para ficar apenas em alguns nomes. À maneira de um Raymond Queneau e seu “Exercícios de estilo” ou de um Ítalo Calvino e seu “As cidades invisíveis”, por exemplo, Anne Ventura vai estruturando em “Teia tecendo aranha” (Vitória, 2010) variações que retomam temas apresentados inicialmente, para fazê-los avançar à medida que dialogam com outras e novas informações, numa arquitetônica textual que prima pela pluralidade de imagens, sentidos e dicções. Desse modo, o conjuntodecontosrasuraanoção de gênero, pela possibilidade que os textos lidos unitariamente formem um romance atípico – mas verossímil. Seu lirismo é o dos loucos, dos bêbados, dosclownsdeShakespeare. De saída, o novo livro de contos provoca o leitor com a seguinte possibilidade: “e se eu me chamasse bárbara? e se me chamasse bárbara blue e tivesse constantemente estranhos pensamentos?”.Eprossegue:“eu,se afosse,seriateiatecendoaranha”.A imagem remete à epígrafe, atribuída a Mia Couto: “A vida é uma teia tecendo a aranha. Que o bicho se acredite caçador em casa legítima pouco importa. No inverso instante ele se torna cativo em alheia armadilha”. Depois, a narradora gira sua metralhadora verbal: “mas e se você,depois,fossebárbara,eudeixandodeser?oquefariacomaquiloque fui?”. E aí está um dos grandes méritos da obra: o duelo que se estabelece entre o que foi e o que poderia ter sido de nossa experiência coletiva,comosujeitosurbanosque transitam entre o cosmopolita e o provinciano; a tênue linha que se-

para as vozes narrativas e o leitor, já que são possíveis muitos pontos de inferência, comuns à nossa existência social. Do ponto de vista estrutural, “Teia tecendo aranha” se organiza de modo previsível para o que poderia ser um libelo às avessas da fêmea humana do fim de década: há um “Prelúdio”, em que Bárbara Blue (ou sua possibilidade) se apresenta, dizendo que veio ao mundo “para ser enorme”, “num lote de bagagem extraviada”; depois, a expansão das teses iniciais nos 22 contos (ou capítulos) de “Todas as mulheres são Bárbara”; e, por fim, “Notas a bombordo do corpo”, em que se pede: “um verso pela salvação cotidiana da alma. um ao menos, cede-me! tem pena de quem só peca pela sina de ter nascido de espírito inquieto” ou “aterremos o espaço entre nós”.

ANNE VENTURA

TEIA TECENDO ARANHA SECULT. 2010. 130 PÁGINAS. QUANTO: R$ 15. À VENDA NA LIVRARIA PRAZER DA LEITURA, NA PRAIA DO CANTO, E NO SEBO DO IRAN, NA UFES. BLOG DA AUTORA: HTTP://ALAMBIQUETROPICAL. BLOGSPOT.COM


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Seção deste mês traz reflexão sobre cenário cultural, versos de solidão e narrativa sobre a riqueza do vazio CRÔNICAS E POESIA.

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Cultura para quem? Juca Magalhães é gerente de comunicação do Instituto Todos os Cantos e autor do blog A Letra Elektrônica: megamagalhaes.blogspot.com

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maestro Adolfo Alves me mostrou uma reportagem dizendo que o capixaba não consegue diferenciar cultura de entretenimento ou lazer. Não é um problema só nosso, ou um “privilégio”, como muita gente diz erradamente. Aliás, essa coisa de confundir o significado das palavras é também cultural. Em priscas eras, saícomumagarotaquemedizia ter um “dilema” na vida; fiquei curioso, daí ela emendou: “Só o amor constrói”... Essa citação do Wagner Ribeiro, dos Dzi Croquettes, foi uma homenagem, não faço mais a menor ideia do que a menina me falou. Mais importante do que “descobrir” que a população não consegue perceber diferenças entre as expressões populares e a construção de uma identidade com um passeio no shopping, seria descobrir se os políticos que os representam percebem a gravidade disso e se preocupam com o assunto. É notória e explícita a indiferença pela construção dos processos culturais no meio político. A pasta da cultura dificilmente vai parar na mão de uma pessoa da área, sendo geralmente utilizada para acomodar acordos de campanha e a verba é praticamente desperdiçada em eventos populares. Existe uma grande diferença entre o entretenimento puro e simples, um evento cultural e uma ação cultural. O primeiro tem o valor informacional de um passeio numa montanharussa ou de um filme hollywoodiano: diverte, emociona, mas

não acrescenta conhecimento. No segundo grupo estariam os shows de boa qualidade, concertos, palestras, exposições de arteetc.Sãosimplesmostrasde produção cultural: informam, acrescentam, mas não necessariamente formam. O terceiro grupo é o mais importante e tradicionalmente ignorado pelos governos, citando Frances Jeanson: “O processo de ação cultural resume-se na criação ou organização das condições necessárias para que as pessoas inventem seus próprios fins e se tornem, assim, sujeitos da cultura e não seus objetos.”

Arte é produção e manifestação e, para criar, é preciso investimento e apoio, prover ferramentas e caminhos.

Percebemosnoensinopúblico fundamental um avanço na educação básica, que na verdade existe para suprir a demanda por mão de obra minimamente qualificada e do cidadão que precisa trabalhar. Nas escolas públicas – e muitas particulares –, não são trabalhados valores culturais porque são subjetividades complexas e estão ligados aos processos de criação. Arteéproduçãoemanifestação e, para criar, é preciso investimento e apoio, prover ferramentas e caminhos. Enquanto isso não acontecer vamos continuar sendo – digo o Espírito Santo–oquesomosparaoresto dos olhos do Brasil, um lugar onde nada de interessante acontece: a praia dos mineiros.

ESPAÇO DA POESIA

Tudo sobre o nada Anaximandro Amorim é escritor e membro da Academia Espírito-Santense de Letras. www.anaximan droamorim.com.br

CASÉ LONTRA MARQUES DA INSUFICIÊNCIA

Carrego do meu ser de insuficiência as unhas fincadas na raiz das ramagens impostas ao medo que desarma as vidas dedicadas à voragem Carrego do meu ser de solidão o alarme que povoa a carne junto ao enigma que multiplica suas vigas pelas veias da exaustão DA MEMÓRIA

Precisamos não estender os silêncios, não abreviar as palavras. Podemos apreciar sua sensatez, jamais arruinar seu rigor. Meu ódio não nos conduz a nenhuma cólera. Repudio o rancor que não se cala, decidindo não colaborar com o desconforto que contamina esta casa. Ao buscar o esquecimento, percebo que tenho acumulado a memória de incessantes assombros. Ainda procuro contornar a catástrofe. Não criei o crime que cresce entre nós, enterrando estacas nos pontos onde apoiamos as omoplatas. ------------------------------Casé Lontra Marques nasceu em 1985. Lançará em breve o livro “Movo as mãos queimadas sob a água”.

D

epois de agradecer o convite do editor José Roberto, busquei um montão de ideias para minha primeira crônica para o “Caderno Pensar” de A GAZETA, mas não consegui achar nada. Foi aí, então, que tive um insight e resolvi: vou escrever tudo o que sei sobre o nada. Espantado, leitor? Nada a ver! Pois saiba que até mesmo o nada tem muito a ser dito! Pra início de conversa, convido você a um exercício: abra suas mãos e separe-as, o máximo que puder. Agora, responda-me: o que há no meio delas? Certamente, você vai me dizer “nada”. Errado! Tem é muita coisa aí: uma enorme quantidade de partículas em suspensão, pairando entre uma mão e outra, a tralha espalhada embaixo delas e o “Caderno Pensar”, além desta humilde crônica, é claro! O nada também serviu de inspiração pra muita obra artística. Rita Lee, ainda em 1979, sentenciou: “nada melhor do que não fazer nada”. De fato, de vez em quando, ficar à toa é muito bom, numa rede, na frente da praia, tomando água de coco e assistindo a uma série sobre o nada. Duvida? Pois é, ela existe. É o humorístico norte-americano “Seinfeld”, em que quatro amigos, Jerry, George, Cramer e Elaine não fazem nada, o dia inteiro – e vivem se metendo em confusão. Bom pra quem quer ficar no ócio. E por falar em ócio, de tan-

to não fazer nada, muitos filósofos nos brindaram com séculos de pensamento. Sócrates já dizia “só sei que nada sei”. Nietzsche falava do niilismo das coisas, uma força que dirige o nada e Jean Paul Sartre, em “O Ser e o Nada”, pregava a “nadificação” do ser, isto é, morreu, virou nada – pra ser curto e grosso. Mas foi o pensador italiano Domenico di Masi, em o “Ócio Criativo”, que disse que de vez em quando é bom não fazer nada, mesmo. Será que ele já ouviu Rita Lee?

O nada também serviu de inspiração pra muita obra artística. Rita Lee, ainda em 1979, sentenciou: “Nada melhor do que não fazer nada”. Aliás, nem a religião escapou do nada. Pois não foi em Gênese, primeiro livro da Bíblia, que Adão e Eva viviam no jardim das delícias, numa boa, sem fazer nada? Isso até comerem do fruto proibido, né? Foi aí que tudo aconteceu... Nem pra aquela maçã estar bichada! O nada pode acontecer a qualquer escritor. Exceto um: Rui Barbosa. Diz a lenda que, em Haia, na Holanda, tentaram pregar-lhe uma peça, dando-lhe um papel em branco, pra ele não discursar. Entretanto, Barbosa disse que aquilo era um convite a falar sobre o nada – e discursou durante duas horas! Imagino que ele deva ter dito tudo! Eu, por meu turno, prefiro falar, pelo menos, alguma coisa. Afinal de contas, falar do nada é melhor do que não ter nada pra falar.


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ANOS 60. Milson Henriques revela como artistas capixabas usaram a coragem e a criatividade para fazer teatro e cinema em meio à repressão

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Meninos, eu estava lá S Milson Henriques é cartunista, dramaturgo e ator, não tem e-mail e não usa celular.

ou um daqueles tipos quenasceramde“costas” para a lua, isto é, sempre tive sorte. InclusiveasortedechegaraVitória no ano de 1964. Uma ilha – a única ilha habitada do mundo onde não existia praia – que era (obviamente ainda é) a terceira Capital mais antiga do Brasil. E bota “antiga” nisso, no bom e no mau sentido. Artisticamente, então, Vitória ainda estavaem1920,poraí.FoiquandoCariê Lindenberg, junto com sócios, fundou a primeira agência de publicidade de Vitória, a Eldorado, onde fuitrabalharcomodesenhistaeonde conheci Oswaldo Oleari, Janc, Carmélia, Toninho Neves, Marien Calixte, Xerxes Gusmão... tudo genteinteligenteeobviamente–na época – da esquerda, que militava de várias maneiras contra a ditadura militar. Antonio Carlos Neves, o Toninho, injustamente esquecido pela nossa mídia, tinha vindo recentemente de Brasília, onde estudou cinema e, juntamente com Paulo Eduardo Torre, vindo do Rio de Janeiro, tentava começar um movimento em teatro e cinema – que na época era muito caro – com os estudantes. Com Toninho comecei a ensaiar uma peça, comecei a escrever em jornal através do Janc e da Carmélia, a apreciar – mais – a músicacomomestreMarieneatomar porres homéricos com Xerxes. A vida noturna e intelectual da Ilha ia do Britz Bar, nas imediações da Rua Sete de Setembro, até

o Parque Moscoso, passando pela boêmia Rua Duque de Caxias, onde, logicamente, fui morar, numa pensão atrás da Praça Oito. A cidade, que à primeira vista me decepcionou, seis meses depois já havia me conquistado de maneira avassaladora. Claro que na época, aterrívelditaduraparadoxalmente “ajudava” muito. Quanto mais tentavam proibir, prender, dispersar, quanto mais cerceavam, ameaçavam, mais a gente tentava, produzia, inventava, bagunçava e se unia formando uma barreira contra a mesmice, a burrice, a TFP (Tradição, Família e Propriedade), o moralismo hipócrita. Foi uma época de luta, mas uma época linda, em que se produziu muito. Como dizia a música de Paulo César Pinheiro, que cantei num show com universitários na antiga Escola Técnica, em Jucutuquara (o único lugar onde havia um pequeno palco para se apresentar, já que o Carlos Gomes estava fechado): “Você me corta um verso, eu escrevo outro, você me prende vivo, eu escapo morto, de repente, olha eu de novo, perturbando a paz, exigindo o troco!... Que medo você tem de nós!”. Logicamente saí do palco direto para a sede da Polícia Federal, que era ali perto, para prestar declarações sobre “o que eu queria dizer com aquilo, cantado sob uma luz vermelha”. A gente gostava de provocar...

Você me corta um verso, eu escrevo outro, você me prende vivo, eu escapo morto”

Trecho da música “Pesadelo”, de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós, uma das mais contundentes canções de oposição à ditadura militar

PAULO BONINO/ REVISTA CAPIXABA

Havia a censura no meio do caminho...

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FILMAGENS. Acima, Milson Henriques, Zélia Stein, Marlene Simonetti, Paulo Torre, o fotógrafo Moisés e Toninho Neves no set do curta “Boa sorte, palhaço”, em agosto de 1967; à esquerda, Toninho Neves dirige Milson e Zélia no filme que foi impedido pela censura

“Tive o orgulho de fazer o papel de um comandante holandês gay que ‘adorava’ sua profissão de ‘caçar’ escravos fugidos”

Milson Henriques falando sobre seu papel na peça “Arena conta Zumbi”, de Gianfrancesco Guarnieri

ob a direção de Toninho Neves comecei a filmar o curta, com roteiro dele, “Boasorte,palhaço”,quefoilogo impedido. Começamos então, ainda dele, “No meio do caminho”, também proibido e outro, que esqueci o nome. Até que conseguimos emplacar o curta “Alto a la agression!”, em que eu fazia o papel de um estudante que era torturado (por Paulo Torre, no papel do torturador) no temível “pau de arara”. O filme, para nosso orgulho, foi “Menção Honrosa” no Festival de Curtas que o Jornal do Brasil patrocinava. No meio de tudo isso, entre passeataseshowsmusicaiscom universitários, começamos a ensaiar a peça, também de Toninho, “Acorda, meu Gigante, estão levando seu ouro embora”, que foi proibida. Em parceria com Toninho, tentei minha primeira peça “Zé da Silva em confidência agora”, em que a gente falava sobre Tiradentes e aInconfidênciaMineira,logicamente comparando com a situação da época, e logicamente proibida... Tentamos então “Arena conta Zumbi”, uma peça de Gianfrancesco Guarnieri que estava sendo apresentada com enorme sucesso no Rio e em São Paulo com elenco de jovens talentosos, no começo da carreira, entre eles, Armando Bógus, Lima Duarte, Paulo José, Dina SfaheMiltonGonçalves,alguns ainda hoje em novelas globais. Era uma peça musical de protesto, que falava muito em liberdade, mas “liberdade dos escravos”, por isso não podia ser proibida. Estreamos em 1966, improvisando um palco de arena na antiga cozinha do ColégioBrasileiro,ondehojeé o Espaço de Arte Majestic, no centro da cidade. Foi o maior sucesso aqui em Vitória também e tive o orgulho de fazer o

INEDITISMO. Cartaz do I Festival de Cinema Amador de Vitória,

em 1967, que reuniu nove curtas de cineastas capixabas

papel de um comandante holandês gay que “adorava” sua profissão de “caçar” escravos fugidos, e de ter falado o primeiro palavrão nos palcos, um inocente “filho da puta”, que na época abalou estruturas. CINE JANDAIA

No ano seguinte, ainda Toninho Neves reuniu trechos de peças clássicas que falavam dos temas e fez uma verdadeira colcha de retalhos com o espetáculo “Juventude de raiva e muito amor”, com o mesmo elenco anterior. Outro sucesso. Mas Toninho foi para a Rússia, estudar cinema. Eu, que já mantinha uma página dominical em um jornal, na qual misturava cultura e humor, consegui reunir nove curtas-metragens de cineastas capixabas (dentre eles a filmagem colorida daprimeiraoperaçãodecoração realizada no Espírito Santo e um documentário sobre a cidade de Vitória, feito em 1938) e, competindo com um sol de verão num domingo, 3 de dezembro, 10 da manhã, foi apresentado o Primeiro Festival de Cinema Amador de Vitória, no antigo Cine Jandaia, com mais de 300 espectadores.Eraaforçadajuventude dando seu apoio à cultura. Animado com isso, come-

cei a escrever e dirigir shows musicais com estudantes, logicamente repletos de músicas de protesto. Até que em 1969, a pedido dos estudantes de Engenharia, escrevi minha primeira peça, “Vitória de SetembroaSetembrino”,que,logicamente, foi proibida pela censura militar, após ser assistida com casa lotada – ainda na antiga Escola Técnica – durante sete apresentações. A proibição veio direto de Brasília, sinal que a gente estava incomodando “os hôme”... MÚSICA

Animado com o sucesso do Festival de Cinema, em 1968 realizei o Primeiro Festival Capixaba de Música Popular Brasileira, aí com todo apoio do Serviço de Turismo da Prefeitura de Vitória, comandado na época pelo grande Marien Calixte. Um sucesso que mexeu com toda cidade, movimentando torcidas entre as músicas finalistas e misturando jurados daqui com outros do Rio de Janeiro, lotando o Ginásio de Esportes do Clube Saldanha da Gama. Mas a história dos Festivais de Música já é uma outra história, mais longa, que fica para outra oportunidade...


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VISUAIS. Livro

de psicanalista mostra como a pintora mexicana transformou a dor provocada pelas tragédias pessoais em arte

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Frida Kahlo à luz da psicanálise REPRODUÇÃO

PINTURAS. “A Coluna Partida” (à

esq.), de 1944, e “Autorretrato com macaco e gato”, de 1938: beleza e superação

Marli Bastos é carioca, psicanalista, mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVARJ). Membro do Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro e do Comitê Científico da Revista Clínica Contemporanéa do Colégio Oficial de Psicólogo de Madri. marlim. bastos@gmail.com

“F

rida Kahlo: Para-além da pintora”, lançado pela editora Mauad do Rio de Janeiro, é um livro que nasceu de um estudo ao qual tenho me dedicado há alguns anos e se tornou tema de minha dissertação de mestrado, em 2006,naqualarticuleiessahistória de vida a um conceito psicanalítico chamado sublimação. É uma leitura leve, embora tenha um viés acadêmico, bastante biográfico, levando o leitor a percorrer um pouco do que eu pude absorver dessa vida tão intensa da artista Frida Kahlo. Frida Kahlo, pintora mexicana do início do século XX (1907-1954), é personagem de extrema relevância para seu país. Com grande amor pelo México, teve participação importante na política de seu

tempo. Após se recuperar de uma poliomielite infantil, quando adolescente, sofreu um acidente de trânsito no ônibus, cujas sequelas causaram a mudança mais radical de sua vida. Cirurgias diversas prenderam Frida a hospitais e a uma cama especial em casa durante grandes períodos. No entanto, essa condição não a impediu de produzir uma belíssima obra pictórica, escrever poesias, dar aulas, exporemváriospaíses,enfim,aviver uma história plena de amor e emoções fortes. NOVA ESTÉTICA

Frida Kahlo após o acidente passou a ter outro tipo de relação com seu corpo, revestindo-o com lindas roupas, xales e adornos que a ajudaram a dar conta de sua nova estética,

do corpo pulsional. Para a psicanálise, o corpo é habitado por pulsões, encontrando-se, assim, imerso no universo das representações, chamado corpo-linguagem, regido pela libido. A artista reage à incompletude do corpo acidentado com a produção criativa de uma cadeia significante exposta na obra e explica: “Como eu era jovem, a desgraça não adquiriu um caráter trágico e desde entãocrieienergiasuficienteparafazer qualquer coisa em lugar de estudar para doutora, sem prestar muita atenção, comecei a pintar”. O corpo de Frida Kahlo foi causadordeumadorfísicaedesofrimento n’alma ao longo de sua vida. No entanto, desafiou-se a promover uma viradarevolucionáriadevidaeconstruiu uma carreira brilhante, apostando no seu poder criativo. O vazio causado pelo acidente é por ela preenchido com arte. O vazio inominável de seu desamparo consolidou a basedelançamentodosujeitoàcriação. Freud argumenta que o destino muitasvezescuraasdoençasatravés das grandes emoções de alegria, da satisfação das necessidades e da realização dos desejos, com os quais,

nós psicanalistas não podemos rivalizar (“Tratamento psíquico ou anímico” [1905]). Foi nesse sentido que a obra de Frida Kahlo causou impacto em mim, transformando-a em um dos temas de minhas pesquisas. Na obra “Frida Kahlo: Para-além da pintora”, busquei pinçar os momentosdesuahistóriaquemaisme chamaramaatenção,inclusiveofato de Frida inusitadamente transitar na poesia. Seus escritos amadurecem progressivamente além das cartas de adolescente para atingir à mulher apaixonada, sedutora e dona de uma pujança ímpar. Para Freud, em “Mal estar na civilização”, o dom de sublimar “não cria uma armadura impenetrável contra as investidas do destino e habitualmentefalhaquandoafonte do sofrimento é o próprio corpo da pessoa”. Portanto, à luz da psicanálise, tudo leva a crer que foi o dom que fez com que esta artista pudesseultrapassartodasasbarreirasimpostas pelo acidente. Pode-se concluir que Frida Kahlo ofereceu à cultura mundial uma obra extensa e valorosa, que representa uma lição sobre a força de viver. Esse legado ficou consignado em um dos seus últimos quadros, onde ela assinala a derradeira mensagem – “Viva La Vida!” – nomeando-o apenas oito dias antes de sua morte.

MARLI BASTOS

FRIDA KAHLO: PARA-ALÉM DA PINTORA EDITORA MAUAD. 116 PÁGINAS QUANTO: R$ 28, EM MÉDIA


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Pesquisadora analisa as inovações estéticas trazidas pelo cineasta que rompeu a forma engessada da tradição documental CINEMA.

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COUTINHO EM CINCO MOMENTOS Santa Marta, duas semanas no morro (1987) O cotidiano de uma favela do Rio de Janeiro, onde mais de dez mil pessoas convivem entre pobreza, violência e sonhos.

PRESTÍGIO. Diretor

tem 11 longas de não ficção no currículo e inúmeras premiações

Eduardo Coutinho, o documentário sob o risco da ficção Regina Trindade é jornalista, membro do Grav (Grupo de Estudos Audiovisuais), crítica e pesquisadora de cinema. ninaltc@gmail.com

O

ano era 1964 e a intenção era produzir cinema engajado com a arte de compromisso social. Eduardo Coutinho, na época com 30 anos, engrossava o grupo do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional de Estudantes (UNE). Com um projeto de um filme nas mãos,aequipedoCPCrumava às gravações de “Cabra marcado para morrer”, ficção baseada em fatos reais: o assassinato de um líder camponês nordestino a mando de um latifundiário da região.

As filmagens foram bruscamente interrompidas pelo golpemilitarde31demarço.Fugas, prisões e a apreensão do pouco material filmado anunciavam o que, 17 anos depois, resultaria na obra que consagrou o nome de Eduardo Coutinho no panteão do cinema documental. Curiosamente, parte do material foi salva. Cerca de 40% do roteiro havia sido enviado a um laboratórionoRiodeJaneiroalguns dias antes do golpe. Em meados de 1979, Coutinho decidiu retomar o projeto, mas com uma roupagem diferente daquela proposta em 1964: ao invés de rodar uma ficção, ele inicia um documentário sobre o reencontro com os entrevistados naquela época, explorando a memória e o resgate da históriacomoelementosprotagonistas de um filme de não-ficção. A retomada de “Cabra marcado para morrer”, lançado em 1984 em novos moldes, pode ser

considerada um reflexo das transformações das cinematografiasquereinventaramocinema nos anos 50/60, época em queosnovosteóricosproclamavam a recusa à linearidade narrativa, à montagem invisível, ao classicismoestéticoeà“impressão de realidade” que os filmes até então buscavam atingir. Ofilmede1964seguiaalinha tradicional: quase nenhuma interação visível entre o diretor e os personagens, enquanto no “Cabra” de 1984 o diálogo claro entre os dois lados da câmera tornava-se essencial. No filme de84,osprocessosdefilmagem ficam explícitos; a metalinguagem, assim, começa a ser utilizada pelo cineasta como recursoparaalertaroespectadorque o seu documentário é um filme pensadoeconstruídoapartirda realidade e não um retrato fiel dela.Aobradáinícioàinovação documental de Coutinho: a arte defazerfilmesquesãocrônicas

Santo Forte (1999) A diversidade religiosa brasileira mostrada pela experiência e intimidade de moradores de uma favela carioca, onde preparam, cada um a seu modo, a celebração do Natal.

Edifício Master (2002) Um prédio, 12 andares, 276 apartamentos por andar. A equipe de Eduardo Coutinho filma, durante sete dias, a vida de parte dos 500 moradores, revelando histórias pessoais e inusitadas de uma classe média silenciosa.

Peões (2004) As greves da indústria metalúrgica do ABC Paulista de 1979 e 1980 são levadas às telas, relembradas e recontadas de forma pessoal pelos personagens anônimos que delas participaram (foto acima). O fim e o princípio (2005) Sem pesquisa prévia, personagens ou locações, a equipe de filmagem aventura-se pelo sertão da Paraíba. Encontram uma pequena comunidade cheia de histórias para contar, narradas por moradores idosos, nostálgicos de um mundo na iminência do esquecimento.

de sua própria filmagem. Depois de “Cabra marcado para morrer”, Coutinho filmou, entre outros, “Santa Marta: Duas semanas no morro” (1987), “Santo Forte” (1999), “Edifício Master” (2002), “Peões” (2004) e “O fim e o princípio” (2005). Característica comum a todos eles é a recusaàutilizaçãoderoteiroselaborados, um obstáculo para a criação de algo único que só existe no momento da filmagem: o devir, o presente da me-

A palavra filmada sem textos prévios permite que Coutinho registre a existência daqueles que sempre são esquecidos pela história: o camponês, o solitário, o idoso, a mãe de santo, o sindicalista

mória, o mundo modificando-se diante das lentes. O cinema de Coutinho não pretende ser o espelho do real, mas mostrar a verdade do momento da filmagem. Nada está pronto para ser filmado; a verdade se revela e sofre mutações na medida em que o filme se desenrola. Tal situação coloca o mundo que filma sempre sob a iminência da ficção. Duas obras lançadas nos últimos anos, “Jogo de cena” (2007) e “Moscou” (2009), ilustram essa afirmação. Ambos são filmes quediscutemapróprianatureza documentalelançamumaquestão: é necessária a separação entre o real e a representação para que o documentário exista? De certa forma, os dois filmes funcionam como uma espécie de “novo” “Cabra marcado para morrer”, reestruturando o fazer fílmico de Coutinho erompendoaformaengessada da tradição documentária. A ousadia de sua obra inspira novos cineastas como João Jardim, que lançou o curioso “Amor?”(2011),filmeconstruído por depoimentos reais de pessoas anônimas interpretadas poratoresconsagrados.“Amor?” é documentário ou ficção? Ainda não se encontrou a resposta. Mas é possível sentir as lufadas de ar fresco do cinema de Coutinho influenciando, direta ou indiretamente, a nova filmografia brasileira que vem por aí.


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LETRAS. Jô Drumond resgata a ousadia de Guilly Furtado, escritora

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que rompeu tabus e foi a primeira capixaba a ter um livro publicado

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Um olhar feminino na vanguarda literária

TRECHO DO LIVRO

DIVULGAÇÃO Jô Drumond é doutora e mestre em Estudos Literários e membro da Academia ES de Letras. jonund2@yahoo.com.br

Além, como a miragem, ennevoada na penumbra do sonho, destacava-se ridente entre folhagens e flôres a casinha muito branca, alvejando ao luar... Côava-se a luz pelas janellas abertas, onde se apegavam as folhas verde-escuras, esmaltadas de madresilvas olentes, espargindo odores.

N

o início do século XX, época em que ainda se cultuava a mulher com o epíteto de “rainha do lar”, ela era, na realidade, uma rainha-escrava, prisioneira de uma fortaleza calcada no concreto da moralidade e erguida com pilares de preconceitos. Aquelas que não se aclimatavam em seus domínios, fossem elas, mães, esposas ou filhas, e que ousavam se evadir, faziam-no qual borboleta triste abatida à saída do casulo, mesmo antes de criar asas. Preparadas desde tenra idade para atuarapenasdentrodeseusdomínios, mesmo que fossem detentoras de grandes pendores artísticos,franziam-seàsminudências do cotidiano. Quando uma delas se revoltava ou caía em tentações amorosas,eranormalmente expulsa de casa, para não desonrar a família. Tais rainhas ou futuras rainhas tão logo abandonavam seus reinos, vislumbravam diante de si apenas duas vias: a da virtude, nos escuros claustros de um convento, ou a do pecado, nas brilhantes alcovas de um prostíbulo. Outros eventuais caminhos eram por demaistemerosos,comoosda personagem Dolores, do livro “Esmaltes e camafeus”, de Guilly Furtado. Ao perambular pelas invernosas ruas de

RELÍQUIA. Guilly Furtado entre os

fundadores da Academia de Letras do Pará, em 1913; “Esmaltes e camafeus”, obra pioneira publicada pela autora no ano seguinte (foto abaixo), ganhará edição fac-símile no dia 12 de maio

Madri com um bebê pendurado no seio murcho, morreu de inanição e de frio, à porta de uma catedral, sem que nenhuma alma caridosa dela se apiedasse. Nesse contexto mundial, as filhas da burguesia brasileira, que ousavam romper a

viseira doméstica e os dogmas religiosos, como fez Guilhermina Tesch Furtado, deveriam ser combatidas ou, pelo menos, contidas. Foi o que ocorreu com a livre-pensadora capixaba, que conseguiu se destacar no meio intelectual e jorna-

lístico paraense e entrar, em 1913, como membro fundador, para a Academia de Letras do Pará, reduto intelectual estritamente masculino. No ano seguinte, publicou o primeiro livro capixaba de autoria feminina, no qual deixou registradas, em prosa-poética,

ideias revolucionárias a respeitodacondiçãodamulher,dainfidelidade conjugal, dos anseios sexuais femininos, dos problemas das classes menos privilegiadas, das incongruênciasreligiosasedosdesmandos políticos.Nomesmoanodapublicação dessa obra casou-se com um militar e teve sua carreira de escritora encerrada, certamente devido a pressões familiares. Os30contosprimorosamente elaborados que compõem “Esmaltes e camafeus” intercalam-se no que se refere à tendência literária, numa mescla de realismo-naturalismo/simbolismo-impressionismo. Uma edição fac-símile do livro será lançada, sob os auspícios da Prefeitura de Vitória, e distribuída gratuitamente na BibliotecaEstadualdoEspírito Santo (Praia do Suá), no dia 12 demaio,às18h,duranteoIIEncontro de Escritoras Capixabas, organizado pela Academia Feminina de Letras do ES.


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Maestro da Ofes descreve caixa de 4 CDs com registros inéditos da obra de um dos maiores compositores do século XX CLÁSSICO.

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IGOR STRAVINSKY

ESTÚDIO. Igor

Stravinsky em Nova York, em 1959: originalidade e ousadia ACERVO RUSSO. VÁRIOS INTÉRPRETES Caixa com 4 CDs GRAVADORA: DELL’ ARTE/BISCOITO FINO QUANTO: R$ 79, EM MÉDIA

Acervo russo revela tesouros de Stravinsky

N Helder Trefzger é o maestro titular da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo e membro da Academia de Letras e Música do Brasil. htrefzger@uol.com.br

o último dia 6 de abril, completaram-se os 40 anos da morte de uma das principais figuras da música clássica do século XX: Igor Stravinsky. O compositoréconhecidoprincipalmente por três obras, “O pássaro de fogo”, “Petrushka” e “A sagração da primavera”, apresentadas em Paris, respectivamente, em 1910, 1911 e 1913, causando grandes escândalos e chocando parte da sociedade parisiense. Entretanto, hoje em dia essas obras são consideradas referências e já não chocam como antes, muito pelo contrário, encantam os ouvintes por sua força rítmica, por sua orquestração brilhante e pela sua originalidade. Re-

centemente, a Orquestra Filarmônica do Espírito Santo (Ofes) apresentou uma das suítes de “O pássaro de fogo”, com grande aceitação por parte do nosso público. Agora surgem, como um tesouro, registros inéditos de gravações de obras do mestre russo feitas por intérpretes renomados, como Rostropovich, Kissin e Rozhdestvensky, dentre outros. Esses registros, conhecidos como “Arquivos Históricos Russos”, foram realizados entre 1930 e 1990 e inicialmente gravados em discos de acetato e fitas de poliéster. São mais de 400 mil horas de gravação que, aos poucos,

começam a ser restauradas e recuperadas. A Dell’Arte lança no Brasil o primeiro volume, com quatro CDs, que apresenta uma amostra diversificada da produção de Stravinsky, compilando obras de seus três períodos composicionais: período russo, neoclássico e serialista. No que concerne aos intérpretes, sobressaem nomes consagrados, como os pianistas Lazar Berman e Nicolay Petrov (artistas que tive a honra de conhecer), com destaque para o célebre Sviatoslav Richter, verdadeira lenda do piano, além de regentes como Mravinsky e Tretyakov.

O repertório é outra atração e inclui desde as conhecidas obras doperíodorusso,“Petrushka”(na versão orquestral e três movimentos na versão pianística) e “O pássaro de Fogo”, até outras obras menos conhecidas, desse mesmo período, como “Quatro estudos para piano” e um trecho de “A história do soldado”. NEOCLÁSSICO

Do período neoclássico do compositor, caracterizado pela simplificação da linguagem, a economia de recursos, a utilização de grupos e orquestras reduzidos e o emprego de temas da mitologia grega, os CDs apresentam preciosidades, como o delicioso “Tango”, o curioso “Prelúdio para jazz band”, seu concerto para clarinete e jazz band, o“EbonyConcerto”,alémdeoutras obras, como “Apollo”, “Orpheus”, “Obeijodafada”etc.Porfim,doperíodo serialista, marcado pela adoção de técnicas de composição do dodecafonismoserial,osCDsapresentamos“Movimentosparapiano e orquestra”, o “Introitus: T.S. Eliot in memoriam” e as “Quatro canções camponesas russas”, estas últimas escritas para a incomum formação de quatro trompas e coro feminino ou masculino. Sem dúvida, a audição dessas últimas obras pode não ser, para algumas pessoas, tão fácil, mas não deixa de ser pelo menos instigante. Trata-se de um excelente lançamento. Vale a pena conferir.


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No nosso Mercado, a boa música tem mais espaço

Programação Maio

A Prefeitura de Vitória abre as portas do Mercado São Sebastião para o ritmo, a melodia e a harmonia. Todas as quintas e sextas o importante espaço histórico da cidade, que reúne gastronomia e artesanato, se transforma no Mercado da Música e promove o encontro do público com a qualidade e a diversidade dos nossos artistas.

13/05 . Sociedade Livre do Samba

Sempre a partir das 19h30

Em junho, novas atrações

Avenida Paulino Muller, s/n, Jucutuquara

12/05 . Sonoris Causa 19/05 . Maurício Fazz e Mercado Literário 20/05 . Ferra Brás 26/05 . Turi Collura 27/05 . Choro Novo www.vitoria.es.gov.br/semc Twitter: @culturavitoria Facebook: Cultura Vitória


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