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ÁLBUNS DE FAMÍLIA

ÁLBUNS DE FAMÍLIA

a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

realização:

patrocínio:

Richard Gonçalves André (org.)

978-85-7846-250-5

Coleção História na Comunidade – volume 7 9 788578 462505


ÁLBUNS DE FAMÍLIA a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

Coleção História na Comunidade volume 7


Reitora Profa. Dra. Berenice Quinzani Jordão Vice-Reitor Prof. Dr. Ludoviko Carnascialli dos Santos Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. Dr. Amauri Alcindo Alfieri Pró-Reitor de Extensão Prof. Dr. Sergio de Mello Arruda Pró-Reitora de Graduação Profa. Dra. Angela Maria de Sousa Lima Diretora do Centro de Letras e Ciências Humanas Profa. Dra. Mirian Donat Chefe do Departamento de História Profa. Dra. Angelita Marques Visalli Coordenador do LEDI Organizador da Coleção História na Comunidade Prof. Dr. Alberto Gawryszewski


Richard Gonçalves André (org.)

ÁLBUNS DE FAMÍLIA a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

Coleção História na Comunidade volume 7

Universidade Estadual de Londrina Londrina • 2014


Uma publicação do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem (LEDI), do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina Copyright © dos autores Capa e editoração: Humanidades Comunicação Geral Imagem da capa: Antônio Aljarilla e Francisca Guilhem Aljarilla com seus netos. 1943. Acervo do Museu Histórico de Londrina. Imagem da contracapa: Família Capello, Coroados (SP), 1934. Acervo do Museu Histórico de Londrina. Tiragem: 1000 exemplares Distribuição gratuita. Venda proibida.

Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) A345 Álbuns de família : a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia / Richard Gonçalves André (org.). – Londrina : Universidade Estadual de Londrina, 2014. 89 p. : il. – (História na comunidade ; v.7)

Vários autores. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7846-250-5

1. Fotografia de famílias. 2. Memória na fotografia. 3. História e fotografia. I. André, Richard Gonçalves. CDU 93:77

Impresso no Brasil / Printed in Brazil Feito depósito legal na Biblioteca Nacional


Sumário

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Apresentação

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Introdução

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Fotografia e Família no Brasil Oitocentista

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Retratos de Família no Contexto da Morte: usos da fotografia em ritos fúnebres

Richard Gonçalves André

Ana Maria Mauad

Déborah Borges

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História e Família: o acervo fotográfico do Museu Histórico de Londrina Amanda Camargo Rocha

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Referências Bibliográficas


Apresentação A publicação deste sétimo livro, da coleção História na Comunidade, é a continuidade da realização de um desejo: dar transparência às atividades científicas produzidas pelos professores da Universidade Estadual de Londrina (UEL), em especial do Departamento de História, que participam do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem (LEDI). É possibilitar um diálogo entre o saber científico e a comunidade. Em agosto de 2006, foi criado no Departamento de História da UEL, na forma de projeto integrado (pesquisa/extensão), o LEDI. Em sete anos de existência, este tem desenvolvido diversas atividades relevantes. Entre elas podemos apontar: a realização do ENEIMAGEM (Encontro Nacional de Estudos da Imagem, 2007/9/11/13); a publicação da revista semestral Domínios da Imagem; exposições e cursos de extensão. Em 2008, o LEDI teve aprovado seu projeto junto ao PROEXT/2008- Programa de Extensão Universitária (ProExt Cultura), um programa dos Ministérios da Cultura e da Educação, realizado com a colaboração da Fundação de Apoio à Universidade Federal de São João Del Rei (FAUF) o que possibilitou o início da coleção História na Comunidade, a realização de exposições e produção de vídeos. Em 2008 tivemos a grata notícia da aprovação de nosso projeto junto ao Conselho Nacional Científico Nacional (CNPq) no edital Difusão científica. É com este que daremos a continuidade à coleção História na Comunidade, das exposições e da produção de vídeos. Para este projeto partimos da afirmação contida nas Diretrizes Curriculares para o Ensino da História na Educação Básica, que diz que as imagens, livros, jornais, fotografias, filmes etc. são documentos que podem ser transformados em materiais didáticos de grande valia na constituição do saber histórico. 6


Os documentos possibilitam a reflexão e a construção de conceitos sobre o passado e permitem a formulação de questões sobre os conceitos já constituídos. Compreendemos a imagem como importante instrumento/documento para a formulação do conhecimento histórico. Na realidade, ela pode ser a mediadora desse conhecimento. Assim, o projeto proposto atua em duas frentes: primeira, proporcionar ao aluno um novo olhar sobre as imagens, não como mera ilustração, mas rica de conceitos e interpretações; segunda, ajudar o professor a trabalhar com a imagem como instrumento de ensino, como fruto de uma criação humana repleta de significados. Este sétimo livro, que acompanha a exposição com o mesmo nome, foi concebido como mais um instrumento nas mãos dos professores na tarefa de dialogar com os alunos. Organizado pelo professor doutor Richard Gonçalves André, é composto por três artigos escritos de forma clara, acadêmica e brilhante, instigando ao leitor a se aprofundar sobre o tema e a pensar sobre as suas próprias fotografias de família. Espero que este livro, da coleção História na Comunidade (composta por nove livros), contribua para o debate e o ensino de História, bem como este, especialmente, possa ajudar no resgate de uma importante fonte de pesquisa: as fotografias familiares. Este material pode ser copiado, no todo ou em parte, devendo ser nomeada sua fonte. O download dos textos poderá ser realizado pela página do LEDI (http://www.uel.br/cch/his/ledi/), bem como dos vídeos produzidos e das imagens que compõem a exposição. Alberto Gawryszewski Coordenador do LEDI

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Introdução Richard Gonçalves André Apesar da pluralização das fontes históricas ocorrida nas últimas décadas, a utilização de imagens como documentos, entendidos para além de ilustrações dos textos escritos, é relativamente recente (BURKE, 2004). Afinal, os historiadores, vivendo em sociedades em que é atribuído valor significativo à palavra, sobretudo escrita, são mais habituados a lidar com registros verbais. De qualquer forma, uma categoria imagética parece particularmente marginalizada pelos historiadores: os álbuns de família, ou seja, a pluralidade de produções imagéticas que “conta” as memórias familiares, tais como fotografias relacionadas à infância, formaturas, casamentos e mesmo à morte. São constituídos, sobretudo, por acervos particulares mais ou menos comuns às pessoas, mas que não são percebidos como fontes históricas, ironicamente, devido à sua própria familiaridade. Tratandose de conjuntos documentais que nem sempre chegam aos órgãos de preservação como os museus e os centros de documentação, é possível que muitas dessas imagens estejam se perdendo na atualidade. É, entretanto, o olhar do historiador (e de outros sujeitos preocupados com a preservação da memória familiar e social) que transforma esses objetos “comuns” em documentos em potencial, ressaltando que os álbuns de família são ricos em vários sentidos, possibilitando, por exemplo, a percepção de valores, práticas e formas de construção de narrativas, entre outras possibilidades, no interior de determinados contextos históricos. O presente livro, parte das atividades realizadas pelo Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História (LEDI) da Universidade Estadual de Londrina, tem por objetivo refletir sobre essa categoria imagética a partir de diferentes perspectivas, congregando contribuições de pesquisadores como Ana Maria Mauad, Déborah Borges e Amanda Camargo Rocha. Esperamos que a presente publicação auxilie professores, pesquisadores e demais interessados na reflexão sobre os álbuns de família, criando conhecimentos sobre a sugerida lacuna historiográfica. Desejamos a todos ótima leitura.

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Fotografia e Família no Brasil Oitocentista Ana Maria Mauad1

O retrato não responde ele me fita e se contempla nos meus olhos empoeirados. E no cristal se multiplicam os parentes mortos e vivos. Já não distingo os que se foram dos que restaram. Percebo apenas a estranha idéia de família viajando através da carne (Retratos de Família, Carlos Drummond de Andrade)

Pedro Ramos Nogueira nasceu aos 23 de novembro de 1823, na fazenda Loanda, situada no município de Bananal, então freguesia do município de Areas, do termo de Lorena, comarca de Guaratinguetá. Estudou na corte do Rio de Janeiro, no colégio Pedro II e, posteriormente, em 1841, na Faculdade de Medicina, sem no entanto concluir o curso, por motivos de saúde. Desde os primeiros tempos de escola, Pedro Ramos Nogueira, também conhecido como Barão da Joatinga, interessou-se por política, participando, como cabeça, de um motim estudantil no colégio Pedro II, por causas liberais. Liberal por princípio e temperamento, o Barão da Joatinga aceita com magnanimidade a escolha do restante da família, cunhados e concunhados, todos Esse texto é uma revisão do trabalho publicado em 1995, no livro “Resgate: uma janela para o Oitocentos” (CASTRO, SCHNOOR, 1995). 1

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Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

conservadores. Entretanto, em 1868 rompe, apesar de sua índole, com o partido Liberal, para ocupar cargos políticos nos gabinetes conservadores. O peso da tradição o faz, daí por diante, ocupar cargos proeminentes na política conservadora local. O Barão da Joatinga entra em nossa história logo após regressar à Bananal, deixando os estudos na corte, quando se casa com D. Placidina Maria de Almeida, filha do comendador Luciano José de Almeida, e irmã de Domiciana Maria de Almeida Vallin, mulher de Manoel de Aguiar Vallim, e de Laurindo José de Almeida, fazendeiro, dono da Boa vista e vizinho da Resgate. Placidina e Pedro viajaram à Paris, talvez em lua de mel. Lá ele se deixa retratar pelo fotógrafo francês Eugène Disderi, famoso por ter inventado a “carte de visite”, formato de retrato típico do século XIX. Na imagem, signos de distinção social ligados a um mundo de luxo e exuberância, mas também de elegância e intelectualidade: Pedro pousa a mão sobre o rosto, de frente a um livro aberto e com os olhos lançados para um ponto vago qualquer. Deixa registrado, através da imagem construída, uma reflexão profunda sobre um pensamento moral ou filosófico, uma meditação sobre alguma máxima política, enfim, uma representação da sua própria personalidade que gostaria de ver eternizada.

DISDERI, Eugène. Cerca de 1880.

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Fotografia e Família no Brasil Oitocentista

O Barão de Joatinga, sua esposa e a família compõem a clientela deste tipo de retrato tão típico do XIX, presente nas mais diversas partes do mundo, mas associada sempre à representação da riqueza e da distinção social, e, por outro lado, à construção de memórias coletivas que servem de apoio para a construção, transmissão e preservação das tradições familiares próprias às camadas ricas da sociedade. Além de Pedro Ramos Nogueira e sua esposa fazem parte deste conjunto de retratos toda a elite bananalense, com destaque para as famílias Vallim e Almeida, respectivamente de Manoel de Aguiar Vallim e de Laurindo José de Almeida, os titulares dos dois álbuns onde foram acondicionados os retratos. Dignos representantes da elite agrária paulista, donos de terras, escravos e de muito capital e influência política. Além dos retratos, a trajetória destas famílias foram registradas em narrativas memorialistas, publicadas em livros e jornais da região de Bananal, do Rio de Janeiro e de São Paulo, por seus descendentes, principalmente por Everardo de Vallim Pereira de Sousa, citado por Afonso de E. Taunay como o responsável por um dos “mais completos, interessantes e verídicos depoimentos sobre a vida comum numa grande fazenda de café”. Dois materiais se cruzam na recuperação do quadro das representações sociais da elite agrária paulista, no auge da produção cafeeira, no rico município de Bananal. Representações que engendram memórias. O entrecuzamento de imagens fotográficas e narrativas de trajetórias de vida permite a construção de tais memórias e, por conseguinte, reconhecer a imagem que àquele grupo quis perenizar para todo o sempre. A fotografia, devido ao seu caráter técnico, é o atestado de uma forma de ser e de bem-viver a serem preservadas da ação do tempo, nos álbuns de família, ao mesmo tempo em que confirma o relato de vida. Por outro lado, estes mesmos relatos concedem 11


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elementos para que tais imagens possam ser devidamente lidas e interpretadas. Materiais da memória coletiva, os documentos são monumentos, na medida em que para além da simples descrição traduzem valores, ideias, tradições e comportamentos que permitem tanto recuperar formas de ser e agir dos diferentes grupos sociais, em diversas épocas históricas, como também operar sobre as representações que deles ainda hoje perduram e atuam como elemento de coesão social para seus descendentes. A memória possui um papel específico na coesão social da família que a constrói e transmite, uma memória que, ao definir o que é comum ao grupo e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras socioculturais. Geralmente tal coesão é realizada pela adesão do grupo a uma “comunidade afetiva”, criada a partir de um processo de conciliação entre memória individual e coletiva, alcançada através da preservação de determinadas lembranças narradas de geração em geração, de objetos preciosos e das próprias fotografias familiares. Longe de ser o somatório de memórias individuais, a memória coletiva é, justamente, a reconstrução de narrativas individuais a partir de um enquadramento coletivo, guardando os determinantes temporais e espaciais como elementos fundamentais em tal processo. Desta forma, entende-se por memória coletiva o passado que se perpetuou e ainda vive na consciência coletiva. A base comum das memórias individuais é consubstanciada tanto pela compreensão comum dos símbolos e significados (transmitidos pelos objetos de memória e pelas noções de comunhão que os membros do grupo familiar compartilham ao se reconhecerem em tradições e valores socialmente aceitos como válidos), como pelo sentimento de realidade transmitido pela caracterização espaço/temporal das lembranças; sentimento, este, na maioria das vezes disponível, 12


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ou através da própria visita aos lugares, ou através de fotos de eventos significativos. A família, ao guardar determinados objetos, ao relatar certos eventos, ao organizar um álbum de fotografias, determina o que deve ser lembrado e preservado da ação do esquecimento. Nenhum grupo social tem a sua perenidade assegurada, há que se trabalhar neste sentido, daí a preocupação da família em manter a identidade do grupo através da preservação e transmissão de sua memória. Por outro lado, a família, ao mesmo tempo em que é o espaço onde tais recordações podem ser avivadas, é também o objeto destas lembranças. Neste sentido, a família, enquanto agente de memória, constrói uma determinada representação de si mesma que perdura no tempo e é reiterada pelo ato de recordar. Recorda-se em família, os feitos de família, através dos objetos guardados pela própria família, preservando o lugar social a ser ocupada por ela e pelos seus descendentes. O álbum de fotografias torna-se o objeto de memória por excelência, pois ali, em imagens tão reais, retornam do passado bisavós, avós, tios, primos, etc., retomando, através de poses e trejeitos, crônicas familiares apreendidas no decorrer de muitas vidas e tradições, transmitidas por tantas gerações. Sem dúvida, a fotografia desempenha um papel simbólico na legitimação da família, mas há que se saber ler nas “entrelinhas”, principalmente das fotografias posadas e tão bem arranjadas do século XIX. Ao historiador é interditada uma visão contemplativa, como nos avisa a historiadora Miriam Moreira Leite (1993, p. 76): “convém distinguir, na leitura da fotografia, o que ela reproduz da condição do retratado, o que silencia desse grupo e os indícios que permitem o observador perceber ou sentir outros níveis de realidade: sentimentos, padrões de comportamento, normas sociais, conformismo e rebeldia”. No entanto, para se chegar àquilo que não foi revelado no papel emulsionado, há que se compreender o tipo de olhar que estava por detrás da objetiva fotográfica do século XIX, em 13


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termos de possibilidades técnicas e estéticas, no exterior e no Brasil; recuperar o circuito social da fotografia no interior do Vale do Paraíba, estabelecendo os contatos que mantinha com a corte do Rio de Janeiro e com o exterior, interpretar as imagens guardadas pelos protagonistas de nossa história e, por fim, compreender a dimensão da memória resgatada pela família, que no passado habitou e deu vida ao resgate.

A fotografia no século XIX: o império do retrato Por alturas de 1852-53 apareceu um homem em Paris que imprimiu ao desenvolvimento da fotografia uma decisiva mudança de orientação. No centro de Paris, no Boulevard des Italiens, abre as portas um novo estúdio de fotografia. Nele se estabeleceu um homem de nome Disderi. [...] com um instinto muito ajustado, ele foi o primeiro a apreender as exigências do momento e os meios de as satisfazer. Viu que a fotografia, porque era muito cara, era apenas acessível à reduzida classe de ricos. [...] apercebeu-se que o ofício não daria resultados a menos que conseguisse alargar a clientela e aumentar a encomenda de retratos [...] reduzindo o formato criou o retrato carte-de-visite. (FREUND, s/d., p. 68)

O relato de Gisele Freund nos aponta uma radical transformação na fotografia, até então associada à produção única e exclusiva do daguerreótipo2. Disderi é o produto de um tempo de transformações, no qual a fotografia passa a ser uma mercadoria requisitada por um público cada vez mais amplo que, por motivos de ordem econômica, via a sua autorepresentação através do retrato a óleo completamente vetada. A burguesia urbana é a principal clientela do retrato fotográfico, Daguerreótipo: imagem positiva direta em chapa de cobre coberta de uma fina camada de prata cuidadosamente polida e sensibilizada com vapores de iodo. A imagem é revelada com vapores de mercúrio e a imagem é apresentada em caixilho hermeticamente fechado. Esteve em uso até cerca de 1860. 2

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feito às dúzias para ser presenteado e trocado por outros. Uma clientela enriquecida pela disputa colonial e pelos contratos financeiros, mas alijada da “boa sociedade” e de seus atributos de representação por falta de tradição nobiliária. Para este público, a fotografia reorienta as possibilidades de auto-representação: A máquina fotográfica tinha democratizado definitivamente o retrato. Frente à câmara todos são iguais, artistas, sábios, homens de Estado e modestos empregados. O desejo de igualdade e o desejo de representação das diversas camadas da burguesia eram satisfeitos ao mesmo tempo. (FREUND, s/d., p. 74)

O desenvolvimento industrial da segunda metade do século XIX, principalmente da indústria química e ótica, aliado à conquista de novos mercados consumidores e de paisagens exóticas, serão ingredientes importantes para os novos usos e funções da fotografia neste século. De fato, como explica Naomi Rosemblum (1984, p. 245), a explosão de produtos, técnicas e processos produziu uma mudança significativa, tanto nos tipos de imagens produzidas como na sua utilização, em decorrência disso estabeleceu uma nova audiência para as imagens fotográficas. Por seu turno, o crescimento no número de imagens forneceram informações que alteraram a percepção pública da realidade.

Como se pode concluir, a fotografia no século XIX não se limitava ao retrato. Eventos – como, por exemplo, as guerras – e paisagens exóticas de terras conquistadas eram também temas recorrentes. No entanto, será o retrato o emblema associado a um novo grupo social e a um novo tempo, marcado pela velocidade e pela reprodutibilidade, o prenúncio da sociedade do simulacro e do império do efêmero vigente no século XX. Gisele Freund (s/d., p. 41 e 42), mais uma vez, é quem nos indica a rápida ampliação do mercado consumidor de imagens fotográficas na Europa e nos EUA: 15


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Lebours, em Paris, provavelmente o primeiro fotógrafo a abrir um estabelecimento comercial, tirava, em 1841, cerca de 1500 retratos. Os fotógrafos mais renomados, no final da década de 1840, tiravam em média, 3 mil retratos anualmente, ao preço de 10 a 20 francos, de acordo com o formato e o estilo da moldura. Em Londres, no ano de 1855, havia 66 estúdios em funcionamento. O exemplo norte-americano, entretanto é significativo. Mais do que em qualquer outra parte do mundo, o daguerreótipo teve semelhante difusão. [...] Em 1853 havia 86 estúdios de retratistas na cidade de Nova York. No Estado de Massachussets mais de 400 mil daguerreótipos foram tirados por 134 daguerreotipistas no ano de 1855. Em 1850, 938 daguerreotipistas atuavam nos EUA. Dez anos depois, estavam em atividade (entre daguerreotipistas e fotógrafos utilizando já os novos processos 3154 profissionais). Em 1853 calcula-se em 3 milhões as fotos tomadas por ano, e a produção total naquele país, entre 1840 e 1860, superava 30 milhões de fotos.

O sucesso do retrato carte-de-visite deve-se justamente à capacidade de adaptar o cliente a moldes pré-estabelecidos e de possível escolha através de um catálogo de objetos e situações, o estúdio do fotógrafo passa a ser um depósito de complementos escolhidos para caracterizar diferentes papéis sociais que se quer fabricar. A mise-en-scène do estúdio do século XIX variou ao longo do tempo, cada década no período da carte-de-viste e mais tarde do cabinet-size teve seus acessórios especialmente característicos. Nos anos 60 era a balaustrada, a coluna e a cortina; nos anos 70, a ponte rústica e o degrau; nos anos 80, a rede, o balanço e o vagão; nos anos 90, palmeiras, cacatuas e bicicletas e no início do século XX, o automóvel. O próprio cliente se converteu, ele mesmo, num acessório de estúdio, suas poses obedeciam a padrões estabelecidos e já institucionalizados de acordo com a sua posição social. A fotografia do período não abria mão da sua própria estética, como fica exposto no livro “Estética da Fotografia”, 16


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publicado por Disderi, em 1862. Neste livro o fotógrafo francês estabeleceu seis princípios básicos de uma boa fotografia: 1. Fisionomia agradável; 2. Nitidez geral; 3. As sombras, os meios-tons e os claros bem pronunciados, estes últimos brilhantes; 4. Proporções naturais; 5. Detalhes nos negros; 6. Beleza. A busca da beleza se torna o ideal a ser conquistado pelo fotógrafo e uma prerrogativa exigida pelo cliente. Ao satisfazer esta exigência o fotógrafo cria um padrão de representação que apaga o indivíduo em prol de um estereótipo social. Ao se reconhecer como parte integrante da mesma sociedade de imagens que os chefes de estado, sábios e artistas, o cliente se satisfaz, pois vê garantida da ação do tempo a representação que quer alcançar. Na fotografia ornamentada com acessórios, na maioria das vezes ausente de seu cotidiano, reveste-se dos emblemas de classe, com a qual quer se ver reconhecido. No Brasil, a moda do retrato não experimentou a mesma febre que na Europa e nos EUA, devido à inexistência de um mercado consumidor urbano de porte comparáveis ao exterior. De acordo com Boris Kossoy (1980), o número de daguerreotipistas atuando no Brasil, com endereço fixo, entre 1840 e 1850, era somente de três. Fato que pode ser explicado, também, pelo caráter temporário da atividade por parte da maioria dos profissionais, geralmente estrangeiros, que vinham tentar novos mercados na América do Sul, diante da grande competitividade nos seus países de origem (LIMA, 1992). Na segunda metade do século XIX, a situação da fotografia no Brasil modifica-se consideravelmente, no bojo de um amplo 17


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processo de mudanças que ocorre no Brasil neste período. Para o processo de expansão da fotografia, a ampliação do mercado interno, proporcionado pela melhoria dos transportes e vias de comunicação e pela valorização do espaço urbano, principalmente da corte do Rio de Janeiro e das cidades do sudeste ligadas à economia cafeeira, foram fatores decisivos. Já na década de 1860, em quase todas as províncias do Brasil, podemos encontrar fotógrafos cujo desempenho, em exposições nacionais e internacionais, garantia-lhes a marca da qualidade e tradição no ramo. Dentre estes destacam-se: no Rio de Janeiro, Klumb, José Ferreira Guimarães, Joaquin Insley Pacheco, Carneiro e Gaspar, Alberto Henschel e Cia, Wilhelm Gaensly, Limdemann; no Recife João Ferreira Villela, Augusto Stahl, Alberto Henshel e Cia, Constantino Barza, etc.; em São Paulo, Militão Augusto de Azevedo, Alberto Henshel e Cia, Carlos Hoenen, Renouleau, Henrique Rosen (Campinas), etc. Em alguns casos, como o de Carneiro e Gaspar, possuíam estabelecimentos inclusive no exterior.

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Ao contrário do daguerreótipo e de suas variantes, o ambrótipo e o ferrótipo3, o retrato sobre papel, tanto o tamanho carte-de-visite (6x10cm) como o cabinet-size (10,6x18cm), tinham a vantagem de serem mais baratos e da reprodutibilidade. Geralmente no verso das fotos, juntamente com o nome e o endereço do fotógrafo, acompanhava um aviso: “conservão-se chapas para reproduções”. Em relação aos preços, em 1866, de acordo com o Correio Paulistano, a Photographia Paulistana cobrava por 12 cópias fotográficas a soma de 8$000. Preço que dez anos depois sofreu uma redução considerável, devido aos avanços da técnica e ao aumento da concorrência no negócio de retratos, portanto em 1876, a dúzia de retratos, do tipo cartede-visite, era vendida na Photographia Americana por 5$000, o equivalente a duas camisas para homem ou cinco passagens para Penha, no caso dos álbuns o preço se elevava 3$000 a cópia na casa de Carlos Hoenen. Os anúncios publicados em jornais a partir da década de 1870 colocam em evidência as novidades técnicas. A “Photogaphia Allemã de Carlos Hoenen” chamava atenção para os processos mais modernos de emulsão a gelatina e chapas instantâneas. Já a Photographia Allemã de Alberto Henschel e Co. anunciava no Amanack Laemmert para o ano de 1888, da Província de São Paulo, “os negativos para o novo processo de photographias, que tanto sucesso tem produzido na Europa. Por meio destes cliches se pode obter um retrato perfeito da mais irriquieta criança ou de pessoas nervosas.” Em pouco tempo o Brasil foi contagiado pela “mania” de enviar retratos para amigos, parentes, namoradas, etc., da própria Ambrótipo: nome dado a um processo fotográfico em que aparecia em positivo a imagem de um negativo de colódio em chapa de vidro com camada dorsal negra, convenientemente subexposto. Foi apresentado em 1852 como alternativa econômica para o daguerreótipo e conservado, como ele, em caixilho hermeticamente fechado. Também se chamava positivo de colódio. Ferrótipo: negativo de colódio, subexposto, montado num suporte de folha de flandres esmaltada de negro que faz com que a imagem apareça em positivo. 3

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família e de personalidades conhecidas no mundo da política e das artes, que tinham a imagem de seus rostos reproduzidas aos montes e circulando por todo o mundo. A inflação de retratos e a necessidade de sua manutenção e acondicionamento para exibição levou ao aparecimento no mercado fotográfico de ricos álbuns, elaborados com preocupação artística, em sua forma externa e interna. Os álbuns de retratos, típicos do século XIX e ainda guardados pelas famílias tradicionais, poderiam ser confeccionados de tamanhos diversos e com materiais variados, as capas podem ser de papier-mâché, madeira, marroquin lavrado ou veludo e recebem incrustações de prata, cobre, madrepérola, porcelana, esmalte e até mesmo ouro. As páginas têm o bordo externo dourado a fogo ou prateado. Alguns álbuns possuem na contracapa caixas de música embutidas. Os fechos de metal apresentam grande variedade de desenho. A cercadura das “janelas” comporta desde o simples filete dourado até a presença de arabescos, flores, frutos, pássaros e paisagens.

Capa do álbum de fotografias da família Vallim.

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Signos aparentes de distinção social, os álbuns de retratos passaram a ser o local ideal para a preservação da memória familiar, uma memória que oscilava entre a publicização de uma certa representação social de família, condizente com os padrões de exibição da época, e a manutenção da intimidade, preocupação própria a uma sociedade em transição para os valores burgueses. Como não poderia deixar de ser, a família Vallim e a família do Barão de São Laurindo, dignos representantes da elite enriquecida pelo café e negócios no Vale do Paraíba, também possuíam seus lugares de memória, para deixar registrada a melhor lembrança que se poderia construir. Como e porque se escolheu a fotografia para enquadrar esta memória requer uma compreensão mais profunda do circuito social da imagem na região do Vale do Paraíba, na segunda metade do XIX, período onde mais se concentram as imagens de ambos os álbuns.

Entre cafezais, escravos, festas e fotógrafos: condições para a produção do retrato na região do Vale do Paraíba D. Ana Joaquina de Campos Gonzaga nasceu no município de Bananal, em 7 de maio de 1845. Telesphoro de Souza Lobo publica no jornal “Atalaia de Bananal”, cem anos depois, uma pequena biografia a seu respeito. Inicia sua crônica recuperando, através de uma narrativa nostálgica e saudosista, o passado memorável da cidade: [...] Por esses tempos tão idos e vividos, Bananal figurava na vanguarda da província de São Paulo, rivalizando com Campinas. O café e a cana de assucar eram as lavouras mais estensas e rendosas do município, ocupando as áreas mais vastas e ubertosas dos morros e várzeas respectivamente. O braço do escravo era o propulsor da dinâmica de serviços. As fazendas, todas novas e bem formadas, mantinham, para a época, uma

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organização impecável ostentando grande opulência. Vastos pomares contornavam pelos fundos a casa senhorial, ao lado de férteis canteiros plantados de viçosas hortaliças. A frente, formozo jardim de flores, palmeiras imperiais e repuchos de cristalina água. A fazenda era a célula robusta e básica da sociedade rural brasileira sustentáculo fundamental do Império [...] (artigo publicado no jornal “Atalaia” de Bananal, 18 out. 1942, p. 3).

O relato memorialista carrega de tintas a expressão de prosperidade, criando um passado idílico, no qual não havia dificuldades a serem resolvidas. No entanto, os relatos de época, apesar da consciência dessa prosperidade, apontam para os limites existentes, devido ao próprio isolamento do município em relação aos grandes centros. Em 9 de maio de 1875, o jornal semanal “Echo Bananalense” inicia uma série de considerações em relação à construção da Estrada de Ferro, ligando Bananal à Mangaratiba: “Temos em vista que para este município chegar ao alto grao de prosperidade que lhe compete, em virtude de sua extrema fertilidade, só lhe falta o meio fácil e barato de transporte de seus generos ao mercado” (Echo Bananalense, 9 maio 1874, p. 2). A necessidade de contato não se limitava à corte do Rio de Janeiro ou à cidade de São Paulo, expendia-se ao exterior tanto através da participação nas famosas Exposições Universais, como pela referência aos produtos de consumo importados, quanto pela ida dos filhos de ricos fazendeiros para estudarem no estrangeiro. A participação do Brasil nas Exposições Universais era amplamente incentivada pelo governo Imperial, e visava à entrada do Brasil, como fornecedor de matérias primas variadas, na divisão internacional do trabalho (TURAZZI, 1995). O próspero município de Bananal não poderia ficar de fora, portanto, em edital de 18 de abril de 1874, publicado no Echo Bananalense, 22


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a camara municipal desta cidade faz saber que tendo o governo Imperial resolvido concorrer a exposição universal que tem de ser inaugurada em Farnout Park, na cidade da Philadelphia, por ocasião do centésimo aniversário da Independência da República dos Estados Unidos do Norte, e convindo que os importantes produtos da lavoura, e os de outras industrias exercidas no paiz com vantagem e um certo grau de desenvolvimento, figurarem nesse grande jury de todos os povos civilizados, com o que o Brasil tanto deve lucrar. Convida portanto aos produtores deste município a prepararem-se para a mesma exposição, certos que será aberto crédito para as respectivas despesas, devendo comunicarem com a devida antecedência a esta camara, quaes os produtos e especimes da industria nacional querem fazer figurar na projetada exposição [...]. (Echo Bananalense, 9 maio 1874, p. 3)

Os produtos importados estavam presentes nas prateleiras dos principais comerciantes do Vale e na mesa, no mobiliário ou na indumentária das famílias dos ricos fazendeiros. O alemão João Júlio Gustavo Schultz, comerciante em Guaratinguetá anunciava em seu armazém de secos e molhados chamgpane, vermuth, vinhos do Porto, Bordeaux-Santerre, St. Julien, Medoc, Larose, Lafite, além dos licores, Genebra (cognac, bitter, brandy, aniz) e frutas e comestíveis tais como: peixes de Lisboa, sardinha de Nantes, petit-pois franceses, frutas francesas em vidro, queijo do reino e vinagre branco de Lisboa. 4 Em 1864, a casa Jules e Joly anuncia liquidação do estoque para retornar à Europa, para tanto leiloará: as lindas porcelanas brancas e douradas que trouxe da França; um rico sortimento de lenços de seda da India e padrões modernos e muito variados de jóias de ouro legítimo (memórias, bichas, Sobre as informações e reflexões em relação ao consumo e comercialização de produtos estrangeiros na região do Vale do Paraíba, bem como o consumo de retratos e produtos que valorizavam a distinção social da elite regional ver Carlos Eugênio Marcondes Moura (1983). Recomendo vivamente a leitura da obra que serviu de base para as informações e considerações apresentadas nesta parte do texto. 4

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Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

broches, braceletes, botões, alfinetes de peito e tetéias); de um sortimento de bonitas obras deplaqué, além de vidros, copos, castiçais e tinteiros de bronze.(O Parahyba, 6 nov. e 30 out. 1864 apud MOURA, 1983, p. 5)

O padrão de consumo de objetos importados caracteriza o estreito contato que esta sociedade estabelecia com o exterior, como também o elevado nível de riqueza para sustentar uma cultura do ornamento e do supérfluo. Desta forma, os signos de distinção social de uma sociedade eminentemente agrária passam a estar associados a um padrão de representação alheio a ela, identificado com modelos estrangeiros e de caráter eminentemente urbano, corroborado pela expressão e conteúdos da mensagem fotográfica, como será analisado no próximo item. Contraditoriamente o princípio de civilização no interior, na região próspera do Vale do Paraíba, esteve completamente calcado na circulação e no consumo de emblemas do exterior, quer da corte do Rio de Janeiro ou de países estrangeiros. Everardo Vallim Pereira de Sousa, descendente da família Vallim, encarregado de registrar a memória de seus antepassado, relata o transcorrer da vida numa fazenda de café, provavelmente a que viveu e conheceu mais de perto. Em seu relato intitulado – “Região agrícola bananalense. Sua vida e seu esplendor d’outrora” (publicado em MOURA, 1998), ressalta a rotina do trabalho, as atividades de inspeção dos serviços e a responsabilidade que toda a família possuía, em garantir a marcha regular dos negócios da casa. No entanto, como ele mesmo destaca, “a vida social nas fazendas nada enfadonho era. Bem ao contrário disso, tinha constantes distrações bem interessantes” (apud MOURA, 1998, p.184) , tinha os passeios, as visitas aos vizinhos, as caçadas, as festas, os banquetes e os bailes.

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Nestes dois últimos eventos todo o estoque de emblemas de riqueza entravam em ação, como evidencia-se na seguinte descrição do memorialista: Nas grandes festas o que mais solene havia eram os banquetes que, devido ao grande número de convivas, geralmente se realizavam em vastas mesas improvisadas em cavaletes de madeira e abrigada por um barracão de pano. Copeiros especiais arrumavam-na como melhor arte, segundo o gosto da época nella perfilando custosos candelábros de lavrada prataria portuguesa, e distribuindo os vistosos pratos de doce, de modo a produzir vislumbrante efeito. Tinham o cuidado de preencher os entremeios com as inesquecíveis balas de estalo contendo versinhos da sorte. As iguarias caprichosamente preparadas se dispunham em bellas baixelas. Os doces secundavam-nas aparecendo em maior escala ainda. Causava a mais viva surpresa a vários convivas, a estrea dos sorvetes. Os vinhos, quase todos de origem portuguesa e francesa, sempre das melhores marcas, eram remetidos pelos correspondentes, os grandes atacadistas de secos e molhados finos do Rio de Janeiro, que aos seus clientes enviam os ricos presuntos de York, ornados de rosas artificiais, as caixas de passas e tamaras, os grandes queijos, etc. [...] Em seguida aos banquetes sucediam os bailes, para os quaes se punham as damas em custosos trajes de grande gala. Os salões e salas garridamente ornamentados e bellamente iluminados por velas de libra, em grandes lustres de cristal lapidado em candelábros de prata apresentavam feérico aspecto. As danças em voga eram: a valsa, a polka, a mazurka, o schottish e a varsoviana. (apud MOURA, 1998, p. 198 e 199)

Entre o banquete e o baile ainda abria-se espaço para os brindes, para os oradores e para a sessão de piadas, depois que as senhoras se retiravam para trocar de traje. Em Bananal as diferentes cerimônias eram motivo para festa com a participação de toda a cidade. No entanto, a própria comemoração guardava a marca da divisão social presente em um município cuja metade da população era escrava. A crônica 25


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da semana, publicada em 14 de fevereiro de 1874, no Echo Bananalense, tinha como tema a celebração de um casamento: No dia sete do corrente receberam-se em matrimônio o sr.Antônio de Mello e Silva e a exma sra. D. Maria Carolina, sendo padrinhos do noivo o sr.tenente coronel Apollinario Pereira Ribeiro, e da noiva o sr. capitão José Joaquim dos Santos. Numeroso concurso de povo afluiu ao acto religioso, assim como ao magnífico copo d’agua que aos convidados ofererão os noivos. À noite uma esplêndida e animadíssima soirée pos remate a festa, sahindo todos os convidados penhorados pelas maneiras delicadas, affaveis e obsequiadeiras porque foram tratados os donos da casa. Desejamos-lhes um próspero porvir.

Ao povo que curioso em presenciar o desfile de vaidades, a simplicidade de “um copo d’água” e a todos aqueles que participam do mesmo universo de signos, uma esplêndida festa, na qual a atualização simbólica poderia ser operada através da avaliação da correção da indumentária, da etiqueta apropriada e do serviço adequado, de preferência vindo da corte. Neste sentido, para atingir a meta da civilização e trilhar a senda do progresso, era necessário participar desta sociabilidade forjada por padrões de comportamento importados. Nada mais adequado para registrar tal vivência do que a objetiva fotográfica, sendo assim, todo um grupo social emergente, desejoso de preservar para sempre a imagem da prosperidade, ansioso por reafirmar pequenas glórias ou vaidades através de signos exteriores, passa a frequentar com assiduidade cada vez maior a oficina fotográfica onde as carte-de-visite e mais tarde os cabinet-size preenchem suas necessidades de representação. Em 1866, fixam-se na cidade de Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, a dupla de fotógrafos franceses Robin & Favreau, e com o “objetivo de impressionar os ricos fazendeiros do Vale com um toque chic, o carimbo da dupla utilizava no verso das cartes-de-visite era escrito em francês: Robin & Freaveau, Specialité de reproduction 26


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artistiques e industrielles peintres photographes” (apud MOURA, 1983, p. 3). Outros fotógrafos marcaram presença no Vale do Paraíba, principalmente na década de 1870, destacamse Cândido Alvares Machado, Jerônimo Bessa, Ernesto Felix de Castro, Alberto Cohen, entre outros (MOURA, 1983, p. 42-44). No entanto, poucos fotógrafos mantinham seu estabelecimento por muito tempo na mesma cidade. Robin, da dupla francesa acima mencionada, muda-se, em 1870, para o Rio de Janeiro, onde juntamente com Angelo Agostini, edita tempos depois a Revista Illustrada. O tipo de atividade dos fotógrafos do Vale era eminentemente itinerante. Em 1874, Alberto Cohen, fotógrafo em Bananal, resolve “abater consideravelmente os preços de seu trabalho” (Echo Bananalense, 16 maio 1874, p.4), por estar se retirando definitivamente da cidade. Outro anúncio publicado em “O Parayba” de Guaratinguetá, em 24 de outubro de 1867, reafirma tal tendência: Ernesto Felix de Castro, retratista photographo e já bem conhecido neste município e nos vizinhos pela perfeição de seu trabalho tanto em gosto, como em arte, continua a tirar retratos em photographias todos os dias, das 9 da manhã até as 2 da tarde, nesta cidade à rua D.Pedro II. Não entrega retratos sem estarem a gosto da pessoa que o queira honrar com sua confiança e proteção. Tendo que sair para as cidades limítrofes, pede as pessoas que se tenham de retratar aparecerem para não aglomerar trabalho nas proximidades da partida. (apud MOURA, 1983. p.74)

O conforto no atendimento e nas instalações, a qualidade técnica do produto e a confiança na privacidade da imagem eram atributos indispensáveis ao fotógrafo, qualidades que serviam de chamariz, na época. O fotógrafo Vasconcellos, proprietário da Estrela do Paysandu, em Guaratinguetá, avisa em sua publicidade, no jornal O Parayba, que está “apromptando uma excelente luz e sala de espera independente de sua moradia, 27


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apresentará aos seus fregueses uma bonita galeria fotográfica, ambrotypo, porcelanotypo, melanotypo; espera a concurrência de seus patrícios” e adverte que os retratos “só serão expostos a expostos com o consentimento do dono; não se dá nem vende retratos alguns sem prévia licença por escrito ainda mesmo que seja pessoa pertencente a família do retratado” (O Parayba, 13 dez. 1868 apud MOURA, 1983, p. 8). A presença de fotógrafos na região não garantia que a produção da imagem da tradicional família do Vale do Paraíba ficasse nela restrita. Ao contrário, acompanhando o processo de se auto-representar a partir de modelos exteriores, eram os famosos fotógrafos da corte Imperial os mais procurados pela clientela do Vale, que não se eximia também de deixar registrada a sua passagem no exterior, através de retratos tirados em fotógrafos estrangeiros. Nas coleções de Manoel de Aguiar Vallim e do Visconde de São Laurindo, a presença de fotógrafos situados no Rio de Janeiro é maciça, como também é relevante a dos ateliês no estrangeiro. Dentre os principais nomes encontrados no verso dos retratos constam: Carlos Hoenen (SP), J. F. Guimarães Photographo da Casa Imperial (RJ), Carneiro e Gaspar (RJ, SP e Paris), Brito e Cia (RJ), Carneiro e Tavares, os sucessores de Carneiro e Gaspar (RJ), S. Moreira (RJ), Alberto Henschel (RJ e SP), Frenzel Schimidt (SP), Valério & Aguiar (SP), Insley Pacheco Photographo da Casa Imperial (RJ), Henschel e Benque (RJ), com estabelecimento no Brasil, e Bernley (Londres), A. S. Witcomb (Buenos Aires), L. Luscipj (Roma) e Disderi (Paris). A presença de fotógrafos estrangeiros nestas coleções caracteriza que o circuito social da fotografia ultrapassava em muito a região do Vale, ao mesmo tempo que aponta para o fato de que a circulação dos membros e amigos da família, também, ultrapassava o circuito tradicional da corte Imperial, ratificando, mais uma vez, a presença da referência ao exterior como paradigma para as opções do interior. Tal tendência é 28


Fotografia e Família no Brasil Oitocentista

corroborada pelas pequenas biografias que acompanharam a guarda das coleções fotográficas.5 Luciano José de Almeida Vallim, filho do comendador Manoel de Aguiar Vallim, fez seus estudos de primeiras letras nas fazendas “Loanda” e “Paineiras”, sob a tutoria de Mr. Farjou, viajando em 1867 para São Paulo, depois para o Rio de Janeiro onde completou seus estudos. Depois de formado viaja duas vezes para a Europa, desempenhando altos cargos administrativos na vida municipal. Já seus primos José Luis e Pedro, filhos do Barão da Joatinga, habitué do estúdio fotográfico de Monsieur Disderi, estudaram humanidades no Instituition Pruniers e no Lyceu Bonaparte, em Paris, seguindo ambos a carreira política no partido conservador. O pai dos meninos José e Pedro, o próprio Barão da Joatinga, também não se limitou a Bananal, como já relatamos, estudou no Rio de Janeiro e fez constantes viagens à Europa. O próprio Visconde de São Laurindo, irmão de Domiciana e tio de José de Almeida Vallim, estudou no colégio Marinho no Rio de Janeiro, em 1856 foi para a Academia de Direito em São Paulo, e quatro anos depois, viajou para a Alemanha com a finalidade de concluir seus estudos. Tal como seus conterrâneos ilustres e inaugurando a tradição das famílias Almeida e Vallim, também seguiu carreira política, como deputado pela Província de São Paulo pelo partido conservador e Presidente da Câmara Municipal de Bananal. Portanto, a formação da tradicional elite do Vale do Paraíba, cultivada pela riqueza do café e do tráfico de escravos, alimentada pela mão de obra escrava, tinha um circuito definido que se iniciava na própria região, com preceptores estrangeiros, se desenvolvia na Corte ou na cidade de São Paulo, aprimorava-se Faz parte da tradição desta família recortar e copiar notas biográficas sobre os membros da elite de Bananal e dos integrantes da família publicados em livros ou jornais tempos depois, num trabalho de historiografar a própria trajetória da memória familiar. Tal material compôs, juntamente com as coleções fotográficas, nossas principais fontes de pesquisa. 5

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no contato com o exterior e se profissionalizava na política para a defesa da ordem e dos interesses da região. Esta mesma elite comporia uma imagística própria, repleta de signos de distinção social que a fizesse ser reconhecida com ideais cosmopolitas, em nada provincianos, ao mesmo tempo em que assumia a representação da ordem, o grupo que no poder garantiria a manutenção das tradições. A análise da mensagem fotográfica possibilita a recuperação dos quadros de representação social que construiriam uma memória futura (MAUAD, 2008).

Um mosaico de lembranças As categorias de tempo e espaço estruturam os quadros sociais da memória e são fundamentais para a construção de lembranças. Neste processo, as narrativas memorialistas enquadram a memória tomando como referência básica a noção de tempo, iniciando-se sempre pela data do nascimento, seguindo-se dos primeiros estudos, da formação profissional, do destino familiar e termina, via de regra, não no último suspiro, mas no momento da glorificação social, quando o rememorado atinge o auge de sua prosperidade econômica ou política. Neste tipo de narrativa, a noção de espaço é secundária, acompanhando a trajetória dos anos como um pano de fundo. Na mensagem fotográfica o enquadramento da memória se processa, fundamentalmente, a partir da construção de múltiplas espacialidades, onde a representação do passado adquire diferentes aspectos. A própria fotografia, enquanto artefato, é um objeto de memória. Como ela é acondicionada, o tipo de imagem que ela carrega e a natureza do recorte espacial que nela se insere, são elementos básicos para se recuperar a forma da expressão fotográfica. Ao passo que o local retratado, 30


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a qualidade dos objetos, a figuração, suas poses e o evento associado à imagem, compõem a forma do conteúdo fotográfico. Tanto a expressão como o conteúdo da mensagem fotográfica são fundamentais para recuperar os códigos de representação social que enquadram as memórias coletivas. A coleção de fotografias trabalhada neste artigo é composta por dois álbuns de fotografias e mais por fotos avulsas, provavelmente retiradas destes álbuns. Tal coleção foi mantida no âmbito da família Vallim, por um guardião que preferiu o anonimato. No conjunto são 236 fotos, das quais 22 estão fora dos álbuns, 44 fotos pertencem ao álbum do Barão de São Laurindo e o restante, 170 fotos, estão no álbum reconhecido como pertencente ao comendador Manoel de Aguiar Vallim. Ambos os álbuns são decorados finamente, mas com simplicidade. O álbum de Vallim possui janelas retangulares, com moldura de linhas discretas, já no do Visconde, as janelas são ovais, com moldura também discreta. As capas são de madrepérola, no melhor estilo do século XIX.

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Apesar das fotos, em sua maioria, não estarem datadas, alguns indícios, tais como os fotógrafos, as opções técnicas e estéticas, indumentária, algumas fotos com data, como também, o reconhecimento dos integrantes da família e suas respectivas idades, forneceram elementos para balizar a cronologia da coleção entre 1860-1890. Trinta anos de memória consubstanciados em imagens que se processam através dos tempos como um emblema de um tempo vivido. Quais os elementos que caracterizam este tempo? O que a família quis ver perenizada como marca de um estilo de vida? Como ícone de uma época? Por que as famílias do Vale do Paraíba construíram suas representações sociais através da imagem fotográfica? Perguntas e mais perguntas cujas respostas demandam uma análise mais atenta.

Entre ângulos e sombras A fotografia é o produto final de um processo de escolha realizado segundo um conjunto de escolhas possíveis. O resultado é condensado num espaço fotográfico que segue determinadas regras, próprias à educação do olhar. Como em todo processo de codificação, as regras que estabelecem tanto normas sociais, padrões de comportamento, ou ainda opções estéticas, seguem determinações histórico-culturais. As fotografias que compõem a coleção Vallim/Visconde de São Laurindo seguem o padrão da fotografia de estúdio, típica da segunda metade do século XIX. Do conjunto de 236 fotos somente 10 apresentam tamanho médio, cerca de no mínimo 9x13cm e no máximo 10,50x17cm, todas avulsas. O restante são todas no tamanho carte-de-visite (6x10 cm). O formato da imagem variou entre o oval (83 fotos) e o retangular (153 fotos), apesar de todas as fotos estarem coladas em suportes de papel cartão retangular.

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Fotografia e Família no Brasil Oitocentista

Todas as fotos são posadas seguindo a canonicidade e os limites técnicos da época. As máquinas disponíveis, estilo view camera, operavam com negativo de vidro emulsionado no exato momento de tomada da chapa, necessitando para a sensibilização de cerca de 1 minuto. Tal fato impossibilitava a existência de instantâneos, tão típicos nas fotos de família atual. O retrato fotográfico do século XIX seguia a estética do juste milieu, cuja composição deveria valorizar os aspectos de beleza e harmonia defendidos pelo fotógrafo francês Disderi. Segundo tal padrão a preparação de uma pose deveria se adequar à representação, desejada e imaginada pelo cliente e arranjada e preparada pelo fotógrafo, numa negociação constante entre o que cliente queria e o fotógrafo achava justo. 1. Em termos de enquadramento o espaço fotográfico apresentou a seguinte configuração: - Sentido vertical: 100%; - Direção: 43% esquerda; 34% direita e 23% centro; - Distribuição dos planos: do conjunto de fotos da coleção, 168 apresentaram plano único e 68 dois planos, a organização da figuração pelos planos foi a seguinte: Plano Único

1º Plano

2º Plano

figuração masculina

56%

7,5%

2,5%

figuração feminina

26%

3%

2,5%

figuração infantil

7,5% (2% fem.; 5,5% masc.)

12%

2,5%

figuração infantil + figuração feminina

1%

1%

_

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Plano Único

1º Plano

2º Plano

figuração infantil + figuração masculina

-

1%

_

figuração feminina e masculina

3%

-

-

3,5%

34%

-

figuração feminina + objeto

2%

15%

-

figuração masculina + objeto

1%

20,5%

-

6%

70,5% objetos interiores; 22% simulacros de objetos exteriores.

figuração infantil + objeto

objetos

-

- O arranjo e o equilíbrio das fotos apresentaram-se da seguinte maneira: Objeto central: figuração: 82%; figuração + objeto: 12%; Concentração na parte superior da foto: 3,5%; concentração na parte inferior: 36,5%; concentração no meio da foto: 17,5%; equilíbrio plano superior e inferior: 42,5%. 2. Em termos de nitidez o padrão foi o seguinte: - Foco: 98% completamente no foco; 1,5% foco no objeto central e 0,5% fora de foco; 34


Fotografia e Família no Brasil Oitocentista

- Impressão visual: linhas definidas com sombreado: 1,5%; linhas definidas sem sombreado: 11,5%; linhas bem definidas com sombreado: 17,5%; linhas bem definidas sem sombreado: 68,5%; linhas mal definidas: 1% 3. O tipo de iluminação apresentada: - fotos claras com sombras: 14%; fotos claras sem sombras: 85%; fotos escuras: 1%.

As fotografias de família acompanham as idades da vida reproduzindo a pose no padrão juste millieu (Coleção Família Vallim, cerca de 1880).

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Desta forma, o espaço fotográfico estruturado nesta coleção de fotografias apresentou a seguinte natureza: fotos no estilo carte-de-visite; com imagens retangulares, perfeitamente distribuídas pelo espaço tanto para a direita como para a esquerda, tanto para a parte superior quanto para a inferior; com somente um único plano, onde predominou a figura masculina, apresentando uma variação para fotos com mais de um plano, onde predominou a figura infantil acompanhada de objetos, no primeiro plano. Em todo o caso, a figuração foi o objeto central eleito para personificar o ideal de família a ser representado em fotos nítidas, com foco perfeito, linhas bem definidas, claramente iluminadas e sem sombras. Um padrão de representação que garantia a fidelidade da imagem, onde nada poderia colocar em dúvida a verdade representada em imagens tão próximas à realidade. O padrão fotográfico, próprio ao século XIX, também perseguia a máxima tão cara a este tempo, contar, retratar, “como realmente aconteceu”.

Luz, câmera e ilusão: o estúdio e sua ambientação Na concepção estética do século XVIII e primeira metade do XIX, o retrato era a forma, por excelência, da representação aristocrática. Um conjunto de objetos tornados signos de um modo de vida próprio à corte era escolhido para compor uma pintura; para reis e rainhas, os signos do poder, coroa e cetro; para a nobreza, elementos de distinção social, a indumentária finamente trabalhada e a indispensável peruca. A publicização do poder passa necessariamente pela construção da imagem apropriada à divulgação e para compor o imaginário coletivo de uma época. Na segunda metade do século XIX, a fotografia democratiza o retrato, novas camadas sociais podem ter acesso ao registro 36


Fotografia e Família no Brasil Oitocentista

da imagem em busca da perenidade da representação. A ideia de eternidade informa a escolha dos atributos que devem ser concedidos à imagem construída. A escolha deveria ser precisa para que o registro captasse todo o espírito da época. Um tempo de conquistas, de riqueza, mas também de economia, nas formas das roupas e no consumo de objetos. Os signos exteriores de distinção social, tais como a indumentária, os objetos interiores e a própria pose, perdem o fausto do quadro da nobreza, para ganharem a precisão da escolha burguesa. De qualquer modo, o grau de artificialidade da representação continua evidenciado, principalmente por serem as fotos 100% produzidas em estúdio. A distribuição espacial das fotografias tiradas em estúdio exterior

sem indicação do local

Rio de Janeiro

Vale do Paraíba

2%

81%

15%

2%

Devido à semelhança de imagens tudo leva a crer que as fotos sem indicação foram produzidas no eixo Rio/São Paulo. A opção por deslocar-se para a corte ou para a capital da Província para retratar-se indica a existência de um ritual para a produção da representação que envolvia a escolha do fotógrafo famoso, a passagem por lugares vivenciados pelos grupos dominantes, tais como o centro do Rio, principalmente o eixo rua do Ouvidor, Rosário, Ourives, Gonçalves Dias, ou então a calle Florida, em Buenos Aires, a Via Conilotti, em Roma e o Boulevart des Italiens, em Paris. Um ritual perfeitamente integrado aos códigos de comportamento da elite agrária, da época, no Vale do Paraíba, compostos por signos do exterior, do mundo urbano e moderno, escolhidos como a melhor representação de si mesmo, apesar de escravistas, rurais e provincianos. 37


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Tal ritual não se limitava à escolha do estúdio, os objetos que compunham as imagens também são indícios da opção por um certo estilo de vida. Já foi dito que toda a coleção é formada por retratos, nem todos acompanhados de objetos interiores, do total de 236 fotos, somente em 42 a figuração apareceu acompanhada por tais objetos. Neste conjunto foram elencados os seguintes: cadeira (com encosto trabalhado ou de palhinha), poltrona (estampada ou com estofado de veludo e franjas no apoio de braço), almofada de veludo, cortinas (variavam no estampado, ora lisas de tafetá, ora com motivos romanos e com franjas nas pontas e no puxador), cesta de palha para flores, tapetes (geralmente lisos e gastos), estátua (somente em busto), coluna (variavam nos padrões clássicos), livros (acompanhados ou não por pesos decorados), biombo, mesa (de vários tamanhos e estilos, sendo o predominante o rococó), plantas, cadeira de bebê (feita de palhinha com apoio para o prato), fruteira de prata, jarro/vaso para flores e candelabro e aparador (denominação dada para apoios simples). A pouca variação dos objetos interiores deveu-se à própria escolha restrita a certos estúdios, fato evidenciado pela repetição de objetos em diferentes fotos, como também pelas dimensões exíguas do espaço fotográfico, que limitava a alocação de mais objetos dentro da foto. Em tais imagens geralmente a figuração aparecia de pé apoiando-se no objeto, ou então sentada, no centro da foto, com os objetos interiores compondo a mise-enscêne, juntamente com o fundo, a pose e a indumentária. Outro elemento importante de ser considerado em fotos de estúdio é o fundo, a moldura da figuração, àquilo que faz o contraponto com o objeto central valorizando-o ou não.

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Fotografia e Família no Brasil Oitocentista

Fotógrafo desconhecido. Casal. Bananal, cerca de 1870.

Fundos tipos

proporção

claro

45%

escuro

25%

pintado com motivos campestres

7,5%

sombreado

9,5%

simulando sala de estar

13%

Devido à escolha predominante do fundo claro, há uma preocupação em evidenciar a figuração, a pessoa, o membro da família, da rede social, àquele que deveria concentrar as possibilidades de futuro e, no futuro, a representação possível de 39


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um tempo de riqueza e prosperidade. Riqueza consubstanciada nos próprios objetos retratados e estúdios frequentados, exclusivos de uma elite endinheirada, e prosperidade elaborada pela pose correta e complementada pela indumentária adequada.

A mise-en-scêne da prosperidade: poses, olhares e lembranças É interessante notar que as memórias do tempo áureo do café, no Vale do Paraíba, relatam o árduo dia de trabalho, nos campos, administrando os fazeres domésticos, o cotidiano da fazenda com seus atributos de vida rural. O contraponto são as festas, os banquetes e bailes, quando se come do bom e do melhor, ouvindo músicas alegres, com direito a banda e a ritmos variados. Uma vida dinâmica e atribulada, onde os eventos mais simples ganham uma especialidade. As crônicas semanais publicadas no Echo Bananalense fornecem um exemplo exato de tal tendência. Dentre elas, a de sábado, dia 3 de janeiro de 1874, merece nota tanto por ilustrar a estreita relação que o interior estabelecia com a capital, como por dar vida a um dos personagens de nossos retratos: o Barão de São Laurindo. Chrônica da Semana. Festa: No dia 31 de dezembro p.p. deu o Bananal ainda provas de o amor que dedica aos seus filhos dilectos. Pela manhã cedo subião já grande número de girandolas ao ar e ouvia-se em seguida os sons de uma banda de música, que acompanhva entre grande número de povo o Sr.Dr. Laurindo José de Almeida, que regressando de São Paulo cheio de glória e prazer, entrava no Bananal a fim de ahi ser testemunha das grandes manifestações de apreço que lhe derão seus patrícios, amigos e parentes. S.S tendo parado em casa de sua digna mãe, a exma Sra. D.Maria Joaquina de Almeida, dignou-se, cheio de delicadeza e fina

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educação, convidar a população a fim de tomar parte nos seus gozos, e nestas oasiões o Sr.Dr.Laurindo soube, por meio de elouquentes discursos, captar toda a atenção dos assistentes e confundi-las de amabilidades, prorroper o povo em frenéticos aplausos, arrancando lágrimas à alguns outros. Não foi menos digno de nota as maneiras delicadas com que soube apresentarse ao público a exma Sra.D.Maria Joaquina de Almeida. Ouverão depois diversos brindes elouquentíssimos, entre eles o do Sr.Dr. Paula Ferreira que soube interpretar os sentimentos do Bananal [...], o do Dr.Jesuino Antonio Ferreira de Almeida trazendo por meio de palavras, n’aquela ocasião diante de todos os tempos que correrão, ora bons, ora maos, mas que d’ali em diante serião decerto cheios de descanso, felicidade e glórias para o S.Dr. Laurindo e sua família. Foi uma festa cheia de prazer e amizade da qual o Sr.Dr.Laurindo jamais esquecerá. Quanto ao resto da festa aguardamos o próximo número a fim de sermos mais extensos. O proprietário desta folha toma a liberdade de cumprimentar e desejar-lhe mil venturas e gozos (Echo Bananalense, 3 de jan. 1874)

Uma narrativa detalhada, cuja sucessão de pequenos eventos sugere o crescimento da emoção que envolve toda uma cidade. De pequenas partes compõe-se um grande evento, uma festa que durou todo um dia e mobilizou toda a população de Bananal, com música, fogos, discursos e lágrimas. Mas onde estão as fotos? Por que este dia tão especial não foi retratado com a mesma preciosidade da crônica semanal? Por que as fotos de eventos ao ar livre não fazem parte do álbum? Limites técnicos, sem dúvida havia. Com certeza as câmeras de 1874 não captariam o êxtase da audiência diante da eloquência discursiva, ou o brilho do olhar diante das girândolas ao ar, mas poderiam fixar a população reunida, o encontro do Sr. Dr. Laurindo e sua mãe, os representantes de Bananal, etc. Imagens fixas, desprovidas do movimento da crônica, mas o evento estaria ali, registrado. O que nos foi legado por este grupo, não foram as festas, ou imagens da vida cotidiana, mas a construção da sua 41


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representação social em imagens, fixas, precisas, enclausuradas em álbuns, mas eternas. Já foi dito que o ato de retratar-se envolvia um ritual, que, certamente, pressupunha a codificação social de comportamentos, tais como frequentar a Corte, e nela: fazer compras na Ouvidor, ou Gonçalves Dias, lanchar na Colombo, divertir-se no Parque Fluminense, enfim, atualizar-se nos cafés e livrarias como a Garnier. Mesmo nas viagens, perto ou longe, o registro é o retrato, o padrão de representação, por excelência, da elite agrária da segunda metade do século XIX. A mise-en-scêne do ritual do retrato demandava a escolha de um tema, da indumentária apropriada e de uma pose, sendo que todas estas escolhas giravam em torno do objeto central do retrato: a figuração. O espaço da figuração no retrato é heterogêneo, tal característica traduz a própria forma como a sociedade criava seus personagens. Figuração tipos

proporção

masculina adulta

44,5%

feminina adulta

23%

rapazes

4%

moças

2%

meninos

11%

meninas

11%

bebês

5%

Não só em termos quantidade de vezes, o espaço da figuração apresentou variação. O tema escolhido para cada tipo de figura também denotou diferenças na construção da representação do espaço feminino/masculino e infantil/adulto. Na coleção de retratos trabalhada, devido à proporção de 42


Fotografia e Família no Brasil Oitocentista

retratos, com somente a figuração, ser muito maior do que as de figuração com objeto (82% contra 18%), a variação de temas girou em torno de como a figuração foi retratada, muito mais do que da temática inventada pelo cenário em volta. Neste sentido a organização do tema foi a seguinte: busto

rosto

meio corpo

corpo inteiro

Retrato masculino

33%

1,5%

3,5%

13%

Retrato feminino

16%

0,5%

2,5%

6%

Retrato infantil feminino

-

-

1%

9%

2,5%

-

-

7,5%

Retrato infantil acompanhado de figura feminina

-

-

1%

0,5%

Retrato infantil acompanhado de figura masculina

-

-

-

0,5%

Retrato misto

-

-

-

2%

Temática

Retrato infantil masculino

É interessante notar que o espaço da figuração no retrato carte-de-visite é o espaço da individualidade. O grupo, ou mesmo o casal ou a mãe acompanhada dos filhos, representa muito pouco neste tipo de retrato. Tal fato pode ser explicado pelo circuito social com o qual o carte-de-visite estava associado, ou seja, a troca de imagens, dar de presente, guardar de lembrança, 43


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

introduzir um relacionamento, eventos próprios à iniciativa individual. Por outro lado, é também na segunda metade do século XIX, no contexto da ideologia liberal, que o indivíduo é alçado ao centro das preocupações sociais. A preferência pelo retrato do busto, ao invés do corpo inteiro, também diz respeito à escolha pela valorização do indivíduo, aproximando-o da objetiva fotográfica, da mesma forma que aproximava o rosto do retratado ao olhar do apreciador. As fotos de corpo inteiro afastavam a figuração, diminuindo a precisão dos detalhes das feições. Por outro lado, como pode ser notado pela proporção do conjunto, as fotos de corpo inteiro também apresentam alguma incidência, denotando a importância em se também valorizar o conjunto da indumentária, como conteúdo de uma mensagem de distinção social. Desta forma, o espaço da figuração, nesta coleção de retratos, é eminentemente masculino e individual, tanto no plano adulto, como no mais jovem. O homem é o emblema da sociedade escravista do século XIX, a figura central na gerência dos negócios, no mundo da política e no provimento da casa. Ao seu lado, a mulher e os filhos cumprem o seu papel na representação, coadjuvantes dignos de distinção. Na representação fotográfica, em nenhum momento a mulher está associada aos atributos domésticos, a indumentária e a pose, escolhidos para a composição de sua imagem a relacionam ao usufruto da riqueza gerada e gerenciada pelo marido, um mundo definido pela elegância do traje e pela discrição dos modos. Da mesma forma, o universo infantil é criado por signos próprios a um universo alheio ao cotidiano, e pleno de significados que são atribuídos à criança como um adulto em potencial. Com certeza no dia a dia da fazenda as fitas, botas, calçolas e jaquetões eram substituídos por trajes mais adequados à vida no campo. A vestimenta reafirma a oposição entre o universo masculino e feminino. No século XIX, a marca será a simplicidade 44


Fotografia e Família no Brasil Oitocentista

em contraponto aos babados e brocados próprios ao Antigo Regime. Enquanto a indumentária masculina assume a forma de um “H”, sendo aos poucos desprovida de todos os elementos de sedução ou atração, para enquadrar-se na sobriedade de um burguês abastado, num crescente despojamento do costume de caça do gentil-homem inglês para o ascetismo da roupa moderna, a roupa feminina tomou como símbolo básico de sua construção um “X”, e passada a voga da simplicidade, se lançou novamente numa complicação de rendas, bordados e fitas. Em termos de indumentária masculina o padrão de representação, nos retratos da coleção analisada, acompanha as tendências gerais do século XIX, e caracteriza-se pelo signo da simplicidade. Os objetos pessoais próprios à figuração masculina são: o terno escuro, acompanhado de gravata borboleta fina, colete negro e camisa branca, em termos de joia, a sua presença foi marcada pela corrente do relógio de bolso. As variações foram poucas, ora substituía-se a gravata borboleta por uma gravata reta, grossa, mas também de cor escura. A indumentária infantil masculina não apresentou variação significativa, somente com a presença de uma calça mais curta ou uma jaqueta mais esportiva. No entanto, a simplicidade da indumentária era compensada por uma estética facial variada. A navalha e a tesoura entravam em ação reafirmando os atributos de masculinidade através dos bigodes, cavanhaques, suíças, barbas e cabelos bem aparados. Em 73% dos retratos masculinos estão presentes bigodes, cavanhaques ou barbas. Os cabelos, prioritariamente curtos, podem estar penteados para trás, com gomalina, ou para o lado, fornecendo uma aparência de limpeza e simplicidade. Para a mulher, a sociedade brasileira não acompanhou os ditames franceses, poucos são os adereços ou enfeites, a marca de distinção também é a simplicidade, cujo padrão é caracterizado pelo: vestido negro, geralmente com detalhes discretos em miçanga, renda ou pregas e uma joia bem simples, tipo broche 45


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

ou brinco pequeno, poucos são os leques, chapéus mantilhas ou xales. Para as meninas, a variedade era maior: laços de fita, meia 3/4, botinha, vestidos mais claros e joias simples. A estética facial feminina não variou em relação à indumentária. A maior variedade ficou por conta dos cabelos. Em 53% das fotos com exclusiva figuração feminina, estes aparecem presos, ora tomados para trás, ora arranjados em coques trançados. Para as meninas os laçarotes eram uma opção certa, como um atributo do feminino infantil. As feições não eram marcadas por nenhum tipo de traço artificial, denotando a inexistência de cosméticos.

Por fim, o ritual do retrato era marcado pela pose. Objeto de acaloradas discussões nos círculos fotográficos franceses, a pose era adotada tanto por vanguardistas do retrato, como o fotógrafo artista francês Felix Nadar, como por profissionais preocupados com o lucro, como o também francês Eugène Disderi. Quer seja para propor irreverência ou para inserir-se no padrão de 46


Fotografia e Família no Brasil Oitocentista

comportamento dominante, a pose é fundamental para o retrato do século XIX. Em nossa coleção, a pose predominante foi o olhar lateral para fotos de busto. Para fotos de pé, o olhar voltava-se para a frente. Em tais fotos o apoio era indispensável. Neste caso, as mãos eram dispostas uma sobre o objeto de amparo e a outra ora na cintura, ora ao longo do corpo. Para ambos os casos a seriedade foi a opção prioritária, sorrisos só de leve. Tal padrão acompanha aquele adotado nas fotos de estúdio de caráter mais comercial, próprios à clientela do Vale do Paraíba, e condiziam com a discrição da indumentária e do estilo de vida que se queria representar. Afinal de contas, quem estava ali sendo retratado eram os gerenciadores da riqueza e dos negócios do Império. As poses mais histriônicas ficavam por conta dos artistas e intelectuais, clientes típicos de Nadar.

Documentos e monumentos Vallim, Almeida, Domiciana, Barão da Joatinga, etc., nomes que compõem lembranças, engendram narrativas, povoam imagens, criando memórias. Bananal viveu o esplendor do café, a pujança da riqueza gerada pelo trabalho escravo em festas de casamento, em banquetes de boas vindas; no consumo de produtos importados; na vivência de códigos de comportamentos alheios ao mundo rural, mas perfeitamente adequado à representação que se queria ver associada aos gerenciadores da riqueza imperial. Donos de homens, terras e poder, os personagens das memórias resgatadas em narrativas dispersas e retratos tão bem guardados nos álbuns nos permitem entrever as formas de ser e agir, que tramam uma rede social própria à sociedade agrária brasileira da segunda metade do século XIX, cujos signos de distinção social foram: a identificação com modelos 47


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

exteriores ao espaço cotidiano, próprio à produção de riqueza, espaço associado ao escravo, figura ausente na coleção, imagem silenciada e deslocada para outra representação; a simplicidade denotada pela discrição na escolha do traje, que apesar de bem cuidado, e em compasso com os critérios de elegância do século XIX, não abusavam do ornato e do exagero; seriedade destacada pela escolha da pose certa para a construção da imagem de respeitabilidade própria aos dirigentes e homens de bem; eleição do homem como emblema da sociedade, o responsável pela reprodução da riqueza e manutenção da ordem; priorização do indivíduo em detrimento do grupo como imagem a ser eternizada e, por fim, um padrão fotográfico que opta pela objetividade na construção da imagem, sem rebuscado artístico ou recursos de retoque, uma imagem próxima à realidade, necessária para corroborar todos os signos acima apontados. Já foi dito por um historiador francês que todo o documento é monumento, resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro, voluntária ou involuntariamente, determinada imagem de si próprias. Neste caso, ao se analisar fotos como documentos, registros de um tempo vivido, configura-se a memória construída neste tempo, para ser um monumento futuro (LE GOFF, 1985).

48


Retratos de Família no Contexto da Morte: usos da fotografia em ritos fúnebres Déborah Borges

Falar sobre a morte é uma tarefa difícil em uma cultura na qual a maioria das pessoas prefere nem mesmo pensar sobre ela. O homem urbano ocidental se sente atemorizado pelo fato de que a morte é certa, definitiva e repleta de mistérios. Numa era de tantos avanços técnicos e científicos, a morte parece ser a única capaz de desafiar a capacidade do ser humano atual de dominar todos os territórios e assuntos. Então, torna-se mais cômodo não pensar sobre ela. Segundo Rodrigues (1983, p. 66), [...] tudo o que representa o insólito, o estranho, o anormal, o que está à margem das normas, tudo o que é intersticial e ambíguo, tudo o que é anômalo, tudo o que é desestruturado, préestruturado e anti-estruturado, tudo o que está a meio caminho entre o que é próximo e predizível e o que é longínquo e está fora de nossas preocupações, tudo o que está em nossa proximidade imediata e fora de nosso controle, é germe de insegurança, inquietação e terror: converte-se imediatamente em fonte de perigo.

A morte e tudo o que se refere a ela é localizado, pela nossa cultura, numa zona intersticial, sobre a qual as estruturas culturais não têm pleno domínio. Isto é resultado de um longo 49


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

processo que se iniciou no século XVIII. Neste período, segundo Menezes (2004, p. 28), consolida-se “a mudança de paradigma que instituiu a racionalidade anátomo-clínica como fundamento da medicina. [...] A medicina, seu saber e sua instituição tornamse referências centrais no que se refere a saúde, vida, sofrimento e morte”. Desta forma, o doente, o moribundo e a morte passam a ser cada vez mais confinados ao hospital, permanecendo longe do cotidiano imediato das pessoas. A autora aponta ainda que ao longo do século XX “a estrutura de personalidade dos indivíduos é alterada com o esvaziamento dos rituais seculares e um controle individual maior sobre a expressão dos sentimentos face ao sofrimento e à morte” (MENEZES, 2004, p. 35). Portanto, podese afirmar que a atitude ocidental contemporânea de repúdio à proximidade com a morte resulta destes dois processos: a medicalização da vida e da morte, sobretudo com a transferência cada vez mais frequente do moribundo para o hospital, e a crescente desvalorização dos rituais, principalmente os religiosos, como meio de gerenciar a morte e o período de luto. Desta forma, tudo o que se relaciona ao tema da morte, inclusive as práticas fúnebres e de luto, vem sendo cada vez mais afastado do cotidiano do homem ocidental urbano contemporâneo. Vê-se a morte em filmes, livros, jogos eletrônicos e veículos de comunicação, diariamente. Mas a morte, enquanto fenômeno biológico desencadeador de uma série de manifestações e sentimentos socialmente compartilhados não se insere no diaa-dia das pessoas no Ocidente. A morte, não o sexo, é o grande tabu contemporâneo. Conforme expõe Maranhão (1986, p. 10), “a permanente popularidade dos filmes de terror e o aparecimento de um novo culto da violência nas produções cinematográficas confirmam esse deslocamento do tabu. A morte, não o sexo, é agora o tabu que violamos – a ‘pornografia da morte’ causa-nos excitação”.

50


Retratos de Família no Contexto da Morte: usos da fotografia em ritos fúnebres

Assim, pode-se dizer que, na atualidade, a morte é vivenciada sem grandes problemas como simulação e entretenimento, mas a partir do momento em que se manifesta como dor ela passa a ser repelida. Noys (2005) fala dessa contradição nas formas de percepção da morte na sociedade atual. Para o autor, apesar de uma exposição cotidiana à morte, cria-se em torno dela uma série de tabus, como se vivenciar a morte do outro fosse algo recriminável. Assim, há quem defenda a posição de que a sociedade atual tende a provocar uma invisibilidade da morte. Entretanto, para Noys (2005, p. 3, tradução da autora) o fenômeno é bem mais complexo. Ainda que possa ser verdade que a morte tem se tornado invisível de certo modo na cultura ocidental contemporânea, nós também temos que considerar a realidade e a visibilidade da ameaça da morte em uma escala industrial. Depois do Holocausto e durante um século de genocídios e extermínios em massa, do Camboja a Ruanda, é difícil defender que a morte é agora “invisível” ou “esquecida”. [...] Não apenas isto, mas há os meios mais banais por meio dos quais nós somos expostos à morte, como os acidentes de carro [...].

Contemporaneamente vivencia-se um posicionamento ambíguo com relação à morte: ela está presente todos os dias nos meios de comunicação, mas ao mesmo tempo muito distante do dia-a-dia imediato das pessoas. A morte anônima é consumida com relativa tranquilidade, ao passo que há uma tendência a se evitar um contato com um morto particularizado, numa tentativa de afastar a dor e o luto. Nesse contexto, parece-me pertinente pensar a respeito dos mecanismos que as pessoas utilizam para elaborar o luto e os sentimentos com que têm que lidar ao perderem seus entes queridos. A morte não é mais algo tão presente em nosso cotidiano quanto era décadas atrás, quando diversas epidemias e a falta 51


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

de cuidados básicos de higiene e saúde, por exemplo, levavam à morte um grande número de pessoas. Mesmo assim, em algum momento, inevitavelmente, teremos que lidar com a morte de alguém que amamos. Nesses momentos, como elaboramos as perdas? Como construímos e mantemos as memórias daqueles que se foram? Para pensar a respeito dessas questões, escolhi como objeto a fotografia, por entender que trata-se de um artefato que constantemente cumpre diferentes funções em contextos familiares de luto. Proponho que as reflexões a respeito do tema se iniciem a partir de uma provocação de Barthes (1984, p. 137-138), que assim se expressa: [...] de minha parte, preferiria que em vez de recolocar incessantemente o advento da Fotografia em seu contexto social e econômico, nos interrogássemos também sobre o vínculo antropológico da Morte e da nova imagem. Pois é preciso que a Morte, em uma sociedade, esteja em algum lugar; se não está mais (ou está menos) no religioso, deve estar em outra parte: talvez nessa imagem que produz a Morte ao querer conservar a vida.

O que o autor propõe é uma nova maneira de analisar o impacto e a importância da fotografia no meio social onde ela surge e experimenta ampla aceitação. Assim, em vez de avaliar a fotografia tendo em vista seu status de imagem comercial, ressaltando seu caráter técnico de reprodutibilidade – como propõe Fabris (1991) – Barthes prefere considerá-la, antes de mais nada, como o grande reduto da morte a partir do século XIX. O autor considera que toda fotografia contém em si um aspecto de morte, visto que se trata do registro de um momento passado, de ocasiões e experiências que jamais se repetirão da mesma forma. Ao mesmo tempo em que remete à natureza da fotografia 52


Retratos de Família no Contexto da Morte: usos da fotografia em ritos fúnebres

a sua relação com a morte, Barthes destaca outro ponto fundamental: esse tipo de imagem surge num momento de crise dos ritos em geral, e em especial daqueles ligados à morte. A fotografia foi anunciada oficialmente em 1839, época em que a sociedade europeia vivia sob forte influência das ideias iluministas, que valorizavam a racionalidade e desvalorizavam os rituais, principalmente os religiosos, como modo de organização das etapas da vida. Barthes (1984) menciona uma “crise de morte” no Ocidente do século XIX, e não sem razão. Neste período se amplia o processo de medicalização do social, iniciado no século XVIII, na esteira da racionalização e individualização que passarão a reger a organização das sociedades ocidentais. Segundo Menezes (2004, p. 28), “a partir da emergência da família como núcleo de valor social e do surgimento do hospital, medicamente administrado e controlado, surge a ‘morte moderna’”. É justamente sobre essa morte moderna – medicalizada, racionalizada, individual, ritualizada sobretudo no âmbito familiar – que Barthes elabora sua crítica ao dizer sobre a relação da fotografia com a morte. Esta relação é ainda mais explícita ao considerarmos os diversos usos que os familiares enlutados fazem da fotografia por ocasião da perda de um ente querido, e mesmo em momentos anteriores e posteriores. Podemos identificar diferentes ocasiões em que as famílias das sociedades ocidentais, sobretudo cristãs, fizeram – e ainda fazem – uso de fotos nos ritos funerários, as quais discuto brevemente a seguir, a fim de evidenciar a riqueza destas relações ainda pouco exploradas pelos pesquisadores. Em primeiro lugar, consideremos o redimensionamento por que passam as fotografias de pessoas falecidas feitas enquanto ainda estavam vivas, gozando de saúde. No âmbito familiar, estas imagens ganham novos valores, tais como o de perpetuação da memória de um de seus entes queridos, inclusive pelos discursos produzidos por meio da arrumação do álbum fotográfico, ou pela 53


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

exposição da imagem do morto, enquanto vivo, em quadros e porta-retratos. No que se refere ao trabalho de luto, encontramse as mais variadas formas de relacionamento dos familiares com as fotografias de seus mortos, desde aqueles que preferem não olhar para estas imagens e escondem-nas, até aqueles que, ao contrário, retomam-nas e mesmo exibem-nas constantemente, como meio de auxiliar a aceitação da perda. Freire (2006, p. 142), ao relatar as experiências de um grupo de pessoas enlutadas que se reuniam regularmente num espaço de um dos cemitérios de Natal – RN, constata que “a relação mantida entre os enlutados e as fotografias de seus mortos mostrou-se bastante curiosa. A imagem fotográfica revela para o sobrevivente a memória, a lembrança dos tempos compartilhados em vida com o falecido”. Desta maneira, a fotografia pode acenar para estes familiares como uma possibilidade de eternidade, mas que se manifesta de maneira ambígua: como eternidade da memória do falecido que permaneceria, de alguma forma, vivo como lembrança, ou eternidade do sofrimento causado pela perda, uma vez que a foto é vista apenas como imagem, e não como substituto da pessoa enquanto presença material. “A foto, desta forma, traz para os enlutados o sentimento de lembrança que pode se refletir na convivência ‘pacífica’, ou na dor causada pela consciência da perda” (FREIRE, 2006, p. 143). Uma das mais contundentes explicações para essa ambiguidade no relacionamento dos enlutados com as fotografias de seus mortos pode ser encontrada no livro “A Câmara Clara”, de Roland Barthes (1984). No processo de elaboração do luto pela perda de sua mãe, o autor relata como buscou recuperar a memória do que ela significava para ele por meio de fotografias, até que se depara com aquela que, para Barthes, contém a essência de sua mãe morta. Trata-se de uma fotografia de sua mãe quando criança, chamada por ele de a Foto do Jardim de Inverno. Ele descreve assim sua relação com esta imagem: 54


Retratos de Família no Contexto da Morte: usos da fotografia em ritos fúnebres

[...] eis novamente a Foto do Jardim de Inverno. Estou só diante dela, com ela. O círculo está fechado, não há saída. Sofro, imóvel. Carência estéril, cruel: não posso transformar meu pesar, não posso deixar derivar meu olhar; nenhuma cultura vem me ajudar a falar desse sofrimento que vivo inteiramente na própria finitude da imagem [...]; a Fotografia – minha Fotografia – é desprovida de cultura: quando é dolorosa, nada, nela, pode transformar o pesar em luto. [...] Só posso colocá-la em um ritual (sobre minha mesa, em um álbum) se, de algum modo, evito olhá-la (ou evito que ela me olhe) [...]. (BARTHES, 1984, p. 135)

É importante perceber como essas vivências de dor no momento da perda de um ente querido, marcadamente individuais e íntimas, estão em acordo com a mentalidade coletiva sobre a morte vigente na sociedade em que Barthes se insere. De modo geral, em toda a sociedade ocidental, a tragicidade atribuída pelo autor à imagem fotográfica de sua mãe pode ser compreendida ao levarmos em conta que durante séculos houve a construção de uma ideia da morte como fim, separação, sofrimento, enfim, como evento trágico, como bem expõe Ariès (1981). Isto se torna ainda mais claro quando o autor expressa que [...] o horror é isto: nada a dizer da morte de quem eu mais amo, nada a dizer de sua foto, que contemplo sem jamais aprofundá-la, transformá-la. O único “pensamento” que posso ter é o de que no extremo dessa primeira morte está inscrita minha própria morte; entre as duas, mais nada, a não ser esperar [...] (BARTHES, 1984, p. 138)

Neste trecho percebe-se a interferência de uma mentalidade trágica da morte cultivada no Ocidente: ao confrontar-se com a morte da mãe, por meio da fotografia, Barthes descreve esta experiência como “horror”, manifestando em seguida que a consciência de sua própria morte lhe é dada por meio da consciência da perda de sua mãe. Ora, pode até ser verdade 55


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

que nenhuma cultura ajude a aplacar o sofrimento que o autor experimenta ao confrontar-se com a Foto do Jardim de Inverno, mas percebe-se que essa tragicidade atribuída por ele à imagem fotográfica da mãe remete justamente a uma mentalidade coletiva sobre a morte verificada na sociedade em que ele viveu. Por fim, nota-se aí o registro de um dos usos – ou re-usos, resignificações – da fotografia do vivo após sua morte, como meio que os familiares utilizam para elaborarem o luto. Uma outra ocasião em que os retratos fotográficos são utilizados no contexto da morte é na elaboração das construções tumulares. De acordo com Ruby (1995, p. 142 e143), “retratos fotográficos em túmulos são conhecidos do início da era do daguerreótipo até os dias presentes e logicamente seguem a ideia do retrato mortuário. A vasta maioria destas imagens retratam o falecido sozinho e vivo”. As fotografias colocadas nos túmulos carregam um desejo dos familiares de eternizarem uma imagem bela de seus mortos, tanto para si mesmos quanto para as outras pessoas que visitam o cemitério. Sendo assim, esses retratos que são integrados ao túmulo devem ser resistentes às intempéries, para que possam ter uma boa durabilidade. Por isso, o processo que resulta num retrato em porcelana se inicia com a escolha de uma fotografia da pessoa e, em seguida, segundo Borges (1995, p. 177), “o fotógrafo faz um negativo especial da foto; aplica-o na porcelana; efetua retoques com tintas e pincéis especiais; sobrepõe uma película protetora em toda a peça e, por último, leva a porcelana ao forno para a fundição da foto na peça”. Em muitas situações, após todo este processo, a família ainda encomenda ao próprio fotógrafo que encaixe o retrato em molduras de metal, mármore, madeira ou granito. O resultado final, quase sempre, é um retrato de formato ovalado, com guirlandas de flores, onde a família espera ver representados seus sentimentos com relação ao morto. A confecção da foto de 56


Retratos de Família no Contexto da Morte: usos da fotografia em ritos fúnebres

porcelana demanda um planejamento cuidadoso por parte da família, uma vez que esta imagem ficará disponível ao olhar e à avaliação de todos aqueles que se defrontarem com o túmulo do ente querido falecido. As maneiras pelas quais os familiares mantém a memória de seus mortos na fotografia de porcelana do túmulo são variadas; encontram-se retratos de noivos, de crianças no dia do batismo ou da primeira comunhão, homens em trajes militares, etc. Este texto, obviamente, não dará conta de todas as questões que envolvem a escolha destes retratos, mas interessa ainda frisar um tipo de uso da fotografia na ornamentação dos túmulos. Tratase dos casos em que “a proliferação da imagem fotográfica em um mesmo túmulo, encontrada atualmente, chega a transformar alguns deles num verdadeiro álbum de família público, com o qual se pode até traçar a árvore genealógica da família” (BORGES, 1995, p. 177). Essa intenção de registrar a genealogia familiar se torna bastante clara ao analisarmos o jazigo da família Faleiro (figura 1), do Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás1. Neste caso, não houve apenas a preocupação em dispor as fotografias no túmulo, mas também em identificar as pessoas sepultadas com o nome e o grau de parentesco em relação a quem construiu o monumento. Percebe-se que as imagens não foram dispostas numa ordem de fato genealógica, visto que os retratos dos avós, que foram os primeiros a falecer, foram colocados na parte inferior esquerda do jazigo. Sendo os membros mais velhos da família, era de se esperar que essas fotos estivessem na parte superior da construção. Entretanto, neste local encontram-se as imagens dos pais. Ao que tudo indica, este túmulo foi refeito, após o sepultamento de um determinado número de pessoas, e Segundo Pereira (1995), o Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás foi inaugurado em 1893. Fato inusitado com relação a esse espaço dos mortos é que a primeira pessoa a ser enterrada no local foi a filha de Antônio Cândido da Costa Moraes, construtor do cemitério. A menina faleceu aos 10 anos de idade, vítima de tifo. 1

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Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

neste momento optou-se por destacar as fotografias dos pais de quem custeou a reconstrução do monumento. Figura 1

BORGES, Déborah Rodrigues. Jazigo da Família Faleiro. Cemitério Municipal de Bela Vista de Goiás, 2006. Acervo da autora.

Outro tipo de uso da fotografia no contexto familiar de luto observado no Brasil é a inserção dos retratos dos mortos, geralmente enquanto vivos, em cartões distribuídos a familiares e amigos, sobretudo por ocasião da missa de sétimo dia de falecimento. Este uso, portanto, está diretamente ligado a um rito fúnebre de cunho religioso. Ainda hoje esta prática é mantida em diversas localidades. Entretanto, segundo Ruby (1995), o costume de confeccionar e distribuir cartões fotográficos em memória de pessoas falecidas deriva de um costume anterior, que era o de utilizar representações pictóricas de pessoas ilustres nas comemorações de suas mortes, sobretudo no caso de políticos famosos. Posteriormente, com o advento da fotografia, a prática foi estendida entre outros segmentos sociais. 58


Retratos de Família no Contexto da Morte: usos da fotografia em ritos fúnebres

Figura 2

Autor desconhecido. “Lembrança” de sétimo dia. Bela Vista de Goiás, 2007. Acervo da autora.

No Brasil, a confecção desse tipo de cartão é bastante comum entre as famílias católicas, e sua distribuição em geral ocorre ao final da missa de sétimo dia de falecimento. Normalmente, nestas “lembrancinhas” encontra-se disposta uma fotografia do morto ainda em vida. Podemos notar que há uma preocupação em selecionar um retrato no qual o indivíduo apresentasse uma boa aparência, boa saúde, alegria e outras características que denotem uma boa vida. Junto a esta imagem, encontram-se dados como nome, data de nascimento e de falecimento do retratado, além de um texto que pode apresentar conteúdo religioso ou mensagens de despedida e encorajamento aos familiares sobreviventes, conforme percebemos pelo exemplo da figura 2. Neste caso, a escolha do retrato fotográfico que comporia a lembrança de sétimo dia desta senhora recaiu sobre uma imagem bem anterior ao período de sua morte, que ocorreu quando ela tinha 75 anos de idade. Houve a preocupação em selecionar uma fotografia em que ela se mostrasse mais jovem, com mais saúde – uma tentativa de eternizar uma bela lembrança do ente querido falecido. 59


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

Um outro tipo de uso da fotografia no contexto familiar de vivência da morte de um dos seus membros é o que se pode chamar de fotografia pré-morte. Trata-se de retratos fotográficos feitos do moribundo, onde se percebe claramente a consciência do próprio retratado e de sua família da proximidade da morte. São imagens nas quais podemos constatar um interesse da família e/ou do retratado em eternizar uma última lembrança do indivíduo, ainda em vida. Fato importante é que este último registro, propositalmente, deixa clara a condição do retratado: trata-se de um registro do fim da vida de um dos membros da família. Na figura 3 temos um exemplo de fotografia pré-morte localizada em Bela Vista de Goiás. Esta fotografia – que, pelo tipo de vestimenta dos retratados, parece ter sido feita entre as décadas de 1950 e 1960 – evoca algumas das ideias comuns em representações pictóricas de mortos e moribundos, condizentes com a cultura funerária do interior do Brasil na época: a reunião familiar, a solidariedade ao indivíduo que está à beira da morte, a importância de certos símbolos e ritos no fim da vida, a morte como evento público, do qual inclusive as crianças participam. Percebemos, nesta imagem, uma mentalidade coletiva sobre a morte numa temporalidade diversa da que se experimentava em centros urbanos maiores no período: enquanto nestes se vivenciava uma medicalização e um processo de ocultação da morte cada vez maior, em Bela Vista de Goiás, e mesmo em outras cidades do interior do Brasil, verificamos a persistência de ritos fúnebres e mentalidades coletivas sobre a morte oriundos de séculos passados. Finalmente, destacamos outro tipo de uso da fotografia em contexto mortuário que foi bastante comum desde o advento da fotografia até meados do século XX, segundo Ruby (1995) e Koury (2001). Trata-se da fotografia mortuária, que é o retrato feito após a morte do retratado. Esse tipo de imagem foi amplamente 60


Retratos de Família no Contexto da Morte: usos da fotografia em ritos fúnebres

utilizado, nas sociedades ocidentais, no meio familiar enlutado, como forma de construir e manter uma memória para o falecido, por meio do registro de seu corpo e de suas feições, além do ambiente e das pessoas presentes ao velório e outros rituais fúnebres. Neste cenário no qual o morto é inserido para a realização de seu último (e em algumas ocasiões, único) retrato, a família pretende conseguir perenizar uma bela imagem de seu ente querido falecido. Figura 3

Autor desconhecido. Fotografia pré-morte. Bela Vista de Goiás, s/d. Acervo particular de Onice Aparecida de Souza Oliveira.

Segundo Jay Ruby (1995), é possível identificar três estilos de representação do defunto nos retratos fotográficos mortuários desde o século XIX. O autor explica que “dois tipos foram elaborados para ‘negar a morte’, ou seja, para simular que o falecido não estava morto, enquanto uma terceira variação retrata o falecido com os enlutados” (RUBY, 1995, p. 63, tradução da autora). No primeiro estilo, denominado por Ruby como O Último Sono, representa-se o morto como se estivesse, na verdade, repousando. A figura 4 mostra um exemplo desta tipologia. Esta fotografia do século XIX é o retrato de uma mulher 61


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

morta, bem vestida, penteada e disposta sobre um móvel, uma espécie de divã, sendo que o panejamento de seu amplo vestido cobre as pernas e os pés da defunta, além de parte do móvel. A cena inspira serenidade e descanso; nada faz alusão a algum tipo de sofrimento anterior ao momento da morte. É, enfim, o retrato de alguém que desfruta de uma boa morte, evidenciada pela organização da cena a partir da concepção de uma bela morte romântica. Figura 4

Autor desconhecido. Fotografia mortuária do tipo Último Sono. Século XIX. Disponível em: http://www.thanatos.net, acesso em 20 jul. 2007.

Há uma certa ambiguidade com relação à pose denominada Último Sono. Aparentemente, havia um desejo de retratar o morto como se não estivesse morto, mas dormindo. Entretanto, o enlutado que fazia uso de uma imagem assim tinha consciência de que o retratado estava, de fato, morto. Percebemos, aí, a importância da bela aparência do defunto e da associação da morte com o sono dentro da mentalidade ocidental sobre a morte no século XIX. Ora, estas imagens cumpriam um papel no processo de elaboração do luto e, neste sentido, fazia-se 62


Retratos de Família no Contexto da Morte: usos da fotografia em ritos fúnebres

necessário cuidar para que o último registro visual da pessoa morta reforçasse nos sobreviventes a crença de que seu ente querido desfrutava de uma boa morte. Talvez ainda mais ambíguas possam parecer as fotografias mortuárias do segundo estilo definido por Ruby (1995), denominado Vivo, embora morto. Nestas imagens pretende-se eternizar a figura do morto como se, na verdade, estivesse vivo; não dormindo, mas posando para a objetiva como uma pessoa viva. Na figura 5, por exemplo, vemos uma criança morta que foi posicionada sobre uma poltrona e tem os olhos abertos. Houve uma clara intenção de simular vida nesta imagem de uma pessoa falecida. Por que isto acontecia? Não é fácil encontrar uma resposta exata para esta questão. Afinal, como bem expressa Riedl (2002, p. 171), “para o ato de fotografar os mortos não há necessariamente uma relação causal entre origens e efeitos”. Entretanto, podemos supor uma explicação para pelo menos parte dos casos de fotografias do estilo Vivo, embora morto. Em diversas situações o que ocorria era que o retratado morria sem nunca ter tirado uma fotografia em vida. Assim, a foto mortuária acabava sendo o único registro visual disponível para os familiares. Daí, talvez, a necessidade de utilizar uma série de estratagemas para fazer com que o defunto parecesse estar vivo nestas fotografias, como, por exemplo, utilizar uma colherinha de café para abrir os olhos do morto e, depois, recolocá-los corretamente na órbita ocular (RIERA, 2006). Em outras situações, podia-se também pintar os olhos abertos na fotografia após a fixação da imagem, ou apenas efetuar retoques em retratos onde os olhos do defunto já estivessem abertos. Além disso, podia-se colocar a pessoa morta sentada, com as pernas cruzadas, segurando algum objeto, ou fazer com que ela permanecesse de pé apoiada em outras pessoas ou em outros tipos de suporte mais elaborados (esta última pose é mais rara). Enfim, percebemos que 63


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

costumava-se dar completa liberdade à pessoa encarregada de tomar a imagem para vestir e dispor o corpo como considerasse apropriado. Muitos dos fotógrafos daquela época se converteram em autênticos especialistas da maquiagem, chegando a obterse resultados muito espetaculares em alguns casos e bastante patéticos em outros. (RIERA, 2013, s/p) Figura 5

Autor desconhecido. Fotografia mortuária do tipo Vivo, embora morto. Século XIX. Disponível em: http:// www.thanatos.net. Acesso em: 20 jul. 2007.

Estes dois primeiros tipos – O Último Sono e Vivo, embora Morto – ocorreram com mais frequência no século XIX, conforme Ruby (1995). Já a terceira categoria de fotos mortuárias, que retrata o morto como morto, surge concomitantemente às outras e persiste como principal modelo até meados do século XX. Nestas imagens, encontram-se elementos que permitem a interpretação exata de que o retratado está, de fato, morto. Na figura 6, por exemplo, vemos uma criança morta dentro de um caixão branco, mesma cor de suas vestes. A foto foi feita no cemitério onde a menina seria enterrada em seguida: no segundo plano, erguemse algumas construções tumulares, e logo atrás do caixão parece haver uma cova aberta. Ora, neste exemplo há elementos mais do que suficientes para afirmar que a criança retratada está morta. 64


Retratos de Família no Contexto da Morte: usos da fotografia em ritos fúnebres

Figura 6

Autor desconhecido. Fotografia mortuária do morto como morto. Século XIX. Disponível em: http://www.thanatos.net. Acesso em: 20 jul. 2007.

Já em outros casos, apesar da ausência de referenciais tão específicos como caixão, construções tumulares ou covas em cemitérios, também é possível perceber que a fotografia registra pessoas mortas como mortas. Na figura 7 há dois adultos e três crianças dispostos sobre o que parece ser uma cama. Notamos diversos ferimentos em seus rostos. É provável que sejam membros de uma mesma família e tenham morrido todos em decorrência de algum tipo de acidente. A imagem não parece evocar a ideia de sono. É, antes, o registro de pessoas vitimadas por ferimentos letais, perfeitamente perceptíveis nesta imagem. De qualquer forma, não deixa de ser surpreendente a boa aparência dos defuntos, apesar dos hematomas e das feridas. Podemos imaginar o trabalho dispensado para o preparo dos corpos, para que estivessem bem apresentáveis tanto na fotografia quanto nos demais ritos fúnebres.

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Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

Figura 7

Autor desconhecido. Fotografia mortuária do morto como morto. Século XIX. Disponível em: http://www.thanatos.net. Acesso em: 20 jul. 2007.

A partir das discussões apresentadas neste texto, percebemos que a fotografia é um artefato que permite a construção e a manutenção de memórias, por meio da perenidade do registro dos principais acontecimentos familiares – neste caso específico, da morte. Com a popularização da fotografia na atualidade, graças ao barateamento das câmeras digitais compactas e dos telefones celulares com câmeras, os usos da fotografia estão em processo de intensa atualização e ressignificação, inclusive no que diz respeito à sua inserção no contexto da morte. O objetivo deste texto foi apresentar um panorama histórico geral sobre as funções da fotografia no campo da morte nos séculos XIX e XX. Há, ainda, muito a se investigar sobre os usos privados da fotografia como meio de elaboração do luto na atualidade. Mas este é um desafio cujo enfrentamento deixo para uma próxima pesquisa.

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História e Família: o acervo fotográfico do Museu Histórico de Londrina Amanda Camargo Rocha De maneira geral, podemos dizer que ao longo de sua história a humanidade tem buscado de forma ininterrupta um meio de eternizar as circunstâncias do tempo vivido, ou seja, de marcar no tempo as características e modos de se viver em sociedade em diferentes períodos. Essas formas de expressão variam ao longo do tempo devido a diversas condições, desde aspectos econômicos, políticos e culturais até aspectos técnicos. Mesmo que o objetivo principal daquele que busca se expressar não seja retratar sua época, o resultado obtido é sempre inerente ao contexto em que é desenvolvida a obra, tornando-a fonte na qual estão dispostas as características socioculturais do momento em que foi produzida. Isso se torna visível quando pensamos a história das artes visuais, da música, da literatura, e tantas outras formas de manifestação humana. Segundo Maria Eliza Linhares Borges, Ao longo dos séculos, as diferentes sociedades têm criado distintas formas de produzir, olhar, conceber, dialogar e utilizar suas produções imagéticas. Ao possibilitar o constante desejo de eternizar a condição humana, por certo transitória, a imagem fotográfica se aproxima de outras iconografias produzidas no passado. Como essas, a fotografia também desperta sentimentos de medo, angústia, paixão e encanto. Reúne e separa homens e mulheres, informa e celebra, reedita e produz comportamentos e valores. Comunica e simboliza. Representa. (BORGES, 2003, p. 2)

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Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

Atualmente, a fotografia cada vez mais tem adquirido uma condição polissêmica. O ato de fotografar é visto como uma forma de documentação, meio de expressão artística que possui uma estética própria, além de ser utilizada como mídia propagandística e informativa, e popularizada como hobby. Dentro dessa multiplicidade de usos, a historiografia, de forma crescente, tem visto a fotografia como preciosa fonte para estudos. O ato de se escolher um ângulo a ser fotografado e pensar a composição de uma imagem, por mais simples que pareça, revela uma teia de relações sociais e culturais às quais o fotógrafo esteve sujeito. Quando se trata de um retrato, a própria maneira com que a pessoa se posiciona perante o fotógrafo, também possui significados. A Foto-retrato é um campo cerrado de forças. Quatro imaginários aí se cruzam, aí se afrontam, aí se deformam. Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele que ele se serve para exibir sua arte. [...] Imaginariamente, a Fotografia (aquela de que tenho a intenção) representa esse momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto [...] (BARTHES, 1984, p. 27)

No caso específico das fotografias de família, os elementos da imagem permitem a compreensão das relações familiares, as dimensões hierárquicas e diferenças de gênero, além de representar o cotidiano dessas pessoas. “Através da fotografia dialogamos com o passado, somos os interlocutores das memórias silenciosas que elas mantêm em suspensão.” (KOSSOY, 2007, p.147) Por ser suporte para a representação das estruturas da sociedade, a fotografia também passou a ser considerada uma espécie de sustentáculo da memória, adquirindo assim caráter patrimonial, já que registra aquilo que compõe a memória social. Segundo Boris Kossoy, 68


História e Família: o acervo fotográfico do Museu Histórico de Londrina

Fotografia é memória e com ela se confunde. Fonte inesgotável de informação e emoção. Memória visual do mundo físico e natural, da vida individual e social. Registro que cristaliza, enquanto dura, a imagem – escolhida e refletida – de uma ínfima porção de espaço do mundo exterior. É também a paralisação súbita do incontestável avanço dos ponteiros do relógio: é, pois o documento que retém a imagem fugidia de um instante da vida que flui ininterruptamente. (KOSSOY, 2001, p.156)

Portanto, é natural que a preocupação com a manutenção e preservação do patrimônio fotográfico, enquanto bem perecível, seja algo recorrente. É a esse fim que se destinam inúmeras instituições brasileiras na atualidade como centros de documentação, bibliotecas e museus que têm se dedicado à conservação e proteção de importantes acervos fotográficos salvaguardando importantes fragmentos de memória e garantindo que estes acervos estejam disponíveis para pesquisadores das mais diversas áreas. Boris Kossoy, em seu livro “Fotografia e História” afirma que a fotografia é um elemento dual. Ao mesmo tempo em que é registro de algo, não se desvincula de um suporte físico. Segundo o autor, A fotografia é uma expressão plástica (forma de expressão visual) indivisivelmente incorporada ao seu suporte e resultante dos procedimentos tecnológicos que a materializaram. Uma fotografia original é assim um objeto-imagem: um objeto no qual se pode detectar em sua estrutura as características técnicas típicas da época em que foi produzido. (KOSSOY, 2001 p.40)

Dessa maneira, o original fotográfico ao ser considerado objeto-imagem composto por aspectos materiais e visuais que permitem compreender múltiplas características sociais e técnicas, torna-se objeto museológico e patrimonial. Suas reproduções acontecem “[...] em função da multiplicação do 69


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

conteúdo [...], disseminação da informação histórico-cultural” (KOSSOY, 2001, p. 42) Segundo o autor, essa é a importância das iconotecas: a preservação do objeto-imagem e a disseminação e disponibilização ao público das informações históricas nele contidas. O acervo fotográfico do Museu Histórico de Londrina (MHL), órgão suplementar da Universidade Estadual de Londrina e instituição de preservação e divulgação da memória da cidade, conta com o Setor de Imagem e Som, que tem exatamente a função descrita: preservar e divulgar esses bens patrimoniais fotográficos referentes à história e à memória da cidade. O acervo compõe-se, além de fotografias e negativos de vidro e flexíveis, de filmes de 16 e 35mm, slides, discos, quadros e depoimentos orais. As fotografias, realizadas, sobretudo, a partir do final da década de 1920, são imagens de extrema importância para a compreensão do crescimento da região norte do Paraná e a heterogeneidade de culturas e etnias que foram atraídas pela empresa colonizadora Companhia de Terras Norte do Paraná. Além disso, tais registros também representam a maneira como se deu o desenvolvimento da cidade e os jogos de poder a que este desenvolvimento esteve sujeito. Composto por cerca de 70 mil fotografias, o acervo é dividido em coleções de acordo com suas origens. Existem conjuntos doados pela Prefeitura Municipal de Londrina, membros da sociedade em geral e adquiridas de fotógrafos profissionais. As principais coleções são as da Prefeitura, a de José Juliani (primeiro fotógrafo oficial da CTNP) e a coleção de famílias, doadas por diversos grupos familiares da região. Quando chegam ao museu, essas imagens – sejam negativos ou fotografias – são registrados no livro tombo, em seguida passam por um processo de higienização e seu grau de deterioração é diagnosticado para que sejam aplicadas medidas com vistas a preservá-las. Após isso, é feita a catalogação no qual é atribuído um título à imagem (sempre referenciando o que nela é apresentado) e feito um breve 70


História e Família: o acervo fotográfico do Museu Histórico de Londrina

texto com as informações disponíveis sobre o registro, contendo autor, ano e local. Por fim, essas imagens são digitalizadas para manuseio em pesquisas e os originais são acondicionados em um suporte adequado à sua preservação. As fotografias disponíveis no Museu histórico de Londrina que têm como temática o registro das relações familiares são realizações de fotógrafos profissionais e anônimos amadores. O mesmo acontece com relação às pessoas fotografadas, existindo aquelas reconhecidas e as anônimas, o que evidencia os jogos de poder que permeiam a história da região. Na realidade foi sempre essa a abordagem da história da fotografia, segundo a linha dos modelos clássicos: a apresentação de uma história dos fotógrafos consagrados retratando personagens de destaque da vida social, pertencentes à nobreza oficial, à oligarquia agrária, à alta classe de uma burguesia recém-enriquecida, às elites intelectuais, artísticas, políticas. Trata-se aqui de (re)apresentar os retratados que pretenderam se perpetuar através de suas imagens: são os casos da memória voluntária. [...] No entanto o grande público desprovido do glamour das altas classes, os personagens das classes médias: os de vida comum, os pequenos comerciantes, funcionários públicos, professores, profissionais dos diferentes ofícios, estes têm sido considerados, em geral, “modelos” de pouco interesse para a história da fotografia. Recuperamos as expressões dessa gente, vez ou outra, em álbuns de família do passado; nesses repositórios da memória, aquelas personagens desconhecidas ainda têm seu lugar. Contudo, de forma geral, essa massa anônima não deixou história, seus rostos se confundem. A grande maioria dos fotógrafos que a retrataram também seguem, por sua vez, à margem da história. (KOSSOY, 2007, p.68-70)

As famílias consideradas como pioneiras e bem sucedidas no empreendimento da colonização do Norte do Paraná geralmente são reconhecidas em suas fotografias. Já as famílias anônimas que aparecem em alguns registros, são assim classificadas, na maioria das vezes, por não se enquadrarem no corrente discurso do “pioneiro vencedor”. 71


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

Forjou-se [...] uma ideia do pioneiro, ora identificado aos bandeirantes paulistas dos séculos XVI e XVII, ora aos que chegaram primeiro, que derrubaram as matas e construíram as primeiras edificações. Apesar de nuances diferenciadas, são portadores de um mesmo conjunto de representações e compartilham uma memória comum sobre a cidade, que parece se caracterizar pela atribuição de valores de heroísmo à ação colonizador, com base na livre iniciativa, capitaneada pela CTNP. (ADUM, 2008, p. 8)

A partir dessa ideia, a própria maneira com que essas fotografias chegam e são informadas à instituição e logo após classificadas, caracterizam o quanto os aspectos econômicos e políticos interferem na memória da cidade preservada no Museu Histórico de Londrina. Segundo o museólogo Mario Chagas, [...] os museus são a um só tempo: herdeiros de memória e de poder. Estes dois conceitos estão permanentemente articulados nas instituições museológicas. [...] os museus podem ser espaços celebrativos da memória do poder ou equipamentos interessados em trabalhar com o poder da memória. Essa compreensão está atrelada ao reconhecimento da deficiência imunológica da memória em relação ao contágio virótico do poder e da inteira dependência química do poder em relação ao entorpecimento da memória. A memória (provocada ou espontânea) é construção e não está aprisionada nas coisas, ao contrário, situa-se na dimensão interrelacional entre os seres, e entre os seres e as coisas. (CHAGAS, 2000, p. 2)

Considerando tais aspectos, é necessário dizer que o fato de algumas dessas famílias não serem nomeadas e reconhecidas em algumas fotografias, não implica em torná-las menos significativas para a compreensão da história local. O mesmo se aplica quando pensamos as fotos que não têm autoria reconhecida, realizada por amadores: Evidentemente será preciso distinguir aí o retrato do estúdio e o retrato amador, sendo que o primeiro inclui a intervenção dos

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História e Família: o acervo fotográfico do Museu Histórico de Londrina

padrões técnicos e artísticos do retratista, na “deliberação dos objetos retratados”. Nos retratos de amador, as imperfeições técnicas acrescentam-se á variedade e espontaneidade de situações em que são captados – o que não lhes tira a fixidez e o viés do retratista. (LEITE, 2001, p. 76)

As diferenças provenientes do trabalho de um amador e a de um fotógrafo profissional, não estão apenas na técnica empregada e na estética resultante. A forma de abordagem e o olhar sobre as temáticas do cotidiano – o que inclui a família – também são diferentes sobre esses dois prismas. A leitura do momento, feita pelo fotógrafo, varia segundo sua intenção. A estática da imagem desperta o olhar na busca para compreender os movimentos que motivaram seu registro e os motivos que a levaram a ser considerada um bem a ser preservado e divulgado enquanto patrimônio. Como dito, os retratos de família que compõe o acervo do Museu Histórico de Londrina têm origens diversas e elucidam muito bem a diferença resultante das distintas maneiras de produção. Para elucidar a ideia da diferença na produção e na maneira como chegaram e são tratados os acervos conseguidos de formas diferentes, serão aqui apresentados três exemplos diferentes de fotografias de família: de autoria de José Juliani, fotógrafo profissional; George Craig Smith, reconhecido fotógrafo amador, e imagens doadas ao museu e classificadas como de autoria desconhecida.

1. José Juliani e a fotografia profissional José Juliani (1876 – 1976) foi um fotógrafo contratado pela Companhia de Terras Norte do Paraná, atuando nela entre 1933 e 1943. Ele foi responsável por realizar uma obra de suma importância para a história, não só de Londrina, mas do norte do Paraná como um todo. 73


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

As imagens de José Juliani (1896-1976) são muito caras à população de Londrina e região frente ao seu indiscutível valor histórico. Fotógrafo contratado pela Companhia de Terras Norte do Paraná entre 1933 e 1943, José Juliani registrou o processo de ocupação das terras que originou Londrina e demais cidades do Norte do Paraná. Além disso, através de seu estúdio, notabilizouse como fotógrafo dos momentos celebrativos da comunidade, construindo coleção de extrema importância para a construção da identidade da cidade e como material de pesquisa e reflexão histórica. (VISALLI, 2011, p. 8)

Juliani era autodidata, aprendeu o ofício da fotografia, sobretudo, a partir de manuais, livros e revistas. Chegou a Londrina em 1933 junto à sua esposa e cinco filhos, criando então o Photo Studio. Além de ser um dos precursores da fotografia na região, José Juliani também contribuiu para sua difusão, vendendo material fotográfico e auxiliando fotógrafos amadores, como Haruo Ohara, realizador de uma obra também de grande importância e com uma plasticidade única que hoje se encontra sob cuidados do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro. Juliani, ao longo de sua vida profissional, percorreu muitos caminhos, além de fotógrafo da CTNP e de estúdio, já no fim de sua carreira exerceu a profissão nas ruas da cidade, com seu equipamento conhecido como “lambe-lambe” ao lado da catedral metropolitana. A fotografia a seguir, é de sua autoria e foi realizada à época em que era contratado pela Companhia de Terras Norte do Paraná.

JULIANI, José. Colheita de uva na propriedade da família de Eugênio Brugin. Imediações da atual Avenida Arthur Thomas, Londrina. Década de 1930. Acervo Museu Histórico de Londrina.

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Na imagem, vemos oito pessoas, entre as quais cinco são crianças e três adultos. A fotografia mostra uma cena familiar composta com a intenção de representar a colheita de uvas, que aparecem enchendo peneiras e cestos segurados pelos personagens. As expressões das pessoas demonstram firmeza, sendo que o homem ao centro, vestido de branco, posa de uma forma que, aparentemente, evidencia um sentimento de grandeza e orgulho ao ter sucesso no que se propôs a fazer, segurando um cacho de uva e atestando sua qualidade. O homem mais ao fundo manipula uma tesoura, ainda no ato da colheita; enquanto o que está agachado, abaixo, saboreia um gomo da uva. As parreiras, por sua vez, aparecem ainda repletas de uvas a serem colhidas, expressando fartura. A presença das crianças idealiza a prática como uma tradição familiar. Essa fotografia foi feita nas terras da família Brugin, na década de 1930. Eugênio Brugin, o homem ao centro, era italiano da cidade de Padova, na Itália, e é tido como um dos primeiros compradores de lotes da Companhia de Terras Norte do Paraná. Chegou à região no ano de 1931 e após algum tempo tornou-se agenciador de terras da CTNP. Os agenciadores eram representantes da Companhia de Terras que eram responsáveis pela atração de colonos e venda de lotes de terra da região. Dessa maneira, existiam agenciadores que viajavam pelo Brasil e para outros países, como Itália e Japão, munidos de álbuns fotográficos que serviam para comprovar através dos registros, a qualidade superior da terra roxa para o cultivo agrícola. Nesse caso, a fotografia era tida como mídia propagandística, tendo sido amplamente utilizada pela CTNP na difusão da ideia de que a terra norte-paranaense era de qualidade inigualável para a agricultura e construindo visão de Londrina enquanto cidade inovadora e progressista (BONI; SATO, 2009, p. 248). A fotografia em questão, tirada por José Juliani enquanto ele se encontrava na posição de fotógrafo oficial da CTNP, foi 75


Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia

utilizada nessas propagandas. Dessa forma, toda a composição da imagem e os elementos que nela aparecem e a maneira como estão dispostos, tiveram por objetivo demonstrar as qualidades da região para convencer possíveis compradores da garantia de um bom investimento. Assim como a imagem aqui presente foi produzida com este intuito, muitas outras o foram, sempre com a intencionalidade de demonstrar a “indiscutível” qualidade da terra através daquilo que dela brotava. Os vendedores sabiam que a idéia de um Éden terrestre atrairia, afinal de contas, compradores desejosos de adquirir um fragmento do paraíso. [...] Sabiam os vendedores que, em um contexto da vida nacional povoado de conflitos sobre questões de domínio, inclusive no Paraná, a garantia de títulos seguros era um grande atrativo para possíveis compradores (ARIAS NETO, 1998, p. 29).

Por esse motivo, o homem ao centro posa de maneira grandiosa, ele próprio enquanto vendedor das terras deveria garantir a frutificação do investimento nos lotes da CTNP. A imagem é tecida de acordo com os objetivos pré-estabelecidos por aqueles que a encomendaram, cabendo aí a visão do fotógrafo de retratar da melhor maneira possível. Portanto, a fotografia não é algo inocente, mas sim fruto de trabalho e análise do objeto e momento a ser fotografado segundo aquilo que se pretende. É compreensível que as fotografias devam ser objeto de uma leitura sociológica; e que nunca sejam consideradas em si mesmas e por si mesmas em termos de suas qualidades técnicas e estéticas. Parte-se do princípio de que o fotógrafo sabe fazer o seu trabalho e não se tem qualquer base para se fazer comparações. A fotografia deve apenas possibilitar uma representação suficientemente crível e precisa para permitir o reconhecimento. (BOURDIEU; BOURDIEU, 2006, p. 34)

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História e Família: o acervo fotográfico do Museu Histórico de Londrina

2. George Craig Smith e a fotografia amadora O segundo exemplo citado foi do fotógrafo amador George Craig Smith, paulista, descendente de ingleses. Smith foi responsável por liderar a primeira caravana que daria início ao processo de (re)ocupação – como afirma Nelson Tomazi – da região norte do Paraná pela Companhia de Terras Norte do Paraná, subsidiária da empresa inglesa Paraná Plantations Syndicate Ltd. no ano de 1929 (TOMAZI, 1997, p.185). George Craig Smith tinha a fotografia como hobby. Quando liderou o grupo que veio fazer o reconhecimento das terras adquiridas pelo investimento inglês, realizou os primeiros registros fotográficos da região. São também de sua autoria algumas fotografias que mostram o cotidiano da recém-criada cidade de Londrina ao longo da década de 1930. Deixou ao Museu Histórico de Londrina um importante acervo, composto não só por fotografias, mas também por cartas e objetos. A imagem a seguir, foi feita por Smith no início da década de 1930, quando a área ainda era conhecida como Patrimônio Três Bocas.

SMITH, George Craig. Família desconhecida. Patrimônio Três Bocas. Década de 1930. Acervo do Museu Histórico de Londrina.

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A fotografia é de uma família que vivia na região que hoje compreende a cidade de Londrina, foi doada ao MHL em meio ao grande acervo de George Craig Smith, sem maiores informações. Na imagem aparecem dez pessoas, sendo que a família é composta por sete membros: pai, mãe e cinco filhos, um deles ainda bebê. Em primeiro plano, o pai aparece ao centro, sentado e com os braços cruzados, tem uma expressão forte. Apoiado em suas pernas há um de seus filhos, acomodado confortavelmente, aparenta não saber exatamente o que se passava. Ao lado temos a filha, com uma expressão acanhada e incerta. Os outros dois meninos, assim como o pai, olham direto para a câmera. A mulher se coloca em pé, segurando o bebê. A roupa das crianças é confeccionada de maneira igual, as roupas vestidas pelo homem transmitem a ideia de que exercia seu trabalho junto à terra, enquanto a brancura do vestido da mulher contrasta com os demais elementos da fotografia, os únicos a utilizarem sapatos são os pais. Em segundo plano, ao lado direito, temos uma mulher trabalhando e uma pessoa sentada à mesa; atrás da família, passa um homem vestindo terno. Além das pessoas presentes na imagem, chama a atenção o rancho, que aparentemente foi construído com a madeira do palmito, algo muito comum na região durante o período. No último plano, por sua vez, vemos o aspecto da mata que mais tarde seria derrubada. Os inúmeros elementos presentes na fotografia permitem diversas abordagens temáticas, nos preocuparemos aqui, sobretudo, com o aspecto das relações familiares. Segundo Pierre Bourdieu e Marie-Claire Bourdieu: “O que é fotografado, e apreendido pelo leitor da fotografia, não são propriamente indivíduos na sua particularidade singular, mas sim papéis sociais – o marido, o rapaz na primeira comunhão, o militar – ou relações sociais [...]” (BOURDIEU; BOURDIEU, 2006, p. 34). A referida imagem apresenta algumas características que nos permitem compreender os papéis sociais dos elementos familiares e sua hierarquia. Algumas vezes essas características 78


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passam por nossos olhos como algo natural, quando se trata, na verdade, de algo construído histórica e socialmente, quando nos atemos ao que a fotografia retrata e a forma com que o faz, essa construção se torna visível aos nossos olhos. Voltando à imagem apresentada, ao centro temos o homem, chefe da família, posando de uma maneira que busca afirmar sua autoridade, com os braços cruzados e expressão firme. A mulher, segurando o bebê, expõe assim sua função maternal de cuidados domésticos com os filhos e o marido, enquanto os filhos se colocam em volta do pai, buscando sua proteção. Assim é formada a essência do núcleo familiar: o pai, arrimo da família, a mãe zela e é responsável por velar pelo bem estar familiar e os filhos, frutos da união do casal. Devido à circunstância em que foi doada a fotografia, é impossível saber as origens de tal família. Trata-se de colonos que vieram para a região através da CTNP ou de pessoas que já se encontravam instaladas aqui? Qual sua relação com o fotógrafo George Craig Smith? Essas são perguntas que tiveram suas respostas encobertas pela passagem do tempo. A família, hoje catalogada como anônima no acervo do Museu Histórico de Londrina, registrada por um “célebre pioneiro”, legou ao futuro através dessa imagem aquilo que será considerado um sociograma. Em outras palavras, apresenta como era constituído o campo familiar e quais os papéis sociais de cada elemento que o compunha. Dessa forma, o sociograma explicita a estrutura organizacional e as relações sociais de um determinado grupo humano e permite compreender os vínculos, influências e relações existentes nesse mesmo grupo (BOURDIEU; BOURDIEU, 2006, p.34). Segundo Lucia Santaella, Paradoxalmente à sua vocação para o eterno, aquilo que a foto capturou e congelou fica impregnado de sua própria temporalidade. Fotos são feixes de indicações temporais. Nesses feixes encontram-se as marcas do tempo não só do tema fotografado, como também do estado da arte do aparato técnico utilizado pelo fotógrafo.

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Quanto mais estiver enfatizado o caráter estético de uma fotografia, fruto do talento com que alguns agentes entram em simbiose com o olho da câmera no confronto com o real, mais a foto acionará as faculdades sensíveis de seus leitores. Quanto mais o flagrante fotográfico for capaz de diagnosticar os múltiplos pontos de vista de uma dada situação, tanto mais seus leitores serão capazes de encontrar pistas para a reconstituição dessa situação. Quanto mais uma foto for portadora de valores simbólicos, mais carregada ela estará de valores que falam à cultura (SANTAELLA, 2012, p. 77).

Portanto, mesmo sem que se saiba a verdadeira origem da família, a maneira com que ela foi retratada e os recursos simbólicos que nela estão contidos, permitem que nossa sensibilidade perceba os valores que essa família representa e em consonância, quais os valores em relação à família que eram correntes na sociedade como um todo durante o período.

3. Fotógrafos anônimos e os registros de família Por fim, como última categoria elencada dentre as que compõem o acervo fotográfico do Museu Histórico de Londrina com temática voltada para a família, temos as fotografias que são registradas como de autores não reconhecidos. Essa categoria é a que possui maior número de registros fotográficos, fruto de doações de muitas famílias que moram ou moraram em Londrina ou tiveram alguma relação com a região ao longo de sua história. Por vezes são doadas em pequenas quantidades, com poucas fotografias, havendo, porém, aquelas que compõem um conjunto maior. As imagens registram desde cenas cotidianas das famílias e ocupações profissionais até grandes cerimônias. Geralmente, quando é feita a concessão dos direitos da imagem ao Museu Histórico de Londrina, os doadores são convidados a apresentarem os elementos presentes nas imagens doadas, sendo 80


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questionados a respeito da temática da fotografia, a datação da imagem, em que local e por quem foi realizada. Porém, muitos são os casos em que os doadores não se lembram de todas as informações, resultando em dados imprecisos. Não se sabe que realizou a fotografia a seguir, que retrata um casamento ocorrido em Londrina durante a década de 1950. Nos álbuns de família, uma das categorias de fotografias mais comuns de se encontrar são as de casamentos. Esse tipo de registro, com a função de recordação da celebração do ritual de união de duas pessoas, tem caráter simbólico, no qual cada elemento representa algo.

Autor desconhecido. Casamento de Delfina Bighi Romagnolli. Rua Mamoré, Vila Nova – Londrina. Década de 1950. Acervo do Museu Histórico de Londrina.

O retrato de casamento é o mais difundido nas diferentes coleções, ou como retrato avulso. A sua freqüência parece confirmar a função incorporada da fotografia ao ritual do casamento, como um meio de solenizar a criação de uma nova família. Os casais aparecem numa gama muito diversificada. Não há sempre o marido sentado e mulher em pé, atrás, com a mão no ombro. O inverso é tão comum quanto este. As mulheres da casa e a mãe e as crianças são mais retratadas que os homens. [...] As coleções trazem com freqüência essa reunião da família ou de alguns ramos das famílias, e os retratos indicam uma situação festiva (LEITE, 2001, p. 74).

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Portanto, podemos dizer que ao longo do tempo, a fotografia se tornou parte fundamental do rito do matrimônio, registrando o momento de nascimento de uma família. Considerando que a fotografia durante a época não era tão acessível quanto hoje em dia, podemos dizer que ela só se tornava indispensável nos grades acontecimentos, aqueles que marcavam grandes mudanças frente à sociedade. Parte quase insubstituível, o retrato vem sendo o legitimador e faz parte da publicidade do casamento. Não só torna pública uma relação como, com o passar do tempo, acaba se confundindo com a lembrança do próprio casamento. Como um dos principais ritos de passagem, o casamento encontra-se em quase todas as sociedades e simboliza uma situação irreversível da situação social do casal que, proveniente de duas famílias ou de dois ramos da família, une-se para se tornar uma terceira (LEITE, 2001, p.111).

Além disso, a fotografia do casamento torna-se parte da memória familiar. É mostrada aos filhos e netos que frutificaram da relação e constituem um documento legitimador da ordem genealógica desenvolvida a partir desse grande ato. Dessa maneira, o registro fotográfico, guardado para a posteridade, colabora em primeira instância com a elaboração e criação de uma identidade familiar e que, se observada de maneira maior, acaba por constituir parte de uma memória coletiva, demonstrando os valores sociais de determinado período, espaço e que atingiu determinadas pessoas. A fotografia [...] É metodicamente inspecionada e observada, à distância, de acordo com a lógica que governa o conhecimento dos outros no quotidiano. Através do confronto de conhecimentos e experiências, situa-se cada pessoa por referência à linhagem a que pertence e, frequentemente, a leitura de fotografias antigas assume a forma de uma conferência sobre ciência genealógica [...] (BOURDIEU; BOURDIEU, 2006, p. 34)

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A fotografia de casamento aqui apresentada, compreende todos os elementos citados. O casal, quase ao centro da imagem, encontra-se sentado, assim como duas pessoas mais velhas, possivelmente a mãe do noivo ou da noiva. Ao todo, 39 pessoas estão presentes na imagem. As faixas etárias são diversas, havendo desde pessoas idosas até crianças bem pequenas. Os homens vestem terno e as mulheres vestido, o mesmo se aplica às crianças, já que a convenção social manda que em ocasiões especiais, como o casamento, todos sigam um padrão de vestimenta para que sejam considerados “bem vestidos”. A noiva veste branco, tradição que vislumbra a ideia de pureza, tem em seu colo um buquê de flores; sua mão se apóia ao noivo, simbolizando a proximidade do casal recentemente unido em matrimônio. A presença de tantas pessoas indica, como dito, o pacto entre duas famílias, que em acordo com a união, se reúnem para celebrá-la e festejá-la, deixando registrado através da fotografia o comparecimento ao ritual que selou o vínculo. Fazer parte de uma fotografia é garantir o testemunho da presença, o que é a contrapartida obrigatória da homenagem recebida ao ter sido convidado; é expressar que se valoriza esta honra e que se está presente para retribuí-la. Como poderia a disposição e a postura dos participantes deixar de ser marcadas pela solenidade? Ninguém pensa em infringir as instruções dadas pelo fotógrafo, falando com o vizinho ou olhando para outro lado. Isso seria uma indecência e, sobretudo, uma afronta ao grupo e, ainda mais, àqueles que são “homenageados naquele dia”: os recém-casados. A posição correta e digna consiste em ficar de pé, direito, olhando em frente com a gravidade que convém a uma ocasião solene (BOURDIEU; BOURDIEU, 2006, p. 37)

Outro fator a ser observado na imagem é o local no qual a foto foi registrada, um dos bairros mais antigos e tradicionais da cidade de Londrina, Vila Nova, localizado na região central, foi um dos primeiros a surgir. O chão é de terra, e ao fundo temos 83


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a presença de algumas árvores e bananeiras, um cenário que aparenta certo aspecto rural. Do lado esquerdo, aparece parte de uma casa de madeira, construção comum na cidade durante o período, não tão comum na atualidade, mas ainda presente em alguns locais, inclusive na própria Rua Mamoré. A partir da presença de tantas simbologias e características comuns às fotografias de casamento, podemos afirmar que não se tratam de imagens que retratam o cotidiano das pessoas, mas que constituem cenas alegóricas, realizadas com a intenção previamente estipulada de representar os valores familiares. Além das imagens que não possuem autor reconhecido, existem aquelas que ao mesmo tempo as pessoas retratadas são também anônimas, como é o caso da fotografia abaixo:

Autor desconhecido, s/d. Acervo do Museu Histórico de Londrina. Coleção Margarida Kraemer.

Classificada, catalogada e indexada junto ao acervo intitulado como “Famílias”, essa imagem foi doada sem nenhuma informação, só se sabe que foi feita em Londrina. Na primeira edição do Boletim do Museu Histórico de Londrina, ela é apresentada junto à outra imagem, doada pela mesma pessoa com a seguinte questão apresentada logo abaixo: “Você conhece essas pessoas?” seguido pelo email para contato com o setor de Imagem e Som. Assim como nesse caso, existem inúmeras outras 84


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imagens que se encontram na mesma situação, sendo que além de buscar informações junto à sociedade como um todo, por vezes se recorre à memória de pessoas mais idosas que viveram em Londrina desde sua criação. O museu costuma convidá-las para entrevistas nas quais se busca realizar o reconhecimento de tais imagens, além de colher o depoimento dessas pessoas, o que resulta em um importante acervo para a história oral da cidade. Porém, apenas uma pequena parte das imagens consegue ser reconhecida. A fotografia aqui apresentada retrata um grupo de imigrantes japoneses – ou migrantes – e é impossível dizer se este constitui um só núcleo familiar. A maneira como as pessoas foram dispostas para serem retratadas indica muitas coisas. Os homens mais jovens se colocam em pé, ao fundo da imagem, à sua frente, temos os meninos. Os dois homens mais velhos estão sentados assim como as mulheres, sendo que no canto direito, temos três crianças de colo. Por fim, em primeiro plano, existem seis meninas sentadas ao chão e um menino ajoelhado atrás delas. Ao se observar a imagem, é perceptível que foi criado uma espécie de cenário para a fotografia. Atrás, temos uma típica casa feita com a madeira do palmito (que já foi vista em uma das fotografias aqui apresentadas) parte dela foi coberta com um tecido estampado, com a intenção de criar um fundo para o retrato. Foram dispostas cadeiras para que as pessoas pudessem sentar e à frente, no local em que as meninas se encontram, foram colocadas algumas tábuas para que elas não se sentassem ao chão, que é de terra. Assim como nas outras imagens aqui presentes, as mulheres usam vestido, já os homens estão de terno, todos usam roupas bonitas que marcam a ocasião da realização da tomada fotográfica. Mais uma vez, os papéis sociais de cada um são evidenciados, assim como a hierarquização do grupo. A intenção inicial da realização da fotografia é um enigma, assim como a origem dos retratados e a forma que chegaram à região de 85


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Londrina. Porém, sua função de retrato do grupo e congelamento de um momento do tempo em que fluiu a vida dessas pessoas, justifica a sua presença no acervo fotográfico do Museu Histórico de Londrina, que é responsável por guardar a memória da cidade, que, mesmo anônima, não se calou com o tempo. Na fotografia, a imobilização do Tempo só ocorre de um modo excessivo, monstruoso: o Tempo é obstruído [...]. Que a foto seja “moderna”, envolvida em nossa quotidianidade mais intensa, isso não impede que haja nela como que um ponto enigmático de inatualidade, uma estase estranha, a própria essência de uma interrupção [...]. Não somente a Foto jamais é, em essência, uma lembrança (cuja expressão gramatical seria o perfeito, ao passo que o tempo da Foto é antes o aoristo), mas também ela a bloqueia, torna-se rapidamente uma contralembrança. [...] A Fotografia é violenta: não porque mostra violências, mas porque a cada vez que enche de força a vista e porque nela nada pode se recusar, nem se transformar... (BARTHES, 1984, p.135 e 136)

É esse potencial de congelamento do tempo e das percepções que contribuiu para que fossem desenvolvidos os múltiplos usos que fazemos da fotografia na atualidade. A capacidade de gravar algo, ao mesmo tempo em que interrompe um momento, gerou fascínio na humanidade, fazendo com que cada vez mais se busque o desenvolvimento de técnicas que permitam seu aperfeiçoamento, que vai desde o tradicional processo fotoquímico até a fotografia digital. A fotografia é um hiato que, ao mesmo tempo em que celebra e registra algo, permite a expressão daquilo que há de mais humano: os sentimentos e emoções. Da mesma maneira, quando é observada, provoca sensações e ativa a memória. Por esse motivo, por permitir que essa memória seja preservada através de um suporte físico – que está sujeito ao desgaste do tempo – as imagens fotográficas presentes em iconotecas como a do Museu Histórico de Londrina devem ser consideradas bens 86


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patrimoniais, objetos de preservação e resguardo. As fotografias presentes nesses arquivos, ao retratarem as relações humanas e a maneira como estas acontecem ao longo do tempo, mantém vivas as ideias e aspectos das sociedades que nos precederam, do mesmo modo que as fotografias que tiramos hoje em dia retrataram nossa própria época. Aquele que observa a imagem, ao fazê-lo se torna uma espécie de ponte, pela qual caminham as intenções de quem fotografou, assim como a maneira como as pessoas fotografadas se portam, fazendo com que a fotografia encontre aí o motivo pelo qual foi feita: comunicar algo, representar. Por consequência, a fotografia pode também ser considerada como um sociograma, que se utiliza da imagem como meio de expressão, fazendo uso de aparatos técnicos, estéticos e simbólicos que permitem compreender os comportamentos e as relações de determinados grupos sociais em determinado local e espaço de tempo. Grande exemplo disso são os álbuns de família que expõem, mesmo quando a única informação existente é a própria imagem, as relações entre as pessoas retratadas, uma espécie de “código de ética” que as guiavam. Ao mesmo tempo, na maioria das vezes, permitem também que tenhamos a percepção dos sentimentos que as envolviam. Através dessa representação, envolta de uma relativa promessa de perenidade, a fotografia em família é realizada, permitindo através de uma expressão estética, a criação de um registro que é pensado como uma maneira de manifestar os vínculos existentes entre os retratados. Apesar de atualmente ter se tornado socialmente naturalizado, com a modificação da maneira de se portar em frente à câmera, o propósito da fotografia continua com a mesma essência: guardar para o futuro um fragmento do passado e deixar gravado na memória a lembrança daquilo que já se passou.

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Sobre os autores

Richard Gonçalves André Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e professor adjunto da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Ana Maria Mauad Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Pós-doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e Professora Associada do Departamento de História da UFF. Déborah Borges Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professora do curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC). Amanda Camargo Rocha Graduada em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e aluna do curso de Especialização em Patrimônio e História da UEL.


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