Sumário
INTRODUÇÃO
Capítulo 1 A primeira festa da Dama
Capítulo 2 Lua de mel dos sonhos?
Capítulo 3 As duas grandes perdas
Capítulo 4 Atos libidinosos
Capítulo 5 Segredos
Capítulo 6 Terror nas Montanhas
Capítulo 7 Libélula
Capítulo 8 Caça às Bruxas
Capítulo 9 Em busca da Liberdade
Capítulo 10 Um universo chamado swing
Capítulo 11 O primeiro ménage à trois
Capítulo 12 Nós, vós, eles!
Capítulo 13 Deus do vinho
Capítulo 14 Um casal de solteiros
Capítulo 15 Nosso arco-íris
Capítulo 16 Identidade
Capítulo 17 Ela, Hotwife?
Capítulo 18 Tirando a máscara
Capítulo 19 A sociedade da Dama
Capítulo 20 Primeiro fim de festa
Capítulo 21 Entre poderosos e ressentidos
Capítulo 22 Presente de casamento
Capítulo 23 Quem você seria se você fosse você?
Sobre a autora Camila Voluptas
Introdução
“Nãoalcançamosaliberdadebuscandoaliberdade,massima verdade.Aliberdadenãoéumfim,masumaconsequência.”
Léon Tolstoi
Através de desconstrução e ressignificação descobri o amorpróprio e a importância dos amores recíprocos. Desejo a todos que sofrem qualquer tipo de abuso, violência física e psicológica, que esta história seja um alerta e uma ajuda para a libertação, uma motivação talvez, e que possa servir também como uma direção para aqueles que buscam a liberdade de expressar e realizar desejos íntimos, profundos e reprimidos. Uma forma de aprender uma sexualidade livre.
Me sabotei por muito tempo, pois minha carência e minha baixa autoestima não me deixavam enxergar meus pontos fortes e minhas virtudes. Deixei uma religião e seus dogmas impostos me dominarem a tal ponto que, até mesmo quando eu estava certa, acreditava estar errada.
Fui casada com um homem que quase me destruiu como mulher e sofri violência doméstica calada em nome de um futuro que só existia em minhas convicções. Traumatizada e ferida emocionalmente, encontrei forças no amor e na verdade para me
reerguer construindo uma nova história para mim. Meus traumas foram ressignificados e consegui me reinventar. Foram inúmeras guerras emocionais interiores e exteriores até me tornar uma mulher forte e livre.
Aprendi que viver uma vida em certo desequilíbrio faz parte de um equilíbrio natural. Reconquistei meu amor próprio e decidi que só viveria daquilo que fosse recíproco. Amar alguém é mais que dividir uma vida a dois, se relacionar bem com a família por simples laço consanguíneo ou compartilhar dívidas e prosperidades. É bem mais que ter alguém “só seu”.
Quando acreditamos cegamente em um ideal e nos agarramos a isso, não imaginamos a quantidade de mudanças boas que podem acontecer se nos livrarmos de tabus e preconceitos.
Tive meus momentos de dúvidas e autoafirmação, mas todas as minhas permissões, ainda que algumas me levassem a pequenos erros, fizeram com que me tornasse a pessoa que tanto amo hoje; e que ainda está em evolução. Conheci, nesta jornada, pessoas maravilhosas com incríveis diferenças e pude sentir na pele o significado real do preconceito e seu impacto.
Espero contribuir para que, assim como eu, você ache a paz interior e a paz real rumo a verdadeira liberdade, e que consiga, libertar-se de amores ilusórios e amigos imaginários.
Viver livremente sem me importar com o peso de punições espirituais me fez descobrir um lifestylesustentável repleto de ética e consciência.
O amor-próprio é a chave para a felicidade e lhe dará respostas mostrando qual caminho seguir, pois através dele você descobre até onde ir e até quando permanecer.
Tomar as rédeas da própria vida pode não ser tão fácil. Buscamos muitas vezes uma falsa sensação de estar incluídos em uma sociedade “do bom e do aceitável”. Viver ou fazer algo fora dos padrões normativos da moralidade e dos bons costumes pode realmente chocar uma sociedade inteira, mas traz também uma sensação única de liberdade, que merece ser descoberta por todos.
Substituí alguns nomes reais por fictícios e mantive outros por ene
motivos. Tudo o que escrevi faz parte integral da minha vida; a pior e a melhor parte dela!
Essa é a minha história e de várias outras pessoas que cruzaram meu caminho, fazendo parte desta incrível e intensa jornada. É principalmente sobre uma mulher e um homem, que descobriram e aceitaram o verdadeiro significado do amor, libertando-se de medos e preconceitos. Abraçaram a própria liberdade e, ao descobrirem juntos uma nova sexualidade, fundaram a maior sociedade secreta swinger do Brasil, onde o sexo é livre, mas não mais importante que o diálogo, o respeito e o autoconhecimento.
Nos conhecemos sexualmente e aprendemos a amar nossos corpos da forma que eles são, passando a realizar juntos fantasias que nunca imaginaríamos. Em nossas aventuras sexuais eu desaprendi o ciúme afetivo e parei de viver a vida baseada na opinião de outras pessoas. Eu escrevi minha própria história sem medo do que pensariam dela.
Ajudei a libertar algumas pessoas até aqui.
Desejo que as mulheres de todo o mundo, cada dia mais, entendam o quanto é importante empoderar-se; que minha história as ajude tomar a decisão certa, pois ser abusada, independente da forma ou intensidade, nunca pode ser uma opção. Espero que, homens e mulheres, possam se inspirar em minha história no caminho da própria liberdade.
Que esse livro faça você enxergar o que realmente ama e por qual motivo deseja viver. E que nada, nem ninguém, lhe impeça de amar e vivenciar todas as experiências que farão você feliz!
A primeira festa da Dama
“Apalavraémeudomíniosobreomundo.”
Clarice Lispector
Me olhei em um grande espelho dentro do lavabo daquela mansão antiga e senti o cheiro que vinha da madeira de uma penteadeira provavelmente do século 20. Passei os dedos nos detalhes entalhados em sua decoração, tentando imaginar que pessoa teria escolhido aquele móvel para estar ali. Uma mansão rústica com um leve ar sombrio, mas que possui toques modernos de quem possui a propriedade atualmente.
Com uma maquiagem discreta, a máscara que eu escolhi brilhava refletindo a luz dos antigos lustres através de suas pedras; uma máscara preta cheia de brilho com uma pena preta macia e muito delicada fixada na lateral. De vestido longo preto com uma fenda que ia até o alto da coxa, um decote discreto e um sapato de salto prateado, respirei fundo para aliviar o frio na barriga que sentia naquele momento. Já podia ouvir a música vindo da sala da lareira onde iria acontecer o primeiro encontro de máscaras da sociedade secreta swinger que eu idealizei como um sonho e que estava prestes a se tornar real. Acima da lareira em letras serifadas pretas, estava o nome da sociedade para que todos lessem de onde
estivessem.
Os membros da sociedade receberam o endereço da mansão com apenas 24 horas de antecedência para o início da festa. Enviamos às nove da noite na sexta feira um e-mail com a exata localização e a senha: a carta Q do naipe de espadas do baralho.
Descendo as escadas deslizando minhas mãos pelo corrimão, avistei o segurança, que me acenou para me informar que tudo estava pronto; o chefe de cozinha também sorriu me tranquilizando que todo o menu estava sob controle. Eles sabiam da minha angústia, afinal, tudo o que aconteceria naquela noite era também uma grande novidade para eles; foi muito tempo de treinamento e conversa para que tudo saísse perfeito.
Logo ao descer as escadas, conseguia ver uma grande sala de estar e de uma imponente janela de vidro, vi a piscina rodeada por tochas acesas que refletiam na água. Naquela noite não muito fria, via-se o céu limpo sem nenhuma nuvem, típico do início da primavera. O clima era muito agradável e tudo conspirava para que aquela noite ficasse na memória.
Planejamos um jantar finger food, afinal eu não queria ninguém segurando pratos e talheres — vãojantarenquanto conversam; só pode ser bom! — Pensei, tentando me convencer que tinha feito uma boa escolha.
Todos os profissionais estavam vestidos de forma muito elegante; calça social preta, camisa branca e gravata borboleta, enquanto os seguranças trajavam ternos pretos. No canto da sala posicionamos um bar para os drinques da noite que seriam preparados por um barman elegante e muito simpático que também acenou com a cabeça dizendo que tudo estava pronto.
Por um segundo eu hesitei — nãoacreditoqueestoufazendoisso — comecei a sentir uma leve falta de ar e precisei ir para os arredores da piscina para me tranquilizar. Meu coração estava acelerado e eu podia senti-lo na garganta. Era uma mistura de medo e excitação.
— Camila? — Escutei meio distante. — Camila? Me virei tentando enxergar através da máscara preta que vestia;
ficar sem meus óculos estava realmente difícil.
— Sim? — Olhei para meu esposo que estava perto da lareira e voltei os olhos para o garçom.
— Trouxe uma taça de champagne para você. Vai te fazer bem! — Sorriu, entregando-me nas mãos.
— Sim, tem razão, muito obrigada! — Relaxei minhas expressões. Um gole tímido e já pude sentir refrescar minha garganta, que estava seca de um misto de pavor e ansiedade. Fiquei alguns segundos olhando o desenho dos meus lábios que se formou por causa do batom vermelho na taça fina de cristal e finalmente me excitei imaginando todas as coisas boas que poderiam acontecer naquela noite.
Uma música sensual não muito alta já invadia os ambientes quando os casais começaram a entrar, todos muito bem-vestidos com trajes de gala adornados pelas máscaras brilhantes muito bem trabalhadas que combinavam com o tema da noite. Algumas cobriam somente a região dos olhos, enquanto outras ocultavam totalmente a identidade deles, fazendo com que eu me sentisse em um filme de Hollywood. Os casais e singles1 estavam sendo recepcionados e identificados através do cartão de membro da sociedade secreta, uma maneira que desenvolvi para proteger o anonimato de cada um. Na sociedade há aqueles que revelam suas verdadeiras identidades e outros que optam por se apresentar através de seus codinomes.
Tão ansiosos e apreensivos como eu, todos sabiam exatamente qual era o real propósito da noite: uma festa onde teriam liberdade para realizar suas fantasias sexuais sem tabus, preconceitos ou julgamentos. Uns observadores e silenciosos, outros mais comunicativos, mas todos com suas mais diversas características dando forma àquela noite que estava somente começando.
— Então você é a nossa Dama de Espadas? — Ouvi uma voz delicada e ao mesmo tempo animada. Antes que pudesse me virar senti o leve toque de mãos femininas em meu ombro e um perfume doce, muito agradável. Me virei sorrindo e avistei um lindo casal.
— Sim, sou eu. E eu sei quem vocês são! Bem-vindos! — Falei
sorrindo de forma tímida.
Eles se olharam surpresos.
— Como você sabe? — Perguntou ela.
— Decorei o olhar e o sorriso de alguns de vocês. — Valeuapena estudarocadastrodetodos!— Vocês estão lindíssimos! Parabéns!
— Obrigada! — Ela olhou ao redor — eu realmente estou encantada. Nunca vi tantos casais e singles elegantes em um só lugar. Somos iniciantes nesse universo e, como deve saber, viemos de muito longe.
Eles vieram de Paris para a festa e eu mal conseguia acreditar — comoelesmeencontraram?
Meu esposo chegou até mim e passou a mão em torno do meu quadril, me deu um delicado beijo na nuca e cumprimentou o casal vindo de tão longe.
— Bem-vindos! Que noite agradável, não é mesmo? Estão gostando?
— Muito! — Eles responderam juntos. Seu marido continuou parabéns! Vocês cuidaram de muitos detalhes…
— Obrigada! Meu lema é que se não tiver sexo, pelo menos haverá boa comida! — Haviaacabadodeinventarumlema?
Todos rimos e me senti mais calma. Um casal muito gracioso e elegante que conseguiu me deixar muito mais à vontade.
Um garçom se aproximou e falou ao meu ouvido:
— Camila, você pode vir na copa um instante?
— Com licença, volto já — sorri passando minha mão sobre a mão dela.
— Claro! Vamos dar uma espiada nas áreas reservadas; estamos ansiosos! — Disse ela.
— Façam isso... É um ótimo momento! Aproveitem que ainda não tem muitas pessoas explorando essas áreas.
Chegando na copa, analisei todos os canapés e suas decorações e instruí-los quanto ao caviar. Repassamos os últimos detalhes e deixei o serviço daquela noite por conta deles, pois eu realmente precisava confiar na minha equipe.
Quando retornei para a sala da lareira reconheci outro casal que entrava de mãos dadas. Já havia conversado virtualmente com eles algumas vezes e logo peguei nas mãos um presente que havia lhes separado. — Achoquevãogostardessepardemáscaras.
— Camila, que prazer em conhecer você! — Falou o homem, me abraçando enquanto segurava a mão de sua esposa.
— O prazer é todo meu! — Dei neles um abraço.
— Estávamos tão ansiosos! Estou muito feliz em conhecê-la! Você tinha razão, pois essa festa é muito diferente de tudo o que conhecemos até hoje... — sorriu.
— Fico feliz que gostaram. Espero que estejam sempre conosco a partir de hoje! Separei esse presente para vocês.
Me encantei com o Rodrigo e a Paula logo no primeiro olhar. Eles são incríveis nos quesitos empolgação e felicidade. Ele é o tipo de homem que fala alto, brinca com tudo e está sempre envolvendo as pessoas em suas conversas. Já ela é uma mulher muito sedutora e extremamente inteligente. São amorosos e dedicados a uma amizade, o que explica porque se tornaram meus grandes amigos. Passado duas horas me dispus a caminhar pela mansão. Em cada cômodo havia pessoas interagindo de alguma forma, socialmente ou sexualmente. A mansão que escolhemos para a festa é realmente incrível e todos os quartos são muito bem decorados e aconchegantes. As camas eram grandes com lençóis de excelente qualidade e traziam um conforto diferente daquilo que pessoas liberais estão acostumadas no universo do swing. Para trazer ainda mais sensualidade à noite, todas as luzes foram substituídas por velas deixando o contorno dos corpos aparente a meia luz. No quarto principal, um esposo estava sentado em uma das poltronas pretas de couro assistindo dois homens solteiros muito elegantes passarem a mão no corpo de sua bela esposa, enquanto ela o olhava com ar provocador. Entre um olhar e outro, ela virou seu rosto em minha direção e piscou; eu estava eufórica por dentro. Parei alguns segundos para observar a forma como aqueles dois homens passavam a mão pelo corpo dela e fiquei excitada. Enquanto um, de frente para ela, percorria a mão pela cintura a
beijando de forma suave e desejosa, o outro, que estava atrás dela, deslizava os dedos em seus seios enquanto beijava seu pescoço subindo a boca até sua orelha.
A respiração dos três ofegava e despertou alguns espectadores curiosos e excitados ao redor.
Seu esposo sentado na sombra do quarto com as pernas cruzadas mal se fazia perceber. Segurando uma taça de champagne, ele a levantou, acenando a cabeça para mim como se brindasse a noite que eles finalmente puderam realizar essa fantasia reprimida por anos. — Um brinde a tudo isso! — Sorri e abaixei a cabeça constrangida com seu agradecimento, mas comecei a entender qual era o meu papel em tudo aquilo.
A festa transcorria bem e já estávamos no início da madrugada. Em outro quarto acontecia uma troca de casais2; os esposos deitados e suas esposas sobre eles, enquanto elas se beijavam de forma suave e delicada tocando seus parceiros, que as acariciavam mutuamente. Parada, observando, mordi o lábio e senti uma mão quente entre minhas coxas por cima do meu vestido longo.
— Você me assustou — sussurrei no ouvido de meu esposo — que delícia vê-los assim, livres...
— Você quer ir comigo para um quarto? — Perguntou ele dando uma leve mordida na minha orelha.
— Você sabe que eu não consigo, amor. Preciso acompanhar o andamento da festa e ter certeza de que tudo vai dar certo. Vamos descer no piso térreo para ver o que está acontecendo por lá — o puxei pela mão para fora do quarto.
Enquanto caminhava delicadamente para que meu salto não fizesse muito barulho, percebia os sons vindos dos quartos: eram gemidos suaves e tímidos de pessoas intensas aproveitando aquela noite que tanto desejaram. Lá não havia pessoas performáticas e tampouco uma legião de mulheres subservientes aos prazeres de homens ricos e exigentes. Eram pessoas reais e diferentes, se descobrindo sexualmente com respeito e intensidade.
O que mais me encantava era que, entre sexos e olhares, havia muita conversa e muitos risos nas áreas sociais; pessoas
genuinamente encontrando alguém com quem compartilhar suas fantasias secretas sem medo de serem julgadas por isso. Entre nós havia muitos casais, a maioria com filhos e uma vida social de muito respeito para preservar.
Uns falavam sobre mais detalhes de sua vida pessoal e profissional e outros fingiam ser um personagem, mas todos, sem exceção, se conheciam de alguma forma. Idealizei tudo isso para que as pessoas pudessem ouvir antes de interagir e tudo o que aconteceu naquela noite incandescente superou minhas melhores expectativas!
Os ambientes cheiravam a lenha queimando junto com um suave perfume de lírios que decoravam o ambiente. Estava com as mãos apoiadas sobre uma grande mesa de vidro em uma belíssima sala de jantar, quando meu esposo levantou delicadamente minha máscara e enxugou uma lágrima emocionada que escorria no canto do meu olho.
— Você é incrível sabia? — Sussurrou no meu ouvido.
— Essa mágica é real, querido! — Me olhei em um espelho que estava posicionado em cima de um aparador de madeira antigo. Naquele momento fiz uma viagem de anos em fração de segundos.
— QueméaDamadeEspadas,essapersonagemqueeucriei?
Capítulo 2
Lua de mel dos sonhos?
“Aúnicaobscenidadequeconheçoéaviolência.”
Jim
Morrison
Era manhã do dia seguinte após a cerimônia de casamento que realizamos para pouco mais de trezentas pessoas. Estávamos em um hotel em meio às montanhas e ficaríamos alguns dias no interior antes de ir para o litoral. Um descanso merecido após a exaustiva correria na organização do evento. Olhava pela enorme janela de vidro daquele quarto e me sentia como uma personagem de algum romance. Nosso quarto tinha uma janela que ocupava toda a parede com vista para as montanhas, e dele se via uma singela neblina que cobria as árvores da floresta.
Fred e eu estávamos juntos há onze meses entre namoro e noivado, e o passo correto parecia ser o casamento. Nos conhecemos na igreja que eu frequentava há mais de cinco anos através de uma amiga que nos apresentou. Já ele sempre esteve em meio a essa comunidade, pois desde seu nascimento sua família já era adepta dessa religião.
Conheci Fred depois de duas dolorosas perdas. Quando ele me pediu em casamento, após apenas três meses de namoro, fiquei muito feliz, afinal, foram anos esperando o companheiro ideal para que finalmente pudesse construir minha própria família.
Vi nele a religiosidade que buscava em um homem. Oito anos mais jovem que eu, sempre aparentou ser muito solícito e simpático com todos, e passaria a ser muito mais do que eu imaginara conseguir. Fred é mais alto que eu e possui traços fortes e marcantes, é também, dono de um olhar penetrante e um sorriso levemente malicioso. Sua pele dourada, contrastava com a minha, nos fazendo chamar atenção onde quer que entrássemos.
Ele sempre soube que eu não havia crescido na igreja e sabia que eu não era mais virgem, mas, apesar de não parecer se importar, sempre me questionava sobre meus poucos relacionamentos passados.
Nessa época já estava estabilizada profissionalmente e era independente financeiramente, ao passo que ele ainda começava sua construção profissional, não sabendo ao certo o que estudar ou qual carreira seguir, o que gerava um contraste entre nós. Mesmo Fred se mostrando calmo, sempre vi nele uma certa ambição exagerada e um desmedido gosto pelo poder. Ele sempre deixava claro a vontade que tinha de seguir carreira militar onde ele pudesse ostentar alguma autoridade.
Minha ansiedade de casar me fez ignorar os sinais que ele me mostrava dia após dia. Durante todo o namoro e noivado não tivemos grandes brigas, mas nas poucas que tivemos ele foi bastante agressivo com gritos e chantagens. Houve vezes em que ele me deixou sozinha e só voltou a falar comigo quando eu fui atrás dele implorando por perdão. Sem que eu percebesse, Fred já ganhava autoridade em nossa relação.
Seus parentes queriam controlar nossa vida sexual e espiritual me lembrando periodicamente que ele era um jovem inexperiente, imaturo e que precisava se abster de sexo até o casamento. Faziam sermões intermináveis e uma exposição vexatória totalmente desnecessária pelo simples fato de termos dormido na mesma casa algumas vezes durante o noivado. O sexo era visto por eles como um erro ao invés de um caminho, porém como nunca tive esse dogma durante minha criação, tive experiências sexuais antes do casamento sem culpa, mas, estava naquele momento empenhada
em seguir a doutrina da igreja. O pouco contato físico que tivemos sempre era estimulado por ele, que se culpava e me culpava depois.
Foi uma linda festa e finalmente realizei um grande sonho. Ainda na noite do casamento tivemos nossa tão sonhada primeira transa, que durou apenas alguns minutos e não teve nenhuma grande surpresa. Cheguei até mesmo a questionar a virgindade de Fred que não parecia ser tão inexperiente como dizia ser — sexo é sempre intuitivo.Deveserporisso.
Como toda mulher que está vivendo o sonho da lua de mel, na manhã seguinte, já no hotel, fui em busca de sexo novamente. O quarto tinha uma decoração provençal e os lençóis brancos daquela cama muito bem arrumada, faziam com que minhas pernas deslizassem pela maciez do tecido em direção às pernas dele.
Suavemente passei a mão por baixo de sua calça fina de pijama na intenção de instigá-lo. Estava sedenta de desejos e vontades depois de tanta espera, mas Fred sequer demonstrava qualquer vontade. Comecei a perceber que ele não estava com a mesma empolgação e desejo da noite anterior. — Seráo cansaço? Ou será que ele não gostou de transar comigo? — Afastando-se de mim colocou os braços atrás da cabeça deitado com a barriga para cima. A irritação começou tomar conta de seu rosto e eu acabei perguntando o que o estava incomodando:
— Você parece não estar tão empolgado… Que se passa nessa sua cabeça, hein? — Olhei com carinho para Fred.
— Porque você acha que eu sou como você, Camila? — Falou arrogante olhando-me com um certo ar de deboche. — Pode me deixar quieto?
Surpresa com a resposta, questionei se havia feito algo. Com intolerância e pouca paciência ele respondeu:
— Ontem a noite nós já transamos. Por que hoje você quer novamente? Agora vai ser isso? Toda hora que você quiser eu terei que transar? — Fez uma pausa — não tenho tanto apetite sexual como você. Só porque você já fez sexo com outras pessoas antes de mim, pensa que eu gosto tanto assim de sexo como você? Se você casou comigo esperando mais do que isso, deu um passo errado!
Nós acabamos de casar e temos uma vida toda pela frente. Precisamos realmente transar tudo de uma vez?
— Eu não acho que temos que transar, amor! Apenas sugeri achando que você quisesse.
— Pois é, não quero. Algum problema?
— Fred, o que deu em você? — Olhei confusa para ele.
— Pronto, agora eu tenho que me explicar por não querer transar!
— Falou já levantando o tom da voz.
— Já expliquei, entenda. Só estou estranhando o tom que está falando comigo.
Ele olhava estático para o teto. Como as cortinas estavam abertas, olhando para a paisagem, tentava entender sua reação — seráque elenãogostoudomeucorpo?— Sempre fui uma mulher gorda: sou ruiva, tenho olhos azuis e gosto muito do meu rosto, mas nunca tive boa autoestima por causa do meu peso, altura e do bullying que sofri durante minha infância e adolescência.
Fiquei magoada por Fred jogar na minha cara minhas experiências sexuais anteriores, pois não é o argumento que esperamos no primeiro dia de alguns que deveriam ser mágicos. Ele não descobriu que eu não era virgem naquele momento e isso foi algo que conversamos todo o tempo durante o noivado, mas acredito que até mesmo por conta da criação que teve, se questionou os motivos que o levou a casar-se com uma mulher mais velha e que não foi “exclusivamente dele”, afinal, ele afirmava com categoria que era virgem — ostentaçãodavirgindade.Ésérioisso?
Toquei em seu braço de forma suave tentando uma nova reaproximação. Fred empurrou meu braço para longe:
— É possível você parar de me irritar?
— Amor, eu não quero transar... só quero que fiquemos bem.
— Você é muito melosa. Que saco! — Gritou.
Já irritada respondi de forma áspera:
— Quem você pensa que é para me responder dessa maneira em plena lua de mel? Caramba Fred, eu estou sendo legal, querendo lhe entender para que cheguemos em um acordo. Custa ser mais
respeitoso e compreensivo?
Fred torceu a boca me olhando com desdém e falou aos gritos:
— Vai se masturbar! Você está precisando. É um fogo que não acaba!
— Você é algum “santo” puritano e eu não estou sabendo? Devo lembrar que foi você que me pediu em casamento e que durante todo o namoro só falava em sexo? — Apontei para Fred — esqueceu dos amassos e das centenas de vezes que eu tive que te conter para evitar que não chegássemos nos finalmentes?
Com raiva ele levantou-se da cama após eu lembrá-lo dos “pecados” que havíamos cometido durante o noivado.
— Acho que cometi um grande erro me casando com você! Minha família sempre me disse que eu deveria esperar mais. Arrume suas coisas que vamos embora e chegando em São Paulo podemos anular nosso casamento se preferir. Não dou a mínima! Não viverei esse inferno pelo resto da vida ao seu lado.
O desespero tomou conta de mim — como assimirembora?Que loucuraéessa?Perdialgumapartedadiscussão?
— Fred, realizamos um casamento para trezentas pessoas, juras de amor e planos de futuro. Isso não significa nada para você? —
Suaslágrimasdeemoçãoduranteacerimôniaerammentira?
Tentava impedir que ele guardasse nossas coisas enquanto um silêncio de raiva e disputa por poder nos dominava. Sentia uma pressão horrível na cabeça que subia desde meu peito, enquanto Fred jogava as minhas roupas na mala junto com sapatos e frascos abertos. Enquanto tentava tirar o frasco de xampu das mãos de Fred, ele apertava os meus dedos para me fazer largar. Em minha última tentativa de detê-lo tentando não deixar que ele destruísse minhas roupas com aquela bagunça, tentei afastá-lo com as mãos e gritei:
— Para com isso, amor!
Fred se virou e me deu um tapa no rosto, que me fez perder o equilíbrio e cair no chão. Com força ele me segurou pelos braços e me levantou da pior maneira possível ordenando aos gritos que eu
me vestisse; seus dedos ficaram marcados em meu braço e em minha bochecha.
Tirei o pijama e enrolei-me rapidamente na toalha com os olhos arregalados. Enquanto procurava uma roupa limpa em meio à bagunça que ele havia feito, senti um chute no quadril e, de empurrões em empurrões, Fred me colocou para fora do quarto em meio aos muitos gritos e ofensas; palavras ininteligíveis. Estava em plena lua de mel seminua batendo na porta e praticamente sussurrando para que ninguém ouvisse:
— Fred, abre a porta! Você ficou louco? — Aindabemqueficamos napartemaisafastadadohotel— estava desesperada — Fred, por favor, vamos resolver essa situação — chorava olhando para os lados.
Como a toalha era pequena para meu tamanho, algumas partes do meu corpo ficaram descobertas, o que me fazia sentir ainda mais humilhada, por ter sido colocada por ele, nessa situação. Estava aflita que alguém aparecesse e me visse naquele estado enquanto implorava para que Fred me deixasse entrar. Sem falar, mordia meus lábios com força, enquanto minhas mãos trêmulas de medo, vergonha e insegurança batiam incansavelmente na porta na esperança que Fred abrisse.
Depois de minutos intermináveis em pé do lado de fora do quarto e já com os dedos doendo, ele resolveu abrir. Me olhou sério, mandou eu me calar e entrar no quarto.
— Preste atenção no que vou te dizer, Camila — ele passou a mão em seu cabelo preto e, encostando o indicador na ponta do meu nariz disse:
— Vou sair para arejar e você vai ficar aqui. Se eu chegar e você não estiver no quarto mudo de ideia e acabo por aqui nosso casamento.
Empurrou meu nariz com o dedo enquanto arregalava os olhos de pouca compaixão pelo meu choro e saiu batendo a porta, estremecendo os quadros na parede.
Eu não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo. Não era uma cena de novela e não era algum relato rotineiramente
encontrado na internet; aquilo tudo era real! Meu rosto ardia com o tapa e meu corpo estava dolorido com os chutes e os empurrões brutos. Me joguei na cama e chorando em prantos, me questionei.
—
O que foi que eu fiz? — Toda aquela violência gratuita fez crer que a culpa era minha, quando na realidade o único culpado daquela violência era Fred.
O medo e a frustração me impediam de fazer qualquer coisa; eu estava catatônica. Por muitos anos, ao ler e ouvir relatos de mulheres que sofreram violência, nunca cogitei que isso poderia acontecer comigo. Depois de um longo choro me levantei e entrei na banheira para me recompor. Longe de tudo e de todos eu não sabia que atitude tomar.
— Comoeupermiti?Emquepartedaminhahistóriaeumeperdi?
As perguntas e os pensamentos eram como um turbilhão de incertezas dentro da minha cabeça, que me causava uma inexplicável mistura de náusea e angústia. — Você já passou por dias e noites difíceis. Seja racional! Eu entendi tudo errado? Fala comigo,Deus!
Enquanto chorava na banheira, desabafando com Deus, lembreime de um tempo que eu já havia me sentido perdida e só.
O relógio na madrugada me lembrava o quanto minha noite estava sendo difícil enquanto me virava de um lado para o outro na cama. No móvel ao lado estava uma taça quase vazia e uma garrafa de vinho praticamente cheia; um presente que ganhei na festa de fim de ano da empresa. Meus pensamentos me faziam companhia naquela alucinante jornada do despertador — que rádio-relógio velho irritante! — Me levantei e, consumida por um sentimento de angústia, caminhei sobre o gélido piso de ardósia em direção à janela. Abruptamente abri a persiana, a forte luz do poste, ofuscou um pouco, mas recobrei rapidamente a visão e, em prantos, arremessei a garrafa o mais longe que consegui.
Uma angústia me dominava! — Eunãoqueriaestarsozinhaaqui!
Nunca tive a intenção de morar sozinha antes de me casar, mas a realidade da vida encaminhou-me para isso. Minha mãe estava em
crise no seu segundo casamento com um homem que, desde minha infância, nunca me aceitou bem, pois acreditava cegamente que eu queria separá-los para que ela voltasse para os braços de meu pai.
Meu pai já havia reconstruído sua vida com outra pessoa e não adiantava minha mãe tentar explicar isso ao seu atual esposo.
Conseguia vê-la raríssimas vezes e, apesar dessa situação, a pedido dela, meu padrasto permitiu que eu morasse em uma pequena casa que ele havia herdado de um tio. Uma ajuda que veio em boa hora, pois eu não conseguiria pagar um aluguel com o que recebia durante o estágio, que mal dava para suprir minhas necessidades. Para conseguir pagar todas as contas, minha única refeição do dia era o almoço servido na empresa, o que me causou com o tempo uma compulsão alimentar. Foram alguns anos de bastante privação sem pedir nada aos meus pais. Eram raras as vezes que conseguia comer um chocolate, um pão francês ou lavar o cabelo com xampu... Coisas tão básicas. Passava necessidade de comida, roupa, produtos de higiene, além da própria solidão.
Alguns meses antes dessa noite que culminou na garrafa lançada pela janela, fui assaltada às quatro da manhã a caminho do trabalho, pois eu morava em São Paulo e, diariamente, me deslocava até outra cidade para trabalhar. Um homem que passava de carro me assaltou e levou os setenta reais que haviam sobrado do meu salário e, foi nesse dia, que começou meu TOC. Eu tive um transtorno obsessivo compulsivo pelos 4 anos seguintes.
Antes de sair de casa eu tinha que acender a luz e trancar a porta diversas vezes, e a situação ficou tão complicada que se estendeu ao meu trabalho. Foi então que acabei perdendo meu emprego por isso.
Meu pai conheceu sua segunda esposa quando eu tinha 8 anos e, apesar de sempre tentar me unir a ela, meu relacionamento com ele foi ficando cada vez mais distante. O ciúme e a falta de diálogo entre meus pais acabaram dificultando minhas condições materiais e afetivas, pois só via meu pai a cada quinze dias, mas somente se ele estivesse disposto. Devido a inúmeros ataques verbais entre eles e alegações de que minha mãe usava o dinheiro em benefício próprio,
meu pai reduziu minha pensão, o que me forçou a estudar em colégio público.
Minha mãe havia superado as traições do meu pai, a recente perda do seu pai, um divórcio traumático e um tratamento contra um câncer. Em meio a toda a desestrutura própria dos acontecimentos teve, ainda, que lidar com os poucos recursos que meu pai nos dava ao mesmo tempo em que perdera seu emprego; uma das desenhistas mais brilhantes que eu conheço, perdeu o emprego para profissionais com a minha especialização: ironicamente, a minha profissão digital dominou a artística de minha mãe, que não conseguiu acompanhar a evolução. Minha mãe começou um novo relacionamento e não demorou muito para que ele viesse morar conosco. Eu entrava na adolescência e, devido à incompatibilidade de pensamentos entre meu padrasto e eu, fui morar com meus avós paternos.
Voltei a estudar em colégio particular custeado por meu pai, que ajudava meu avô com minhas despesas, porém, qualquer benefício financeiro de meu pai deveria ficar totalmente em sigilo para que sua esposa não soubesse. Meu pai nunca nos explicava o motivo, mas tanto eu quanto meu avô, tínhamos que mentir sobre qualquer coisa que envolvesse o dinheiro de meu pai, incluindo cursos e roupas.
Em alguns momentos eles pareciam se dar muito bem, já em outros nem tanto. Meu pai nunca foi fiel em seu casamento com minha mãe e dizia que os motivos das traições eram a falta da paixão do início do relacionamento, pois ele necessitava permanecer em estado de conquista o tempo todo; “precisava ver o brilho nos olhos das mulheres por quem se apaixonava”. Em seu segundo casamento não poderia ser diferente, ele tentava esconder, mas sempre aparecia rastros da sua infidelidade e por muitas vezes ele confessava a mim e ao meu avô não ser feliz. A verdade é que ele não seria feliz em relacionamento algum, pois rotina e cobranças não eram coisas que faziam bem a ele.
A vida não era totalmente ruim ao lado da esposa de meu pai, porém eu sempre me sentia desconectada da família. Eram
pequenas críticas e alfinetadas discordando da criação que minha mãe havia me dado e tenho certeza de que isso incomodava meu pai, que em nome de um bom relacionamento com ela, ignorava. Quando ele e eu estávamos sozinhos, o que era raro, meu pai tentava me recompensar emocionalmente de alguma forma, demonstrando no olhar o arrependimento por não ter sido tão presente em minha vida.
Meus pais terem se casado novamente nos distanciou, apesar de minhas lembranças desse relacionamento se basearem em discussões; um padrasto e uma madrasta ciumenta não contribuíram muito para a união familiar. Meus pais se distanciaram para conseguirem um recomeço e eu fiquei à mercê de suas escolhas. Quando passava o final de semana na casa de um deles, me sentia como forasteira na própria casa de meus pais.
Na cerimônia de casamento do meu pai, tive que acompanhar as sobrinhas de sua nova esposa desfilando como damas de honra, enquanto eu, com a mesma idade, assistia ao casamento sentada no banco como uma mera convidada. Era sarcasmo em meio às migalhas afetivas que me faziam implorar por amor, afeto e atenção. Não podia formar minha personalidade sozinha, pois desde a roupa que usava até a forma de pensar eram controladas com rigidez para que eu me tornasse a decoração que eles queriam.
Aos quinze anos tive uma festa de debutante organizada pela esposa de meu pai, que impediu, por ciúme, que eu convidasse minha mãe. Eram sempre lembranças partidas pela metade e sempre uma meia felicidade, assombrada por outra metade perversa de abandono e impotência para fazer algo que mudasse aquela situação. Assumir um relacionamento com uma pessoa que já tem filhos é conviver diariamente com um passado que não é seu. Algumas pessoas não têm maturidade para isso.
Aos dezesseis anos meu pai convidou-me a morar com ele e sua esposa. Sempre muito exigente com meus estudos, meu pai me acompanhava de perto e, como todo o começo, tivemos ótimos momentos juntos. Amava nossos cafés da manhã antes de ir à escola e, todo dia, no percurso, conversávamos sobre vários
assuntos enquanto ouvíamos Yanni. Meu pai me confidenciava seus problemas e, por algumas vezes, demonstrava desejo de separação. Eu apenas ouvia seus desabafos, até porque não tinha nenhuma experiência em relacionamentos.
Meu “Papai Urso”; ele sempre foi um cara grande, muito emotivo, com um coração e uma sensibilidade enormes. Encantava a todos que o conheciam, pois era extremamente inteligente e antenado, o que me fazia admirá-lo. Vivia em sua volta puxando assunto e tentando ganhar abraços; sua afetividade era minha maior meta. Por conta da criação que recebeu, meu pai não era inclinado a intensos chamegos, mas deixava transparecer em pequenos gestos o amor que sentia por mim, mesmo que com poucas palavras. Toda manhã ele preparava meu copo de leite com chocolate e cortava a barra de manteiga — de fato ele tinha um modo especial — a única pessoa que eu conheço no mundo inteiro que fez isso com tanto estilo: uma graça de grandão!
Meus momentos a sós com ele eram quase uma realidade paralela de tudo o que eu vivia naquela casa no restante do dia. Proibida de receber ligações de minha mãe ou visitas de amigos que a esposa de meu pai considerava inadequados para mim, eu passava a tarde toda sozinha enquanto eles trabalhavam. Como diz o ditado: “Minha casa,minhasregras”; eu não podia questionar.
Um objeto quebrado sem querer rendia horas de sermão do meu pai, que se sentia pressionado por sua esposa. Eu vivia com medo de errar, desagradar ou ser notada e, por muitas vezes, fui dormir mais cedo para evitar confrontos. Foi uma boa dose de pressão psicológica, me levando a começar a fumar aos 18 anos como um subterfúgio para fugir, mesmo que momentaneamente, daquela realidade cruel, o que foi mais um motivo de críticas deles comigo.
Cursava o primeiro ano do técnico no Senai quando a esposa de meu pai engravidou depois de sete anos de tentativas. Minha irmã nasceu e eu mal tinha contato com ela, mesmo morando sob o mesmo teto; não porque eu não queria, mas porque minha madrasta passava com ela no colo e entrava direto para seu quarto, como se eu apresentasse algum risco para eles.
A alegação de nossa tensão familiar era sempre a mesma: que eu não participava da família, que usava suas roupas sem autorização — mesmo ela usando 44 e eu 52 — e todos os outros problemas que, talvez, fosse do casamento deles, mas que colocavam a culpa sobre mim.
Certa manhã, meu pai entrou com o semblante abatido em meu quarto, dizendo que não conseguia mais lidar com aquela situação e que ela não me queria mais ali. Ele dizia estar sofrendo, mas minha irmã ainda era apenas um bebê que precisava da presença e dos cuidados dele — justo; nunca discordei disso — por amor fui embora, apenas com uma única mala de roupas, de volta para a casa de meus avós, pois foi o que ele me autorizou a levar. No dia seguinte a esposa de meu pai foi na casa de meus avôs pegar o molho de chaves que meu pai havia me dado. Ou seja: não volte sem ser convidada! — Eu entendi o recado.
Pouco tempo depois me formei como técnica gráfica em préimpressão e consegui meu primeiro emprego. Logo fui morar sozinha na casa emprestada pelo segundo esposo de minha mãe. Sentindo-me um peso tanto para a nova família de minha mãe como para a nova família de meu pai, senti-me obrigada a optar pela solidão familiar, já que meus avós eram idosos demais para ter a obrigação de cuidar de mim.
É complicado viver a escassez de contato e quase entrei em depressão. Minha mãe vivia com seu segundo esposo de forma simples, porém sem grandes necessidades. Já meu pai conhecia alguns lugares pelo mundo com sua nova família e eu realmente não podia contar com ninguém!
Eu joguei a garrafa pela janela para tentar descontar, de alguma forma, minha frustração. Me questionava sobre o fato de estar à beira de um colapso; desempregada, sozinha e cheia de transtornos.
Era domingo, fim da manhã, o dia estava muito frio. Olhando fixamente para o teto, comecei a chorar; tentava imaginar um futuro em que a casa teria cheiro de bolo, as crianças correriam pela sala e veríamos filmes comendo pipoca aos sábados à noite. Poderia levantar-me aos domingos e ir almoçar com a família em alguma
cantina do bairro, tomar um bom café em alguma padaria bonita e passar em alguma loja para comprar um vestido. — Sempre acrediteiqueaverdadeirafelicidademoraemmomentossimples.
O som da risada dos vizinhos que participavam de um almoço em família me fez voltar à realidade. Estava de volta àquela casa fria, vazia e com uma decoração pobre que me fazia lembrar que todo meu dinheiro não dava para comprar quase nada. Olhava para minhas roupas penduradas em um cabo velho de vassoura que ia de uma ponta a outra da parede de um closet improvisado e pensava no meu pai, na minha mãe, na minha irmã e no meu primeiro amor.
— Ondeeleestaráagora?Eledeveriaestaraqui!
Em meu primeiro emprego conheci um rapaz que me ensinou a trabalhar. O que eu sentia por ele era bem mais que admiração; um tesão absurdo. “Meine liebe”, é assim que sempre o chamei. Muito mais maduro que eu, tornou-se uma referência. Casado, religioso e muito inteligente, além de um amigo incrível, foi ele que me apresentou para a religião onde conheci Fred. Já que ele não poderia viver um relacionamento extraconjugal, por causa de suas crenças e princípios, Edgar acabou se afastando, ao mesmo tempo em que se tornava um grande amigo.
Seguimos caminhos opostos, mas eu sempre pensava nele. Vezes ou outra ele me telefonava para saber como eu estava e sempre foi uma companhia, apesar da distância. Eram as referências dele que eu buscava em um homem — o que ele diria vendoque passo por issoemminhasonhadaluademel?
De repente toda essa fantasia foi tirada de mim, um silêncio estarrecedor pairou sobre o ambiente, o ar estava pesado, meu rosto quente das lágrimas que escorriam. Abri os olhos e lá estava, naquele fatídico hotel, desamparada, sem saber o que fazer — levante-se,vocêjásuperoutantacoisa!
Como eu me permiti chegar ao ponto de ser agredida e ainda me sentir culpada? Seria mais uma relação de dependência emocional? Mais uma vez eu dependeria de migalhas afetivas de outras pessoas?