Livro "Quantas diferenças cabem na sua história?"

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Kátia Leonor Alves José Antônio Buere Filho

ilustração CARLOS GONÇALVES SOARES



Kátia Leonor Alves José Antônio Buere Filho

1º Edição Santa Maria Editora Experimental pE.com 2017



Dedicamos a todas as crianças, jovens e adultos, para que não se

esqueçam: ser e abraçar o diferente são coisas legais, ainda mais quando o “diferente” é ser você mesmo.


APRESENTAÇÃO Imagine viver em um mundo onde as diferenças sejam respeitadas.

Parece um sonho, não é mesmo? Nos dias de hoje, vemos um grande número de pessoas mobilizadas a construir um lugar melhor. Nós, Tony e Kátia,

acreditamos que uma sociedade onde as pessoas vivam com igualdade e respeito pode e deve se iniciar desde a infância.

Foi com este pensamento que conduzimos a criação do livro

“Quantas diferenças cabem na sua história? ”, que traz a ideia do

empoderamento infanto-juvenil. Muito mais do que promover o

entretenimento através da leitura, queremos que nossos leitores e leitoras possam se sentir representados, dispostos a abraçar as próprias diferenças e as do outro, assim como também estimulá-los a desafiar o preconceito.

Além das crianças e jovens, desejamos que pais e professores também

possam desfrutar do conteúdo desta obra, utilizando-o como instrumento

didático para educar e ensinar seus filhos e alunos sobre as grandes diferenças existentes quando se fala sobre gênero.


Como autores destes contos e militantes contra o preconceito em todas

as suas instâncias, é importante comunicarmos aos leitores que não temos o objetivo de reforçar os estereótipos que as pessoas recebem pelas suas características físicas e/ou psicológicas (por exemplo: o garoto “gordo”

ou a menina “sapatão”), tampouco ofender alguém. Tais expressões foram

utilizadas apenas para ilustrar o tratamento preconceituoso que muitos indivíduos acabam sofrendo em seus ambientes de convivência social, como a escola e a família, tão presentes nas histórias.

Sendo assim desejamos uma boa leitura a todos e todas! Atenciosamente,

Kátia e Antônio



SUMÁRIO

Ariel

11

Carolina

25

Pedro

37

Glossário

53

AGRADECIMENTOS

62

AUTORIA E ILUSTRAÇÃO

65



“Quero ser uma sereia!”

11


E

u sempre gostei do meu nome. Ariel. É um nome que me lembra daquele

animalzinho estranho, acho que é o camaleão. Mas o motivo de eu gostar do meu nome não é porque ele me lembra dos camaleões que mudam de cor conforme o ambiente; é porque Ariel pode ser um menino, uma menina ou uma sereia. Eu nasci menino, o que é legal. Os brinquedos feitos para garotos costumam ser divertidos, mas alguns eu acho um pouco agressivos. Tipo a bola de futebol. Me lembro das vezes em que eu era obrigado a jogar futebol nas aulas de Educação Física e as meninas da minha sala iam praticar atividades como dança. Eu ficava bastante inveja, principalmente depois de levar algumas boladas na cara 12


e sangrar pelo nariz. Mas eu dizia a mim mesmo para persistir e continuar jogando, mesmo não levando jeito e nem tendo porte físico para esportes, ao contrário dos outros meninos, que eram habilidosos e extremamente desenvolvidos. Um dia, contudo, isso mudou. As aulas de Educação Física não haviam acabado, mas eu decidi que não queria mais frequentá-las. Os garotos haviam sido muito grosseiros naquele dia, e eu já vinha há um tempo aturando os comentários maldosos que eles faziam. “Jogue como um menino, não feito menina!” ou “Ariel, você é um garoto, não uma sereia!”. Para começar, eu nunca havia entendido essa distinção e afastamento que as pessoas insistem em fazer entre meninos e meninas. Para mim, isso era totalmente desnecessário. Qual problema há em meninos se parecerem com meninas ou vice-versa? Por que, para muitos, é errado um menino querer ser uma menina? Eu, que estou chegando aos meus treze anos, venho me perguntando isso. Na expectativa de solucionar essa questão perturbadora, um belo dia resolvi sair da escola e falar com uma das meninas da minha turma. 13


— Marta! Marta! — Eu gritei em voz alta, enquanto corria ansiosamente em meio à multidão que cruzava os portões da escola. O meu chamado acabou atraindo a atenção de muitos alunos e pais; aparentemente, um menino de cabelos longos arrumados em uma trança, usando um casaquinho justo sobre o uniforme horroroso da escola e carregando uma mochila muito colorida e customizada com vários bottoms era um risco social para as pessoas ao redor. Marta parou sua caminhada e olhou para trás com uma expressão intrigada. Ela era uma menina de bochechas rosadas e com o cabelo cor de cenoura. — Oi, Ariel! Tudo bem? — Marta respondeu sorrindo. Respirei fundo e olhei para os lados. As pessoas ainda me observavam com um fascínio estranho. Voltei o rosto para Marta e falei: — Sua mãe tem um salão de beleza, né? — Aham. — Concordou a garota. 14


— Legal! Eu estava pensando em pintar o meu cabelo! — Sério? — Perguntou Marta com indignação. — Mas por quê? Seu cabelo é muito lindo! — Ah... também acho... mas quero fazer algo diferente! E semana que vem tem a festa à fantasia da escola, não é?! Que tal se eu for agora com você para o salão da sua mãe? — Sugeri com um grande sorriso nos lábios. — Eu não sei, Ariel... você tem dinheiro? A minha mãe não irá fazer o serviço se você não pagar! Além disso, eles vão deixar você pintar o seu cabelo? — Interrogou Marta. A voz de Marta ao falar “eles” era séria e preocupada. Eu sabia que ela se referia aos meus pais. Pensei por um instante sobre os questionamentos de Marta. Eu não lembrava se tinha muito dinheiro guardado, e o consentimento dos meus pais era algo improvável. Eles me estimulavam a ser a pessoa que eu verdadeiramente era, o que definitivamente era um ponto fundamental para o meu relacionamento com minha mãe e pai. Mas, às vezes, nem mesmo eu compreendia quem eu era ou deveria ser: um menino, uma menina ou uma sereia. Talvez eu fosse os três mesmo. — Ariel? Ouvi Marta me chamando, mas sua voz parecia muito distante. Foi então que 15


percebi que estive viajando em meus próprios pensamentos nos últimos minutos. Balancei a cabeça, como se quisesse retornar à realidade, e dei um novo sorriso. Decidido, falei: — Quero ser uma sereia.

Não consegui acompanhar Marta até o salão de beleza de sua mãe naquele dia, mas quando cheguei em casa depois da escola, fui direto ao cofre em forma de porquinho que ficava em uma das prateleiras do meu quarto. Eu me sentei sobre a cama com o cofre em mãos. Assim que o abri, uma chuva de moedas espalhou-se sobre o colchão, bem como algumas notas de dinheiro. Rapidamente, comecei a contar as minhas economias e em poucos minutos percebi que havia salvo bastante dinheiro das últimas mesadas, o que acabou sendo uma surpresa: eu geralmente acabava gastando quase tudo em vestimentas que meus pais gostavam de chamar de “excêntricas” e que, na escola, arrancavam olhares estranhos dos colegas e professores. Eu nunca entendia essa desconfiança, mas 16


talvez quando for mais velho e entendido do mundo, eu compreenderei. Pensei comigo mesmo, em voz alta: — Preciso falar com Marta agora mesmo! Amanhã é sábado, talvez a mãe dela tenha um horário para me atender no salão! A ideia de pintar o cabelo me conduziu pelo resto do dia. Eu fazia as coisas com mais animação, e os deveres de casa de matemática e química foram realizados com mais rapidez e menos complicações. Na hora do jantar, eu desci feliz para a cozinha. Estava de banho tomado e já com a roupa para dormir. Meus pais me aguardavam à mesa. — Olá, Ariel! Como foi a escola hoje? Meu pai perguntou no momento que me sentei ao seu lado. Minha mãe me lançou um olhar típico, e fez um gesto para que eu começasse a me servir. — Foi normal. Está sendo relaxante não frequentar mais as aulas de Educação Física. Os garotos são muito agressivos. — Respondi, jogando molho e almôndegas sobre o macarrão em meu prato. — Além disso, tomei uma grande decisão. Assim que eu pontuei minha fala, logo senti dois pares de olhos pairando em minha direção. — Que decisão, filho? — Minha mãe perguntou delicadamente. 17


Eu levantei o rosto para poder encará-los. Havia um pouco de receio em minha expressão, mas em meu interior o que não faltava era coragem. — Vou mudar a cor do meu cabelo! Meus pais se mostraram um pouco perplexos assim que eu fiz a revelação, mas continuei argumentando: — Sinto que todos nós precisamos de um símbolo de resistência para nos agarrar e nos fortalecer. Sansão, aquele cara da Bíblia, não tinha a força nos seus cabelos? Eu também posso ter a minha força nos meus cabelos, não? — Tentei explicar tranquilamente, enquanto cortava de forma teatral o bolo de carne em meu prato. Meu pai suspirou pesadamente. Dessa vez, minha mãe resolveu olhar para ele, tentando dialogar. — Acho que não há nenhum problema nisso, Ariel. Mas você tem o dinheiro? Eu e seu pai não pretendemos pagar. Você recebeu sua mesada na semana passada e vi que você andou comprando várias coisas novas... — Minha mãe respondeu compreensivamente, dirigindo sua atenção ora para mim, ora para meu pai. Eu fiquei tão animado com o consentimento deles (mesmo que este não tivesse 18


sido concedido de forma muito fácil pelo meu pai) que tive o desejo imediato de abraçá-los e agradecer pelo apoio, mas deixaria isso para mais tarde. Respondi, então, a pergunta de minha mãe: — Tenho sim! Por incrível que pareça, andei economizando! E, quem sabe, ainda acabe sobrando uns trocados para a minha fantasia da festa da escola! Minha mãe balançou a cabeça e sorriu genuinamente. Meu pai, por outro lado, resolveu questionar outra vez: — E você já escolheu a sua fantasia para a festa de despedida do ensino fundamental? É um grande passo, precisa ser algo marcante... — Claro. — Eu repliquei quase na mesma hora. — Vou de Ariel. Os traços faciais de meu pai expressaram confusão. — Como assim, você vai de você mesmo na festa? Eu dei uma risadinha suave e balancei a cabeça em negação. — Não, não. Eu vou de Ariel, a sereia. Aquela do filme! Outra vez, meu pai pareceu totalmente desconfortável. Dessa vez, tive vontade de abandonar o jantar e ir para o meu quarto. Mas eu respirei profundamente e contei até dez, dizendo para mim mesmo que o diálogo era a única maneira de se resolver aquilo. 19


— Mas a Ariel é uma menina... — Meu pai falou, olhando para o próprio prato enquanto coçava a testa. Eu tossi antes de falar inteligentemente: — Antes de tudo, ela é a personagem de uma obra de ficção sem compromisso com a realidade. Pode existir um Ariel menino, mas que também goste de ser sereia! Meus pais trocaram alguns olhares após a minha colocação. Vendo que aquele assunto poderia se estender por longas horas e que provavelmente eu teria bons argumentos para defender o meu ponto de vista, então eles deram o jantar como encerrado e pediram para eu ir dormir. Sem pestanejar, acatei a ordem e subi para meu quarto.

Na manhã do dia seguinte, tomei café e caminhei até a casa de Marta, que ficava no bairro ao lado. No caminho, eu havia passado em uma farmácia para comprar a tinta com a qual pintaria meus cabelos. A atendente da farmácia achara bem estranho o fato de eu comprar a tinta, mas nada comentou. 20


Quando cheguei em frente à fachada da casa de Marta, pude ouvir os sons de conversa que vinham do interior. Eu bati à porta e esperei ser atendido, o que não demorou. Uma mulher de cabelos alaranjados abriu e me olhou dos pés à cabeça. Como a mãe de Marta me conhecia, logo concluí que o seu olhar tentava entender as roupas muito coloridas que eu usava naquela manhã. — Oi. — Cumprimentei sorridente. — Vim pintar o meu cabelo. — A Marta me disse. Você tem dinheiro? — A mãe de Marta questionou secamente, ainda me observando de forma séria. Eu coloquei uma das mãos no bolso e balancei-o, provocando o som de moedas se chocando. A mulher permitiu que eu entrasse em sua casa. O primeiro cômodo era bastante amplo e dedicado ao salão de beleza, equipado com diversos objetos e produtos para cabelo. Algumas clientes já estavam no local. Quando eu entrei no foco de visão daquele grupo distinto de mulheres, pude sentir a insegurança delas, mas não dei importância. Fui, inclusive, bastante simpático, dirigindo “Olás” para cada uma enquanto a mãe de Marta me conduzia sem muita paciência até uma cadeira em frente ao espelho. Analisei meu reflexo no vidro e um sorriso de liberdade surgiu em minha face. Por 21


mais que eu estivesse em um local onde a rejeição a mim era evidente, a felicidade de poder tingir meus cabelos era maior do que tudo. Assim que entreguei a caixa de tinta para a cabeleireira, ela logo iniciou o seu trabalho. Pelo reflexo do espelho, podia perceber as clientes na fila de espera insistindo em me olhar de forma estranha. Depois de muito tempo na cadeira fazendo o novo tratamento em meus cabelos, a mãe de Marta havia perguntado sugestivamente se eu não queria cortar um pouco as pontas. Eu sacudi a cabeça negativamente. — Eu estou bem assim. — Respondi ao ficar em pé. — E vocês, o que acharam do meu cabelo? Ficou espetacular, não é? Bom trabalho, dona Claudia! — Dirigi-me a todas as mulheres que me analisavam como se eu fosse algo que não pertencia aquele mundo. Deixei uma boa quantidade de meu dinheiro para a mãe de Marta e saí do salão de beleza pulando e sacudindo minhas madeixas que brilhavam em uma cor intensa de vermelho. Eu me senti ainda mais a própria sereia, afinal Ariel podia ser um menino, uma menina ou uma sereia! Eu sabia que não seria fácil encarar a escola nas próximas semanas, tampouco as brincadeiras de mau gosto dos estudantes quando eles me vissem chegando na festa de encerramento do ano letivo vestido de sereia. Mas algo dentro de mim dizia 22


para dar voz ao que eu verdadeiramente era e ao que me tornava feliz, e no momento para mim nĂŁo havia nada que me deixasse mais radiante do que exibir meus longos cabelos pintados de vermelho por aĂ­.

23

fim



Carolina

“ é estranho amar ser o oposto de sossegado ”

25


O

ensino médio era o inferno na terra. As pessoas que costumavam ser

arrogantes no ensino fundamental pareciam ganhar um passaporte de liberdade para serem ainda mais prepotentes durante aquela época de nossas vidas. O mesmo valia para as pessoas que sofriam nas mãos dos arrogantes: a convivência se tornava ainda mais desagradável e difícil de suportar durante o ensino médio. O sistema era cruel. O que mais me impressionava como estudante no meio do fogo cruzado do preconceito era como os bullies eram desprovidos de qualquer tipo de compaixão. Eram pessoas configuradas para serem malvadas e desumanas. Eu esperava que um dia elas aprendessem a lição. O que eu não eu esperava era que 26


seria eu quem mostraria aos valentões do ensino médio a lição. Agora que você já teve uma breve ideia sobre a minha situação, vou me apresentar. Me chamo Carolina, tenho quinze anos e como falei anteriormente, estou no ensino médio. Mas na escola o meu nome parecer não existir: as pessoas preferem (sem consultar se eu assim prefiro) me chamar de “sapatão”. Eu venho absorvendo esse tratamento maldoso diariamente, enquanto ando pelos corredores da escola, quando vou à cantina para fazer as refeições e durante as intermináveis aulas regadas. O ensino médio é, reforço, o inferno. Ele empurra você até o seu limite e testa a sua capacidade de sobrevivência e superação. Eu quase cheguei ao meu limite, até que um dia uma menina recém-transferida chegou na minha turma e transformou minha vida. Seu nome era Joana. Ela era diferente de mim em diversos aspectos: possuía cabelos louros e longos, gostava de usar roupas coloridas e sempre carregava um sorriso no rosto, enquanto eu era sempre vista com os cabelos amarrados em um coque e escondida sob minhas roupas de cores escuras. A minha aproximação e a de Joana ocorreu pois na mesma turma éramos as duas indesejadas: eu, por ser a antiga esquisitona; ela, por ser a novata que ninguém conhecia. Os trabalhos em grupo da escola passaram a ser realizados por mim e 27


Joana, mas eu logo percebi que vários meninos da sala estavam interessados em se aproximar dela. Não havia outro motivo para tentar aquela aproximação que não fosse a beleza da garota. Mas Joana, desde sua chegada, trouxera um sopro de ar fresco para o ambiente escolar, mostrando toda a coragem que me faltava para enfrentar os monstros que me rodeavam. Por falar em monstros, eles pareciam ainda mais tentados em assustar nos dias de apresentação de trabalho. Eu, que já era tímida por natureza, ficava ainda mais. Minhas pernas tremiam e minhas mãos suavam toda a vez que eu ficava à frente da turma, local onde eu acabava me sentindo julgada simplesmente por minha aparência ou meu jeito de ser. — Vai dar tudo certo. Joana disse baixinho e sorrindo quando nos levantamos das carteiras para enfrentarmos os risinhos e cochichos maldosos dos colegas. Apesar da tremenda insegurança que eu sentia naquele momento, eu não deixei de reconhecer: o sorriso 28


que Joana havia me oferecido parecia o sol batendo na janela e pedindo para entrar depois de uma temporada de chuvas e solidão. Na frente da sala, eu e Joana trocamos um olhar. Meu coração batia tanto em meu peito que chegava a doer. Joana, por outro lado, transmitia uma serenidade invejável. — Oi, colegas! Meu nome é Joana e esta é Carolina. — Joana nos apresentou, acenando em minha direção. As risadinhas explodiram entre os colegas. A professora de literatura fez um “Shhh!”, tentando silenciar os alunos. Agora era minha vez de falar. — O... n-n-n-oss-ss-o trab-ba-lho-o v-v-vai fa-fa-falar so-b-bre co-co-como a li-li-li-te-ra-tu-tu-ra... Eu tentei, mas acabei ficando vermelha como um tomate. Joana sorriu novamente e me apoiou: — Como a Carolina estava falando, nosso trabalho irá apresentar a literatura nas redes sociais. Como ela se apresenta, como o texto aliado à imagem funciona melhor e como nos sentimos mais próximos de um conteúdo que às vezes pode ser chato para a maioria das pessoas. — Explicou Joana. Eu fiz um gesto positivo com a cabeça, mas acabou sendo um gesto duro; ao mesmo tempo em que eu buscava apoiar Joana, tentava desviar minha atenção dos 29


risinhos que surgiam entre os colegas que assistiam. — N-n-ó-s v-v-a-mos f-fo-car es-s-s-pe-pe-ci-al-men-men-te em u-um ar-ti-ti-tis-ta... O É-f-f-f... Éff! Quando eu consegui falar sem tropeçar em minhas próprias palavras, Joana me olhou pelo canto do olho sonhadoramente. Eu devolvi o afeto da colega e senti borboletas em meu estômago. Nos

dias

que

se

seguiram

à

apresentação do trabalho da literatura (que felizmente não foi um total desastre graças à Joana), eu e a menina acabamos ficando mais próximas. Pude sentir que a nossa ligação se modificou com o passar do tempo, e que esta não se dava mais por sermos consideradas as estranhas da turma. Acabamos também nos conectando em outros locais além da escola: saíamos juntas, frequentávamos a casa uma da outra. Tudo estava sendo tão mágico quando Joana estava perto! Em uma dessas saidinhas, fomos ao shopping comer hambúrgueres e batatas-fritas. A praça de alimentação estava cheia; muitas pessoas, o que tornava 30


andar e até mesmo respirar algo complicado. A situação do ambiente me fazia olhar para todos os lados com um pouco de receio e puxar ainda mais o capuz sobre o meu rosto. Joana, como sempre, sorria. — Do que você tem medo? Nós não estamos na escola. Ufa! — Joana perguntou. Eu tentei abrir um sorriso positivo, mas sem muito sucesso. — Não sei. Sei que desde que as risadinhas e os apelidos começaram, eu me sinto insegura de ser eu mesma. — Respondi, encarando de forma distante as minhas batatas-fritas. — E começaram faz tempo, não é? Eu sei como é isso... — Joana disse, e pela primeira vez vi uma sombra de medo passando por seu rosto de traços delicados. — Sabe como é isso? O que você quer dizer? — Questionei assustada. — Eu não me mudei de escola porque eu quis ou meus pais quiseram. Na verdade, foi uma decisão que eu e eles tomamos juntos, mas que foi motivada por conta do bullying que cometiam comigo. Eu quis ser eu mesma e, bem... não deu muito certo — Joana respirou fundo. Pude perceber que era um assunto difícil para ela. — Mas depois de muitos encontros com psicólogos e ouvir meus CD’s da Lady Gaga até arranhar, consegui fugir da bolha em que acabei me colocando e me mantendo prisioneira. 31


A história de Joana era bastante intensa. Ela acabou me contando que havia tentado tirar a própria vida, e tal revelação me deixara tão atordoada que derrubei molho de ketchup em meu moletom. O acidente foi um ótimo pretexto para mudarmos de assunto, pois Joana disse: — Ah não! Você sujou sua roupa! Vamos até o banheiro dar um jeito nisso! Eu concordei. Apanhamos nossas bolsas e deixamos a praça de alimentação, caminhando até um dos banheiros. O local estava felizmente vazio. — Tira. — Disse Joana. — O q-q-uê? — Perguntei assustada e com olhos arregalados. — O moletom, sua boba. Para limparmos. — Joana riu. Um pouco confusa, eu me livrei da peça de roupa e a entreguei para Joana. O moletom era duas vezes o meu tamanho e costumava ser um mecanismo de proteção. Sem ele, eu me sentia totalmente frágil; abracei o meu próprio corpo enquanto aguardava a garota resolver o problema de meu moletom. 32


Porém a situação provocada pelo molho de ketchup parecia ser o menor dos problemas no momento; Joana se aproximou de mim ficando a poucos centímetros de distância. Ela levou uma de suas mãos até meus cabelos amarrados e soltou-os; os fios castanhos caíram em cascata sobre meus ombros, revelando o verdadeiro comprimento deles. — Você é linda. — Disse Joana, me olhando sonhadoramente. Minhas bochechas ficaram vermelhas depois do elogio. Elogio! Eu estava sendo elogiada! — N-n-ã-o s-s-ou... S-sou? V-v-o-cê tam-b-bém, Joana! A garota não falou mais nada, mas no momento que os lábios dela encostaram com suavidade nos meus, eu pude sentir que seu gesto pequeno falava muita coisa. No início eu fiquei com um pouco de incerteza sobre o que estava acontecendo, mas deixei que minha linguagem corporal se articulasse devidamente: meu corpo ajustou-se ao de Joana e nossos braços se entrelaçaram. Assim que nossos lábios se afastaram, eu toquei minha boca com a ponta de meus dedos. Meu primeiro beijo havia sido maravilhoso e tinha um sabor encorajador. Joana suspirou e começou a limpar meu moletom manchado de ketchup. Enquanto isso, eu fiquei admirando a garota, ainda sentindo intensas emoções vibrando pelo meu corpo. 33


— “Te Te beijo na rua, olhando às vezes para o lado, é estranho amar ser o oposto de sossegado”. — Falei tranquilamente. Joana me olhou pelo canto do olho. — Desculpe? — Disse. — Éff! O artista! Trabalhamos ele na apresentação de literatura. Se lembra? — É verdade! É uma bela frase, você não acha? — Com certeza. — Joana falou muito feliz.

Joana e eu ficamos cada vez mais próximas, o que não passou despercebido na escola. Comentários maldosos nos seguiam por todos os corredores, mas agora eu não estava sozinha: eu e ela enfrentávamos a mesma luta, e somando as nossas forças nos tornaríamos imbatíveis. E foi quando decidimos andar de mãos dadas pela escola que nos colocamos acima do horror provocado pelos nossos colegas, o que não só calou a boca deles por um momento, mas também lhes ensinou uma lição de coragem e liberdade. 34


fim 35



Pedro

“ Mas eu só pensava em fazer balé ”

37


M

esmo tendo nove anos, já aprendi que o correto para a maioria das

pessoas é totalmente diferente do que você acha e principalmente do que sente como certo. Agora falo com orgulho: EU SOU O PEDRO E QUERO DANÇAR BALÉ! Mas nem sempre soube dizer que era correto sim um menino dançar balé. Sofri bastante com piadinhas dos meus colegas e opiniões erradas vindas até mesmo de minha professora e isso me magoou muito. No entanto, quando minha família me ajudou defendendo minha vontade de fazer balé, a escola inteira teve que engolir seu preconceito. E tudo isso começou no final de uma tarde quente de março. — Mãe?... Vó?... Quero fazer balé! — Eu disse sem fôlego e suado de tanto correr da escola até em casa. — Balé, Pedro? De onde tirou essa ideia? — Perguntou Vovó sentada na sua cadeira de balanço, enquanto aproveitava o milagre de um vento fresco de verão na varanda de casa. 38


Uma

escola

de

balé

passou hoje nas turmas, dizendo que as inscrições estão abertas e é um projeto de graça! — Falei animadamente esta última parte, porque Mamãe e Vovó sempre diziam que não tínhamos condições para comprar tudo o que gostamos. — A gente tem que dar uma resposta para eles até segunda! O pessoal dessa escola falou que assim os responsáveis têm o final de semana para pensar beeem. Mamãe deu uma risadinha, fazendo eu e vovó rirmos também. — Bom, Pedro, como hoje é quarta, eu vou pensar beeem. Tenho que conversar com a tua avó sobre isso, precisamos saber onde serão as aulas, quais horários, como te levar e buscar. Eles falaram isso? — Olha, Mãe, até falaram, mas eu só pensava em fazer balé. — Nós rimos novamente. — Aqui está a folha que eles deram, a professora falou que o número deles está aí. 39


Ela pegou a folha que eu estava alcançando e aproveitou a proximidade para passar a mão nos meus cabelos. — Obrigada, filho. Agora vai tomar um banho. Vou preparar um café para gente. Concordei com a cabeça, dei um beijo em Vovó e fui correndo para o chuveiro. Mesmo com nossa promessa de sempre compartilharmos as coisas e nos apoiarmos, pensei que Mamãe e Vovó haviam achado estranho o balé, já que sempre gostei de esportes mais agressivos, como judô. Porém, como em situações anteriores, primeiro elas procuraram entender o que eu queria, para somente depois me ajudar a escolher o melhor caminho. Na verdade, foi na escola que acharam esquisito eu querer dançar. Meus colegas falaram que era por eu ser gordo, como se isso fosse ruim ou me impedisse, mas para eles o mais estranho era por eu ser menino.

— Ai! Não viaja, Pedro! Gente gorda nem consegue dançar direito. Esses dias meu irmão estava vendo um vídeo muito engraçado, de uma gorda que ia girar e caía no chão porque não se equilibrava de tão pesada. — Eduarda foi a primeira a falar; ela tinha um irmão muito idiota. 40


— Nossa, Pedro, tu é menino! Menino nem dança ou usa roupa colada e saia, ainda mais rosa. Imagina! Ia ser muito engraçado. — Joaquim colocou a mão na boca para rir. — Bei cara, quer virar mulherzinha dançando balé? Vai se chama Pedrinha? — Debochou Regis, levantando a cara, porque assim seu boné não tapava sua visão. — Ontem mesmo vi uma saia que não me serve mais, você quer, Pedro? — Ana Júlia tinha virado para trás para me perguntar, fazendo seus cabelos loiros cacheados balançarem. Os quatro começaram a rir, enquanto fiquei em silêncio, olhando para alguns desenhos na minha mesa. Enquanto isso, a professora interviu. — Pessoal, não contei nada engraçado. Estou explicando uma atividade, então por que estão rindo ao invés de prestar atenção em mim? — Ai, professora, — disse Reginho ainda rindo — é que o Pedro falou que quer dançar na turma de balé. A professora Bia ficou com uma cara estranha. Sua franja ruiva quase tocava nos olhos. Ela notou que a sala inteira esperava por sua resposta. — Pedro, acho que essa turma de balé é somente para garotas. — Mas não disseram isso ontem, só falaram que quem queria podia se inscrever. 41


— Tenho a impressão que estavam falando para as meninas que quererem dançar, afinal balé é uma atividade de garotas. E vocês, meninos, têm o futebol, né? — Um breve silêncio se instalou na sala. Eu já estava cansado de ficar respondendo eles, e a professora continuou — Bom, melhor ver isso com a tua família. Vamos seguir com o conteúdo? Eu gostaria de lembrar que segunda teremos aula com a minha ajudante, Rayssa, que está em estágio, e vou assistir com vocês, não é, Rayssa? — Isso professora, prometo dar uma aula bem legal pra vocês. — A morena de cabelos ondulados, que estava até agora quieta, falou sorrindo para a turma enquanto anotava algo em seu caderno. Ela sempre anotava coisas durante a aula. A professora seguiu com a aula, porém não consegui mais prestar atenção, porque eu queria muito mesmo dançar balé. Eu não era de querer as coisas, porque minha família sempre me ensinou a dar mais valor ao que a gente tinha, do que ficar querendo coisas que a gente talvez nunca tivesse. E eu realmente queria algo pela primeira vez na vida, mas parecia que ser gordo iria me impedir, quando eu sabia que não. Além disso, o grande problema era claramente porque sou menino. Por mais que minha família não tivesse falado nada, para as outras pessoas a minha vontade parecia errada. 42


Naquela noite, sozinho no meu quarto, chorei até soluçar. Sozinho, porque eu tinha medo de falar com Mamãe e Vovó e elas pensarem que eu não devia fazer as aulas porque todo mundo achava estranho. Aquele resto de semana foi horrível, porque elas ainda estavam “pensando”, no entanto não tocaram mais no assunto. Já na escola, meus colegas começaram a cantar músicas de balé enquanto dançavam tirando sarro da minha cara durante os recreios. Mas na segunda-feira, com a aula da Rayssa, tudo ficou diferente. Ela não somente deu aula para nossa turma, como reuniu todos alunos do turno da tarde no pátio da escola e nos explicou o que era preconceito. — Relembrando, gente, preconceito é uma opinião que formamos sem conhecer algo ou alguém e muitas vezes falamos a primeira coisa que nos vem à mente, ou a gente só repete o que outra pessoa nos disse, sem procurar saber se a pessoa tem razão ou se aquilo é realmente o que pensamos. Eu trouxe um vídeo para exemplificar para vocês. 43


Ela se virou para a tela do projetor e apertou o play. Rodou um vídeo curto que falava sobre o bailarino Thiago Soares e o sucesso dele numa grande companhia de balé; também falava que ele era cheio de medalhas das competições que ganhou, e o melhor é que todas foram conquistadas através do balé. — Bom, como vocês viram no vídeo, o Thiago, mesmo sendo um homem, não só é bailarino , como conquistou inúmeros prêmios e já viajou o mundo somente com a dança.

Embora tenha encontrado preconceitos ao longo do caminho,

ele não desistiu do que queria. — Professora Rayssa, então quem disser que a gente não pode fazer balé por ser menino é preconceituoso? — Pergunto, baixando a mão que tinha erguido. Vejo alguns dos meus colegas revirarem os olhos e outros darem uma risadinha como se minha pergunta fosse muito idiota. E se não fosse a resposta da professora, eu teria me arrependido bastante de ter levantado a mão. — Você entendeu muito bem, Pedro! Esse tipo de situação é um exemplo perfeito do que tentei passar para vocês, de perceberem que existem expressões que às vezes, por fazerem parte do nosso cotidiano, nem percebemos que elas podem estar carregadas de preconceito, cabendo a nós começarmos a perceber, e não a rirmos do menino só porque ele quer dançar balé. — Ela respira fundo 44


— Enfim, alguém ficou com dúvida ou tem outro exemplo? Dando uma olhada para todos, ela parou de repente quando olhou para a professora Bia que estava sentada numa cadeira apontando o relógio em seu pulso, mas sorrindo. — Então, pessoal, infelizmente já é hora de encerrar a aula. — Um grande coral de lamentos veio da turma, inclusive de mim. — Também gostei muito da atividade, podemos repeti-la outro dia, até com outros assuntos. Começamos a levantar do chão, onde estávamos todos sentados, até que a professora Bia chamou nossa atenção: — Pessoal, gostaria de lembrar a todos que a inscrição para turma de balé ainda está aberta. E que daqui algumas semanas teremos o show de talentos com diferentes categorias. O convite é para toda escola e comunidade. Aos interessados em apresentar seu talento, as inscrições abrem na segunda. Alguns assentiram, enquanto outros ignoraram e se encaminharam para a saída. Quando eu estava caminhando para o portão da escola, vi minha mãe ali me esperando. Ela estava com seu cabelo cacheado solto, no que ela chama de

Black Power, e usava um batom marrom. Assim que me viu, ela caminhou até mim e nos encontramos no meio do caminho. 45


— Oi, filho, como foi a aula? — Ela perguntou, dando um beijo na minha testa. Fiz uma careta e passei a mão na testa, checando se não havia alguma marca de batom. — Oi, mãe, a aula foi maravilhosa! Por que veio me buscar? — Estava perguntando porque era sempre minha prima mais velha, Júlia, que me buscava, já que Mamãe geralmente trabalhava naquele horário e Vovó não conseguia mais fazer as subidas do caminho para a escola. — Vim te inscrever na aula de balé, filho. Eu não falei? Olho para ela, surpreso. — NÃO, NÃO FALOU! — Grito de alegria, porque finalmente vou conseguir fazer uma coisa que quero muito. — A senhora viu a aula da professora Rayssa, viu que eu posso fazer balé? — Assisti o final, meu filho, mas vim te buscar porque eu e tua vó já tínhamos decidido te inscrever. Nós percebemos o quanto tu queria. Estava com medo da gente te proibir só porque é menino? — Ela me olhou com um ar sério. Confirmei com a cabeça, olhando envergonhado para o chão. Ela se abaixou, fazendo um carinho no meu rosto. — Bom, querido, se você tivesse dito, nós teríamos explicado que isso nunca 46


impediu ou vai impedir a gente de te deixar fazer algo que goste. Espero que você também não deixe de fazer as coisas por esse mesmo motivo, vamos combinar isso? Que tu nunca vai deixar de fazer as coisas por ser quem tu é? — Ela mostrou o dedo mindinho do juramento. Enlacei meu dedo no dela e finalmente consegui olhar para seus olhos, tentando tirar o sorriso do rosto, mas sem sucesso. — Feito, mãe! Muito obrigado! Amo vocês! — Dei um abraço forte nela. — Também te amamos filho, independente do que você quer ser ou fazer. — Ela retribuiu meu abraço, depois levantou do chão e bagunçou meu cabelo — Vamos lá te inscrever! As aulas de balé começaram uma semana depois. No início foi complicado conseguir apoiar o pé da forma certa ou manter o equilíbrio, mas meu professor Caio disse que era normal e conforme as semanas foram passando, eu fui melhorando. Estava cada vez mais apaixonado pelo balé, errando ou não. 47


Finalmente, havia chegado o dia do show de talentos, onde a escola e a comunidade toda iriam ver o quão bom e o quão apaixonado sou pelo balé. Passei três semanas ensaiando uma coreografia com o professor Caio, enquanto Mamãe e Vovó confeccionavam a roupa. Agora aqui estava eu no Grande Dia, dentro do camarim no teatro da escola, me alongando e passando mentalmente uma lista de coisas para me acalmar.

Collant, meia-calça, sapatinha e tutu. Todos pretos, menos o tutu que é rosa... Duas batidas na porta, então ela abre e a cabeça da professora Rayssa aparece. — Pedro, você é o próximo. Está pronto? — Ela adentra mais no camarim e me olha — Você está lindo, Pedro, tenha uma boa apresentação. Você é capaz do que quiser, ok? Estou tão nervoso que só aceno com a cabeça e vou correndo em direção aos bastidores do palco. Enquanto uma mulher anuncia minha apresentação, fecho os olhos respirando fundo, ouço os trinta segundos da introdução da música e rapidamente estou aos olhos de todos. Entro correndo, pois preciso de impulso o meu primeiro movimento, chamado allegro, um salto de pernas abertas, que me leva quase ao meio do palco. 48


Sigo a dica do professor sobre não olhar para a plateia, imaginar que está sozinho. Felizmente, as luzes na parte de baixo do palco me ajudam muito nessa parte. Finalizando o salto, volto a lembrar os passos mentalmente enquanto executava eles. Caminhar para a frente do palco na ponta do pé, virar de costas para a plateia, correr e dar um allegro, mais outro e outro, até chegar na barra colocada especialmente para mim. Respiro fundo, seguro a barra e começo novamente

Demi plié; Grand plié; Demi plié; Segurar direito a barra; Grand plié Levo minhas mãos para trás e desato o nó de fitas que prende meu tutu, segurando elas enquanto faço um grand plié. Depois, coloco o tutu elegantemente no chão. Ele foi usado especialmente para provar que um menino também pode usar tutu, além de deixar o salto e os pliés mais elegantes, mas agora posso continuar sem ele. Fico na ponta dos pés, faço uma caminhada rapidinha até o meio do palco e começo o Brisé. Perna em movimento se arrasta para cima junto com a outra, batendo as pontas dos pés, ficando no ar por segundos, em seguida ambos os pés voltam ao chão simultaneamente em demi-plié. 49


Como eu escolhi uma apresentação simples, vou para meu último movimento

fouette, que prova meu grande avanço. Afinal, ele precisa de força muscular e bastante equilíbrio para fazer seu giro completo. Respiro fundo novamente, porque estava esquecendo de respirar por conta do nervosismo. Pé esquerdo na ponta do pé, perna direita para a frente no ar, ganhar impulso com os braços girando, recolher a perna direita, formando o número quatro, abrir a perna de novo para girar mais. Repetir mais duas vezes. Quando termino os três giros, estou ofegante. A música encerra, percebo que estou de olhos fechados, com as mãos na cintura. Preciso me manter firme com as duas pontas do pé no chão. O silêncio da plateia já passa de um minuto, que parecem horas, então abro meus olhos. O quê vejo prontamente me deixa de olhos cheios d’agua, porque sim, menino também chora. Mas quem não iria se emocionar, vendo Mamãe, Vovó, professor Caio, Eduarda e todo o resto da escola e da comunidade de pé, e quando percebem que estou olhando para eles, começam a bater palmas, assoviar e gritar “Pedro! Pedro!”, suas comemorações ecoando no teatro. Naquele momento, eu entendi meu lugar no 50


mundo. O preconceito não iria me derrubar, porque eu tinha o amor e o respeito das pessoas mais importantes da minha vida, e nada me faria voltar atrás ou mudar de ideia. A liberdade é maravilhosa, não é mesmo?

fim 51



Glossรกrio

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Pensada de acordo com os temas tratados nos três contos deste livro,

a lista de palavras a seguir é uma forma dos nossos leitores se integrarem, de maneira simples e didática, às diversas expressões com as quais acabarão,

possivelmente, esbarrando no cotidiano. Muitas vezes, o leitor não irá se deparar diretamente com algum desses termos, uma vez que eles já estão

muito naturalizados no nosso dia-a-dia, mas é importante que ele saiba compreender a situação e o conceito para saber lidar com algo que pode ser fora de sua realidade com o máximo de gentileza possível. Este vocabulário,

além de propor o conhecimento, é um instrumento para o empoderamento das crianças e jovens, a partir do qual eles podem conhecer mais sobre si mesmos, e também para os pais e educadores compreenderem a pluralidade do mundo em que vivemos.

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GÊNERO É mais do que necessário começar este vocabulário explicando o que é gênero, assunto que norteia todo o conteúdo deste livro. De maneira bruta, o gênero divide homens e mulheres de acordo com o seu sexo biológico. No entanto, nos dias atuais, gera-se um grande debate, estando ele principalmente relacionado às questões de construção social e cultural. Assim, o gênero é um processo de construção e desconstrução, portanto é mutável e flexível, não se limitando apenas à dualidade entre gênero feminino e masculino.

IDENTIDADE DE gênero Biologicamente falando, nascemos homem ou mulher. Mas, quando passamos a compreender quem somos verdadeiramente em nossa essência, podemos nos identificar com o sexo oposto ao do nosso nascimento, ou seja, é como nos enquadramos e acabamos nos sentindo bem. Embora seja algo bem complexo de entender no início, é importante saber que as identidades de gênero estão cada vez mais fluidas, cabendo a nós apenas respeitar e aceitar o próximo.

SEXO BIOLÓGICO É como nascemos: com as características femininas ou masculinas. 55


CISGÊNERO É a identificação da pessoa com o seu gênero de nascimento. Por exemplo: alguém que nasce com o gênero feminino, se reconhece dentro deste gênero e se expressa socialmente como tal, pode ser considerado uma mulher cisgênero.

Transgênero É um termo empregado para todas as pessoas que não se identificam como cisgênero, ou seja, pelo seu gênero de nascimento. Logo, se um indivíduo nasce biologicamente com o gênero masculino, mas se reconhece dentro do gênero feminino e se expressa socialmente como tal, ele pode ser considerado uma pessoa transgênero. O termo transgênero abrange diversas identidades, como transsexual, gênero-fluído, etc.

Orientação sexuaL Assim como a identidade de gênero, a orientação sexual é um assunto muito amplo, existindo muitas variações. Orientação sexual representa o gênero pelo qual nos afeiçoamos e atraímos. Muitas vezes, a orientação sexual é tratada como uma “opção”, como se cada indivíduo “escolhesse” o sexo ao qual ele tem inclinação a se afeiçoar/atrair. Isto muitas vezes dá margem para o preconceito existir, levando muitas pessoas a serem maltratadas pela sua orientação sexual. 56


Homossexualidade Foi dito anteriormente que existem várias orientações sexuais, correto? A homossexualidade é uma delas, e se refere às pessoas que sentem atração afetuosa/física por pessoas do mesmo sexo. Sendo assim, homens podem se sentir atraídos por outros homens e mulheres por outras mulheres. As pessoas nascem desse jeito e não podem mudar. O importante é amar o próximo, sempre com o máximo de respeito e dedicação!

Heterossexualidade Também é uma orientação sexual, e designa as pessoas que sentem atração afetuosa e física por pessoas do sexo oposto. Sendo assim, homens sentem atração por mulheres e mulheres sentem atração por homens.

Bissexualidade É uma orientação sexual que designa quem sente atração afetuosa e física por pessoas de ambos os sexos. Ao contrário do que muitos pensam, nós podemos nos sentir atraídos por homens e mulheres.

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BRINCADEIRA SEM GÊNERO Desde a infância, somos conduzidos a praticar certas atividades e outras não, pois alguém inventou a “regra” das brincadeiras para meninos e brincadeiras para meninas. Essa “regra” não faz o menor sentido! Com a brincadeira sem gênero, por exemplo, meninos podem se sentir livres para brincar de bonecas e meninas, para jogar futebol ou brincar de carrinhos. É tão errado cortar as asas de uma criança quando se trata de diversão, não acha?

Cor sem gênero Um casal está esperando um bebê. Ao descobrirem que é uma menina, geralmente começam a montar o quarto e comprar as roupas em tons de rosa. Essa construção social de que existem cores específicas para meninas e meninos está totalmente errada, pois limita as possibilidades do indivíduo se vestir com as roupas nas cores que ele gostaria. É bom que saibam: nenhum menino “vira” menina só por vestir algo cor-de-rosa, certo?!

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Moda sem gênero Entendemos como moda tudo aquilo que a pessoa se sinta confortável vestindo. Já a moda sem gênero é a não divisão de roupas de acordo com o sexo. É muito chato ir em uma loja de departamento e ver as roupas divididas em feminino e masculino, não é? E se um menino achar uma saia de “menina” bonita e se sentir bem a usando? Não tem nenhum problema nisso, e não adianta fazer cara feia!

EMPODERAMENTO O ato de empoderamento foi o que experimentamos com as atitudes de Ariel ao pintar seus cabelos; de Carolina ao segurar a mão de Joana em frente de toda a escola e de Pedro ao persistir em seu sonho de praticar balé. Empoderar é o ato de se libertar das convenções sociais e garantir a evolução de si mesmo a partir de gestos e discursos que prezam pela felicidade e autonomia.

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FEMINISMO Busca a melhora e a ampliação dos direitos e do papel da mulher na sociedade. O direito da mulher ocupar o mesmo cargo de um homem em uma empresa e receber salários iguais ou, caso ela seja mais estudada, receba mais por isso. Mas, na maioria das vezes isso não acontece e a mulher recebe menos que o homem, pelo simples fato de ser mulher. Um papel da mulher na sociedade, por exemplo, é quando uma menina ou mulher quer jogar futebol com outros meninos, mas dizem que ela não pode porque ela é menina. Ora, para jogar futebol basta saber ou estar disposta a aprender.

Machismo O machismo é como chamamos as atitudes e comentários nada legais que diminuem a figura feminina perante a masculina, como por exemplo quando um menino diz que “cozinhar” é coisa de mulher. Cozinhar é um ato do dia-a-dia, e qualquer pessoa pode ser capaz de fazer isso!

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PRECONCEITO Parecido com o machismo, o preconceito é quando tratamos alguém de forma agressiva e/ou ignorante pelo o que essa pessoa é e insistimos, a partir de um ponto de vista sem argumentos, que ela está errada ou apresenta-se de forma inadequada na sociedade. O preconceito não descrimina apenas questões de gênero, mas também questões raciais e sociais. Ele ganha força e assume proporções assombrosas através de comentários maldosos e piadinhas, feitos principalmente em ambientes como nossas casas e escolas.

Estereótipo É quando reproduzimos uma impressão generalizada sobre alguma coisa ou alguém, lhe dando um rótulo. O estereótipo pode surgir a partir de características voltadas à aparência, comportamento, sexualidade, etc.

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AGRADECIMENTOS Participar deste projeto foi um trabalho cansativo e imensamente

prazeroso. Ao longo deste processo, construímos uma rede de contatos que possibilitou de diversas maneiras a criação desta publicação para a disciplina de Projeto Experimental em Edição de Livros.

Primeiramente, nossos agradecimentos se direcionam à professora

Marília Barcellos por abraçar a ideia desde o início do semestre, quando

estávamos completamente confusos sobre quais rumos tomar, e também agradecemos por toda sua orientação durante o período de produção.

À monitora da disciplina, Jamile Coletto, agradecemos pelas dicas, ajuda

e conselhos passados.

Devemos um grande obrigado ao nosso ilustrador, Carlos, por ajudar

a dar vida aos nossos personagens através de seus delicados traços e desenhos. Sem a sua dedicação e comprometimento, este projeto jamais teria terminado como o planejado.


Nossa enorme gratidão ao colega Jean, que se mostrou disponível para

revisar o conteúdo do livro mesmo estando envolvido em seu trabalho. Com toda a certeza, suas sugestões de mudanças textuais tornarão a leitura de todos muito mais agradável.

Não podemos deixar de agradecer à Escola Municipal de Ensino

Fundamental Luizinho de Grandi por acolher tão bem a nossa ideia e

permitir que a encantadora história do Ariel pudesse ser contada para os

pequenos alunos do PRÉ-B. Às educadoras Juliana Moreira e Andréia Buss de Castro, muito obrigado pelo espaço concedido e pela oportunidade de

debate na escola.

E, por último, um obrigado triplo à Rayssa, Julia e Sabrina por ouvirem

sobre a ideia do projeto, opinarem e compartilharem conosco suas experiências durante a escola.



AUTORIA Eu, Antônio Buere (originalmente José Antônio, mas preferindo ser chamado apenas de Tony), sou acadêmico do curso de Comunicação Social – Produção Editorial da Universidade Federal de Santa Maria. Desde muito cedo, a paixão pela escrita esteve presente em minha vida, que aliada à criatividade já rendeu algumas boas ou não tão boas histórias de gaveta.

Kátia Leonor, apesar de parecer nome e sobrenome, é somente meu nome, tudo para homenagear minhas avós, mas você pode me chamar apenas de Kátia. Sou acadêmica do curso de Comunicação Social – Produção Editorial (UFSM) e apesar de muitos sonhos, o maior sempre foi deixar o mundo um pouco melhor para as pessoas que sempre foram diferentes, mas ainda assim especiais.

ILUSTRAÇÃO Meu nome é Carlos Gonçalves Soares. Sou um técnico em informática e desenhista amador nas horas vagas, isso devido a minha enorme paixão por computadores, videogames, celulares, jogos, HQs (histórias em quadrinhos), filmes e animações.


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA – UFSM CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS – CCSH DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO REITOR Prof. Paulo Afonso Burman

COORDENAÇÃO Profª. Drª. Marília de Araujo Barcellos

VICE-REITOR Prof. Paulo Bayard Dias Gonçalves

TÉCNICO-ADMINISTRATIVO Danielle Neugebauer Wille

DIRETOR CCSH Prof. Mauri Leodir Löbler

CORPO EDITORIAL Cláudia Bomfá Cristina Gomes Liliane Brignol Marília Barcellos Rosane Rosa Sandra Rúbia da Silva

CHEFE DE DEPARTAMENTO Sandra Rúbia da Silva PE.COM UFSM

Copyright

Filho, José Antônio Buere Alves, Kátia Leonor Quantas diferenças cabem na sua história? / escrito por José Antônio Buere Filho e Kátia Leonor Alves; ilustrado por Carlos Gomes Soares. – Santa Maria, RS: pE.com, 2017. ISBN 978-85-92618-8211-7 1. Literatura. 2. Literatura brasileira. 3. Literatura infantil. 4. Literatura infanto-juvenil. I. Título. 82-9

CDD: 821.134.3(81)

CONSELHO EDITORIAL Ana Cláudia Gruszynski – UFRGS Ana Elisa Ribeiro – CEFET MG Aníbal Bragança – UFF Eduardo Giordanino – UBA Marisa Midori Deaecto – ECA/USP Márcio Gonçalves – UERJ Paulo César Castro – UFRJ Plinio Martins Filho – USP Sandra Reimão – PPGCOM//USP Maria Teresa Bastos – ECO/UFRJ

©©

2017 Todos os direitos reservados

CAPA Kátia Leonor Alves ILUSTRAÇÃO Carlos G. Soares REVISÃO Jean Rossi DIAGRAMAÇÃO José Antônio Buere Filho e Kátia Leonor Alves

IMPRESSÃO Gráfica Copigrafi PAPEL DE MIOLO Couchê Brilho 170 g/m² PAPEL DE CAPA Cartão Supremo 230 g/m² TIPOGRAFIA News Cycle

Obra elaborada na disciplina COM 3063 PROJETO EXPERIMENTAL EM EDIÇÃO DE LIVROS, no quinto semestre do Curso de Comunicação Social - Produção editorial UFSM, 2017. Orientação: Profa. Dra. Marília de Araujo Barcellos.



REALIZAÇÃO:

APOIO:


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