Tie-Break Pt - Álvaro Enrigue

Page 1

O mais antigo registo escrito da palavra «ténis» não se refere aos sapatos criados para fazer exercício, mas sim ao desporto de que o termo deriva e que foi, juntamente com a esgrima –sua prima em primeiro grau –, o primeiro a requerer um calçado específico para ser jogado.

Em 1451, na Inglaterra, Edmund Lacey, bispo de Exeter, definiu o jogo com a mesma ira surda com que a minha mãe se referia aos meus ténis Converse All Star da juventude, sempre a ponto de se desmancharem: Ad ludum pile vulgariter nuncupatum Tenys. No edital de Lacey, a palavra «Tenys» – em vernáculo – está associada a frases com o cheiro ácido dos processos judiciais: Prophanis colloquiis et iuramentis, vanis et sepissime periuriis illicitis sepius rixas.

No seminário de Santa Maria de Exeter, um grupo de noviços tinha estado a utilizar a galeria coberta do claustro para disputar partidas contra os rapazes lá da cidade. O ténis de então era muito mais violento e ruidoso do que o nosso: uns atacavam, outros defendiam, não havia rede nem linhas, os pontos eram conseguidos a ferro e fogo, introduzindo a bola numa bolsa. Como era um desporto inventado por monges mediterrânicos, tinha conotações salvíficas: os anjos atacavam, os demónios defendiam. Era uma questão de morte e do que vem depois dela. A bola como alegoria do espírito que vai e vem entre o bem e o mal tentando infiltrar-se no céu; os mensageiros luciferinos a tentarem detê-la. A alma em farrapos, como os meus ténis.

9

O obstinado pintor barroco Michelangelo Merisi da Caravaggio, grande aficionado do jogo, viveu os seus últimos anos no exílio por ter deixado um adversário atravessado pela espada num court de ténis. A rua onde se deu o crime ainda hoje se chama «Via della Pallacorda» – rua da rede e da bola –em memória do incidente. Foi condenado à morte por decapitação em Roma e passou anos fugido entre Nápoles, Sicília e a ilha de Malta. Entre uma encomenda e outra, pintava quadros aterradores sobre decapitações em que ele próprio era o modelo das cabeças cortadas. Enviava-os ao papa ou aos seus representantes, como uma oferta simbólica que proporcionasse o seu indulto. Acabou por ser apunhalado por um sicário dos Cavaleiros de Malta, aos trinta e nove anos, na praia toscana de Porto Ercole. Embora fosse tão hábil com a espada e o punhal como com os pincéis e as raquetes, a sífilis alucinatória e o saturnismo impediram-no de se defender. Sepius rixas . Já havia sido indultado e dirigia-se, por fim, de volta a Roma.

Há uns anos visitei uma das trezentas mil feiras do livro que se organizam todas as semanas pelo mundo hispânico fora. Um crítico literário local achou-me tão intragável que não conseguiu resistir a lançar-me uma crítica mordaz. Como não tinha tido tempo nem a energia necessária para ler um livro meu e desfazer dele, publicou no seu blogue: «Como se atreve a apresentar-se diante de nós com os ténis nesse estado?» Vanis et sepissime periuriis illicitis!

É normal que aqueles que se sentem investidos de qualquer tipo de autoridade se queixem dos ténis, dos nossos ténis. Também eu costumo dar raspanetes como cheques sem cobertura sobre as sapatilhas Adidas do meu filho adolescente. Usamos os ténis ao ponto de um dia de chuva se transformar

10

num suplício. Os manda-chuvas odeiam-nos porque são impermeáveis aos seus desígnios.

Na cena inicial da comédia renascentista britânica Eastward Ho, um aprendiz chamado Quicksilver entra em cena envergando uma capa e calçando sapatilhas de salão – umas pantufas com sola grossa de lã que são o primeiro antepassado dos nossos ténis. O seu amo, preocupado com o que vê e que lhe parece ser um sinal de o jovem estar prestes a perder-se num mundo de farsantes, apostadores e assassinos, levanta-lhe a capa. Pôde então ver que trazia uma espada e uma raquete à cintura. Outra figura de autoridade que descobre os defeitos essenciais de alguém graças ao seu calçado desportivo: uma mãe, um crítico, um bispo, o chefe.

Quando a aparência do calçado de pele se esbate, levamo-lo ao sapateiro para este lhe devolver a novidade triste de uma cara intervencionada pelo cirurgião plástico. Já os ténis são peças únicas: não têm remédio, os seus méritos baseiam-se nas cicatrizes deixadas pelos nossos maus passos. O meu primeiro par de All Star teve uma morte súbita. Um dia voltei da escola e a minha mãe já o tinha deitado fora.

Não creio que seja mera coincidência que, no México, para nos referirmos à morte de alguém digamos que «pendurou os ténis», que «foi em frente com os ténis». Somos apenas nós próprios, estamos em processo de decomposição, todos lixados. Usamos ténis. Vagueamos entre o mal e o bem, entre a felicidade e as responsabilidades, entre os ciúmes e o sexo. A alma de um lado para o outro do court. Eis o serviço.

11

PRIMEIRO SET, PRIMEIRO JOGO

Sentiu o couro da bola entre o polegar, o indicador e o dedo médio da mão esquerda. Fê-la ressaltar contra o pavimento uma, duas, três vezes, girando a pega da raquete no pulso direito. Fez tempo para medir o espaço do court: o brilho do sol do meio-dia tornava-se insuportável por causa da ressaca. Respirou fundo: o jogo de raquetes que estava prestes a desenrolar-se era uma questão de vida ou morte.

Limpou as pérolas de suor da testa e voltou a rodopiar a bola entre os dedos da mão esquerda. Era uma bola estranha: muito usada e recosida, um pouco mais pequena do que o normal, indubitavelmente francesa pela sua solidez; saltava de uma maneira um tanto febril quando comparada com as bolas de ar espanholas com que estava acostumado a jogar. Olhou para o piso e, com a ponta do pé, raspou a linha de cal que marcava o fundo do seu campo. A sua perna curta tinha de posicionar-se um pouco atrás da linha: era o factor-surpresa que o tornava invencível com a espada e que não iria ser menos com as raquetes.

Escutou uma gargalhada do seu oponente, que esperava o serviço do outro lado da corda. Um dos proxenetas que o acompanhavam murmurara qualquer coisa em italiano. Pelo menos um deles era-lhe familiar: um homem de nariz proeminente, barba ruiva e olhos tristes – o modelo que tinha representado

13

o papel do santo cobrador de impostos em Vocação de São Mateus que a igreja de São Luís dos Franceses exibia como a sua mais recente aquisição. Lançou a bola ao ar gritando Tenez!, e sentiu a tripa de gato vibrar quando lhe deu com toda a sua alma.

O seu adversário seguiu a bola com o olhar enquanto ela voava rumo ao tecto da galeria, indo bater numa das suas esquinas. O espanhol sorriu: o seu primeiro serviço ia envenenado, era inalcançável. O lombardo pecara por excesso de confiança, convencido de que um coxo não podia ser rival para ele. O poeta comentou com aquela voz rápida e aguda com que os castelhanos perfuram paredes e consciências: Mais vale coxo que mariconço. Do outro lado do campo ninguém reagiu à sua piada. O duque, em contrapartida, olhou-o do seu lugar na galeria coberta com o sorriso discreto dos grandes boémios. Com o tempo, o juiz de campo do poeta chegaria a ser o grande de Espanha a que o seu título lhe dava direito, mas até ao Outono de 1599 não tinha feito mais do que destruir o seu corpo, vulnerar o nome da sua casa, mergulhar a sua mulher no desassossego e tirar do sério os privados do rei. Era um homem atarracado e arrojado. Tinha a cara redonda, o nariz pontiagudo a roçar o cómico, uns olhos de semente de toranja que lhe conferiam um olhar irónico até quando estava de bom humor, o cabelo curto e encaracolado e uma barba pouco credível que o fazia parecer mais tolo do que já era. Assistia à partida, com o ar desdenhoso e sarcástico que fazia sempre, sentado debaixo da arcada de madeira em cujo tecto a bola tinha de bater para que um serviço fosse considerado bom.

O lombardo posicionou-se no meio do campo atrás da linha de fundo. Colocou-se em posição de arranque, à espera do ressalto do tiro do espanhol. O bando de malandros que o acompanhava fez, desta vez, um silêncio respeitoso. O poeta

14

voltou a servir e tornou a ganhar o ponto. Tinha posto a bola quase do seu lado na cobertura, conseguindo que ela caísse praticamente morta no lado do seu adversário. O duque gritou o marcador: 30-Love, embora, na realidade, tenha dito «lof». Os italianos entenderam perfeitamente.

Mais seguro de si, o espanhol secou a palma da mão direita nos calções. Rodou a bola na esquerda. Suava o suficiente para a carregar de efeito sem necessidade de cuspir nela. Não era por causa do calor, mas da febre que lança num purgatório de calafrios quem bebeu demais e ainda não se recompôs. Movimentou o pescoço em círculos, fechou os olhos, limpou o nariz com a manga. Apertou a bola. Não se tratava de uma péla normal; era um pouco irregular, mais como um talismã. Pensou que, graças a isso, os seus serviços estavam imparáveis e que teria de se precaver do efeito que o seu dono, que a conhecia melhor, lhe poderia dar quando fosse a sua vez de servir.

Empunhou a raquete e lançou a péla ao ar. Tenez! Acertou-lhe com tanta força que até sentiu a rotação da Terra a registar uma fracção de segundo de atraso quando fixou a perna curta outra vez no solo. A bola ressaltou caprichosamente no tecto da galeria. O lombardo esticou bem o corpo. O espanhol tentou matar o revide curto, mas não foi capaz. O ponto prosseguiu: para sua grande sorte, a bola batera num dos postes e pôde apanhá-la no ressalto, cravando-a no fundo do campo. A solução tinha sido boa, mas a manobra fora demasiado longa e a surpresa era o único método de que dispunha para equilibrar a experiência do seu adversário no court. O milanês não teve problema em recuar, espetando uma drive que o poeta não foi capaz de devolver.

30-15, gritou o duque. O único tipo discreto entre os acompanhantes do lombardo era o seu juiz de campo – um silencioso

15

e entradote professor de matemática. Entrou em campo para traçar uma cruz de giz no sítio em que a bola tinha ressaltado. Antes de fazer a marca voltou-se e olhou para o padrinho do espanhol. O duque assentiu, com indiferença afectada na sua forma de encolher os ombros, que a linha estava bem naquele sítio.

O poeta tardou em voltar à sua posição. Aproveitando a lentidão com que o professor de matemática marcava o piso, dirigiu-se à galeria. Ele é fora de série, aventou o duque quando o poeta se aproximou; não conseguirias uma paralela como essa nem pintado. O poeta encheu as bochechas e soltou o ar com um sopro. Não posso perder, afirmou. Não podes perder, concordou o padrinho.

O seguinte ponto foi longo e suado. O espanhol defendeu-se junto à parede, devolvendo bolas como se estivesse a ser atacado por um exército. Avança, avança, repetia-lhe o duque aos gritos, mas a pujança do seu inimigo voltava a fazê-lo recuar cada vez que conseguia adiantar-se um pouco. Num momento-limite teve de defender uma drive virando costas ao adversário – uma jogada vistosa mas pouco prática. O lombardo apanhou a bola num voo curto e voltou a disparar contra a parede. A péla foi bater pertíssimo da bolsa – se tivesse entrado, o jogo teria sido automaticamente para o artista. 30 igual, gritou o duque. Parità, atestou o professor. O poeta fez um lançamento que atingiu a beira da galeria. Dentro e inalcançável. 45-30. Vantagem, gritou o nobre espanhol. O matemático confirmou serenamente.

O ponto seguinte foi disputado mais em inteligência do que em força: o poeta não se deixou encurralar e, finalmente, conseguiu forçar o artista a desproteger um canto. Na primeira bola curta eliminou-o. Jogo, gritou o duque. Caccia per Spagna, gritou o professor.

16

Regra

Raquetes. Jogo como o da péla. Um jogador defende e outro ofende, e depois vice-versa. Em caso de empate, decide-se com corridas quem defende e quem ofende no terceiro jogo, chamado tie-break. Aquando do serviço, é forçoso que a bola bata num estrado que há na beira do campo, onde cai e é devolvida. Chama-se também raquete à pá com que se joga este jogo. É feita de madeira de um lado ao outro e, no centro, possui uma rede rígida de viola. Agarra-se pela pega e lançam-se as bolas com o seu impulso, que é muito forte e violento. As raquetes jogam-se aos pontos, mas quem embolsa ganha um lance e quem ganhar três lances seguidos ou quatro não seguidos vence a partida.

Dicionário de Autoridades. Madrid, 1726

17

DECAPITAÇÃO I

Na manhã de 19 de Maio de 1536, Jean Rombaud viu-se a braços com o mais lixado dos serviços: cortar de uma assentada o pescoço de Ana Bolena, marquesa de Pembroke e rainha de Inglaterra; uma jovem tão bela que tinha transformado o Passo de Calais num Atlântico. O infame ministro Thomas Cromwell tinha-o mandado vir de França exclusivamente para isso. Pedira-lhe, numa breve missiva, que trouxesse a sua espada toledana – de forja milagrosamente fina – porque se iria tratar de uma execução delicada.

Rombaud não era nem querido nem indispensável. Belo e imoral, pairava com humor frio pelo estreito círculo de trabalhadores muito especializados que prosperavam nas cortes renascentistas, protegidos pela vista grossa dos embaixadores, dos ministros, dos secretários e dos camareiros da realeza. A sua reserva, formosura e falta de escrúpulos faziam dele a escolha natural para determinado tipo de operações que toda a gente conhecia mas ninguém comentava, operações obscuras sem as quais nunca foi possível fazer política. Arranjava-se com um gosto invulgar para alguém com o ofício de anjo assassino: usava anéis caros, calções entalhados com brocados excessivos, camisas de veludo azul-real que não correspondiam à sua condição de filho da puta, literalmente em todos os sentidos.

18

Possuía uma cabeleira castanha raiada de madeixas claras onde entrançava com estilo parolo as joiazinhas de pouca monta que extorquia às suas mulheres, submetidas com as distintas armas para as quais Deus lhe havia dado magistério. Ninguém sabia se era silencioso por ser inteligente ou imbecil: os seus olhos azul-escuros, um pouco descaídos para os lados, nunca expressavam compaixão, mas também nenhum tipo de animosidade. Para além disso, Rombaud era francês: para ele, matar uma rainha de Inglaterra, mais do que um crime ou uma façanha, era um dever. Cromwell mandou-o chamar a Londres porque lhe pareceu que esta última característica o tornava particularmente ideal para executar o trabalho.

Não foi o rei Henrique quem sentenciou que a morte da sua esposa seria votada à espada de Toledo e não ao golpe vil do machado que havia destroçado a espinha do seu irmão – acusado de se ter deitado com a rainha, um delito que lhe outorgava o recorde de três vezes condenado à morte: por lesa-majestade, por adultério e por devassidão. Isto devia-se apenas ao facto de ninguém poder tolerar, nem sequer o infame Thomas Cromwell, que semelhante pescoço fosse quebrado pelo gume impreciso de um machado.

Na manhã do dia 19 de Maio de 1536, Ana Bolena assistiu à missa e confessou-se. Antes de ter sido entregue ao condestável da Tower Green, onde o seu corpo seria dividido em duas partes, pediu que fossem as suas damas e mais ninguém a ter o privilégio de lhe cortar as fartas tranças ruivas e de lhe rapar o resto do cabelo. A maior parte dos retratos que sobreviveram a Bolena, incluindo a única cópia da única pintura que consta ter feito em vida – e que se conserva na colecção Tudor do castelo de Hever –, representam-na como sendo dona de uma cabeleira crespa e abundante.

19

Ao que parece, a alcova real afugentava a libido do rei Henrique, tão afoito nas lides extraconjugais como pouco cumpridor dos deveres de reprodução da sua dignidade real. Se havia alguém que sabia bem disso, era a marquesa de Pembroke, que só concebera dele num dia de campo e quando ainda estava casado com a anterior rainha. Tinham tido uma menina tão bela como ela própria, por quem o monarca demonstrava a ternura estrondosa dos homicidas. Ana Bolena avançou até ao cadafalso, então consciente da oportunidade estatística de a sua filha Elizabeth chegar ao trono, como realmente sucedeu. Entregou-se ao martírio ostentando uma alegria calculada. As suas últimas palavras, proferidas diante das testemunhas da sua morte, foram: «Peço a Deus que salve o rei e que lhe permita governar longo tempo sobre Inglaterra, porque nunca houve príncipe nem mais gentil nem mais piedoso.»

Que haverá na nudez, tão teoricamente igual a si própria em todos os casos, que nos deixa loucos? Em pelota, só os monstros deveriam alvoroçar-nos e, no entanto, o que nos transtorna é o que se assemelha a um padrão. As damas que acompanharam Bolena até ao suplício tinham-lhe retirado o colarinho do seu vestido antes de a escoltarem rumo ao cadafalso. Também a tinham despojado dos seus colares. Não sentiram que retirar-lhe o véu e o toucado atentasse minimamente contra a sua beleza: careca era tão formosa como com cabelo.

O brilho azulado do seu pescoço tremendo à espera do golpe produziu uma impressão emotiva em Rombaud. Segundo contou uma das testemunhas da execução, o mercenário teve a gentileza de se esforçar a surpreender a dama, que se oferecia desnudada das omoplatas até ao cocuruto. Já com o ferro bem alto e pronto para se insurgir contra o pescoço da rainha, perguntou disfarçadamente: Alguém viu a minha espada?

20

A mulher sacudiu os ombros, talvez aliviada por algum acaso que a pudesse salvar, e fechou os olhos. As suas vértebras, a cartilagem, os tecidos esponjosos da sua traqueia e faringe produziram, ao separar-se, o elegante estalo da rolha ao ser libertada de uma garrafa de vinho.

Jean Rombaud recusou a bolsa de moedas de prata que Thomas Cromwell lhe estendeu quando terminou o serviço. Dirigindo-se a toda a assistência, mas fitando os olhos do homem que havia conspirado até destronar a rainha, assegurou que aceitara fazer o que tinha feito para poupar a uma dama a repugnância de morrer às armas de um carrasco. Fez uma reverência oblíqua em direcção aos ministros e pastores que presenciaram a decapitação e regressou dali mesmo, a todo o galope, a Dover. O condestável empacotara logo nos alforges do seu cavalo as tranças robustas da rainha de Inglaterra.

Era um amante do ténis e esse pagamento parecia-lhe suficiente: o cabelo dos justiçados no cadafalso tinha propriedades excepcionais que o cotavam, entre os fabricantes de bolas de Paris, a preços estratosféricos. Principalmente sendo de mulher, ainda mais sendo ruivo, inimaginavelmente sendo de uma rainha em funções.

As tranças de Ana Bolena preencheram um total de quatro bolas que foram, durante muito tempo, os apetrechos desportivos mais luxuosos do Renascimento.

21

Sobre a nobreza do jogo das raquetes

Primeiro é de ver como o jogo das raquetes foi ordenado para um excelente e racional fim, que é como deve ser toda a arte digna e valiosa, a imitação da natureza, a qual não faz nada sem grande magistério. Note-se, por exemplo, como os antigos e sábios inventores deste jogo, considerando que inflama e arrebata até os jovens mais pálidos e frágeis, o constituíram de tal guisa que não admite o dano do adversário. Como se explicará mais adiante, a bola nunca é batida enquanto vai no ar, mas somente quando ressalta no solo, impossibilitando a comoção de quem a recebe. Do mesmo modo, o jogador que replica espera o ressalto em terra para que o ponto que pretende obter seja válido. É obrigado, se quiser obter vantagem, a conceder ao outro jogador, com decência forçosa, tempo para se recompor.

ANTONIO SCAINO, Tratado do jogo das raquetes, 1555

22

PRIMEIRO SET, SEGUNDO JOGO

Antes de começar o segundo lance, o espanhol aproximou-se do seu juiz de campo. É um jogador de força e já conhece o court, disse o nobre; ganhaste o primeiro ponto porque ele não dava nada por ti. Sou mais novo, respondeu o poeta, posso medir forças com ele. Mas tens uma perna mais curta. É o factor-surpresa. E o dobro do esforço. Avanço? Vai dar cabo de ti com essas paralelas que ele faz. E eu corto as jogadas. Isso seria deixar tudo à mercê da sorte; talvez seja melhor cansá-lo, nota-se que não aguenta; disputa cada ponto: vai atrás, vai à frente, joga para os cantos. O poeta expirou, enxugou o suor da testa, pôs os braços na cinta olhando para o chão, como se esperasse uma opinião mais clara. Se ele não estivesse ressacado, a perspectiva de um jogo como aquele certamente lhe pareceria menos insuperável. Vai fechar muito o jogo, afirmou. A outra hipótese é desistires, lembrou o nobre, se bem que a ideia do duelo tenha sido tua. O poeta fixou os olhos no chão: Também podemos puxar das espadas, acaba rapidinho. O duque negou com a cabeça: Outro escândalo não, e com o ferro ele é uma fera. O poeta retorquiu: Até agora nunca perdi. Por isso mesmo. Está bem, vou esticar ao máximo cada ponto. Antes de regressar ao campo comentou: Já reparaste que não se falam? Quem? Ele e o padrinho. O duque não deu importância:

23

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.