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“O outro lado do reflexo”

Critica

Ilustrações de Isabel Valente

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Vêm estas palavras a propósito da obra “O Outro Lado do Reflexo” de Adelina Barradas de Oliveira, que em boa hora descobri através de um velho amigo.

No Prefácio, José Luís Outono aborda a questão do ato de escrever “em duplicado”, por um lado, os despachos irrepreensíveis que a autora no seu viver quotidiano tem de arquitetar; por outro, os rostos, as vozes, os olhares, as vivências que através da redação desses despachos podem e são plasmados nestas doze narrativas autobiográficas, que constituem o corpo do livro.

Após o Prefácio, a autora, através de cinco frases iniciadas pela conjunção subordinativa adverbial condicional “se”, remete-nos para a filosofia do seu mundo perfeito:

•a não violência;

•a não punição;

•o direito a viajar e a escrever todos os dias e todas as noites; e tantos outros anseios que se podem adivinhar através do uso das reticências na última frase. Podemos deste modo inferir que a partir daqui estamos na presença de uma entidade que nos vai surpreender desmistificando o seu ofício de juiz com as suas histórias contadas na primeira pessoa num estilo engenhoso.

Mas antes de iniciarmos a sua leitura concentremonos nos textos que abrem e encerram esta obra:

“-Escreve para mim” e “Eu escrevo”, mais uma vez e tendo em atenção as palavras de Maria Alzira

Seixo e as afirmações do prefaciador, a narradora que tem dedicado toda a sua vida a uma escrita objetiva, técnica, cheia de conceitos, de factos e de conclusões, sente que a sua privacidade e o seu desnudamento podem estar postos em causa uma vez que, escrever sem tema prévio é mais difícil e pode não ter interesse: “Sem tema, perdemo-nos em mil e uma ideias e nenhuma parece ter interesse.” (pág. 19).

No entanto, e após variadas reflexões, acaba por aceder a este “pedido de um tu”: “- Escreve para mim”, ainda que preocupada com aquilo que os leitores possam vir a dizer. E eis que, aos nossos olhos surgem doze contos que remetem para o tema, entretanto pensado na sua área profissional: o ato de julgar, inferindo-se que estamos na presença de um conjunto de textos autobiográficos. Mas centremo-nos no último texto, “Eu escrevo”. Poderemos afirmar que estamos perante uma resposta ao “pedido” como lhe chamámos atrás?

Novamente o ambiente que rodeia o “eu e o tu” é o mar, que parece ser o inspirador da escrita da narradora: “O tom azul avermelhado do final da tarde passava já os dedos no meu cabelo. A brisa marítima trazia o aroma do dia que adormecia lentamente em redor.” (pág. 161),

“Em Portugal, uma praia minha, às 21h30m de um dia de Verão, na minha cidade, o mais belo pôr do sol da Europa. Um dia de Verão em que traçara em pensamento, o esboço de algo que poderia escrever, escrever-lhe.” (pág. 161).

Após afirmar que a Justiça tem de acompanhar o tempo e os Homens, a narradora refere-se à Constituição Portuguesa; à recomendação 924 datada de 1981 e adotada pela Assembleia Parlamentar

Maria Alice Alves Ribeiro Vale

do Conselho da Europa que condena toda a discriminação legal e social contra a população homossexual; à necessidade urgente das mentes mais abertas às mudanças nas mais diversas áreas temáticas da Justiça, desafiando assim as escolas, os políticos e os “Média”:

“… urge abrir-se ainda mais ao outro e também a estas diferenças do outro. Urge abanar os conceitos, agitar a experiência, espevitar a intuição, dar largas à sensibilidade e lembrar que o que parece politicamente correto e sensato nem sempre o é. “(pág. 159).

A terminar, a narradora embalada pelo anoitecer na sua cidade e junto ao mar afirma convictamente que a sua escrita irá eternizar os rostos, as vozes e os olhares de todos aqueles que se cruzaram com ela na sala de audiências, no seu ofício de juiz: “E lembrei-me de tantos rostos, tantas vozes, tantos olhares, tantas vivências dentro de uma sala de audiências.” (pág. 164).

E, de facto, em todos os textos que constituem o corpo desta obra está espelhada a sensibilidade da pessoa que escreve e o cuidado que tem em desmontar o ato de questionar. Percebese que aquela juiz de beca preta tem alma, tem sentimentos, sabe muito bem que há assuntos escabrosos, difíceis de abordar em público e por isso os diálogos são entrecortados com alguma calma, mas também com assertividade. E o leitor tem a possibilidade não só de se familiarizar com todo o léxico específico do Direito e da Justiça, mas também de ficar a conhecer casos que se julgam nos tribunais.

Assim, desde o menino a quem um homem asqueroso roubou a idade da sua inocência, “…o julgamento do despudor do nosso pudor.” (pág.23); à Ana que vivia numa quinta de um senhor rico e a quem o padrasto violentou sexualmente; a Abdul, engenheiro no Cairo que tinha vindo para Portugal na sequência de pertencer a uma guerrilha que combatia o governo do seu país; à enfermeira/parteira bielorussa a trabalhar numa lavandaria em Portugal e apavorada caso fosse apanhada pelas máfias do Leste; ao rapaz magro e macilento acusado por uma prostituta de a ter obrigado a ter sexo com ele chamando- lhe nomes pouco agradáveis e apontando-lhe uma pistola; à ladra de desodorizantes, batons…, e a tantas outras personagens que povoam a sociedade. Pelos nossos olhos, desfilam situações de pedofilia, prostituição, exílio político, homicídio, toxicodependência, infanticídio, roubos…

Em todas estas narrativas o discurso é fluente, cativador, repleto de metáforas, sinestesias, adjetivaçãoexpressiva, diminutivos, comparações, imagens, enumerações, intertextualidade com autores, assuntos e personagens a fim de dar força à argumentação usada.

Concluindo, diremos que estamos perante um conjunto de contos com personagens tipo que calcorreiam os lugares onde nos movimentamos e que tantas vezes nem queremos ver. Por outro lado, através destes textos o leitor não pode ficar indiferente ao conteúdo dos mesmos, quer pela natureza dos delitos, quer pela forma como a juiz conduz os interrogatórios que irão desembocar numa sentença.

Acresce dizer que a autora, ao vestir a beca preta, veste também a sua alma. De facto, a Justiça deve ser cega, mas não insensível:

“Escreveria para quem não percebesse nada dos reflexos da Justiça. Se me iria expor, pouco me importava, afinal, eu tinha tanto direito como qualquer mortal a escrever sobre o que me desse na gana!!! Independentemente da censura e apesar dela. “(pág. 163).

Não estamos perante um soneto que tradicionalmente deve fechar com chave de ouro, mas sim na presença de uma obra que encerra em tons de dourado com um poema de Sophia de Mello Breyner em que o mar, a areia, as algas, os corais, a maré cheia… embalam as duas personagens.

Também a autora necessitou da proximidade do mar e de tudo o que a rodeia no seu quotidiano para se inspirar e ganhar força, qual Anteu, para aceitar o desafio de uma outra vertente da escrita: o conto literário.

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