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DA ILUSÃO DA ROTINA

Foi Krishnamurti quem me pôs a pensar nisto, em boa verdade. Quando nos habituamos a uma coisa (e diz a vox populi que nos habituamos a tudo) deixamos de a ver. Damo-la por garantida, assim como a mobília da casa.

A rotina enquanto sinónimo de hábito, acto ou circunstância repetida e repetitiva é uma invenção dos que não têm imaginação. Ou talvez seja algo ainda pior: uma invenção desta sociedade em que vivemos, industrial, massiva e orientada para a produção.

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Agora que penso nisto concedo que é o golpe perfeito. Nada há, pelo que nada podemos ver. Mas é ao contrário. Quando os sentidos se aguçam é impossível negar a mudança que diariamente invade no mundo. A chávena de café tem cambiantes, ainda que o tiremos todos os dias da mesma máquina e à mesma hora. O céu sob o qual vivemos idem. Não há dois nasceres do sol iguais. Hoje, enquanto conduzo o meu automóvel pelas ruas da cidade a caminho do trabalho ao som de Mozart (o anti-rotineiro por excelência) ocorreme que as nuvens que vejo são diferentes das de sexta-feira. Não me lembro se na quintafeira havia nuvens no céu. Ou melhor, não me recordo se as vi, elas lá estariam certamente. Mais perto ou mais longe. Este é o ponto: nada é o mesmo que foi ontem. Amanhã será diferente de hoje, ainda que demos os mesmos passos, caminhemos pela rua de sempre e almocemos restaurante habitual.

Ainda que repitamos o prato. A conversa com o colega será diferente da de ontem. E ainda que não falemos com mais ninguém senão connosco haverá argumentos e razões diversas. Alteração de tema mesmo.

Por isso, não precisamos “quebrar a rotina”, como se diz na publicidade. É apenas uma forma de nos fazer gastar dinheiro. Podemos gastá-lo, claro. É nosso. Fazemos o que queremos, desde que estejam pagos os impostos.

A custo zero. O chilreio dos pássaros às primeiras horas, sobrepondo-se ao silêncio da cidade ou indo ao nosso encontro para lá das buzinadelas, sirenes e conversas que invadem a cidade. As muitas formas das folhas da árvore que ladeia o passeio à porta de casa. O cachecol do vizinho que não trazia ontem (ou se calhar trazia, nós é que não reparámos).

É quando percebemos que tudo é sempre novo em todos os momentos. O irrepetível do que é banal é o mais difícil de apreciar. Como descrever a normalidade. Imaginemo-nos a descrever o tal vizinho num posto de polícia num qualquer terrível caso que quebrou a rotina (?) do prédio. “E como era ele?”, pergunta o agente. Respondemos: “Normal”. O que queremos dizer é que passámos por ele sem que nada nos despertasse a atenção. Não era muito alto, nem muito baixo. Não o achámos muito belo não podendo, ainda assim, dizer que era feio. Não falava demasiado alto e não sussurrava. Fechava a porta com suavidade e dizia “com licença”. Normal. Todos sabemos o que essa palavra que nada quer dizer significa. É o mesmo para o acumular de dias aparentemente iguais e por isso vistos como banais. Ilusão, ilusão. Nada foi banal. Este dia que termina sem te deixar marcas na memória, esse dia que esqueces arrogante, foi único e irrepetível. Teve nascer do sol, pequeno-almoço demorado, conversas sem reservas e preocupações, um espectáculo de que gostaste (mas não tão bom que te fique cravado na memória), o jantar que escolheste, o gesto de carinho (para parafrasear Sena) que fizeste ou querias fazer, a botija quente para te aquecer os pés. Foi único, como o foi anteontem e será amanhã. E isso é o que torna a vida tão bonita e difícil. O que foi não volta a ser. O inverso é ilusão.

Maria Alice

Alves Ribeiro Vale

Nascida a 04/08/1954 em Orca, Fundão - Professora

Em virtude da escassez de professores lecionou Português, frequentando a Faculdade e a Alliance Française, tendo concluído o curso com sucesso. Continuando sempre a lecionar, em 1985 entrou no quadro de professores efetivos do 8º Grupo A (Português, Latim e Grego) na Escola Secundária Afonso de Albuquerque- Guarda, onde lecionou Português, Literatura Portuguesa, Área de Projeto e Formação Cívica até 1 de novembro de 2020, data da aposentação.

Ao longo destes anos de lecionação desempenhou os seguintes cargos:

Diretora de Turma

Vice-Presidente do Conselho Diretivo

Coordenadora do Projeto “Viva a Escola”

Membro do Conselho Pedagógico

Coordenadora do Departamento de Português e Línguas Clássicas

Representante da Educação no NLI (Núcleo Local de Inserção)

Professora Interlocutora em matéria de absentismo e abandono escolares

Membro do Secretariado de Exames; Instrutora de processos disciplinares

Coordenadora do GIPAE (Gabinete de Indisciplina e Prevenção do abandono escolar)

Maria Alzira Seixo escreveu in Discursos do Texto o seguinte:

“Escritor é aquele que escreve. Mas que será escrever? Cobrir papel com tinta? Isso será outra coisa; desenhar, por exemplo; ou fazer contas; ou escurecer a folha branca, de tal modo que fique negra. Então, para definir o que é escrever, e procurando a fórmula mais apropriada, eu direi: é aquilo que o escritor faz. Mas tudo o que o escritor faz é escrita? O escritor come, o escritor bebe, o escritor dorme; ama e odeia; trabalha e repousa, olha e cheira; toca; faz. Mas nem sempre cumpre tudo isso: por vezes, só come, dorme, repousa, cheira, toca; noutros casos, fundamentalmente trabalha, olha e faz.

Isto talvez queira dizer alguma coisa. Mas não quer ainda dizer aquilo que procuro, que é uma definição de escrita ou de escritor. E descubro que só entendo uma coisa pela outra e que a palava é o coração da acção.

Esta descoberta me satisfaz, por agora, e dela sei o nome: autonímia. Descobri então uma palavra, uma acção- e descobri a(s) escrevendo. (Então serei escritora?) (…)”

(…) Escrever é descobrir, então. Revelar, também…

(…) Escritor é aquele que escreve? Não: escritor é aquele que faz com palavras. E a palavra é de ordem, é uma ordem, é um dos caminhos da construção.”

Maria Alzira Seixo, Diário de Notícias, 8 de maio de 1975, in Discursos do Texto

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