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Férias, por fim Paula Sá Couto

15 dias seguidos a escrever um acórdão, lido no último dia (com direito a ser picada por um bicho qualquer e andar febril). Enquanto escreves, o teu cão adoece e só tens tempo para lhe dar a atenção que ele mais que merece, depois de leres na sextafeira, o estupor do acórdão. Sábado, entras em turno.

O teu cão é internado. Terminas o turno com um interrogatório, em que te deparas com uma foto que tiraria o apetite a um hércules.

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Dói-te o corpo, mas essencialmente, dóite o coração. Tentas recordar as razões pelas quais escolheste o que fazes, mas já não as consegues convocar. Sabes apenas que te apaixonaste, mas já não sentes a emoção,

É como a história de amor que sabemos que alterou a nossa vida, mas de cujo rosto já não te consegues lembrar. Depois, vais ver a agenda, e percebes que, com pandemia incluída, intervieste em mais de 200 sessões de julgamento. Os milhares de pessoas ouvidas, que acrescem às centena de milhar (sem exagero), de uma vida inteira de “tarimba’. Hoje inicias o gozo de 22 dias úteis de férias.

SABES QUE PRECISAVAS DE UM ANO PARA DESCANSAR E DESLIGAR DE TODA A FEALDADE HUMANA A QUE ASSISTES, NO DIÁRIO.

Mas continuas. Sem saber porquê. Não estás a salvar vidas. Nada existe que directamente te estimule, a não ser uma ideia romântico-abstracta a que chamas justiça. E ainda tens que aturar as atoardas de quem te indigita como privilegiada. Sim, hoje estou amarga. Talvez, amanhã seja um novo dia, mas já nem as Scarlatt O’Hara abanam a minha desmoralizada lucidez. No próximo ano, já poderei reformar-me antecipadamente. Tal “escapatória”, nunca a tinha configurado, como hipótese real. Se mo dissessem (há quase 30 anos atrás), sorriria. Mas se me dissessem então, que o Estado iria alterar unilateralmente o contrato administrativo que com ele celebrei, e iria cilindar parte significativa das premissas pelas quais me tornei dele servidora (mas não, nunca, dele subserviente), rir-meia, também. Nunca em tal creria (sim, sou ingénua).

HOJE, JÁ NÃO SEI.

O CANSAÇO TOLDA-ME O ESPÍRITO.

ALTERA-ME A RESISTÊNCIA.

HOJE, JÁ NÃO SEI.

Depois de reconhecer a derrota do sonho, logo verei.

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