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Flores na Abíssinia Carla Coelho

FLORES NA ABISSÍNIA

Carla Coelho

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O FIM

do Choco Taco

Há guerras um pouco por todo o mundo e também na Ucrânia. Há o aquecimento global e os incêndios. Há o anunciado e já sentido aumento global do custo de vida. E também aquele estranho anúncio em inglês sobre as vantagens de viver na Rússia no Inverno que termina, coincidência ou não, com a frase winter is coming, sobejamente conhecida de todos os que acompanharam A Guerra dos Tronos. Todavia, o assunto que mais me chamou à atenção nos últimos dias na imprensa norte-americana que acompanho foi o anunciado fim do Choco Taco.

O QUE É O CHOCO TACO?

Pois, leitores e leitoras, é um gelado de baunilha que recheia. uma bolacha em forma de taco (mexicano, não de basebol) debruado a chocolate. De acordo com o que li, fez parte durante décadas do conteúdo obrigatório das carrinhas de gelados que conhecemos dos filmes. E, a julgar pelo que leio nas redes sociais, reacções de incredulidade, desespero e descrença, foram muitos os meninos e meninas norte-americanos que sonharam e cresceram ao sabor do indicado gelado.

É verdade que muitos dos que escrevem sobre a descontinuação (nome chique, mas nem por isso menos doloroso do que o singelo “fim”) do Choco Taco admitem que há décadas não comem um. Deixaram de comer gelados ou substituíram a baunilha, bolacha e chocolate por outras combinações. Escrevem que isso é irrelevante. Percebo que para o produtor do gelado as coisas não possam ser pensadas assim (há quem diga que tudo isto é um golpe publicitário para aumentar as vendas, aliás). Mas como não estou nesse ramo de negócio tendo a concordar com o público lacrimoso. Também não como um Epá ou um Perna de Pau há décadas (ia dizer séculos, mas não sou assim tão antiga). No entanto, sempre que passo ao lado de um placard anunciando gelados fico feliz por os ver lá. Por isso, compreendo o público norte-

americano. Não tenho planos imediatos para comer um daqueles gelados, mas sabe-me bem saber que se quiser posso fazê-lo hoje mesmo. É uma parte da minha infância a que posso voltar sempre e a que, em bom rigor, regresso sempre que os vejo as fotografias.

Por isso, percebo que o Choco Taco é para os norte-americanos da minha idade o passaporte para regressarem ao passado. Saber que ele existe, permitelhes recordar tardes sem preocupações em que, entre brincadeiras, estavam atentos à passagem da carrinha de gelados. E a sua tarefa era convencer o pai ou a mãe de que se tinham portado tão bem que mereciam aquela recompensa. Naquele momento, não havia outros problemas, tristezas ou contrariedades. Também não havia diabetes, triglicéridos ou calorias. Toda a alegria do mundo se concentrava no comer do gelado. Coisa preciosa essa, a recordação de comermos um gelado em miúdos, sem pensar nos problemas do quotidiano ou no que vamos ter de cortar ao jantar para compensar aquele devaneio gastronómico.

Susan Cain no seu livro Agridoce (Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2022) escreve sobre a importância de incorporarmos as emoções ditas negativas (pesar, nostalgia, saudade) nas nossas vidas, o que não só é irremediável (nenhuma existência humana lhes passa ao lado), como contribui para as tornar mais ricas. Essa riqueza tem, contudo, um preço duro de pagar. Os que amamos morrem, os sentimentos mudam, a vida altera-se. Há coisas, porém, que nos transportam do tempo presente para dias felizes do passado. A comida, cuja dimensão afectiva é conhecida, é seguramente, uma delas.

POR MIM, SEI QUE NO MOMENTO EM QUE COMO O MEU GELADO FAVORITO EM CRIANÇA, VOLTO À PRAIA DA MINHA INFÂNCIA.

Estou à beira-mar, com o chapéu na cabeça, e o balde nas mãos, entretida a fazer uma construção na areia. Mas, de repente, ouço o refrão conhecido “é fruta ou chocolate”. Vejo os meus pais nas toalhas de praia, a mão da minha mãe à procura da carteira no seu saco de praia e o meu pai a fazer sinal ao homem dos gelados. Largo o balde e subo a areia a correr. Agora, como nesses dias longínquos em que o comia sentada entre os meus pais (fora de questão voltar para os trabalhos à beira mar com o gelado entre as mãos), sei que está tudo bem. Ainda que apenas durante os minutos em que estou a comer o gelado volto ao sentimento de segurança dos meus dias de criança à certeza de que há sempre uma luz que afasta o escuro e que para cada problema encontraremos solução.

Por isso, meus caros norte-americanos e norte-americanas, percebo muito bem a indignação, tristeza e inconformismo com a anunciado fim do tal Choco Taco, ainda que até há dias, nem soubesse da sua existência. O meu desconhecimento do facto é irrelevante. As vossas lembranças são o essencial e precioso.

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