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Liberalismo versus conservadorismo Pedro Àlvares de Carvalho

Pedro Álvares de Carvalho

LIBERALISMO VERSUS CONSERVADORISMO.

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A convergência entre dois polos e maior operacionalidade dos mesmo, em relação ao tradicional binómio “esquerda”/”direita”, na análise da Ordem Internacional Liberal

Um texto em forma de exercício da Ignorância, assim mesmo, com letra maiúscula, enquanto conceito fundador de um pensar baseado no que vai surgindo ao correr da pena com base em reduzida informação e resultado de muito desconhecimento. Uma soberba, portanto, só permitida aos ignorantes.

Eis-nos chegados a um ponto da nossa história político-partidária em que o conceito de “liberal” ou “liberalismo” deixou, se assim o quisermos afirmar, de se estranhar começando a entranhar-se (perdoe-me, Fernando Pessoa, a apropriação). E, por outra banda ou, até por isso, em contrapartida, se usa o termo “conservador”. Por via de regra em oposição, um e outro.

No entanto, ainda assim, o que se vai entranhando e usando, por via da opinião publicada, padece de vieses ideológicos e falta de rigor.

Como é bom de ver – e acima ficou claro – não me arvoro em especialista na matéria. Bem pelo contrário, primo pela ignorância. Com duas vantagens – o desassombro (até, se assim se quiser, a falta de vergonha e/ ou estupidez natural) e a curiosidade.

Dentro desse espírito, então, diria que o liberalismo foi, no seu início, uma resposta e não uma pergunta, ou seja, não é, nunca foi, uma construção idealista, sendo que, pareceme, a influência do idealismo alemão na parte continental da Europa levou (com a excepção de Benjamin Constant que, não por acaso, fez parte da formação superior em Edimburgo – Escócia – e viveu no Reino Unido) à existência de uma partição ou bifurcação entre o liberalismo de matriz anglo-saxónica e o de matriz continental europeia ou, dito de outra forma, entre um liberalismo/racionalismo evolucionista (o primeiro) e liberalismo/racionalismo construtivista (o segundo).

O primeiro arreigado num húmus tradicional, numa concretude a que faz referência Isaiah Berlin ao longo da sua obra infelizmente muito dispersa (aparentemente gostava pouco de escrever, mas aqui podem encontrar-se muitas referências bibliográficas de outros e obras do mesmo - AQUI, e que encontramos, na verdade, nos conservadores britânicos e, depois, norteamericanos. Nesse sentido poder-se-á dizer que o liberalismo anglo-saxónico acaba por ser um conservadorismo não reacionário liberal que não dispensa a relação biunívoca entre ser e dever-ser, entre o real e o ideal, partindo do primeiro para o segundo e inversamente, num constante diálogo evolutivo. Acima de tudo, essa concepção assenta sempre na necessidade da protecção do indivíduo e da sociedade civil, com base em princípios bem alicerçados na tessitura social, contra qualquer poder que seja, ou deseje ser, autoritário.

O segundo – o Liberalismo de raiz Europeia Continental – é idealista, ao ponto da fantasia, sendo manifesta a perversão que provocou, por exemplo, no evoluir da Revolução Francesa e do Iluminismo de raiz continental europeia. Esta via, caracterizada por um racionalismo construtivista, deu azo, a partir das concepções absolutistas de “povo” e “democracia popular” (deixadas por Rousseau), ao facilitamento, quer em séculos passados, quer actualmente, de uma mera e instrumental defesa do “povo” (sendo que a ideia do que seja o “povo” é apropriada e conformada ou densificada por quem a utiliza e conforme os respectivos objectivos políticos mais imediatos) contra as elites, facilitando a instauração de sistemas políticos autoritários, caracterizados pelo ataque a instituições ou arranjos e equilíbrios institucionais que são, não

Liberalismo versus conservadorismo

Pedro Álvares de Carvalho

por acaso, tipicamente liberais em termos anglosaxónicos, como por exemplo a separação de poderes, e alavancando a diabolização dos meios de comunicação social que não transmitem a “verdade” do poder já instalado (autoritário) ou em processo de instalação.

A ideia chave deste segundo “liberalismo” é a de racionalismo construtivista. É-o enquanto característica particularmente distintiva do “liberalismo” anglo-saxónico e é-o também enquanto ponto de partida para uma realidade ideológica que, por via da adopção académica de constructos pós-modernos de geração sobretudo europeia continental, se foi disseminando na Academia, quer na Europa Continental, quer nos países anglo-saxónicos.

No contexto deste enquadramento ideológico o Homem (ou, como se imporia afirmar – sob pena de cancelamento – dentro deste preciso contexto, a Pessoa) deixa de ser corpo e mente arreigado, alimentado, por um determinado ambiente histórico-concreto para passar a ser tábula rasa imaginária sobre a qual se impõe a escrita (que será, pela ilusão que lhe vai associada, uma imposta reescrita) de uma série de exigência ditas morais.

Este racionalismo ou conceptualismo abstracto/ construtivista teve reflexos, inclusive, no âmbito do Direito. Na europa, ainda na primeira metade do século XX, surge-nos, por exemplo, a Teoria Pura do Direito – de Hans Kelsen – que almeja a criação de um sistema jurídico “total”, cogente, partindo, como ponto essencial, da extirpação de qualquer referência ética no Direito. O que interessava é que, no seu todo, o sistema jurídico fizesse globalmente sentido e se impusesse como uma construção necessária e racionalmente evidente. No entanto, e apesar de tudo, Kelsen é um defensor da Constituição cuja função política é estabelecer limites jurídicos ao exercício do poder. Por essa razão é tão importante, nos dias de hoje a questão do Constitucionalismo e do fenómeno do “constitutionalism decay”. Simultaneamente, surge Carl Schmitt que elabora uma Teoria do Direito e do Estado que, não sendo neokantiana, é totalmente amoral, no sentido em que, defende uma teoria normativa, na qual o fundamento de validade do direito não está na norma, mas na decisão, no monopólio decisório que repousa, por sua vez, no soberano, assim adoptando, mas pervertendo à sua essência, a teoria do poder neutro do monarca, de Benjamin Constant. Isto é, se o soberano (no caso de Schmitt, o Führer) o afirma, e com base nessa afirmação se vão produzindo normas de acordo com essa raiz, então as mesmas são juridicamente válidas e cogentes.

Repare-se que, embora Kelsen e Schmitt não estivessem de acordo (apenas em virtude da limitação “constitucional” que Kelsen entendia como necessária para limitação do poder) ambos constroem modelos de Teoria da Justiça e do Estado que prescindem da componente éticovalorativa social.

Este esvaziamento, esta procura da pureza dos princípios como fundamento de toda uma construção social, no caso Kelsen, ou a procura da construção de todo um sistema social baseado numa única fonte de autoridade posicionada acima da sociedade e prescindindo dos inputs éticos da mesma, no caso de Schmitt, cria uma cisão entre Justiça e Ética, entre Direito e organização do Estado e a Sociedade.

Avançando umas décadas, surgem-nos Teorias da Justiça que, mesmo no mundo anglo-saxónico,

partem, para se poderem manter cogentes, de puras abstracções, como é o caso da ficção do indivíduo original em Rawls. Aparentemente, numa perfunctória abordagem, classificaram-se tais teorias como de liberais ainda que, no caso de Rawls, claramente tributárias de um liberalismo-social que, ainda assim, é um subtipo de Liberalismo.

Foi neste caldo académico e intelectual que surgiram construções como a de Habermas, que, no seguimento de uma concepção idealista da sociedade, fala, por exemplo, de uma soberania constitucional. Habermas sublima as possibilidades da razão, da emancipação e da comunicação racional-crítica, que sustenta como estando latentes nas instituições modernas e na capacidade humana de deliberar e agir em função de interesses racionais. Sendo claramente neokantiano, Habermas vai mais além, defendendo a relativização da soberania nacional e a criação de uma república plurinacional, com ordens normativas públicas, desenvolvidas num plano supranacional, vinculando directamente quer os cidadãos, quer os EstadosNação. Obviamente, não sendo estulto, ressalva que, para o efeito, seria necessário que, quer os EstadosNação quer as respectivas populações passassem por determinados “processos de aprendizagem”.

Parece-me estar, no percurso que ensaiei fazer, o berço do nascimento da Ordem Liberal Internacional (doravante, O.L.I.), em termos conceituais.

Mas, não sejamos ingénuos.

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