Newsletter Setembro 2018

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Conselho Editorial Anabela Lemos, Daniel Ribeiro, Janice Lemos, Ruben Manna, Samuel Mondlane e Vanessa Cabanelas Boletim informativo com a autorização Nr. 17/GABINFO-DEC/2007


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Mau Humor

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Comunidades do Monte Mabu beneficiam de formação sobre Sistemas Agroflorestais

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“A terra dá-nos de volta o que lhe transmitimos!” – Estas foram as palavras de ordem daquele que foi o primeiro curso agroflorestal realizado para membros das comunidades dos postos administrativos de Tacuane e Muabanama, que habitam em volta do Monte Mabu no distrito de Lugela, província da Zambézia. O Monte Mabu é um maciço granítico montanhoso que chega a atingir os 1.700 metros de altitude e é, em grande parte, coberto por uma excepcional e pouco perturbada floresta húmida de altitude, com elevada biodiversidade. A floresta de Mabu cobre cerca de 7.880 hectares, e destes cerca de 5.270 hectares encontram-se em altitude média (1.000 – 1.400m). Sendo, portanto, uma das mais extensas florestas deste tipo na África Austral. A protecção efectiva deste rico ecossistema é essencial para garantir a continuidade da diversidade de espécies lá existente, para que se possam levar a cabo ainda mais estudos e para que sejam analisadas e discutidas opções de maneio de forma a beneficiar as comunidades que dependem directamente dos bens e serviços deste rico ecossistema florestal. É nesta lógica que a Justiça Ambiental (JA) vem promovendo acções que visam incentivar as comunidades locais em volta do Monte Mabu a optar por práticas sustentáveis, seja produção agrícola ou ainda o uso dos inúmeros recursos que a floresta providencia, de modo a assegurar a continuidade do ecossistema e desta relação com as comunidades locais. Entre estas acções estão as sessões de capacitação em técnicas sustentáveis de produção agrícola que contribuem para a conservação do solo e da diversidade biológica daquele local. Neste âmbito, a JA organizou uma formação técnica em sistemas agroflorestais (SAF’s) entre os dias 27 e 31 de Agosto com o objectivo de capacitar os membros das comunidades que circundam o monte Mabu em técnicas de consorciação de culturas agrícolas com espécies arbóreas utilizadas para produção de frutas e para a recuperação de áreas degradadas. Participaram nesta formação um total de 38 pessoas, representantes das comunidades de Nvava, Nangaze, Limbue e Namadoe. O curso foi ministrado por Hudson Anaua Filho, representante do viveiro Anaua do Brasil, especializado em técnicas agroflorestais para recuperação de solos e produção de diversidades agrícolas sem recurso a agroquímicos e adubos inorgânicos. Foram dias de uma convivência muito intensa, em que houve partilha de diferentes saberes, onde o conhecimento ancestral e tradicional dos membros das comunidades locais se conjugou com as experiências modernas de maneio e uso da terra numa abordagem agroecológica, dando primazia à soberania alimentar, que é o direito dos povos em decidir sobre o seu próprio sistema alimentar e produtivo sem pôr em causa a sustentabilidade ecológica do ecossistema. A primeira fase do primeiro dia foi dedicado à partilha de experiências entre os participantes do curso e o formador. O formador procurou compreender as dinâmicas locais, de forma a identificar as fraquezas e o potencial local e de modo a alinhar a capacitação às expectativas dos participantes. Durante esta troca de saberes, os membros das comunidades presentes deixaram claro que não acreditavam numa agricultura sem o uso de fogo no processo de abertura das machambas e que ninguém os convenceria do contrário. A segunda fase consistiu no reconhecimento e identificação de uma das

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áreas disponibilizadas pelos membros da comunidade para abertura de um campo de demonstração no âmbito do treinamento sobre os sistemas agroflorestais. O segundo dia foi dedicado à abertura do campo de demonstração de 15x25m, poda de árvores existentes para estimular o crescimento das mesmas e para dar sinal às demais que chegou o momento de crescer; foram ainda estabelecidos os canteiros de 1×15 m num sistema de curva de níveis para prevenir a erosão do solo, por se tratar de uma área com inclinação considerável. Todo material vegetal resultante da poda e da capinagem foi devolvido ao solo para revestir os canteiros e conservar a humidade dos mesmos. Simultaneamente, os ramos das árvores resultantes da poda foram cortados em pedaços e colocados nas passadeiras entre os canteiros para compactar a zona de maneio, manter a humidade do solo e ao mesmo devolver a matéria orgânica ao solo através da decomposição daquele material. Todas estas actividades foram desenvolvidas num ambiente animado e descontraído, com muita conversa, intercalado entre cânticos locais de motivação e vários esclarecimentos e explicações por parte do formador. O terceiro dia foi reservado para sementeira e plantio de mudas. Foram plantadas 15 espécies diferentes de árvores incluindo de fruta, totalizando 84 unidades. O sistema foi montado numa perspectiva em que determinadas espécies serão usadas para produção de fruto e para estimular o crescimento das culturas alimentares no sistema, enquanto outras para fornecer humidade e biomassa ao sistema, incluindo para filtração de raios solares para facilitar o controlo de ervas daninhas. Foram também semeadas 19 diferentes culturas agrícolas anuais, incluindo hortícolas. Parte das sementes foram adquiridas localmente e outras em casas agrárias. Este momento serviu também para a troca de

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sementes entre as comunidades e para o fortalecimento de relações de solidariedade e amizade. Foram introduzidas algumas culturas que as comunidades desconheciam por completo, e nesses casos houve uma explicação adicional sobre como prepará-las e sobre o valor nutricional das mesmas. O formador deixou várias recomendações para o maneio da área cultivada, foi escolhido um guardião para a área e todos os participantes ficaram incumbidos de zelar pela área e de monitorar o desenvolvimento das culturas. Várias dessas culturas foram plantadas fora de época pois, acima de tudo, pretendia-se demonstrar formas e técnicas diferentes e possivelmente mais adequadas de as efectuar. Através de visitas regulares, a JA compromete-se a monitorar a área e a acompanhar as actividades previstas. No final destes 4 dias ricos de saber, foi notável o orgulho dos participantes na área que juntos criaram, foi igualmente notável que ficou bastante claro para todos que é possível fazer machamba sem deitar fogo, bem como que juntos conseguimos fazer mais e mais rapidamente. A dúvida e descrença que observamos no primeiro momento do primeiro dia, rapidamente se dissipou! Este curso de sistemas agroflorestais é o primeiro de vários que a Justiça Ambiental pretende proporcionar às comunidades do monte Mabu, fortalecendo deste modo cada vez mais o laço de união e solidariedade entre as comunidades locais e entre povos.

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UM INSTRUMENTO VINCULATIVO PARA MULTINACIONAIS E DIREITOS HUMANOS: PORQUE E COMO DEVE ÁFRICA ENGAJAR (Parte 1)

por Apollin Koagne Zouapet

Na segunda-feira do dia 22 de Outubro de 2017 iniciou-se, no escritório das Nações Unidas em Genebra (UNOG), a terceira sessão do Grupo Aberto de Trabalho Intergovernamental do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre Corporações Transnacionais e Outras Empresas, no que diz respeito aos Direitos Humanos. O mandato deste grupo de trabalho, de acordo com os termos adoptados e implementados pelo Conselho de Direitos Humanos na Resolução 26/9 de 26 de Junho de 2014, é “elaborar um instrumento internacional legalmente vinculativo para regular, no contexto da lei internacional de direitos humanos, as actividades das Corporações Transnacionais e de Outras Empresas Comerciais.” Este tratado tem o potencial de, finalmente, proteger populações locais de violações de direitos humanos cometidas por corporações multinacionais e garantir o acesso destas vítimas à justiça. No entanto, os Estados, que geralmente se apresentam como campiões da democracia e do Estado de Direito, opuseram-se a esta iniciativa e têm recusado a construção de uma infraestrutura legal mais restritiva com o objectivo de reponsabilizar corporações e os seus executivos por violações de direitos humanos, assim como os Estados e outros actores da esfera pública. Tal como nas duas primeiras sessões, ocorridas em 2015 e 2016, o continente Africano foi notável pela sua ausência nos debates, deixando observadores atordoados e confusos pelo sonoro silêncio. Para além das excepções notáveis da África do Sul, que juntamente com o Ecuador co-patrocinou a resolução que instituíu o grupo de trabalho e que apoia firmemente este processo de desenvolvimento de um tratado legal vinculativo, do Gana, que se opõe ao tratado ao abrigo dos Pincipios Orientadores de Negócios e Direitos Humanos da ONU (mas que ao menos esteve presente e fez com que a sua voz fosse ouvida), e de alguns outros países – como a Nigéria e a Tunísia – que falaram esporádica e timidamente, os países Africanos não parecem estar interessados no que tem vindo a acontecer na Sala dos Direitos Humanos e Aliança das Civilizações (Sala XX), que acolhe o Grupo de Trabalho no Palácio das Nações. Num momento em que a União Europeia se mobiliza como um grupo, exercendo uma pressão visível em cada sessão do Grupo de Trabalho, os membros da organização Pan-Africana, por outro lado, estão ausentes. A sede da União Africana tem, na perspectiva deste autor, demasiado frequentemente, permanecido desesperadamente vazia apesar da causa em questão afectar tão directamente a vida de milhões de Africanos. O argumento que tem sido usado, e que foi apresentado ao autor por um diplomata Africano como pretexto da posição do continente no debate, é o tamanho das missões Africanas em Genebra: existe uma escassez de pessoal e, em alguns casos, de conhecimento técnico da questão em causa e, por isso a maioria dos

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Estados do continente Africano se encontram ausentes. Outro diplomata admitiu ainda ao autor que esta política de cadeiras vazias é o resultado da pressão feita nos países Africanos, que preferem permanecer calados ao invés de fazer uma escolha considerada ariscada. Mas como disse eloquentemente Jean-Paul Sartre, “se eu não escolher, isso continua a ser uma escolha”, ou, em outras palavras, “a unica má escolha é a ausência de uma escolha” (Amélie Nothomb). Está na altura de África deixar de ser um sujeito nas relações internacionais, e passar a ser protagonista das mesmas. Isto significa tomar posições claras nas principais discussões internacionais, particularmente nas que afectam ou poderão vir a afectar a vida de milhões de Africanos. O actual processo no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas é um processo importante, e África deve engajarse e apoiá-lo por diversos motivos. Pelo menos três destes motivos parecem fundamentais: 1. Maior Consistência no Direito Internacional Uma comunidade que é privada de beber água porque um indivíduo decidiu monopolizar a única fonte de água da vila para regar e vender as suas plantas… Crianças com graves problemas de pele, recém-nascidos que acabam de chegar ao planeta com deficiências respiratórias causadas pela descarga de resíduos na própria vila, sem quaisquer medidas de tratamento de resíduos… Cada uma destas situações nos incomoda, e sem dúvida não hesitaríamos em exigir culpabilização dos culpados, que as compensações fossem concedidas àquelas vítimas inocentes e que se impusesse um fim a essas violações. No entanto, milhares de eventos semelhantes acontecem todos os dias, devido a agentes que usurpam terras das comunidades, privam-nos de beber água e poluem o ambiente com impunidade, sem que haja possibilidade de levar o assunto a um juiz que possa exigir compensações e/ou encerrar as actividades ilícitas. No mundo globalizado de hoje, as empresas multinacionais desfrutam de poderes inigualáveis. Todos os dias, as suas actividades e as das suas subsidiárias afectam a vida de milhões de seres humanos e o futuro do planeta como um todo, com a exploração de trabalhadores, expulsão de populações, financiamento de milícias, poluição irreversível, etc. E fazem-no com completa impunidade, graças à influência incomparável que detém sobre os governos e os decisores políticos, e porque não são legalmente responsabilizados pelas violações de direitos humanos que perpetuam em todo o mundo. Os Estados podem ser processados por violações de direitos humanos, os chefes de Estado podem ter sua imunidade revogada e ser sentenciados perante os tribunais internacionais por sua responsabilidade no sofrimento infligido aos seres humanos. Mas, paradoxalmente, não as multinacionais. Há certa inconsistência aqui no direito internacional, que certamente precisa de ser resolvida. O discurso do/sobre o direito international parece estabelecer um redireccionamento legal internacional na direcção de um sistema centrado nos direitos humanos.

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Relações internacionais deixaram de ser esse quadro imoral no qual qualquer coisa é permitida em nome de razões de Estado. A protecção dos seres humanos é o objectivo final das relações internacionais, e até do Estado, que não tem outro significado senão por e para seus cidadãos, por cujo bem colectivo e individual é responsável. “O lar de um homem não é mais o seu castelo’’, e a soberania não deve servir de pretexto para violações em meio a uma total indiferença aos direitos humanos, onde quer que seja. É com base neste novo paradigma, que os especialistas descrevem como o surgimento de uma ordem pública internacional, que os processos foram lançados perante tribunais internacionais contra governos Africanos (Charles Taylor, Jean-Pierre Bemba, Muammar Gaddafi, Laurent Gbagbo, Uhuru Kenyatta, William Ruto, Omar al-Bashir e assim por diante). Algumas destas acções legais provocaram a ira dos países Africanos, acusando os tribunais internacionais de adoptarem uma abordagem selectiva para o seu processo, concentrando-se quase exclusivamente nas nações Africanas. É surpreendente que, no momento que lhes é oferecida a possibilidade de participar no estabelecimento de um quadro mais amplo, que permita o julgamento daqueles que, conforme o caso, financiam e apoiam os perpetradores desses crimes em África em nome de interesses mercenários de base, os países Africanos e a União Africana recusam-se a abrir os olhos para criar uma estrutura capaz de reprimir todos os perpetradores de violações de direitos humanos em grande escala. Ao fazê-lo, os líderes Africanos mostram-se ao lado dos menos interessados em tomar uma medida visando todos estes perpetradores, sem restrições, e mais interessados em proteger-se de qualquer irregularidade da sua parte. Além disso, poderá ser a hora de dar significado real ao princípio da universalidade dos direitos humanos, que não são só atribuídos aos seres humanos no território do Estado em questão, mas a todos de todos os Estados. Quase todos os sistemas regionais de direitos humanos reconheceram essas obrigações, directa ou indirectamente, por meio dos seus mecanismos de protecção (Corte Europeia de Direitos Humanos, Corte Interamericana de Direitos Humanos, Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, etc.). É inaceitável que aquilo que uma empresa Francesa não pode fazer em França possa ser feito por uma filial dessa empresa nos Camarões: os Baka devem poder invocar e usufruir dos mesmos direitos que os Sabóia. A França acaba de consagrar isso, em parte, com a sua promissora lei sobre o dever de vigilância das empresas Francesas. Os Estados Africanos, preocupados em proteger os direitos dos seus cidadãos, tal como afirmado e reafirmado pelas suas Constituições e por uma multiplicidade de instrumentos regionais e internacionais, têm agora a oportunidade de pressionar por esta universalidade. Os debates sobre o futuro tratado mencionaram a possibilidade de definir uma obrigação para os Estados anfitriões que consistia em abrir os seus tribunais às vítimas e punir os accionistas e empresas-mãe originários do seu território, por violações de direitos humanos cometidas por subsidiárias. Há aqui, sem dúvida, uma oportunidade real para traduzir a universalidade dos direitos humanos e a igual dignidade da humanidade em punições.

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E, por fim, os governos Africanos e a Sociedade Civil Africana têm frequentemente reclamado das obrigações contraditórias impostas aos Estados Africanos, em termos de Direitos Humanos e protecção de investimentos. Programas de ajustamento estrutural e tratados bilaterais de investimento têm, frequentemente, se apoderado destes recursos tão necessários para implementar políticas que permitiriam a realização e satisfação dos direitos humanos. O congelamento legislativo e as cláusulas de estabilização, a proibição de contestação de contratos, mesmo quando os operadores privados estrangeiros violaram os direitos humanos, sob pena de pagarem os danos punitivos, e a recusa dos sistemas de arbitragem de leis de investimentos de levar em consideração os padrões de direitos humanos, têm levado os Estados Africanos – e a maioria dos Estados do Sul, de forma geral – para um acto contínuo de equilíbrio muito delicado e virtualmente impossível (não é por acaso que nenhum dos tratados de promoção de investimentos que vinculam os países-membro da OCDE contém uma cláusula de estabilização...). Esta inconsistência quase esquizofrénica no direito internacional deve ser terminada, garantindo claramente a natureza imperativa dos padrões de direitos humanos que todas as partes – Estados e empresas – são compelidas a respeitar. Isto significa que os Estados não devem, de forma alguma, abalar a garantia de quaisquer direitos, directa ou indirectamente, nomeadamente abalando a capacidade de um Estado estrangeiro cumprir as suas obrigações de direitos humanos por meio de tratados bilaterais de investimento, programas de ajuste estrutural ou outros acordos económicos. Isto também implica, como já foi dito, na obrigação de regulamentar terceiros (corporações multinacionais sediadas no país), para garantir que estes não violam os direitos humanos. Esta obrigação de regulamentar aplica-se sempre que o risco de dano fôr causado ou ocorrer dentro de um país, se o autor não-estatal possuir a nacionalidade do Estado em questão, se lá estiver registado ou domiciliado, ou se lá exercer todos ou uma proporção substancial dos seus negócios. Esta obrigação de protecção offshore implicaria na responsabilidade dos Estados através de suas acções nas instituições intergovernamentais das quais são membros, e exigiria que os Estados monitorassem e supervisionassem as actividades dos autores privados, particularmente de corporações transnacionais. Este é o preço de uma melhor protecção para as numerosas comunidades locais ou nativas que vivem perto dos projectos de investimento em África, e é o dever dos Estados Africanos trabalhar nisso e garanti-lo.

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Comunicado de Imprensa Sobre a insistência em Mphanda Nkuwa

“As barragens poderão estar entre os mais renitentes legados coloniais em África. Nem leis, tradições ou padrões de vida persistem como elas. Fixas na paisagem, elas vão mudando o mundo em seu redor enquanto teimosamente se mostram resistentes a quaisquer mudanças significativas. Cahora Bassa, concluída no trecho moçambicano do rio Zambeze em 1974, um ano antes do fim do domínio Português, foi catastrófica para aproximadamente meio milhão de pessoas que dependiam do rio e seu delta para subsistir e para dezenas de milhares de pessoas que foram realocadas à força quando o lago da represa foi criado. Ainda hoje, o esquema de gestão do fluxo necessário para maximizar a exportação de eletricidade para a África do Sul continua a dizimar as safras da estação seca e a reduzir drasticamente a pesca, tornando a vida ao longo do Zambeze dificilmente suportável. Apesar da traumática história de Cahora Bassa, o governo da Frelimo está empenhado – num plano de era colonial – em construir uma segunda barragem a cerca de sessenta quilómetros a jusante da primeira. Em muitos aspectos, Mphanda Nkuwa, como é chamado o projeto da barragem, parece uma repetição do passado colonial. Moçambique justifica a barragem numa linguagem praticamente inalterada desde a época colonial. O imperativo económico dominante que conduz a represa é o mesmo – energia barata para a África do Sul.”[1] À luz dos recentes pronunciamentos do nosso Chefe de Estado, entre outros actores, sobre as intenções do nosso executivo em avançar com o malogrado projecto da barragem de Mphanda Nkuwa, a Justiça Ambiental vem desta forma

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reiterar a sua posição de total repúdio em relação a este empreendimento e, como é de seu dever, alertar mais uma vez a sociedade civil para os perigos que este projecto acarreta para o país, para a região e para o planeta. A nível ambiental, é absolutamente óbvio e inquestionável que esta barragem (ou qualquer outra) no Zambeze (ou em qualquer outro rio) é uma péssima ideia, e não somos só nós quem o diz, é toda uma comunidade científica em uníssono. Para mais, no caso específico da hidroeléctrica de Mphanda Nkuwa, a inviabilidade ambiental de que falamos não é justificada somente pela fundamental perspectiva de preservação ecológica, pois traduz-se também numa incontornável e taxativa inviabilidade económica. Isto porque, segundo relatórios da Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas e da International Rivers “[2], a título de exemplo, mesmo sem a barragem em Mphanda Nkuwa, o Zambeze é dos rios de África que mais impactos vai sofrer com as mudanças climáticas em virtude das secas e cheias intensas que se projectam para o continente a médio e longo prazo, e tais eventos climáticos por certo colocarão em risco a produção de energia das suas várias barragens – para mais as moçambicanas que estão no fim da linha. Igualmente preocupante, senão mais, é que a propósito deste projecto, vários especialistas já alertaram que construir nova barragem numa região cujo risco sísmico é já naturalmente considerável, aumentará substancialmente esse risco. E escusado será dizer que, caso alguma barragem ceda em virtude de um sismo violento, as consequências seriam catastróficas. Posto isto, vimos deste modo invocar bom senso ao nosso executivo, apelando que, de uma vez por todas, esqueça esta loucura. No entanto, caso decidam desperdiçar o erário público na teimosia – uma vez que as partes envolvidas ao menos admitem que o EIA do projecto está desactualizado (para não dizer que foi mal elaborado e/ou que é profundamente tendencioso) – apelamos que, desta feita, tenham o cuidado de, para bem de Moçambique e dos Moçambicanos, realizar um estudo cuidadoso, imparcial, sério e inclusivo. Ainda assim, antes de se dar esse passo, de modo a arredar as compreensíveis especulações sobre as motivações económicas que voltam a trazer este projecto à ribalta – bem patentes nas confusões veiculadas pela comunicação social a semana passada a respeito de querelas entre investidores e/ou pseudoinvestidores – gostaríamos de apelar ainda que, antes de consultar efectivamente os Moçambicanos, com total transparência e sem bordados ou ladainhas, o governo os esclarecesse clara e cabalmente quanto aos contornos, objectivos e ao racional por detrás deste projecto, incluindo: - De onde vem o investimento e a troco de quê? - Porque é este projecto uma prioridade para o país (tendo em conta a actual conjuntura socioeconómica)? - Foram equacionadas outras alternativas? Se sim, quais? - Qual o real propósito da barragem e que hipotéticas mais valias julgam que 11


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traria para o país a curto e longo prazo, incluindo como planeiam rentabilizála (por exemplo, tendo em conta que a Eskom é, no Mundo, a companhia de electricidade que compra energia a preço mais baixo – imagine-se lá a quem…)? Mas porque somos quem somos, não podemos deixar de sublinhar que, “nesta altura do campeonato”, acreditamos ser um erro crasso apostar em barragens (para mais desta dimensão) como solução energética, quando já estamos cansados de saber dos seus efeitos nefastos. – Posicionamento este que é respaldado pelo conhecido e público distanciamento de inúmeros países deste tipo de soluções. (Só nos EUA, por exemplo, nos últimos 100 anos estima-se que cerca de 1150 barragens tenham sido demolidas!) Por que estamos nós a remar contra a maré, senhores?

Maputo, aos 4 de Setembro de 2018

[1] International Journal of African Historical Studies Vol. 45, Nº2 (2012) “Harnessing the Zambezi: How Mozambique’s Planned Mphanda Nkuwa Dam Perpetuates the Colonial Past”, por Allen F. Isaacman, PHD (Universidade do Minnesota e Universidade de Western Cape) & David Morton (Universidade do Minnesota) [2] International Rivers “A Risky Climate for Southern African Hydro”, por Dr.Richard Beilfuss

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Tribunal Administrativo sentenceia a mineradora JINDAL e o Governo da Província de Tete pela violação dos Direitos das Comunidades A Justiça Ambiental submeteu, em Fevereiro de 2016, um processo ao Tribunal Administrativo da Província de Tete (TAPT). O processo teve por objecto o comportamento do Governo e da mineradora JINDAL que se traduz na violação dos direitos e liberdades fundamentais das comunidades afectadas, pela não materialização do reassentamento justo das mesmas no contexto da exploração de carvão mineral numa área localizada em Chirodzi, Distrito de Marara, na Província de Tete – concessão mineira n.º 3605C atribuída à JINDAL. Em resposta, o TAPT indeferiu o pedido da Justiça Ambiental, a 29 de Fevereiro de 2016, alegando, sem base legal, que o Estado é parte ilegítima e que o meio processual usado pela Justiça Ambiental é impróprio. Para a Justiça Ambiental, não há dúvidas de que a decisão do TAPT se baseou em presunções e procurou, a todo custo, acomodar questões prévias para não conhecer do mérito da causa. Decidiu este tribunal com base em arbitrariedades e em claro abuso dos poderes discricionários que a lei confere a juíza da causa. Nos termos da lei, com destaque para a Constituição da República, Lei de Minas e para o Regulamento sobre Reassentamentos Resultante das Actividades Económicas, cabe ao Estado Moçambicano e à JINDAL criarem condições para reassentamento justo e pra a melhoria das condições de vida das comunidades em causa. Entretanto, a Justiça Ambiental não concordando com a decisão do referido Acórdão nº 03/TAPT/16, interpôs o recurso em Março de 2016, e o processo correu os seus trâmites com referência nº 25/2016 – 1ª, na Primeira Secção do Contencioso do Tribunal Administrativo. Este Tribunal analisou o caso por um período de dois anos e decidiu dar razão à Justiça Ambiental, julgando procedente o pedido desta organização da sociedade civil de defesa do ambiente e dos direitos sociais e económicos das comunidades locais, através do Acórdão nº 41/2018 de 12 de Junho. O Tribunal decidiu pela anulação do Acórdão nº 03/TAPT/2016 proferido pelo TAPT e condenou a JINDAL e o Governo da Província de Tete para, no prazo de seis meses a contar da data da notificação do Acórdão ou desta decisão, finalizarem o processo de reassentamento da comunidade de Cassoca.

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A Justiça Ambiental demonstrou ao Tribunal Administrativo que o reassentamento das famílias afectadas pelo empreendimento ainda não foi materializado por responsabilidade simultânea da JINDAL e do Governo moçambicano. A Justiça Ambiental demonstrou ainda a inexistência de infraestruturas necessárias e demais condições de natureza social, económica e cultural básica para uma vida com o mínimo de dignidade para das famílias em causa. Importa referir que a Primeira Secção do Tribunal Administrativo refere na sua decisão que o processo de reassentamento em questão já se arrasta há muito tempo, com a consequente degradação das condições de vida e de sobrevivência das populações abrangidas pela exploração mineira na área concedida à JINDAL, o que justifica a censura por este Tribunal, tanto é que a JINDAL tem o plano de reassentamento aprovado desde 2013 e assinou compromissos com o Governo para erguer as casas e garantir habitação adequada das famílias afectadas, mas nunca cumpriu com tais obrigações até ao presente. Portanto, trata-se pois, de uma vitória jurisdicional, mas que ainda não se faz sentir nas condições de vida das comunidades afectadas, por isso, a Justiça Ambiental apela a toda a sociedade interessada para uma campanha conjunta no sentido dos ora condenados respeitarem o Acórdão em causa e efectivarem o reassentamento em conformidade. A Justiça Ambiental tem conhecimento de que a Ordem dos Advogados de Moçambique também levou a condenação da JINDAL pela violação dos direitos das comunidades em causa. Portanto, não restam dúvidas que a exploração do carvão mineral em Tete constitui fonte de violação dos direitos e liberdades fundamentais das comunidades afectadas, ao invés de contribuir para o desenvolvimento social e económico das mesmas. Maputo, 17 de Setembro 2018

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Notícias Internacionais Aumento de CO2 na atmosfera reduzirá nutrientes de alimentos essenciais. O aumento de CO2 na atmosfera reduzirá até 2050 as qualidades nutritivas de muitos cultivos, o que poderia gerar carências de zinco, ferro e proteínas em milhões de pessoas - aponta um estudo publicado nesta segunda-feira (27). O aumento desta concentração, que pode atingir 550 partes por milhão (ppm) por volta de 2050, em comparação com 405 ppm em 2017, “reduzirá entre 3% e 17% a presença de ferro, proteínas e zinco em muitos cultivos de base”, segundopesquisadores da Universidade de Harvard, que analisaram 225 alimentos. Esta diminuição da qualidade nutritiva de alguns alimentos poderia se traduzir em uma carência de zinco para 175 milhões de pessoas e de proteínas para 122 milhões, exacerbando também os déficits existentes em mais de um bilhão dede pessoas, segundo o estudo publicado na revista Nature Climate Change Estas pessoas seriam somadas às 662 milhões que já sofrem carência de proteínas, 1,5 bilhão, de falta de zinco, e 2 bilhões, de ferro. “A falta de zinco afeta o sistema imunológico. As crianças correm um maior risco de contrair como infecções respiratórias, malária, ou doenças diarreicas”, explicou à AFP o pesquisador Matthew Smith. https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2018/08/27/aumento-de-co2-naatmosfera-reduzira-nutrientes-de-alimentos-essenciais.htm?cmpid=copiaecola

Ilha de lixo no Oceano Pacífico é 16 vezes maior do que se imaginava Com 1,6 milhão de metros quadrados de detritos e 79 mil toneladas de plástico, Grande Mancha de Lixo do Pacífico tem tamanho equivalente a duas vezes a área da França localizada no oceano Pacífico, uma mancha de lixo resultado do acúmulo de detritos— principalmente de plástico — era considerada uma das catástrofes ambientais produzidas pela humanidade. Acontece que a extensão dos danos é pior do que se imaginava: a região que fica entre a costa do estado norteamericano da Califórnia e o Havaí tem um tamanho 16 vezes maior do que o estimado, com 80 mil toneladas de lixo plástico que compõem uma área de 1,6 milhão de quilômetros quadrados. O estudo, publicado no periódico científico Scientific Reports, indica que a extensão do lixo — que ficou conhecido como Grande Mancha de Lixo do Pacífico — tem uma área de cerca de mais de duas vezes o território da França. O estudo foi realizado graças à exploração da região por navios da organização Ocean Cleanup Foundation, que recolheram amostras de lixo e mapearam a porção do oceano afetada pelos detritos. Com isso, foi possível recalcular a extensão do problema. https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Meio-Ambiente/noticia/2018/03/ilha-de-lixo-no-oceano-pacifico-e16-vezes-maior-do-que-se-imaginava.html

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