Usurpação de terra na zona do regadio de Cocomela, na Vila de Namaacha

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Conflitos de Terra Usurpação de terra na zona do regadio de Cocomela, na Vila de Namaacha


Ficha Técnica Título: Conflitos de Terra: Usurpação de terra na zona do regadio de Cocomela, na Vila de Namaacha Publicação: Justiça Ambiental (JA!) / FOE Moçambique Autoria: Fábio Mendes Coordenação: Anabela Lemos Colaboração: Erika Mendes, Gizela Zunguze, Manuel Chauque e Silvia Cunha Edição: Erika Mendes Fotografias: Fábio Mendes e equipa da JA!

O conteúdo desta publicação é da inteira responsabilidade da Justiça Ambiental (JA!) e não expressa necessariamente a opinião dos nossos doadores/parceiros.

A luta continua, até que tenhamos um país justo, onde todos os Moçambicanos e Moçambicanas sejam livres e gozem dos mesmos direitos!



Quando primeiro ouvimos falar do caso de Cocomela, em 2016, a JA! estava constantemente a deparar-se com casos de usurpação de terras em zonas rurais do país, na sua maioria relacionados com investimentos estrangeiros, e, de uma forma geral, com o apadrinhamento do governo. Mas foi a primeira vez que nos deparámos com uma denúncia feita directamente a um Município. Pareceu-nos insólito que o próprio Conselho Municipal estivesse a tentar retirar as terras dos seus próprios cidadãos. Tal como já havia acontecido com outros casos, quando começámos a investigar de forma mais aprofundada as alegações dos camponeses de Cocomela e a documentação existente, constatámos que realmente estávamos perante um caso de usurpação de terra.

Nota da direcção Este caso de conflitos sobre a terra em Cocomela pareceu-nos complicado desde o início. Desde a primeira reunião que a JA! teve com o MASC (Mecanismo de Apoio à Sociedade Civil) e a ANRAN (Associação dos Naturais Residentes e Amigos da Namaacha), para que os apoiássemos a travar a usurpação de terras de camponeses neste município, que percebemos que estávamos perante uma situação complexa e delicada. Atropelos à lei e a fraca capacidade de a implementar são uma constante no nosso país. Há alguns anos, entre 2010 a 2011, a JA!, juntamente com a UNAC (União Nacional de Camponeses), fez uma análise preliminar sobre o panorama de usurpação de terras em algumas províncias de Moçambique. Foi então lançado o estudo “Os Donos da Terra”, que comprova várias das ilegalidades por detrás de usurpação de terras de camponeses. A partir desse momento, o nosso trabalho nesta área tem sido constante. Demorou-nos algum tempo a perceber como exactamente esta usurpação se materializava uma vez que a Constituição Moçambicana e a Lei de Terras fornecem as ferramentas necessárias para proteger os direitos costumeiros sobre a terra. Na nossa opinião, além das dificuldades já mencionadas na implementação da lei, há também uma fraca compreensão da própria lei, principalmente a nível governamental. Vezes sem conta já ouvimos dizer que a terra é do Estado, e como tal é do Governo. Isto está errado: o Estado é o povo moçambicano, e não o Governo. Esta falsa mas surpreendentemente convincente premissa é o ponto de partida de muitos dos conflitos sobre a terra existentes hoje em dia em Moçambique.

É importante enaltecer aqui o trabalho da ANRAN, não só por terem questionado a decisão do Município mas também, e principalmente, por se terem unido para lutar contra uma injustiça e um atentado aos seus direitos mais fundamentais. A ANRAN e os camponeses de Cocomela demonstraram, ao longo deste processo, uma grande perseverança e união, e souberam também procurar o apoio de outras organizações da sociedade civil para atingir os seus objectivos. Apesar de alguns avanços, este caso ainda não está resolvido, e com certeza o nosso trabalho aqui também não terminou. Não nos deteremos até que todas as terras sejam oficialmente devolvidas aos seus legítimos donos, aos camponeses que nela vivem e dela dependem há mais de uma década. Por fim, gostaríamos também de agradecer ao estudante voluntário que aceitou elaborar este artigo.

A luta continua, até que tenhamos um país justo, onde todos os Moçambicanos e Moçambicanas sejam livres e gozem dos mesmos direitos!

Anabela Lemos,


Contexto “Por orientação superior comunica-se ao público em geral que vai iniciar a atribuição de talhão na zona de expansão da vila de Namaacha. Igualmente se faz saber ao público que aquele a quem for atribuído o terreno para construção deverá no prazo de 15 dias efectuar o pagamento da taxa de ocupação, em caso de falta de pagamento dentro do prazo estabelecido ser-lhe-á retirado o espaço sem pré-aviso para outros interessados. Namaacha, aos 29 de Janeiro de 2008 A Secretaria Permanente Distrital”

Iniciamos esta explanação com a transcrição, na íntegra, do Comunicado número 135/GDN/ SEC/08 enviado ao público, pela Secretaria Permanente Distrital, em Janeiro de 2008. Foi o que deu início a este caso de usurpação de terras por parte do governo, e portanto pretendese aqui, justamente, começar a evidenciar a falta de flexibilidade e a desinformação que caracterizaram este processo, e especificamente a interacção do Governo Distrital com a sua população. Para os menos conhecedores da Lei de Terras, ou para quem não esteja a par da situação actual na alegada área de expansão da Vila da Namaacha (regadio de Cocomela), este comunicado pode parecer insuficiente para sustentar qualquer acusação de usurpação de terras. Mas se levarmos em consideração que as terras em questão são usadas por comunidades de camponeses da zona, que lá praticam agricultura de subsistência, e que a taxa de ocupação mencionada e exigida no Comunicado acima referido (e condição para garantir a manutenção destas terras) era de 18.000,00 Meticais talvez assim esta decisão se torne mais questionável. Quais serão, afinal, os “outros interessados” mencionados no Comunicado? São inúmeros os camponeses de diferentes bairros da Vila de Namaacha que têm vindo a praticar agricultura em Cocomela, ao longo de muitos anos, em terrenos vastos e de dimensões diferentes. Várias pessoas dependem destas terras para o seu próprio sustento e portanto, como seria de esperar, este Comunicado levantou grandes preocupações no seio da Associação dos Naturais e Amigos Residentes da Namaacha (ANRAN).


A 12 de Fevereiro de 2008, o Presidente da ANRAN enviou uma carta ao Administrador da Namaacha a expôr a insatisfação das comunidades após terem tomado conhecimento do Comunicado número 135. Nessa carta, foram feitas reclamações em relação ao valor a ser cobrado pela Administração pela regularização dos terrenos, ao curto prazo de 15 dias para efectuar este pagamento e ainda à ameaça de retirada das terras de quem não cumprir com estas condições. Houve então, no dia 14 de Fevereiro de 2008, uma reunião convocada pelo Administrador do Distrito de Namaacha, onde estiveram presentes os directores dos servicos distritais, o Secretário do Comité Distrital do Partido Frelimo, e a ANRAN. Na ocasião, o Administrador explicou que devido a uma preocupação apresentada em 2005 na sua tomada de posse - a respeito da falta de terrenos para a construção na região, o Governo Distrital, junto à Direcção Provincial de Agricultura, tinha decidido desanexar a área demarcada. Acrescentou ainda que a taxa de ocupação de 18,00 Meticais por m2 (total de 16.200,00 Meticais em parcelas de 900m2) tinha sido calculada para cobrir despesas relacionadas com a abertura de ruas, canalização de água, ligação de rede eléctrica, entre outras.

No final desta reunião, os presentes acordaram as seguintes medidas:

1. Redução da taxa de atribuição de talhões para 10,00 Meticais por m2; 2. Adiamento do prazo de pagamento para 6 meses (ao invés de 15 dias), podendo ser feito em prestações; 3. Abolição da taxa de deslocação do técnico do cadastro; 4. Priorização de atribuição de talhões aos residentes, devendo haver uma coordenação entre o sector do cadastro e a ANRAN.

Parece ter havido um certo progresso nesta reunião, através do consenso permitido pelo Sr. Administrador. Mesmo assim, permanece uma questão pertinente: estas despesas usadas para justificar uma taxa absurda de ocupação não deviam fazer parte do orçamento do Governo? Afinal isto não é responsabilidade do Estado? Apesar dos aparentes avanços alcançados com esta reunião, a Lei de Terras continuava a ser desrespeitada perante tal compromisso. A 6 de Outubro de 2010 foi publicado no Jornal Notícias um comunicado assinado pelo Presidente do Município da Vila de Namaacha a convocar os concessionários de talhões subaproveitados há mais de 2 anos, em 3 bairros e 4 povoados incluindo o bairro de Cocomela a apresentarem ao Município da Vila de Namaacha os documentos referentes à concessão, num prazo de 30 dias. O Presidente acrescentou ainda que ao passar este prazo, o DUAT em causa seria extinguido, invocando a Lei no. 19/97 (Lei de Terras) conjugada com o artigo 36 do Decreto no. 60/2006 (Regulamento do Solo Urbano). Em Dezembro de 2010, o Presidente do Conselho Municipal da Vila da Namaacha solicitou, numa carta direccionada à Assembleia Municipal, que esta anulasse o DUAT dos concessionários de talhões em estado de sub-aproveitamento há mais de 2 anos, como tinha sido já notificado no anúncio no Jornal Notícias.


Existe, tanto na informação publicada no Jornal Notícias como na solicitação de anulação de DUAT submetida à Assembleia Municipal, uma grande falácia: a terra no povoado de Cocomela não estava a ser sub-aproveitada. Os aproximados 120 hectares implicados foram, durante o período referido, cultivados pelos camponeses residentes. Esta narrativa criada, ou pelo menos amplamente defendida, pelo Presidente do Conselho Municipal da Vila de Namaacha, sobre a existência de um terreno vasto e sub-aproveitado, está muito longe da realidade. Em Outubro de 2014, a Assembleia Municipal aprovou o projecto de Expansão e Urbanização proposto pelo Presidente do Conselho Municipal, elaborado pela equipa técnica da Vereação dos Serviços Urbanos, que visava atribuír parcelas iguais de 900m2 cada uma (30x30), a todos os camponeses do Povoado de Cocomela que cultivavam a área selecionada. Em Agosto de 2015, o Município deu início ao parcelamento da área em questão com a colocação de marcos (blocos de cimento) a sinalizar as 130 parcelas de 30m x 30m. Na imagem acima podemos ver as senhoras Linda Sitoe (à esquerda) e Lúcia Domingos Chiau (à direita). Estas senhoras são camponesas no bairro de Cocomela e neste terreno cultivam milho, feijão nhemba, amendoim, abóbora, mandioca e quiabo, tal como muitos outros camponeses e camponesas. Estas senhoras, juntamente com o resto da comunidade camponesa de Cocomela, foram ouvindo, de 2011 a 2014, através do Régulo do Bairro, os planos futuros do Município, que passavam pela anulação dos seus DUAT. A 23 de Novembro de 2015, a ANRAN enviou ao Governo Distrital da Namaacha – Gabinete do Administrador uma denúncia relativa à usurpação das terras de camponeses do Município da Vila de Namaacha, com o objectivo de solicitar a devolução das machambas usurpadas pelo Município da Namaacha a 60 famílias do Bairro de Cocomela. Foi também em Novembro de 2015 que as senhoras Lúcia, Linda, e vários outros camponeses do povoado foram instruídos a interromper as suas actividades agrícolas naquelas terras. Em Maio de 2016, a Ministra da Administração Estatal e Função Pública respondeu à denúncia feita pela ANRAN, afirmando que teria entrado em contacto com o Presidente do Município em causa para que se procedesse ao reassentamento desta população nos termos da lei, tendo em conta a necessidade de desenvolvimento do município. Apesar de um tanto quanto evasiva, a carta da Ministra fornece um importante reconhecimento: o de que estas famílias efectivamente ocupam as terras em questão há alguns anos.


ENVOLVIMENTO DA JA! Em 2016, a MASC (Mecanismo de Apoio à Sociedade Civil), contactou a JA! a solicitar apoio para a ANRAN, uma organização recém-criada na Namaacha, que se queixava junto à MASC sobre um caso de graves conflitos de terras e alegada usurpação de terras de inúmeros camponeses por parte do Conselho Municipal da Nammacha. A JA! prestou-se então a visitar o local e a consultar as famílias afectadas, de forma a inteirar-se do caso. No local, a JA! constatou que as famílias afectadas praticam agricultura de subsistência há mais de 15 anos, dependendo destas terras para a sua sobrevivência e sustento. Muitos destes camponeses e camponesas já tinham inclusive requerido o processo de titulação dos DUAT onde cultivavam e residiam, para salvaguardar o seu direito à terra por ocupação. Não obstante, em Novembro de 2015 foram obrigados a paralisar as suas actividades agrícolas para o Município da Vila de Namaacha dar rumo ao projecto de parcelamento e expansão urbana nestas áreas denominadas de “sub-aproveitadas”. Vários camponeses e camponesas mencionaram ainda terem sofrido ameaças pessoais e intimidação caso não obedecessem às instruções das autoridades municipais. No dia 08 de Fevereiro de 2016, a ANRAN enviou uma nova carta, desta vez com o apoio da JA, ao Administrador do Distrito de Namaacha, onde partilhou as inquietações da população resultantes do alegado parcelamento da área limítrofe da Vila Sede, divulgado pelo Comunicado número 135. Nessa queixa, a ANRAN assumiu ao Administrador que tinha já recebido a informação de que o parcelamento da área tinha resultado em 130 talhões de 900m2 (30x30) e que, por sua vez, a ocupação destes estaria dependente do pagamento de uma taxa de ocupação no valor de 18 a 22 mil meticais. A Associação contestou, naturalmente, o prazo curto de 15 dias estabelecido para efectuar este pagamento, assim como a ameaça de expulsão destas terras, sem pré-aviso, no caso de incumprimento deste prazo. A ANRAN contextualizou também o Sr Administrador a respeito das poucas oportunidades de emprego que a Namaacha oferece aos seus residentes, e que, muito por conta desta realidade, a maioria dos cidadãos da Vila seria simplesmente incapaz de cumprir com este requisito monetário. A ANRAN questionou ainda porque se estava a falar de atribuição de terras, quando mais parecia venda de terrenos; e procurou saber qual a razão de não ter sido feita a devida publicidade a esta suposta oportunidade, como é normal em outros eventos desta natureza na Vila da Namaacha. Perguntou também ao Administrador se tinha sido respeitado o preceituado na agenda 2025, mais especificamente o capítulo VI, número 6.3.4 que fala sobre o acesso e posse de terra. Por último, a ANRAN pediu ao Sr. Administrador que interrompesse momentaneamente o processo em questão e que recebesse a ANRAN em audiência.


Esta carta foi acompanhada por um abaixo-assinado, assinado por membros da comunidade e pelo Presidente da ANRAN. As mais de 60 famílias afectadas são titulares da terra em questão por ocupação, nos termos da Lei. Esta ocupação foi reconhecida pela Ministra da Administração Estatal e Função Pública através do seu ofício em resposta à ANRAN, datado 10 de Maio de 2016. Após este reconhecimento a JA!, juntamente com a ANRAN, entrou em contacto com o Presidente do Conselho Municipal da Vila da Namaacha, tentando pressioná-lo a divulgar mais informação sobre o projecto de parcelamento e expansão urbana com a população afectada e com as organizações da sociedade civil. Numa carta datada de 27 de Setembro de 2016, enviada ao Presidente do Conselho Municipal, a JA! requereu que este se pronunciasse sobre os seguintes factos: • O projecto de parcelamento e expansão do Município da Vila de Namaacha tinha resultado numa redistribuição das parcelas de terra das famílias, atribuindo a todos parcelas iguais de dimensão 30x30m. Esta atribuição desconsiderou as dimensões originais das parcelas de terra de cada família, havendo casos de parcelas com mais de 2 hectares antes do parcelamento. A população afectada continua sem saber por que razão as suas terras foram reduzidas e a quem foram atribuídas as parcelas que resultaram dessa redução. • A JA! teve conhecimento da existência de um processo de anulação de DUAT na área em causa, através de uma solicitação feita pelo Presidente do Conselho Municipal à Assembleia Municipal, pedido este que afecta os direitos fundamentais dos cidadãos que ocupam estas terras dentro da legalidade. Apesar disto, o Município alegou não existir nenhum processo de anulação do DUAT dos afectados que fosse além da mera redistribuição das parcelas no âmbito do projecto de parcelamento e expansão em causa. • Numa resposta do Conselho Municipal à JA, este alega que todos os processos de demarcação e parcelamento levados a cabo pela instituição foram realizados ao abrigo do Plano de Estrutura Urbana, solicitação dos trabalhos pelas estruturas e comunidades locais, e antecedidos e acompanhados pelos visados. No entanto, estas afirmações não são corroboradas pelos necessários documentos comprovativos. • O Conselho Municipal alegou também ter revisto o seu cadastro relativo à habitação nas terras em questão. No entanto, os fundamentos e o processo desta revisão não são conhecidos ao detalhe pela população afectada.


A JA! reiterou ainda que: “A população afectada adquiriu o DUAT nos termos previstos nas alíneas a) e b) do artigo 12 da Lei de Terras e artigo 111 da Constituição da Republica. Importa anotar ainda que de acordo com o disposto no no. 2 do artigo 13 a Lei de Terras, a ausência de titulo não prejudica o DUAT adquirido por ocupação à luz das alíneas a) e b) do artigo 12.” Nesta mesma carta, a JA! afirma não terem sido respeitadas as normas legais a respeito das consultas públicas e indemnizações justas no processo de redistribuição das parcelas de terra, e acusa o Município em causa de não respeitar “os princípios da legalidade, da transparência, da prossecução do interesse público e da boa-fé pelo qual a Administração Pública deve se pautar em observância a Lei do Procedimento Admnistrativo, Lei no. 14/2011, de 10 de Agosto”. Por fim, e por querer levar o assunto a debate público e fazê-lo chegar às instituições competentes para resolverem este problema, a JA! requereu também, ao abrigo do disposto no no.1 do artigo 6 da Lei do Direito à Informação, ao Presidente do Município, o seguinte:

• Informação sobre o estado do alegado projecto de parcelamento da área de expansão, no Bairro de Cocomela, com indicação do número de famílias afectadas; • Informação sobre as razões de redistribuição de parcelas de terra na ordem de 30/30, apesar dos afectados terem vindo a ocupar há muitos anos áreas com dimensões maiores; • Informação sobre as consultas públicas realizadas, as suas respectivas actas, e as razões por detrás da perda de DUAT por parte das famílias afectadas. Uma carta semelhante, com a mesma explanação dos factos, foi enviada ao Provedor de Justiça na mesma data, denunciando esta violação clara dos direitos sobre a terra e procurando a sua intervenção. Alguns meses depois, o Provedor de Justiça convocou uma reunião para o dia 14 de Junho de 2017, na qual participou a JA!, membros da ANRAN, representantes das comunidades afectadas e o próprio Provedor de Justiça. Neste encontro foram discutidas as disposições legais e implicações do projecto de parcelamento e expansão no bairro de Cocomela, resultando na paralisação do processo em causa, por parte do Conselho Municipal da Vila de Namaacha. Os camponeses foram retornando às suas machambas, ainda com marcos no terreno, a partir de Outubro de 2017.


Em Fevereiro de 2018, a JA! visitou novamente o local e a ANRAN. Nesta data, a equipa da JA! constatou que os marcos do parcelamento ainda não tinham sido removidos pelo Município, e tomou conhecimento de uma reunião entre a ANRAN, o Presidente do Município e o Vereador de Serviços Urbanos. Neste encontro, a ANRAN tinha rejeitado uma proposta do Município de aumentar a dimensão das parcelas designadas aos locais para 3600m2 (60x60), já que tal proposta ainda assim violava os seus direitos à terra e desprezava as dimensões originais das parcelas. A paralização do projecto de expansão urbana na zona de Cocomela é uma vitória momentânea, sem responsabilização, e pouco conclusiva. A população afectada continua a viver na incerteza, uma vez que ainda não foi levada a cabo uma devolução oficial das terras por parte do Conselho Municipal da Namaacha, como seria de esperar. Foram os próprios camponeses que procederam à retirada de alguns dos marcos colocados aquando da demarcação. Esta incerteza é ainda mais exacerbada uma vez que a comunidade afirma ter conhecimento da natureza corrupta de certos membros do Conselho Municipal e outras autoridades municipais. Existem também acusações de que tanto o Vereador de Serviços Urbanos como o Régulo do bairro de Cocomela têm interesses pessoais nesta terra, interesses que colidem com o interesse, costumes e necessidades básicas da população camponesa que ocupa legalmente esta região e merece ter os seus direitos de uso e aproveitamento da terra respeitados. Desde o parcelamento realizado em 2015 até Outubro de 2017, as mais de 60 famílias afectadas não puderam cultivar a terra que vinha a ser, já há muitos anos, a sua fonte de subsistência. No final da visita da JA!, alguns camponeses e camponesas passaram uma mensagem muito clara. O que eles verdadeiramente querem é que se organize uma reunião em que tanto o Régulo da comunidade como o Presidente do Município estejam presentes, para assim procederem à devolução oficial dos terrenos em questão aos camponeses afectados. Parece-nos um pedido óbvio e justo, e considerando que esta foi a decisão do Provedor de Justiça, não deveria haver motivos para atrasar ainda mais esta divulgação oficial.


HISTÓRIA DE VIDA – AMÉLIA

O seu nome é Amélia Carolina Muianga, tem 80 anos e é natural da cidade da Matola. Quando era jovem depois do divórcio, o seu pai que vivia na Vila da Namaacha chamou-a para ir viver com ele, desde esse tempo até hoje nunca mais se foi embora, trabalhou no tempo colonial para uma família abastada e cuidou da quinta, das galinhas, dos ovos e de tudo o resto que havia por fazer na quinta….e tinha a sua machamba também naquela terra tão boa para semear. O tempo passou, os anos passaram, os filhos cresceram longe dela, não vieram viver com ela, ficaram na Matola, hoje cada um está demasiado preocupado com a sua própria vida para ajudar ou pensar na mãe que está a envelhecer sozinha, infelizmente é assim a nossa sociedade actual, cruel e injusta…os velhos são desprezados e rejeitados pela família. A Amélia viu-se sozinha com 80 anos de uma vida difícil contadas em cada ruga vincadas no seu rosto, em cada veia das suas mãos, uma vida dura, cheia de privações, de sofrimento, de solidão, a vida de tantas mulheres camponesas em Moçambique! Esta mulher, que neste momento não poderei dizer que a sua história é um sucesso, porque infelizmente ainda não é, e só poderá ser quando Amélia conseguir melhorar e mudar a sua vida, conseguir dinheiro para alugar um tractor para lavrar a sua terra de 12 hectares, conseguir colher da terra o alimento para a sua sobrevivência e até vender o excesso dos produtos no mercado local, ter todos os dias um prato de comida… Não é um sucesso não porque hoje a Amélia ainda não tem o que comer, mas tem uma terra fértil para plantar, esta é a sua única riqueza. Vamos retornar ao passado um pouco e saber como a Justiça Ambiental (JA!) conheceu a Amélia e teve conhecimento da sua história. Há uns anos uma organização parceira encaminhou um grupo de camponeses naturais da vila da Namaacha que se queixaram e vieram pedir ajuda à JA! por estarem a ser vitimas de usurpação das suas terras por parte do Município da Namaacha. A JA! envolveu-se e depois de imensas acções e reuniões, cartas de queixa à Procuradoria, encontros e várias cartas dirigidas ao Edil


do Município da Namaacha, finalmente o Provedor da cidade de Maputo um dia contactou a JA! para um encontro no Município da Namaacha, com todas as partes envolvidas para discutir os problemas apresentados. Esta reunião foi crucial para o desfecho desta história não só do grupo de camponeses (por volta de 50) como da própria Amélia. O Provedor exigiu ao Município que devolvesse as terras aos seus legítimos donos (os camponeses) e afirmou que estes tinham plenos direitos sobre ela. Nesta altura, na sala levantouse uma senhora idosa que pediu o uso da palavra ao Provedor e contou a sua história. Era uma senhora de idade sozinha, e o Município tirou as suas terras porque acharam que era velha demais e não fazia nada com elas. Esta senhora era a Amélia Muianga e, nesse mesmo dia, o Provedor exigiu que devolvessem a terra no prazo de 15 dias a partir daquela data. A devolução só foi feita passado 60 dias, mas com um pequeno senão, os marcos que antes tinham sido montados pelo Município para dividirem e venderem as parcelas de terra continuam lá, tanto no terreno dos 50 camponeses como no da Amélia. Hoje os camponeses lavram a terra e semeiam com os marcos ainda no terreno. Quanto à nossa Amélia, tem outros tantos problemas ainda por resolver, sem dinheiro para alugar um tractor (cobram 1.000,00 mts por hora) com casas algumas delas já construídas em tijolo no seu terreno, marcos montados pelo Município ainda a dividir parcelas, ela pede-nos ajuda com os olhos tristes e cansados de quem só tem aqueles 12 hectares de terra rica para poder melhorar a vida das privações que tem! A Justiça Ambiental não consegue ficar indiferente a tão desesperado apelo, não pode prometer nada neste momento mas vai tentar dar a mão para que esta história consiga ser “um sucesso” amanhã e que a Amélia consiga ter a sua machamba e que, todos os dias, consiga também ter pelo menos um prato de comida nas suas mãos cansadas. É o nosso desejo que todas as “Amélias camponesas” sejam de que idade for, espalhadas por este imenso Moçambique consigam um dia ter meios de sobrevivência através do seu trabalho árduo de plantar e colher os alimentos da terra, desta terra tão fértil que existe no nosso País … É por estas mudanças que nós todos devemos continuar a trabalhar! A luta continua… por uma vida digna para todos!


CONSIDERAÇÕES FINAIS Este caso de conflito de terra de mais de 60 famílias camponesas no Município da Namaacha está repleto de incoerências e falta de informações, não respeitando o direito à informação das comunidades locais quando viram os seus direitos costumeiros sobre a terra negados. E além de toda a falta de informação, um facto é inquestionável: este processo não decorreu de forma transparente nem envolveu a população afectada conforme previsto pela lei. Por fim, leva-nos também a questionar os verdadeiros interesses das autoridades municipais, e até o caminho escolhido pelo Governo rumo ao desenvolvimento. Infelizmente, verificamos que este comportamento questionável por parte de autoridades governamentais é recorrente no nosso país. As acções levadas a cabo pela ANRAN pautaramse pela busca do diálogo, esclarecimento e justiça; apresentando as inquietações e impactos sentidos pela comunidade de Cocomela a respeito do projecto de Expansão e Urbanização lançado pelo Município nos terrenos por si ocupados há muitos anos; e invocando a legislação vigente em sua defesa. Não obstante, estes cidadãos viram os seus direitos a ser sistematicamente negados, tanto o seu direito à terra e à alimentação, como também o seu direito à informação. De um certo ponto de vista, o empate conseguido pela Associação dos Naturais, Residentes, e Amigos da Namaacha e pela Justiça Ambiental é certamente um sucesso a ser valorizado. A população retornou às suas terras, procedeu à retirada dos marcos e está a praticar agricultura. No entanto, até ao momento, não foi emitido nenhum documento oficial a respeito da devolução das terras aos camponeses. Este atraso na devolução oficial dos terrenos promove a incerteza e deixa uma nuvem cinzenta em cima do futuro desta comunidade. Esperamos que este avanço momentâneo se traduza numa vitória definitiva, e que lutas como esta sejam a base de um movimento crescente que pressione os políticos e os corpos administrativos responsáveis pelo desenvolvimento - não só da comunidade de Cocomela, mas de toda a Vila da Namaacha e por todo Moçambique - a respeitar a lei, a levar a cabo processos transparentes e livres de conflitos de interesse e a disponibilizar toda e qualquer informação relevante para que todos os envolvidos possam tomar uma decisão informada e livre a respeito de qualquer projecto que se pretenda desenvolver nas suas terras. A senhora Linda, que cultiva a sua machamba desde 1992 na zona do regadio de Cocomela, tem hoje 7 filhos que dependem dessa terra para se alimentarem. A senhora Lúcia, por sua vez, vive da terra onde hoje cultiva desde 1995. O caminho para o desenvolvimento do nosso país não poderá passar por um atropelamento tão inconsequente aos mais básicos direitos humanos, sociais, económicos e culturais da população camponesa, que constitui a maioria da população Moçambicana.

Actualização A JA! está a envidar esforços para que os marcos sejam retirados e seja realizada uma reunião da devolução oficial das terras aos camponeses, pelo município, que ainda não aconteceu. Uma notícia importante é de louvar a atitude, a ANRAN ter concorrido nas últimas eleições autárquicas de 2018, para ter alguns assentos na Assembleia Municipal de Namaacha, como forma de representar e levar a voz do povo da Vila de Namaacha, pois tem sido difícil ou quase impossível serem ouvidos. Mesmo sem fundos nenhuns para campanhas em relação a outros partidos mais influentes a ANRAN conseguiu ganhar aproximadamente 3000 votos.


Todos os documentos mencionados neste texto podem ser encontrados no arquivo da Justiรงa Ambiental.


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