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Quarenta anos atrás, quando pacientes retribuíam cuidados médicos com telas, ao invés de uísques, o cardiologista Enilton Tabosa do Egito ganhou uma pintura assinada pelo artista pernambucano Alcides Santos. A obra de 1974 inauguraria uma coleção de arte que o médico não pretendia, mas a que hoje ele dedica todo um apartamento, fora as paredes de sua casa, em São Paulo.
A "Coleção Enilton Tabosa do Egito" é composta por cerca de 300 obras realizadas por pernambucanos ou no Estado — quase todas pinturas. Cerca de 90 delas podem ser visitadas, até o dia 12 de novembro, na exposição Arte em Pernambuco, aberta pela Galeria Arte132 (avenida Juriti, 132, Moema), em São Paulo. É a primeira vez que o conjunto vai a mostra, ainda que num recorte pequeno, devido à limitação de espaço.
Há o desejo de que, em breve, toda a coleção seja exposta. Também na capital paulista, e quem sabe no Recife.
É simbólico, e iluminador, que este acervo, com pinturas do final do século 19 e de todo o século 20, esteja numa vitrine em São Paulo justamente neste ano do centenário da Semana de 22, quando o substantivo modernismo é flexionado em número, num movimento de redistribuir os holofotes para os modernismos no País — e, com bastante ênfase, para o de Pernambuco. A mostra, então, é uma exímia ilustradora da produção modernista daqui.
"É uma coisa dura de dizer: os paulistas — é claro que tem exceções — não olham Pernambuco com a importância que teve. Enquanto havia a arte moderna aqui, havia também lá", comenta Telmo Porto, carioca radicado em São Paulo, que abriu a Galeria Arte132 em julho do ano passado, junto com a esposa, Laís Zogbi.
Telmo considera que se trata de "reconhecer algo que aconteceu em paralelo e que tem um significado enorme na arte moderna". Sua galeria, aliás, tem como "foco principal rever o século 20", conta. "Acho que São Paulo não precisa de mais uma galeria sobre o contemporâneo executando. A arte não é feita só de quem criou o novo, é feita também por quem alargou o que existia."
Obra de Vicente do Rego Monteiro, sem título, da década de 60 - ROBERTO LOFFEL/DIVULGAÇÃO
Arte em Pernambuco é uma exposição — vamos dizer — pedagógica, no sentido de propor reescrita da historiografia da arte no Brasil, ao reconhecer a produção em Pernambuco. Sem propósito comercial, nenhuma tela está sob consulta de valor, só de sua história.
Mesmo ao curador e pesquisador em artes visuais Antonio Carlos Suster Abdalla, que assina o projeto expográfico, a exposição foi reveladora — de "um universo de que eu não tinha conhecimento", afirma.
"Pernambuco produz uma arte de alto nível, mas o Brasil é um país muito compartimentado: quem está em São Paulo não vê", analisa Abdalla, que disse ter ficado bastante surpreso ao se deparar com os caminhos que a arte pernambucana tomou após a Semana de 22. "Como tinha tanta gente boa!"
a mostraAssim que se entra na charmosa casa em que está a Galeria Arte132, a exposição apresenta uma amostra de pinturas do século 19. Há, entre elas, a tela mais antiga do conjunto, uma óleo sobre madeira de Telles Júnior, de 1869; também Arsênio da Silva, que introduziu a pintura à guache no Brasil, e Eugène Lassailly, um dos artistas franceses trazidos à capital pernambucana pelos senhores da época para retratarem as propriedades e paisagens que detinham.
Em seguida, a mostra traz à memória presente artistas promissores e que morreram jovens, ainda no início do século 20: Emílio Cardoso Ayres, aos 26 anos, e Joaquim do Rego Monteiro, aos 31.
Depois, Abdalla enfatiza os nomes mais graúdos da pintura pernambucana — aqueles que vazaram para o Sudeste —, como Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Reynaldo Fonseca. Noutra parede, há João Câmara, Gilvan Samico e um destaque para a produção armorial, incluindo obras de Ariano Suassuna.
Na sala de reuniões, uma seleção de trabalhos fogem ao comum — é destacado um Vicente do Rego Monteiro abstrato, coisa rara, arrematado há alguns anos num leilão do Banco Central.
O mezanino da galeria reserva uma parede com trabalhos de quatro mulheres artistas consideradas, lá, pouco conhecidas: Maria Carmen, Guita Charifker, Tereza Costa Rêgo e Luisa Maciel (aliás, obras da artista caruaruense estão em exposição no Mercado Eufrásio Barbosa, em Olinda).
Por fim, estão reunidos artistas primitivistas, entre eles Bajado, e outros modernos, como Montez Magno, que é natural de Timbaúba, assim como o colecionador.
Da despretensão, Enilton Tabosa do Egito foi montando, e conseguiu, uma coleção que Antonio Carlos Suster Abdalla considera "não aleatória" por fazer um fio temporal da história da arte pernambucana, com ênfase na pintura.
Formado em medicina no Recife, mas atuando no HCor, o Hospital do Coração de São Paulo, desde a residência médica, Enilton começou a comprar telas de artistas pernambucanos por identificação. Embora viva há mais de 40 anos na capital paulista, preserva raízes no sotaque e nas referências culturais. Presidiu, inclusive, a Confraria Príncipe Maurício de Nassau, um grupo dedicado a promover a cultura pernambucana na cidade em que escolheu por morada.
a coleçãoÀ medida que ia adquirindo obras e formando a linha do tempo da arte pictórica pernambucana (embora também tenha desenhos, esculturas etc), Enilton foi atualizando a motivação como colecionador. "Vou te confessar: de repente, eu tinha a história na mão, mas não sabia que estava fazendo isso", diz ele, que frequentou muitos leilões e contou com a colaboração de marchands como Carlos Ranulpho.
Nunca adquiriu guiado pelo mercado, assim como não vende os trabalhos que possui. Fala que o movimento do mercado "não deve ser o motivador de qualquer coleção". "Não é [sobre] comprar um quadro, é ter uma história documentada. O valor está no conjunto da história", reflete.
Obra de Cícero Dias, sem título nem dataROBSON LEMOS/DIVULGAÇÃO
O acervo de obras do cardiologista e colecionador ganhou robustez nos últimos 20 anos, com o auxílio de seu primo Benjamim Gomes, pernambucano de Águas Belas, professor aposentado da Faculdade de Medicina da UFPE e doutor pela Universidade de Salamanca. É ele quem tem documentado textualmente a coleção e assina o catálogo da mostra.
Benjamim é, informalmente, um consultor, ou mesmo co-colecionador. No catálogo, ele é didático: apresenta a história de Pernambuco desde capitania, avança para o percurso feito pela pintura no Estado, conta biografias de mais de 90 artistas, trata da discriminação das mulheres na história da pintura e, assim, faz uma crítica à bibliografia.
"Quem escreve nos livros didáticos é meia dúzia de gente que escreve o que interessa a quem está no poder. Então, quase tudo o que aprendemos não é historicamente verdadeiro", argumenta. "Tudo o que se diz da pintura brasileira é como se tivesse saído do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas a pintura não-sacra brasileira nasceu no Recife, na capitania mais próspera, Pernambuco, com Frans Post e Albert Eckhout, e isso não está na história", critica, observando o período holandês no Recife.
A "Coleção Enilton Tabosa do Egito" é grandiosa não só pelo volume de obras que reúne e a história que ilustra, mas tanto quanto por reparar as ausências na historiografia, algo que o catálogo, num bom trabalho, reforça. Nesse processo, o professor Benjamim Gomes destaca as mulheres, iniciando por Fédora do Rego Monteiro, contemplada na exposição com ao menos duas telas. Envolvida com a fundação da Escola de Belas Artes no Recife, em 1932, ela é a primeira mulher pernambucana artista a constar nos registros.
"A Escola da Ribeira, fundada em Olinda em 1964, logo um ano depois, realizou uma exposição só com mulheres, e isso ninguém conhece: não se fala dessa exposição, quanto mais dos nomes das pintoras", expõe Benjamim. "Só temos um escritor que realmente priorizou a pintura pernambucana e escutou muito as mulheres: José Cláudio [que, aliás, está com exposição individual também em São Paulo, na Galeria Nara Roesler]. Antes de Zé, a pintura feminina não aparecia."
Entre os primitivistas, há muitos nomes apagados que a exposição volta a acender, como o próprio Alcides Santos, que, incensado nos anos 1970, faleceu no ostracismo em 2008. Para paulistas e pernambucanos verem, reverem.
Fonte: jc.ne10.uol.com.br/cultura/2022/10/15101276-mostra-grandiosaem-sao-paulo-passeia-pela-historia-da-arte-em-pernambuco.html
Artista visual, morador do Céu Azul, periferia de Camaragibe-PE. Sua pesquisa atual se fixa na pintura, dialogando sobre o corpo e suas subjetividades. Em seu trabalho, Bisoro entra em um processo de construção da representação do corpo racializado e dissidente, recriando as narrativas estéticas e buscando a criação de um novo imaginário simbólico sobre essa classe, ficcionalizando e fruindo em outros espaços imagéticos. O artista prioriza o processo de produção das pinturas a obra final, pintando grandes telas em algodão cru e entende sua pintura enquanto dança performance, pois seu corpo flui também para o trabalho. Ele adota o lema “comprem de artistas vivos” em seus catálogos, para lembrar da valorização de produtores culturais racializados.
Bisoro começou a expor em 2017 na Feira Asgardiana, evento de cultura pop recifense que busca também divulgar artistas pernambucanos e nesse mesmo ano e no ano seguinte expôs na Feira Cria, evento de artes impressas e publicações independentes com artistas de todos os cantos do Nordeste. Em 2022 já participou de diversas galerias coletivas, com destaque para a exposição A Beleza da Lagoa, promovida pela Propágulo em Recife, e está atualmente no Museu Murillo la Greca na galeria coletiva no Acervo do Banco do Nordeste.
retratos tipográficos in memoriam
Nesta edição conversamos com Philippe Souza, designer pernambucano, que com tanta naturalidade nos contou um pouco sobre si, seus processos criativos e seu último trabalho, a amostra “Retratos Tipográficos In Memoriam” (capa).
A amostra, que se encontra exposta no departamento do curso de Design da UFPE, é resultado do TCC de Philippe e contém 10 retratos tipográficos em tamanho A0 com rostos de pessoas negras, todas vítimas de violência policial ou militar no Brasil. Foram representadas as seguintes pessoas: Amarildo de Souza, Cláudia Ferreira, Evaldo Rosa, Genivaldo de Jesus, Jhonny Lucindo, Kathlen Romeu, Luana Barbosa, Maria Eduarda Alves, Marielle Franco e Marisa Nóbrega. Ficamos impressionados pela força, homenagem e denúncia nítidas.
REBULIÇO Oi, Philippe! Primeiro queremos lhe conhecer um pouco. Só pra quebrar o gelo do início, o que você comeu no café da manhã?
Philippe - O que é que eu comi no café da manhã (risos). Eu tomei iogurte com aveia e chia e tomei uma xícara de café.
REBULIÇO Você poderia nos falar um pouco sobre você, quem você é e o que você gosta de fazer?
Philippe - Falar sobre mim. Então, eu sou… eu sou artista, eu sou designer, negro, gay, da periferia. Eu acho que eu sou um pouco confuso, assim, é um pouco confuso falar sobre mim mesmo, que eu gosto de tantas coisas diferentes, então vamo por partes diferentes. No design eu sou mais inclinado ao gráfico. É uma área que eu venho atuando até antes de entrar na faculdade, já fazia alguns pequenos bicos, alguns pequenos trabalhinhos assim mais rudimentares e menos bem acabados e assim, menos remunerados do que hoje em dia. Mas já atuava de alguma forma. E, até
hoje, eu continuo como designer freelancer, trabalhando principalmente no campo da identidade visual e redes sociais. No campo da arte eu também sou bem errante, eu gosto de explorar coisas diferentes, mídias diferentes, formas de expressão, sei lá, já dirigi curta, já fiz fotografia, já fiz aquarela, já fiz performances, intervenção artística, já escrevi poesia. Então assim, não só no campo da arte, mas eu acho que na minha vida toda sempre tive muitos interesses diferentes, por exemplo, sei lá, quando eu era criança, eu queria ser cientista, né, sempre, até hoje eu sou muito fascinado por ciência. Adoro cozinhar, sei lá, adoro ler filosofia. Tanta coisa que não consigo nem enumerar aqui.
REBULIÇO Algo de interessante/intrigante aconteceu nesse mês para você?
P hilippe - Olha, pode ser redundante assim nessa entrevista, mas eu acho que foi a amostra mesmo. Assim, nos últimos meses eu tô muito focado com o TCC, né, na correria, então, basicamente eu tô vivendo só isso, assim, trabalhar como freelancer e fazer TCC. Então, nesse mês eu montei a amostra e eu acho que o que foi de intrigante nisso, é que teve uns percalços. Primeiro eu montei num dia, acho que foi numa segunda que eu fui montar, e acabou que no outro dia os retratos tinham caídos todos, né. Eles não seguraram na parede com a fita que eu tinha utilizado, porque as paredes ali do departamento são muito texturizadas, muito porosas, e aí eu voltei na quarta e colei de novo. Aí eu colei eles com uma fita, aquela fita banana, sabe, que é mais segura e aí eu espero, pelo menos, que eles estejam lá pendurados até agora. Acho que foi isso que aconteceu nesse mês de interessante.
REBULIÇO Agora, em relação aos seus trabalhos enquanto designer, como funciona o seu processo criativo?
Philippe - Meu processo criativo como designer acho que foi mudando muito, assim, com a minha experiência. Como eu falei antes, eu comecei a atuar antes da faculdade. Então assim, eu comecei a atuar mesmo só por saber mexer em algumas ferramentas, por ter interesse no campo, mas comecei muito assim sem técnica, sem método específico e aí com o tempo eu fui adaptando. Hoje em dia eu acho que uma das coisas principais no meu método é conversar muito com o cliente. É sempre trocar muito porque eu acho que sempre uma dificuldade era de eu mandar uma coisa e o cliente tá esperando outra, e de às vezes não entender uma coisa que o cliente tá pedindo, principalmente porque a gente sabe, né?A gente que é designer, a gente sabe que às vezes o cliente te pede uma coisa que é ousada, diferente, mas no final das contas não é isso que ele quer. Então eu fui desenvolvendo alguns métodos pessoais, principalmente ter muito diálogo no processo. Eu gosto de trabalhar muito com moodboard, painéis semânticos, sempre mostrando que tipo de tipografia, que tipo de cor, que tipo de textura que eu quero usar, mostrando trabalhos semelhantes pra pessoa meio que ter uma referência do quê que eu tô fazendo. E eu acho que com isso eu consigo chegar em resultados mais interessantes no final.
"Eu queria de alguma forma fazer um trabalho que lembrasse essas pessoas, sabe, que despertasse memória.
Aí eu comecei a fazer esses retratos tipográficos."
retrato tipográfico de marielle franco
REBULIÇO Ficamos muito impressionados pela exposição de “Retratos Tipográficos In Memoriam”, pela força, homenagem e denúncia nítida. Sabemos que é resultado do seu trabalho de conclusão de curso, mas como surgiu esse projeto? O que te motivou?
Philippe - Vamo lá, sobre o projeto, Senta que lá vem história (risos). Ele começou na verdade lá por 2018 até 2019 mais ou menos, como projeto pessoal mesmo, não como TCC. Partiu mesmo de inquietações minhas, foi uma época que eu passei a acompanhar muitos desses casos de violência policial, e eu acho que sempre uma coisa que ficava na minha cabeça é de que eram tantas histórias, assim, toda semana era um caso diferente, sabe. Às vezes vários casos pelo brasil inteiro e essas pessoas são esquecidas, às vezes repercute na mídia por algumas semanas e muitas vezes essas pessoas são esquecidas. Eu queria de alguma forma fazer um trabalho que lembrasse essas pessoas, sabe, que despertasse memória. Aí eu comecei a fazer esses retratos tipográficos. Assim, cheguei a fazer 7. O primeiro que eu fiz foi da Marielle. Eu fiz também da Marisa, fiz da Maria Eduarda, fiz do Amarildo, do Evaldo, da Cláudia e da Luana. Foram esses 7, eu acho. Só que eu comecei esse projeto sem
muito critério, sabe? Eu não pensei ele de um ponto de vista metodológico do design, pensando muito nas etapas, do que que eu tava fazendo, das técnicas. Então, assim, acabou que chegou a pandemia, chegaram outras ocupações na minha vida e eu deixei esse projeto um pouco de lado e foi no final do ano passado que eu comecei a pensar na possibilidade dele virar um TCC. Comecei a revisitar o projeto e algumas coisas me incomodavam. Nos primeiros retratos que eu tinha feito, tinham muitas decisões que eu tinha tomado que não foram muito bem pensadas, eu não refleti muito no processo, né. Então eu pensei de estruturar esse TCC como uma forma de não refazer, mas assim, meio que resetar todo o processo do projeto, sabe? que voltar desde o início, pegar o conceito geral que eu tinha bolado e recomeçar tudo.. E aí foi nisso que eu resolvi fazer 10, né, chegar nesse número. Aí eu incluí a Kethlen, o Johnny e o Genivaldo. E a partir desse processo pra virar TCC foi que eu comecei a realmente pensar em todas as etapas, pensar em todas as escolhas, pensar na tipografia, pensar no tamanho, pensar em como é que vai ser impresso,pensar nas técnicas que eu vou utilizar, em que ferramentas, sabe. Acho que foi por aí.
REBULIÇO Como você se sentiu ao finalizar esse trabalho?
P hilippe - Então, assim, chegar no resultado final da amostra é um misto de sentimentos, um misto de emoções, assim, porque é um trabalho muito permeado por sofrimento, né. São histórias muito tristes, mas de alguma forma também eu fico muito feliz de ver a interação das pessoas, os comentários positivos. Inclusive, enquanto eu tava montando lá, colocando os retratos na parede, de vez em quando aparecia alguém, conversava, interagia e perguntava. Eu acho que foi muito legal esse processo, assim, de ver como as pessoas interagiam e ver também de alguma forma o objetivo do projeto ser alcançado, né, ver que as pessoas tão passando e se interessando por aquilo que tá na parede e se aproximando e tendo alguma curiosidade. Descobrir porquê essa palavra, porquê que essa pessoa tá sendo representada aqui, qual é a história dela e pesquisar, entender. Eu acho que esse é o objetivo do projeto e ver que as pessoas têm se interessado tem sido bem gratificante.
REBULIÇO Foi difícil decidir quais palavras seriam utilizadas para formar os retratos?
P hilippe - Então, o processo de escolha das palavras pra alguns retratos foi bem fácil, foi bem óbvio, digamos assim. Por exemplo, acho que no retrato da Marielle, que foi o primeiro que eu fiz, foi muito claro, assim, que era “presente”, né. Até hoje é a grande coisa, o grande argão, digamos assim, que se atrela à Marielle nas todas manifestações,
homenagens, protestos, reivindicações, é sempre “Marielle presente”, isso virou uma expressão muito utilizada, né. Então, a escolha pra mim foi muito óbvia assim talvez na Marisa, no Evaldo. No Evaldo, o primeiro retrato que eu fiz dele eu usei a palavra “oitenta”, né. Na época que eu fiz a gente não tinha as informações que a gente tem hoje. Inclusive, é conhecido como o caso dos oitenta tiros. Tem até uma capa da Veja que é oitenta tiros, assim, ficou bem marcado isso. E aí, depois quando eu fui refazer ele, né, logicamente que eu troquei por “duzentos e cinquenta e sete”, tendo essa nova informação. Pra outros retratos eu refleti um pouco mais, eu pensei um pouco mais, assim, ponderei um pouco que palavra utilizar, principalmente nas palavras que eu uso que tem algum contexto negativo, sabe, como por exemplo, no retrato do Johnny que é “suspeito”, no retrato do Genivaldo que é “tortura”, ou no da Cláudia que eu uso “rastro”, que é uma coisa que faz relação com a violência tão forte no caso dela, né. E assim, eu ponderei um pouco se eu deveria utilizar essas palavras ou não, mas eu achei que no final das contas, assim, dado o contexto dos retratos, dado o contexto do projeto, a relação com os outros retratos e até o fato de eu incluir também algumas peças informativas pra dar contexto, eu acho que fica claro que é uma crítica, fica nítido que quando eu coloco a palavra “suspeito” pro Johnny, eu tô criticando justamente a ideia de que alguém como ele seria considerado suspeito e questionar por quê que ele se parece com um suspeito. Acho que é por aí.
detalhes dos retratos de genivaldo e marielle
REBULIÇO Existe algum motivo para você ter escolhido uma fonte com serifa para usar nos retratos? E, ainda sobre tipografia, qual a importância que ela tem em um projeto como esse?
P hilippe - Então, sobre a fonte, como eu te falei antes, tinham várias coisas que me incomodavam nos retratos antigos que eu queria repensar nos novos retratos e a fonte era justamente uma dessas coisas. Nos primeiros trabalhos eu usei uma fonte chamada “Monserrat”, que é uma fonte do Google Fontes e ela é sem serifa. Só que eu não tive nenhum critério, não foi uma coisa racional, que eu pensei, analisei, qual seria a relação com o projeto. Eu simplesmente escolhi e botei, sabe. E depois eu passei a me incomodar muito com isso porque eu percebia que a fonte não se relacionava com o projeto. E aí, dessa vez eu resolvi escolher a “Times New Roman”, por dois motivos. O primeiro motivo é pela relação com o projeto, né, pelo fato do projeto ter relação com casos de repercussão nacional e até internacional, né, que foram veiculados na imprensa, na mídia, e a fonte Times New Roman ela foi desenvolvida pro jornal The Times, e por causa desse uso ela até hoje eu acho que quando a gente vê essa fonte a gente associa com jornal, com imprensa e eu acho que isso era interessante, sabe? Fiz alguns testes e
acabei achando o aspecto muito interessante. E o outro motivo também é porque eu acho que é uma fonte muito simples, muito básica, que tá no computador, que é de um acesso muito fácil. Eu não queria utilizar no trabalho uma fonte que fosse assim simplesmente uma fonte muito amada pelos designers, uma fontes que tivesse uma aparência muito bonita, que tivesse muito “fru fru”, sabe. Eu não queria escolher só por um motivo estético. Então, eu acho que ela é bem neutra, entre aspas, nesse sentido, porque ela é muito comum, ela é muito usual, mas ao mesmo tempo eu acho que ela suscita essa ideia do trabalho de trabalhar com casos da imprensa, da mídia.
REBULIÇO Você tem vontade de continuar com projetos semelhantes?
P hilippe - Olha, se eu tenho interesse em continuar, talvez. Assim, uma coisa que eu pretendo depois que passar a correria da defesa que vai acontecer agora no final do mês [de outubro], eu pretendo talvez fazer com que essa amostra vá pra outros lugares. Mas assim, como eu falei antes, como artista eu não consigo me manter muito especificamente numa técnica, numa prática específica, mas eu não sei, quem sabe. Vamo ver o que é que o futuro nos reserva.
"Quando eu coloco a palavra “suspeito” pro Johnny, eu tô criticando justamente a ideia de que alguém como ele seria considerado suspeito e questionar por quê que ele se parece com um suspeito."
retrato tipográfico de amarildo
retrato tipográfico de kathlen
detalhe do retrato de amarildo
REBULIÇO Estamos chegando ao final da entrevista e, como somos uma revista voltada para a arte nordestina, gostaríamos de saber se, para você, ser nordestino tem influência na hora de fazer escolhas em seu processo criativo.
P hilippe - Então, eu acho que assim, não é uma coisa que eu penso tanto no meu processo criativo, sabe? Eu acho que talvez até por eu não ter viajado muito pelo Brasil, não ter interagido tanto assim com outras culturas e ter esse choque, sabe, que muita gente tem, eu acho que as referências nordestinas elas aparecem muito naturalmente, sabe, com as referências, com as experiências que eu tenho daqui. Desde criança eu vivo aqui, nasci, vivo, toda a minha experiência é aqui no Nordeste, né, então eu acho que de alguma forma isso aparece até de forma não intencional. Eu não sei, eu acho que assim, uma característica que eu noto da arte do Sul, do Sudeste, é que talvez elas sejam um pouco distante, sabe, um pouco mais contemplativa, digamos assim, do que eu acho que eu percebo aqui no Nordeste, a gente com uma arte mais relacional, mais próxima, sabe. Pode ser que eu esteja errado, mas enfim, é uma impressão que eu tenho.
REBULIÇO Você poderia nos indicar artistas que lhe inspiram?
P hilippe - Nossa, tem tantos, assim, os que eu vou lembrar agora, assim… tem muitos artistas que me inspiram muito. Tem um coletivo chamado “Carne”, que é um coletivo de arte negra indígena que tem artistas como por exemplo a Iara Izidoro, a Vitória Vatroi, que me inspiram muito. Tem a Nathália Ferreira, que é daqui de Jaboatão, que trabalha com grafite, que eu acho ela incrível. Tem a biarritzzz, que tem essa arte digital, louca, assim, que também eu acho muito incrível. Tem a Juliana Notari, principalmente nos trabalhos dela de performance, eu acho muito legal. Acho que isso é o que eu tô lembrando agora, mas são muitos, são muitos artistas.
REBULIÇO Muito obrigado por ter compartilhado com a gente suas experiências, Philippe, e por ter dedicado um tempo para nos responder. Parabéns pelo trabalho! Você nos inspirou.
P hilippe - Quero agradecer por se interessarem pelo trabalho, eu fico muito feliz por isso! Um abraço.
retrato tipográfico de evaldo rosa
evaldo
retrato tipográfico de maria eduarda alves
“Indução ao Processo de Autodesconhecimento 00001”, 2021.Vídeoperformance,16:57 min.
Dona de uma alcunha incapaz de dar conta de sua mutabilidade, Aoruaura se tornou indissociável de sua obra, explorando, através das linguagens artísticas, as condições processuais de ser viva. Enquanto corpo sensível e que há muito se reconhece em meio a uma mescla de vida e performance, de trânsito e pesquisa, de expurgo, representação e absorção ininterrupta do mundo, a multiartista, com foco em multimídia, performance e body art, é um convite à percepção de que se pode haver autorreconhecimento e propriedade de um corpo íntimo da incerteza.
“Infestação”, 2017. Performance Aoruaura, Fotografia de JEAN.
“APOPTOSE – O que aconteceu ainda está se formando”, 2021 curtametragem-performance.
“Temporária Mente Sem Título”, 2019. Assemblagem. Tela branca, Artista viva, Espelho, Iphone, Fios elétricos, Raízes, Cipós, Cobre, Algodão e Live-Vídeo-Arte. Dimensões Variadas.
Jovem artista, usa uma miscelânea de elementos e de temáticas para se expressar. Daltônico, sente-se mais à vontade ao usar o contraste entre o preto e branco, mas nos últimos anos resolveu dar cores a algumas de suas obras. Estudante de Arquitetura e Urbanismo de 30 anos, é cria do bairro do Barro, zona oeste de Recife. Jeff tem procurado, além de se transformar, modificar o cotidiano dos seus vizinhos com suas pinturas. Ao andar pelos becos e vielas da região, é fácil achar suas obras de artes espalhadas pelos muros, fachadas das casas simples e em áreas revitalizadas e transformadas em locais de convivência.
Amor de mãe é sagrado. 2021. Aquarela, lápis de cor e acrílica sobre papel.
Caos 5. 2017. Nanquim sobre papel
Oriundo do Movimento de Arte Urbana de Pernambuco, Boz ó Bacamarte tem obras com influência da xilogravura – como as produzidas pelos mestres Gilvan Samico e J. Borges –, além de elementos do Movimento Armorial, a exemplo de Ariano Suassuna. Desde cedo, constantemente imerso no caos urbano e de informação existentes nas ruas de grandes cidades como Recife e Olinda, Bozó sentiu a necessidade de buscar uma comunicação mais direta com o público. Para isso, encontrou, no próprio cotidiano, o repertório iconográfico necessário para nortear o seu processo criativo. O povo nordestino, com suas expressões visuais, comportamentos, histórias, crenças e superstições, além do humor e do surrealismo, é tema recorrente no trabalho do artista.
Tajá-onça. Bozó Bacamarte. Tinta acrílica em MDF naval Pintura em Eucatex.
Pintura em papel Hahnemühle.
A paixão desvairada pelo cinema e pela boemia foi o esteio de uma bela amizade entre Amin Stepple e Carlos Fernando, que motivou parcerias em torno da série 'Asas da América'
Ilustração da capa do sexto disco do 'Asas da América', organizado por Carlos Fernando. O LP vem com textos de Stepple, Imagem: Reprodução.
Quis o destino que, por irônica coincidência, o jornalista e roteirista Amin Stepple viesse a óbito no mês passado, o mesmo em que a série Asas da América, produzida por seu amigo Carlos Fernando (1938-2013), completou 40 anos. Nascido em 1950, Amin foi um dos precursores do novo cinema pernambucano. Participou ativamente do ciclo do super-8 no Recife dos anos 1970 e, posteriormente, foi responsável pela direção do curta That’s a lero-lero (1994) e pelo roteiro dos longas Árido movie (2005) e País do desejo (2012). Já o compositor e produtor Carlos Fernando, ao reunir, a partir de 1979, grandes estrelas da MPB para interpretar frevos de sua autoria, na citada série de coletâneas Asas da América, revolucionou a
trajetória daquele gênero musical. Falecido em 2013, nos legou, além dos álbuns que produziu, inúmeras canções de sucesso, a maioria delas em parceria com Geraldo Azevedo.
Recife, manhã de sol. No dia 21 de dezembro de 2017, uma quinta-feira, encontrei Amin Stepple para uma conversa por volta das 10h, num café na esquina da Rua do Futuro com a Dr. Malaquias. O tema: Carlos Fernando, o bruxo de Caruaru, e sua mais portentosa obra, Asas da América. Me acompanharam o músico Luiz Ribeiro e, mais ao final da conversa, o cineasta Helder Lopes, dois jovens e talentosos caruaruenses interessados em levar adiante o legado do conterrâneo.
Ali, descobri o que havia em comum entre aqueles dois personagens emblemáticos de um Recife extinto: a paixão desvairada pelo cinema e pela boemia, esteio de uma bela amizade que resultou em prolíficas parcerias profissionais e criativas. A relação entre ambos remonta à segunda metade dos anos 1970, quando Stepple se estabeleceu temporariamente no Rio de Janeiro. “Eu fui estudar cinema no Rio, passei dois anos lá. Anos 1970; 1975, talvez. Estudei na Cinemateca do MAM (Museu de Arte Moderna). Uma vez, saí com um amigo meu. Passamos pela praia, não sei se Ipanema ou Leblon, e lá estava Carlos Fernando com uma namorada. Nos falamos, mas nada além. Nossa amizade se estreitou, realmente, no Recife. Ele pediu para eu escrever uma reportagem sobre o primeiro Asas da América. Na época, eu trabalhava no Diário de Pernambuco. Daí, escrevi sobre os discos, nas contracapas, e nunca cobrei nada. Nos tornamos grandes amigos.”
Uma matéria não-assinada, de 11 de fevereiro de 1980, foi a primeira a mencionar o lançamento do álbum Asas da
América no DP. “Pela CBS, sai o álbum Asas da América Frevo. Um disco gravado no Rio, mas muito da gente”, introduz. Nela, o autor anônimo avaliava: “Aí está o LP de Carlos Fernando e seus amigos. Bem gravado, bons arranjos, enfim, um trabalho coletivo da melhor expressão cultural e artística”.
No mês seguinte, uma nota também sem assinatura, intitulada Frente revolucionária, enaltecia a recepção positiva que o Asas da América vinha recebendo do público e da crítica sudestina. Ao final, provocava os leitores: “Diante da reação do público, faz crer que esteja nascendo no Brasil um novo movimento musical que tem na própria palavra a sigla FREVO: Frente REVOlucionária!”. Em plena vigência da ditadura civil-militar, teria sido Amin a arriscar tal pilhéria subversiva?
Carlos Fernando havia se estabelecido no Rio de Janeiro desde 1972. Em abril de 1973, apogeu dos anos de chumbo, chegou a ser preso pelos militares. O passado ligado ao PCB caruaruense, do qual seu irmão Manoel Messias era membro notório, foi, na época, o suficiente para condená-lo. Ninguém poderia desconfiar que sua futura criação “frevolucionária” serviria, um dia, como munição para o deboche políticoestético de Amin.
A cada vez que um volume do Asas da América era lançado, calafrios percorriam a espinha dos puristas locais. Além da participação de baianos que estavam na crista da onda, como Gil e Caetano, os
Carlos Fernando. Foto: Reprodução
arranjos incluíam baixo elétrico, guitarra e teclado, o que rendeu a Carlos Fernando a acusação de descaracterizar o frevo. Talvez por isso, até hoje, a grande maioria das canções do Asas ainda seja ignorada pelo público pernambucano e mesmo por muitos supostos especialistas em frevo.
No meio artístico e intelectual pernambucano, Amin Stepple e Jomard Muniz de Britto estavam entre os maiores entusiastas do Asas da América. Colaboraram em várias ocasiões com comentários e crônicas publicados nos encartes da série.
Início dos anos 1990: sob o protesto de artistas e intelectuais de esquerda, Carlos Fernando apoia a candidatura de Joaquim Francisco, do Partido da Frente Liberal (PFL), ao governo do estado. A vitória do candidato foi o mote para que voltasse a Pernambuco, depois de quase 20 anos morando no Rio de Janeiro. Com recursos do extinto Bandepe (Banco do Estado de Pernambuco), produziu o sexto volume do Asas da América, o primeiro da série gravado em solo pernambucano.
O álbum é uma deliciosa crônica da boemia recifense do início dos anos 1990, que se reunia nas dependências do lendário Clube da Farra e de outros bares como o Biruta e o Empório Sertanejo. Na capa, uma reprodução perfeita do cartaz do filme Amarcord, de Fellini, utilizada sem qualquer preocupação com direitos autorais. Apenas no verso, entre um e outro agradecimento, uma menção às “meninas do BAR PANQUECAS de Boa Viagem, por terem cedido o pôster do filme Amarcord de Fellini, que foi reproduzido pelo fotógrafo HELDER FERREIRA”. A obra trata da infância do diretor italiano na pequena cidade interiorana de Rimini. Ao mergulhar na própria memória, Fellini nos apresenta a personagens pitorescos e narra situações em que realidade e fantasia se misturam num saboroso caldo surrealista. Qualquer semelhança com as crônicas musicais de Carlos Fernando não seria mera coincidência.
Desta feita, Amin Stepple foi convidado para outra importante empreitada: escreveria um texto para a contracapa do long-play. Nele, ao gosto da poesia de Carlos Fernando, sugere que o álbum se chame Sargent frevver e cita os personagens godardianos de Caruaru e Berlim, entre outros que desfilam pelas canções. “O sargentão de Carlos Fernando é apátrida. E chic.” Além disso, no encarte do álbum, escreveria abaixo da letra de cada canção, um pequeno texto suplementar. O resultado: 14 minicrônicas surrealistas em estilo telegráfico, numa série oportunamente intitulada ROTEIROSROTEIROSROTEIROSROTEIROSROTEIROSRO, clara alusão ao escritor modernista Oswald de Andrade.
O cinema era, para Oswald, a arte do futuro. Ainda na época do cinema mudo, ele exortava seus leitores a suprimir as “ideias e outras paralisias” pelos “roteiros”. Afinal, segundo ele, “somos concretistas”. “Roteiros. Roteiros.Roteiros.Roteiros.Roteiros. Roteiros.Roteiros.”, provocava. No Manifesto antropofágico (1928), com seu estilo repleto de aforismos distribuídos em períodos curtos, Oswald golpeia o leitor como o cinema ao espectador, numa sequência de cortes abruptos. Não à toa, é considerado, por alguns, o pioneiro da “escrita cinematográfica” no Brasil.
Enquanto manuseava meu exemplar do longplay, Amin contou como havia escrito aqueles “roteiros”: “Naquela época, ainda era máquina de escrever, e aí eu escrevia, não gostava e
jogava fora. Escrevia, às vezes dava certo, às vezes errava, jogava fora… Fui notando que ele estava ficando impaciente. Eu disse: ‘Ó, Carlinhos, o processo é esse!’”.
– Queria que saísse logo?, perguntei – Aí é que tá. Ele falou: ‘Esse não é o problema. O problema é que eu estou preocupado com Cuba, faltando papel, e você aí gastando’. Foi numa época de crise (...).
Apoio ao PFL e solidariedade a Cuba conviviam harmoniosamente na visão de mundo de Carlos Fernando. “A inteligência não tem cor”, diz o verso de Luar da Madalena, um dos frevos que compõem o álbum.
Quanto aos ROTEIROSROTEIROS-ROTEI ROSROTEIROSROTEIROSROTEIROSRO,
alguns trazem pequenos diálogos nonsense; outros, mosaicos de palavras pinçadas aparentemente a esmo, como num painel abstrato. Há ainda descrições que resvalam no absurdo e nas narrativas fantásticas, cada qual a dialogar com alguma das canções do álbum e expandir – ou ancorar – suas possibilidades interpretativas.
“Nunca tomei ácido, a vida toda só tomei cachaça”, afirma ao se referir ao “roteiro” a seguir, que escreveu para a canção Clube da Farra, de Carlos Fernando e Lula Queiroga:
“A coreografia apocalíptica de milhares de gravatas borboletas. A ciclista faquir a vomitar truques ilusórios de rosas brancas. Bustos de plástico amamentavam com creme de barbear a girafa de papelão. Um jingle melódico anunciava uma nova massa alimentícia que irá redimir toda a humanidade. As graças de ser sempre Tremens no Clube da Farra.”
– É a conversa louca do clube, explicou.
Mas qual seria relação da antropofagia oswaldiana com o frevo do Asas da América? Para Amin, “o Carlos Fernando era, de certa forma, um deglutidor. Um antropófago. E a proposta do modernismo é essa. Misturar Lili com Piaf, Pierrot Le Fou, Carlos Pena… Uma mistura. Um sincretismo, que a poesia modernista, sobretudo a de Oswald de Andrade, libertou. E ele absorveu”. Nas Asas da América, a Lili do cinema, protagonista do filme homônimo de 1953, interpretada pela então jovem atriz francesa Leslie Caron, baila pelas noites olindenses durante o Carnaval, ou se transforma na musa do bloco Nem Sempre Lily Toca Flauta. Numa canção, Carlos Fernando a compara a Piaf. Em seu roteiro, Amin a compara a Dietrich e filosofa: “O que importa? Verdade ou fantasia?”.
Amin Stepple. Foto: Reprodução
A experiência de frequentar o cinema foi determinante para moldar a sensibilidade do jovem Carlos Fernando naquela Caruaru dos anos 1950. Segundo Amin, “Carlos Fernando era adolescente em Caruaru, e tinha uma tia, chamada ‘Dete’, bilheteira de um dos principais cinemas da cidade. Ele entrava de graça, então ia para o cinema todo dia. Logo, a cultura de Carlos foi audiovisual. Ele não tinha uma cultura livresca. Na fase adulta, ele acompanhou toda a Nouvelle Vague, a história do cinema francês, dos anos 1960 e 1970”.
Paixão comum a ambos, o cinema era tema recorrente nas mesas de bar que frequentavam. Mas a avidez cinéfila de Carlos Fernando era tanta, que muitas vezes Amin não conseguia acompanhá-lo: “Era difícil para mim pelo seguinte: ele via muito filme, e para mim era impossível, na época, porque eu trabalhava. Aí, era um combate desigual. Eu dizia: ‘Carlos Fernando, você vê tudo e eu não vejo nada!'. 'Mas, bicho, você tem que ver!', reclamava ele. Me dava esporro. Ele frequentava muito o cinema da Rosa e Silva e da Fundação”.
Amin também se impressionava com a capacidade do amigo em traduzir o cotidiano em poesia. Relacionava esta desenvoltura à naturalidade com que transitava pela chamada cultura oral: “Oralidade. Os grandes poemas da humanidade foram orais. E me impressionava muito isso. Nenhuma dessas letras ele anotou. Era pura memória”.
Muito antes do Asas da América, contudo, cinema, oralidade e antropofagia já caminhavam lado a lado nos escritos
de Oswald de Andrade. Enquanto a modernidade urbana propiciava a emergência de novas sensibilidades, Oswald de Andrade preconizava, em seu Manifesto da poesia pau-brasil (1924), o surgimento de uma arte que traduziria aquele mundo de profusão imagética e ritmos frenéticos. Anunciava nossos artistas do futuro como “práticos, experimentais, poetas. Sem reminiscências livrescas” e fazendo uso de uma “língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos”. “A poesia existe nos fatos”, afirmava.
Embebido desde a mais tenra idade no caldeirão da fantasia cinematográfica e tendo assimilado, pela vivência, os influxos da cultura oral que predominava no interior do Nordeste, teria sido Carlos Fernando um protótipo do poeta modernista vislumbrado por Oswald de Andrade?
Com a palavra, Amin Stepple: “O que eu acho muito interessante é ele ter trazido ao frevo uma revolução tardia da poesia brasileira, que foi o movimento modernista, de 1922. Foi uma ruptura. Em termos melódicos, eu não posso falar, mas em termos de letra, a grande contribuição dele foi ter trazido para o frevo toda uma herança modernista, que estava no limbo. Não só modernista. Se você pegar Grande Fla Flu, percebe um poema concreto. Carlos Fernando é o modernista do frevo e da música pernambucana, como um todo. Se você olhar o Manguebeat, não tem essa sofisticação”.
O próprio Amin foi homenageado numa das letras de Carlos Fernando, junto a Cafi, Xirumba, Pii e tantos outros boêmios daquela geração. “Amin sem Dadá” seria uma alusão ao homônimo sanguinário ditador de Uganda, Idi Amin Dadá. Massa real Madri, interpretada por Alceu Valença, está no terceiro volume do Asas da América, lançado em 1981. O próprio Alceu a regravaria em 1987, como um trecho da faixa Leque moleque:
Xirumba-bá
Jê-jererê Amin sem Dadá Cafi com você Pii sem Holanda Negão com Luanda Nos braços da noite Curtindo pra ver O sol amanhecer (...)
Perguntado sobre qual seria sua canção preferida no repertório de Carlos Fernando, Amin não titubeou: “Eu gosto daquela que fala sobre mim”.
AMILCAR BEZERRA é professor do Núcleo de Design e Comunicação (Campus Agreste) e do Programa de Pós-graduação em Música (Campus Recife) da Universidade Federal de Pernambuco.
Fonte: https://revistacontinente.com.br/secoes/ artigo/personagens-de-um-recife-extinto
O Cais do Agreste, coletivo musical de artistas independentes de Caruaru, volta após um ano apresentando seu show-espetáculo “Pedaço de Tempo”, apresentação que une poesia, teatro e músicas autorais de todos os artistas do coletivo. Este retorno contará com novidades no repertório, no cenário e na concepção.
“Especial demais pra gente voltar ao teatro com essa apresentação, sobretudo neste momento em que a arte e a sensibilidade são combustíveis para acreditarmos e criarmos dias melhores” comenta o coletivo em seu Instagram.
A apresentação acontecerá no Teatro João Lyra Filho em Caruaru nos dias 20 e 21 de setembro, os ingressos serão vendidos pelo Sympla, mais detalhes nas redes sociais do coletivo.
Uma seleção especial dos eventos que vão rolar em PE
O festival No Ar Coquetel Molotov anunciou a programação completa da sua 19ª edição, realizada em 19 de novembro no Campus da UFPE, Zona Oeste do Recife - espaço que recebeu os primeiros eventos da marca. Serão quatro palcos, que se dividirão entre a Concha Acústica e a área exterior da universidade.
"Tem sido um desafio realizar mais uma edição neste retorno. É um quebra-cabeça entre criar uma programação diferente do que vem rolando nos outros festivais com as dificuldades de captar recursos em um projeto no Nordeste, em um estado que não tem Lei de Fomento e Incentivo Fiscal com mecenato. Mas essa tem sido a nossa energia motora para fazer acontecer e ter mais um ano histórico. Voltar para a nossa casa na UFPE será emocionante", diz Ana Garcia, diretora do festival.
A edição de 2022 do festival tem entre as atrações, Jup do Bairro (SP), Tasha e Tracie (SP), Flora Matos (RJ), Karina Buhr e Orquestra Jovem (PE) além do destaque de um palco eletrônico com curadoria da DJ e artista pernambucana Libra, onde teremos show de MC Carol (RJ).
O 12o festival internacional de animação de Recife retorna a seu modelo presencial após 2 anos com exibições de curtas e longas no Cinema UFPE, Cinema da Fundação - Derby, Cine São Luiz e Teatro do Parque. O evento esse ano conta também com uma programação online, além de oficinas, masterclasses, debates e palestras. Por enquanto, os destaques da edição são as mostras de curtas africanos, com temáticas sobre comunidade e família, e uma seleção de curtas brasileiro premiados, todos com curadoria de Karolina Kalor, jornalista cultural. O evento acontece entre os dias 15 e 20 de novembro e é gratuito!
museu
O Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães está com diversas exposições em cartaz até o dia 29 de outubro. Entre elas estão: “Sanagê Pele e Osso”, do artista Sanagê Cardoso que apresenta telas e esculturas referenciando países africanos, a mostra “Tempo Elástico Plano São” do artista Cristiano Lenhardt com trabalhos inéditos do autor que são continuações de trabalhos anteriores e também a 2a edição do Projeto Salão de Beleza, que movimenta o circuito de arte local expondo mais de 70 artistas de diferentes linguagens e gerações.
A produtora de eventos Golarrolê Crew entra em parceria com a Brota! Produtora para produzir a nova edição do Reveião, festa de final de ano que acontece em Recife. A parceria das produtoras promete entregar uma edição ainda maior e já anuncia sua primeira grande atração: a cantora e rapper Urias, se apresentando pela primeira vez em Recife. O primeiro lote já começou a ser vendido e em breve serão divulgadas novas atrações do evento.