Juanita - relatório Klaus Viana 2012

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JUANITA

S達o Paulo, Agosto de 2012


Relatório final do projeto JUANITA para o edital Klauss Vianna Agosto 2012

Esse foi o projeto de Isabel Tica Lemos sobre dança e literatura baseado na livre inspiração da obra de Carlos Castañeda, comparada e associada livremente a outros autores que visitam o caminho da alma humana tais como Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Mircea Eliade, Tahir Shah, entre outros. Projeto contemplado pelo edital Funarte Klauss Vianna. Essa pesquisa também se propunha a fazer a ponte entre nosso cotidiano e o universo literário, compreender que nossa vida é o material essencial da literatura. Tivemos um primeiro encontro ainda em novembro de 2011 para celebrarmos o recebimento do prêmio/edital Klauss Vianna e estruturarmos nossas agendas e compromissos para darmos conta de cumprirmos com o compromisso da pesquisa. Em janeiro de 2012, ainda antes dos trabalhos práticos escrevi: “De que é completamente legítimo fazer uma pesquisa de nossos hábitos cotidianos e a luz das regras desses hábitos. Essas regras são como observações a nos servirem de marcas e sinais iniciais do caminho, sinais iniciais que podem ser superficiais ou não, talvez na trajetória outros sinais/signos se revelem. A luz de nossas loucuras. Tudo pode parecer sempre igual, mas ainda assim, ou talvez por isso mesmo, tenha que ser observado clara, urgente e calmamente.”


Ensaio JUANITA

O interessante, pensando, é na total contraposição simultânea desse pensamento com a busca da expansão da consciência de outras realidades, mas continuei a reflexão do trecho acima assim: “Para mim JUANITA por enquanto é reduzida ao IN-FINITO da minha vida cotidiana...só posso ir em direção ao possível corpo e nele – o sono, o controle do alimento (entenda-se alimento do corpo, da mente e da alma) a algo parecido com disciplina, força de vontade? Expressão daquelas que de tão usadas perdemos o sentido.” Iniciamos a pesquisa em fevereiro de 2012, imediatamente após a confirmação da liberação da verba para a pesquisa. Demos um mergulho em grupo, os atratores/colaboradores e a bailarina desta pesquisa. Abrimos um grande espaço de treinos e re-visitamos o contato improvisação, o BMC, a respiração, o aikido que incluem o bastão e a espada. Formas e pensamentos corporais para vocabulário, capacidade de transpor e revelar vontades e imagens conhecidas ou não, invisíveis ou não para desenho de imagens do corpo, ter o corpo instrumento apto a aventura que se seguiu.


Lemos, o grupo como um todo, mesmo antes do projeto, os livros “A Erva do Diabo”, “Estranha Realidade” o primeiro e segundo da série de 12 livros de Castañeda, após o inicio da pesquisa lemos “A Roda do Tempo” que é um compilado de citações organizado pelo próprio Castaneda e o último livro publicado dessa obra que é “O Lado Ativo do Infinito” estimulados pelas palestras que tivemos com o Hugo Leal e as conversas com a Georgette Faddel, atratora provocadora. Em março tivemos a incrível oportunidade de participar do workshop de Lisa Nelson oferecido pelo SESC Pinheiros em São Paulo. Nesse curso a Lisa apresentou algumas propostas de experiência sensorial através da visão, foi de crucial importância para a pesquisa trazer a tona uma consciência mais aguçada


das atividades dos olhos, como eles se movem, como nos movemos com eles e como eles lideram nossa atenção. Um exercício comum praticado e proposto pela Lisa e que funciona como uma extensão ao espaço que é olhá-lo, o espaço, imaginar-se nele, fechar os olhos e caminhar na direção da execução da imagem projetada. É um trabalho de sensibilização dos sentidos como um todo, partindo da atenção provocada através da contenção do sentido da visão. Foi perfeito para abrir nossos trabalhos e ampliar nossas percepções. Tive a liberdade de devaneios grandes, devaneios que estão no cerne do trabalho dos autores que nos serviram de guias: É possível orientar nossa pesquisa/ trabalho para objetivos abstratos/reais como o bom humor, a felicidade, escutar, parar o mundo? Ao término dessa pesquisa vou estar mais a vontade com minha própria existência?

Ensaio JUANITA

A obra é vasta, os interesses amplos, mas direções se apresentaram e então vieram Impecabilidade, Disciplina, Morte, Espreita, Direções no espaço, Norte, Sul, Leste, Oeste, Peso... Todas essas palavras a princípio tem um significado imediato para nós, mas que diante dos diálogos gerados dentro e fora do grupo, palestras do Hugo Leal, com quem tivemos alguns encontros, considerações sobre os estudos e a compreensão dos conceitos apresentados na obra do Castañeda, foram muitas vezes totalmente transformados, exemplificarei alguns:


Impecabilidade: Num primeiro momento óbvio, vem realmente de alguma noção de não pecar, por mais que nossa cabeça seja aberta a idéia cultural do pecado em si, essa palavra traz uma noção de não falhar, de ter os outros conceitos como disciplina ou força de vontade inabaláveis, o que não deixa de ter seus valores e realidades, mas diante dos estudos e diálogos capitais como dito acima, chegamos a percepção de que a palavra impecabilidade tem haver com o fato de não perder energia. Energia é o que você precisa para ser “uma coisa” você perde energia quando você a utiliza para qualquer coisa que não seja sua consciência. É preciso energia para se ter uma noção mínima da vida. Ou você está com energia sendo você ou você está com a energia vinculada a outra coisa que não tem nada haver com você. Outra palavra/conceito importante foi Disciplina: Também aqui a primeira imagem é a de um “controle” de manutenção da força de vontade ou do que são as obrigações dos nossos compromissos. Esse pensamento apesar de compreensivo me pareceu bastante pontiagudo, ele incomodava a percepção de um estado criativo. Então a mesma coisa, com os diálogos e estudos fomos chegando a novas percepções. A arte de fazer todo o necessário, respeitando as prioridades de cada momento. É fazer o que tem que ser feito com alegria, uma condição de equilíbrio de ser flexível sempre (criativo), você só tem disciplina se não perder energia, o motivo de ser disciplinado é manter a alegria, a alegria é expressão de equilíbrio energético abrangente. Tudo o que se faz tem que ser feito com alegria, até ficar triste. Esse contexto do ser flexível sempre, criativo é compreender que aquilo que deu certo 10 anos não vai dar, e de repente pode dar de novo. Estar atento. Pensamos na Morte como um dos “conceitos” chaves e resolvemos fazer uma dança para ela, só que não consegui realmente fazer isso... Não conseguia lembrar da morte enquanto dançava, nem da palavra nem da idéia em si, ficava totalmente preenchida pela simples direção no espaço. Então de vez em quando sentamos para meditar sobre a morte durante os ensaios. Pequenas (em termos de tempo) mas imensuráveis aberturas para nossos questionamentos básicos. “E se eu morrer hoje? Eu estaria fazendo isso agora, assim?”


Ensaio JUANITA

“Como explicita textualmente Don Juan em um dos livros de Castañeda, ‘o conhecimento de nosso fim pendente e inevitável é o que nos dá sobriedade. Nosso engano mais caro como homens comuns é não se importar com o senso de imortalidade. É como se acreditássemos que, se não pensássemos a respeito da morte, nos pudéssemos proteger dela. Sem uma visão clara da morte, não há ordem, nem sobriedade, nem beleza. Os guerreiros lutam para ganhar essa percepção crucial de modo a ajudá-los a perceber no nível mais profundo possível que não tem segurança sequer de que suas vidas continuarão além do momento.’” (trecho compilado por Hugo Leal e postado no blog do projeto JUANITA, em ensaios - http://juanitadanca.blogspot.com.br ) Espreita: Estávamos ali falando e olhando para ela, mas em algum momento descobrimos a espreita e seus passos. Em seguida tivemos um mergulho em palavras/conceitos chaves que foram se apresentando. “Loucura controlada”, “recapitulação”, “respiração”. Para falar a verdade a espreita ainda é um entendimento que me foge, mas até aqui é uma capacidade de fazer uso da “loucura controlada” onde bem reducionistamente falando, o que por enquanto consigo falar: nada tem importância, mas você atua como se tivesse, quando você sabe que está em uma das diversões das melhores possíveis, você vai brincar como uma atriz (um outro), tem humor é um “jogo de representação” da espreita, você nunca sabe se é verdade ou não. A espreita é uma arte. Espreitar é uma das maneiras do guerreiro de saber aumentar sua energia. E através da recapitulação e da respiração ele organiza sua energia. A loucura controlada, a


recapitulação e a respiração são como ele trabalha a espreita. A espreita realmente tem haver com uma série de procedimentos que se assemelham muito ao trabalho do ator, o guerreiro é capaz de construir situações inúmeras e acreditar totalmente nelas para conseguir determinados movimentos de energia. “Podemos dizer que espreitar é um procedimento, um procedimento muito simples. Na verdade, um comportamento especial que segue certos princípios. É uma maneira de ser e de agir secreta, furtiva e enganosa, destinada a provocar um choque. Esse choque é para aumentar sua capacidade de energia, para mover o ponto de aglutinação, lugar onde passam os filamentos de energia do universo. “Quem está no caminho do guerreiro está constantemente se espreitando, ou seja, chocando a si mesmo, usando seu próprio comportamento de modo implacável, astucioso. “Quando a consciência de um mago que está no caminho do guerreiro fica enredada pelo peso de suas aquisições perceptivas, ou seja, quando seu ponto de aglutinação começa a perder, por força da imobilidade, sua condição de movimento, de ser flexível, de se estender, o remédio é usar a idéia da morte para proporcionar esse choque de espreita. A arte de espreitar, por assim dizer. é aprender todas as peculiaridades de um disfarce, ao ponto que bem que ninguém perceba que se está disfarçado. Com isso, os espreitadores aprendem a nunca se levar a sério, a rir de si mesmos sempre. Assim, como não têm medo de fazer o papel de bobos, podem fazer de bobo a qualquer um. Em virtude desses princípios, eles aprendem, também, a ter uma paciência sem fim. Por isso nunca tem pressa, e nunca se irritam. Vivendo na espreita, têm ainda uma capacidade infinita para improvisar. (trecho compilado por Hugo Leal e postado no blog do projeto JUANITA, em ensaios - http://juanitadanca.blogspot.com.br )


palestra de Hugo Leal

Bom como dizia acima a espreita e seus passos se apresentaram, vínhamos de uma sequência de estudos procurando-a através das palestras do Hugo, e das leituras dos livros, então recorremos ao “Roda do Tempo” e lá encontramos os sinais e por conseguinte li mais uma vez também o “Presente da Águia” livro de onde os trechos do roda do tempo foram retirados e por conseguinte os princípios são contextualizados dentro de história. Isso aconteceu no mês de maio. Mantivemos o objetivo de fazer uma dança para a morte mas demos a ela uma senda, um caminho que são os princípios da espreita, mas no nosso trabalho/exercício o desmembramos além dos apresentados originalmente pelo autor. Ficou assim: - escolher o campo de batalha - saber o que o cerca - descartar tudo o que não é necessário - ser simples, não complicar as coisas - toda a concentração para decidir - prontidão e disposição não de maneira descuidada - relaxar, se abandonar, nada a temer - recuar deixar a mente vaguear Definir Norte, Sul, Leste, Oeste e para cada ponto cardeal um movimento,


posição, uma imagem de poder. De forma sucinta descrever que para o mundo de D. Juan, o Sul é noite, a força da vida nos vem do sul e nos deixa na direção do norte. Leste ao contrário do sul é a manhã. O Oeste é naturalmente desafiante, uma força que define o que se faz depois de encontrá-la, seu horário é a penumbra, hora do dia difícil por si só. O Norte como já vimos é por onde a força da vida nos deixa e o seu horário é ao meio dia. - comprimir o tempo, originalmente esse lugar é dizer que cada segundo conta, no nosso caso ficou de que em algum momento tinha que surpreender com o tempo ralentando ou acelerando. - recuar, deixar a mente vaguear (surpreender com algo insólito) Foi importantíssimo pensar que pelo menos enquanto um exercício criativo, que não causasse uma grande pressão que modificasse os movimentos intenções, essa dança não era para ser mostrada era para mim, que permitisse esse espaço da ponte entre os treinos/estudos e o cotidiano. Antes de tudo, entrar em contato consigo mesmo. Durante o processo de pesquisa colocamos no ar um blog que nos tem dado imensa satisfação, sendo razoavelmente visitado. Convidamos também mais uma artista que produziu um desenho em processo que faz o fundo das páginas do blog: Jerusa Messina. O blog teve início em março de 2012 e ao longo desse período teve aproximadamente 1.700 acessos. juanitadanca.blogspot.com é um fórum vivo e aberto desta pesquisa, é o espaço virtual onde compartilhamos a impressão do nosso caminhar, onde a pesquisa do corpo-dança se comunica em palavras, sonoridades, fotografia, ilustração e material audiovisual. O blog é uma janela de comunicação entre o próprio grupo, colaboradores e o público. O Workshop de dança literatura foi crucial dentro dessa pesquisa, me ajudou a uma espécie de expansão do material, justamente por afunilá-lo. Havia uma liberdade de escolha de qualquer trecho ou imagem dessa vasta obra, tipo um leque muito amplo, mas ao mesmo tempo havia uma sensibilização ao tempo real do aqui e agora que permitiu também nos colocar em um estado de atenção e presença para aceitar o trecho, palavra e ou imagem que se apresentasse, claro também pode ser totalmente pré selecionado, uma vez escolhido, lidar com a transposição da imagem usando os elementos mais básicos possível, o que aliás também norteou a pesquisa. Respirar, relaxar o peso, direita, esquerda, chão, espaço e tempo. A maior parte do trabalho feita de olhos fechados para que o acesso tanto da obra como do corpo fossem facilitados.


Workshop Galeria Olido

O workshop foi ministrado na galeria Olido, gratuitamente, é um espaço público e com bonitas salas no centro de São Paulo e de que essa foi uma escolha para facilitar o acesso dos interessados. Escolhi com clareza o campo de batalha. Quando chegamos aqui, aqui permanecemos, esmiuçando o que havíamos encontrado e construindo as pontes com os estudos práticos, trazendo amor e afeto aos movimentos. Aos poucos desenhamos o quadrado inicial da nossa pequena performance, construímos um desenho/roteiro fiel a essa mesma proposta da espreita, pensamento de tudo isso para dividirmos com o público nos dois ensaios abertos. Uma vez que nos preparamos para os ensaios abertos e que também tivemos consciência plena do material a ser gerado para o vídeo, resolvemos caprichar e ampliar nosso leque e apesar de singelo, convidamos mais dois artistas queridos para executar uma trilha sonora ao vivo e também um desenho de luz que foram a Andrea Drigo e o Ciro Godoy. Fizemos dois ensaios abertos no Estúdio 8, da Cia 8 de Nova Dança, lugar que ensaiamos durante o nosso processo, abrindo para o público a nossa pesquisa, divulgamos via redes sociais, flyers eletrônicos e de papel. Como resultado destes ensaios abertos produzimos um pequeno vídeo, editado de um vasto material produzido, que acompanha esse relatório para que possa ser apreciado na avaliação desse projeto. Assim como realizamos registros fotográficos


Dizer que esse novo trabalho “dança e literatura” na forma de um curso/pesquisa ampliou grandemente um novo caminho da minha pesquisa artística, estou extremamente satisfeita. Também acompanha esse relatório a imagem da filipeta do workshop e do ensaio aberto. Todo o material produzido por essa pesquisa encontra-se acessível no blog http://juanitadanca.blogspot.com.br

Ensaio aberto JUANITA

Sinto me plenamente satisfeita com o caminho que essa pesquisa tomou e o “algum lugar” que conseguimos chegar, Eu a bailarina proponente deste projeto e os artistas atratores, provocadores que acompanharam esse processo. Foi um lugar de revelação e compreensão elementar de algumas possibilidades. Me senti totalmente amparada pelo edital que permitiu uma pesquisa na minha opinião de alta qualidade humana e artística. Acredito sim que meus anseios iniciais acharam uma estrada ainda a ser percorrida, mas a estrada foi tomada. Pude trazer como foi a proposta inicial, meu cotidiano e meus interesses literários, no caso, o xamanismo de D. Juan, obviamente tocando de leve alguns dos seus caminhos, como a espreita e suas derivações, a impecabilidade e alguns dos significados do espaço. Não foram citados os outros autores pois suas contribuições são de natureza poética que nos serviram sobretudo como luzes suaves para ajudar a contextualizar os princípios cognitivos de D. Juan.


Ensaio aberto JUANITA

Agradeço profundamente por ter tido essa oportunidade e espero poder continuar atravÊs de outros e novos editais a dar continuidade a essa pesquisa.

Isabel Tica Lemos


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