Sonho de uma Obra, Livro I

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ALGUMAS PÁGINAS E CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTÉTICA

SONHO DE UMA OBRA

DO DESENHO À PINTURA

JOSÉ VIEIRA


Texto transcrito do manuscrito “Sonho de uma Obra” – Livro I, realizado entre Agosto de 89 e Agosto de 1990, para o UAVM Virtual Museu em Janeiro de 2017, no contexto da celebração dos 35 anos sobre a primeira exposição de José Vieira.

JOSÉ VIEIRA 1990 – JV 471 ALGUMAS PÁGINAS E CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTÉTICA – LIVRO 72 SONHO DE UMA OBRA – LIVRO I3 54 páginas manuscritas AGOSTO 1990 UAVM VIRTUAL MUSEUM, JAN 2017

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1. DESENHO A PRETO E BRANCO Concepção estética da forma e da linha A leveza da atmosfera, a rigidez das formas, a ingenuidade da criança, a preocupação estética e adolescente do estar vivo, os rostos de mulher e respectivos bustos, as estruturas geometrizantes. É uma fase de revolta, de ambientes sombrios e formas assustadoras, encerradas em si mesmas, esperando por serem libertadas. É o anseio por um espaço maior, libertador da alma. A libertação surge de forma devastadora, com inserção da forma feminina (“O Olhar dos Corpos Dançantes”, “Galáxia dos Cristais”, “Looking at the Top”, “A Senhora do Manto Branco”, “Olho-­te Daqui”). A mulher é o veículo pelo qual surge a revolta, o despertar da mente e do corpo. É a descoberta de que o sentimento e a vida, ou a experiência vivida, coexistem lado a lado numa estrutura simbólica (própria a cada ser). Essa estrutura é, antes de mais, o denominador comum registado nestes primeiros desenhos;; o fantástico, o sonho. Do retratável, do desenho à vista, passa-­ se ao imaginável, ao confronto entre o mundo que nos rodeia e a forma como sentimos a existência desse real. A arte aqui procura, é utilizada, para retratar a própria vida, relatar tudo aquilo que possa ser significativo para as nossas vidas. Esse relato é, no fundo, o situar-­nos num determinado universo pessoal ou impessoal. Cada fase de uma determinada obra é importante para a compreensão do verdadeiro eu inerente ao conjunto global da obra. No fundo, o início é o desejo fremente de que algo mude nas nossas vidas. Este início surge de uma forma gritante, um grito angustiado que se intensifica ao longo de quatro anos, com uma violência crescente, enérgica e esmagadora perante o peso da linha, que se torna cada vez mais cortante, incisiva, uma vez que o vazio se intensifica. Partindo de uma exploração do espaço através da sombra e da forma, como em “O Olhar dos Corpos Dançantes”, no qual a exploração da sombra em cruzadismo se sobrepõe à anunciação da linha da forma, o desenho acaba por cair na linha pura, no traço construtivo da forma pura. O desenho é suavizado momentaneamente até 86, altura em que a cor acaba por dominar plenamente sobre o preto e branco, fase anunciadora de uma nova visão da sociedade e da própria vida. A ruptura anuncia-­se, porém, três anos antes, em 83, no qual o estágio da revolta se torna até anti-­social. Essa ruptura é preconizada com a inserção da colagem na composição do desenho a preto e branco. No período que se lhe seguiria, o “período experimental BD”, o desenho é totalmente abandonado com “Imagens de um Dragão” em 87. O abandono do desenho a preto e branco – que apresenta vários estágios de evolução até à pintura – deveu-­se a uma certa saturação na repetição da forma expressiva: não fazia já sentido expressar o mundo que ganhara uma nova luz através de formas angustiantes e prenunciadores de uma angústia interior. Neste período, surge também uma reviravolta no campo compositivo, influenciado pelo espaço da pintura. O desenho passa a ser suporte da pintura, esboço de expressão plástica. 3


O elemento libertador A figura feminina é durante toda a fase do desenho um elemento de extraordinária importância: é ele o elemento libertador do ser, o salvador da alma aprisionada por uma infância constrangedora e apática em relação ao mundo. Efectivamente, é através dele que a libertação finalmente surge, mas é uma libertação marcada pela recusa: a alma abre-­se ao mundo, mas é recusada pelo elemento libertador. Este aspecto lança o indivíduo num labirinto do qual não parece ter saída. Assim, o feminino perde o seu vulto, ganha definição, mas está sempre longe de quem o procura. Esta distância acabará por se tornar insuportável originando uma revolta “acesa” com o elemento social: como não poderia deixar de ser é o feminino que abre essa revolta (“A Lambisgóia”, Colectividade Absurda4, AnarScripta nº 1, 1984). O desejo de libertação surge inicialmente com “O Olhar dos Corpos Dançantes” em 1980. O olhar desesperado, o silêncio do diálogo sobre os corpos em movimento, que parecem querer separar-­se, escapar-­se à própria imaginação. O medo. Um sonho interior, o da comunhão dos dois corpos pela dança. O desejo incomunicável de comunhão em movimento, em acção, em jovialidade. Uma presença que marcaria a própria vida, a certeza de que o olhar diz mais que as próprias palavras. Este olhar marca, no fundo, um despertar, o abrir os olhos sobre o mundo. O olhar de “Broa(d)way” (ou recentemente renomeado de “O Labirinto”) de 19805. Principalmente dominado por uma estrutura geometrizante do espaço (do indivíduo), este será o cenário de encontro dos personagens de “A Caminho da Broa” (1983)6. Estes personagens, procuram indefinidamente um caminho sem saber qual, pois encontram-­se completamente perdidos neste labirinto de caminhos que é a própria vida. Mas o autor parece saber qual o caminho;; enuncia-­o em “O Olhar dos Corpos Dançantes” e profetiza-­o em “Galáxia dos Cristais” em 1980. Aqui o elemento feminino e despoletador de uma tempestade que destrói em pequenos blocos a estrutura central. Por detrás dessa estrutura, aparece o sol, anuncia-­se um novo dia, um novo olhar, uma nova claridade. Mas a profecia encerra um desejo e um temor em simultâneo: o do desmoronar completo do elemento social e que este elemento arraste consigo o elemento feminino. Em “Looking at the Top” (1980) a figura feminina olha uma montanha construída à base dos elementos de “Broa(d)way”, montanha esta que olha complaciva, impotente em a escalar. Por cima da figura e da montanha, o sol, a luz, que permanece inacessível. É o sol na sua posição de meio-­dia, de pura inércia. Este temor vem mais tarde a confirmar-­se com “Clamor à Liberdade” (1984) onde estão registadas as duas atitudes (dentro e fora da prisão). Junto a uma grade, ou barras de uma prisão, apresentada sob a forma de recorte, dois rostos parecem simbolizar duas situações: um referente à situação de cativeiro, encerrando em si toda a sede de revolta e, consecutivamente um chamamento ou clamor à liberdade –é necessário notar que o chamamento vem do exterior. O próprio cativeiro pressupõe uma espera – o personagem tem as barbas compridas pronunciadoras da passagem do tempo, da espera. O outro rosto, em liberdade, fora do cativeiro, para lá da grade da prisão, é marcado pela inércia, o seu olhar perde-­se no horizonte, insatisfeito. Esta insatisfação é precisamente o resultado dessa liberdade: o elemento chamador, despoletador dessa liberdade, não aceita o amor do seu libertado. Seguidamente a situação inverte-­se e acaba o sujeito por sair revoltado com o próprio mundo, voltando-­ lhe as costas: o “Sitiado” (1980-­81) apresenta três estágios de uma situação amorosa. Na parte superior, ele olha para ela, mas ela parece ignorar esse olhar. Na parte 4


central, ela é uma árvore, ele uma espécie de pedestal: ela olha para ele, ele para um outro lugar, fios na sua condição de “sitiados” – não existe aproximação possível. Em baixo, o rosto ignora o corpo feminino, revestido de uma certa “zombeteria”. Este “Sitiado” é a reunião de “Entre Linhas” (1981), “Colle” (1981) e o “Farsante” (1980). É preciso notar que esta reunião ocorre em 84, depois já da fase da revolta, parecendo algo clara aqui a reflexão sobre uma certa parte do seu próprio passado6. Esta reflexão está presente, no fundo, em todos os trabalhos desta fase e prolongando-­se até à fase da “Meta-­Pintura”: a arte é encarada como representação de uma experiência. Esta experiência vai evoluindo da relação entre o sujeito e o social para o puro sensitivo. E o elemento feminino é o elo de ligação entre o ser e o social. É ele que surge, quer no desenho a preto e branco, quer na colagem, quer na fase transitiva para a pintura. Surge em “A Senhora do Manto Branco” (1982), “Olho-­ te daqui” (1983), “Collant Sleep 84” (1984), “A Eternidade” (1987) e nas séries “Mulheres I” e “Mulheres II” (1987). Em “A Senhora do Manto Branco” a mulher parece esconder-­se espreitando por detrás de um pano que voa livremente pelo desenho: ela é o centro da atenção, é nela que o olhar se prende, é ela que os dedos apontam, ignorando o sofrimento dele, a súplica. Este desenho ilustra aparentemente o episódio Bíblico de São João Baptista e Salomé. Ele é o sacrificado dos desejos dela, ela o instrumento do desejo dele. A presença dela é o elemento sacrificador de si próprio: através do elemento feminino, o artista entrega-­se aos próprios infortúnios da sua virtude. Em “Olho-­te daqui”, ele olha-­a aprisionado numa esfera, ela corre em direcção ao sol, para longe, para uma porta, para o outro lado da realidade. Ela é o elemento do sonho através do qual é possível atravessar a porta da realidade. No entanto, é ela que corre em direcção ao sol, ele está ali, estático, impotente na sua própria realidade (o buraco que se abre no solo mesmo em frente dele). Em “Collant Sleep 84” o artista encara a mulher frente ao espelho, uma mulher que nos vira as costas e que se metamorfoseia incansavelmente. “A Senhora do Manto Branco”, “Olho-­te daqui” e “Collant Sleep 84” apresentam-­se como uma confirmação anunciada em “Entre Linhas”: o amor que se concebe e alimenta e que se sabe recusado. São, portanto, registos da própria vida amorosa do artista. É a arte como representação de experiências vividas. 5


“Galáxia dos Cristais”, 1980 21 x 30 cm, caneta s/ papel

“Looking at the Top”, 1980 21 x 30 cm, caneta s/ papel

“Senhora do Manto Branco”, 1982 21 x 30 cm, caneta s/ papel

“Olho-­te daqui”, 1983 21 x 30 cm, caneta s/ papel

“Clamor à Liberdade”, 1984 Colagem e caneta s/ papel, 30 x 40 cm

“O Sitiado”, 1984 Colagem e caneta s/ papel, 30 x 40 cm

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2. COLAGEM Com “Teatro de um Relógio Colorido” e “Utopia” (1984), o autor revitalizou o seu imaginário. O objectivo permanece fiel ao seu trabalho anterior;; o de retratar experiências vividas, embora essa experiência se reflicta no exterior, no social, e procure transformar, adaptar essa mesma experiência ao mundo que o rodeava. É em “Teatro de um Relógio Colorido” e “Utopia” que utiliza a colagem pela primeira vez. Ambos são capas do fanzine “Anarscripta”7 editado pelo próprio, e serviram de lançamento ao mesmo projecto – mais curto que o esperado, acabando apenas por editar 3 números, com uma tiragem média de 50 exemplares. Este projecto é importante na obra do autor, pois é através dele que se gera a mudança de espírito, necessária à consciência do acto criador. Este processo é um processo evolutivo, algo lento que se inicia em 83 com “A Caminho da Broa”, um conjunto de textos que pretendem denunciar a incoerência em que a própria vida parece estar estruturada. Esta denúncia apresenta já uma dose crítica, um olhar sobre o social bastante arguto. Se até aqui as formas se encontravam presas e controladas pela dor, pela recusa, pela angústia, pela solidão inconformada, por uma luz insípida que apenas nos ofuca ainda mais os horizontes, partindo de “Anarscripta” as formas libertam-­se, parecem voar pelo espaço, não se importam com a superfície, apresentam-­se incontidas pela dor, o branco domina sobre o negro, sobre a linha, que agora adquire a importância moduladora do espaço, a composição revaloriza-­se e dois novos elementos surgem com a nova luz: a colagem e a cor. “Teatro de um Relógio Colorido” é bem eloquente dessa nova figuração: o elemento humano, os personagens masculinos e femininos, a relação homem / mulher desaparece para dar lugar à relação sujeito / sociedade: a imagem apresenta-­nos um relógio de pulso, uma cadeira e nuvens. O relógio, a cores, centra o olhar sobre si, como um desejo. A cadeira colocada no centro do desenho está inserida num quadrado / quadro do qual parece sair o relógio, do qual o tempo parece fugir e no qual as nuvens se perdem, se desfazem no horizonte. A cadeira é uma longa espera. O relógio o desejo de fugir a essa espera, o desejo de sentir verdadeiramente o tempo, o movimento, a acção, que aparece depois explicitada, algum tempo depois, em “Cruzada Belicista” e “O Gato e o Rato”. Assim, se “Teatro de um Relógio Colorido” desencadeia uma exploração conjunta da linha e da colagem, da conjugação simultânea do preto e branco e da cor, “Utopia” abandona totalmente o desenho e centra-­se exclusivamente na colagem. Existem, assim, formalmente, duas linhas distintas;; uma seguindo a exploração linha / colagem / cor e a outra explorando exclusivamente a colagem / cor. Podemos associar à primeira linha obras como “A Lambisgóia”, “A Torre Sangrenta” e as BDs “Produto Acabado”, “A Eternidade”, “Amanhecer Dourado” e “Viviane”. Na linha de “Utopia”, “Cruzada Belicista” e “O Gato e o Rato”, fase que se desenvolveria em “Imagens de um Dragão” até atingir a extraordinária plasticidade de “Elvis Presley” e “Criação de um Universo”, situados já na fase transitiva para a “Meta Pintura”. 7


“Utopia” encerra os jogos do imaginário, a composição do imaginável. Jogam nesta composição vários objectos de uso diário, tais como um espelho, roupa pendurada, o lavatório, as luvas e o fogareiro. É precisamente na combinação destes elementos que algo novo surge. O autor denominou-­o de “Utopia”. A utopia é uma realidade ideal, imaginária e inalcançável;; ou seja, o real e o imaginário não podem subsistir juntos – o real não pode ser imaginário, nem o imaginário real. Só o real é credível pelos sentidos. Acreditar no imaginário é acreditar numa utopia. Com a “Lambisgóia” o domínio das relações é levado também ao confronto real / imaginário. A imagem é totalmente imaginária e o real, o elemento feminino, surge como acrescento a esse imaginário. É a tentativa de, através do imaginário, procurar adaptar o social às nossas próprias carências / exigências. Esta adaptação é conflituosa, envolve uma determinada luta armada, uma determinada destruição para uma nova construção, uma transformação das estruturas, das crenças, da realidade. No entanto, esta “Cruzada Beliscista” é uma cruzada falhada logo no início: o inimigo, o alvo parece esconder-­se (“O Gato e o Rato”). No entanto o autor parece aperceber-­se de que a estrutura do mundo está podre por dentro, é uma enorme torre que se abre no céu, que sangra por dentro, minada no seu interior – é o mndo interior do sujeito que ameaça romper-­se, todo um mundo que nos parecia credível e que subitamente parece querer desvanecer-­se ante os nossos olhos (“Torre Sangrenta”). 8


“Teatro de um Relógio Colorido”, 1984 21 x 30 cm, caneta e colagem s/ papel

“Cruzada Belicista”, 1984 21 x 30 cm, colagem s/ papel

“Torre Sangrenta”, 1984 30 x 42 cm, caneta e colagem s/ papel

“Utopia”, 1984 21 x 30 cm, colagem s/ papel

“O Gato e o Rato”, 1984 21 x 30 cm, colagem s/ papel

“A Lambisgoia”, 1984 21 x 30 cm, caneta e colagem s/ papel 9


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3. BD EXPERIMENTAL As formas suavizam-­se, as sombras desaparecem, a superfície ganha luz, a linha acentua-­se, ganha força, intencionalidade, energia, cor, aproxima-­se do vídeo clip, assume uma modernidade nostálgica para logo ser substituída pela agressividade da mancha colorida. Nasce assim a pintura. Existem, assim, duas fases formais separadas e especificamente diferentes: refiro-­ me às fases do desenho (com exploração da linha) e da pintura (com realce da forma e da cor). Ambas as fases são inter-­activas, existindo um momento em que as duas procuram existir conjuntamente. O momento de transição processa-­se através da BD. À medida que o desenho, a linha colorida, se combina com uma outra superfície colorida, inserindo conjuntamente a forma e a colagem, o sentido pictórico da imagem começa a assumir-­se cada vez mais, procurando cada imagem tornar-­se independente em relação à outra, apresentando-­se como um todo sem necessidade do conjunto das imagens e do texto interligante das imagens para a realização total do contexto. É preciso assinalar que a BD não se apresenta só como um fenómeno de transição desenho / pintura, é a reunião da escrita e da imagem, de dois projectos que se tornam um só, como é mais notoriamente visível em “Produto Acabado”, “A Eternidade”, “Amanhecer Dourado” e “A Entrevista” (sendo esta última baseada num conto do mesmo nome)8. O processo inicia-­se com “Produto Acabado” e conclui-­se com “Performance Plástica”9. “Produto Acabado” foi inicialmente concebido como um projecto a preto e branco, situado na fase da colagem (juntamente com “A Eternidade”) e, ao contrário de BDs como “Vicktor Reportagem”, “A Entrevista”, “Amanhecer Dourado”, “Viviane”, “Imagens de uma Galeria de Arte”, “Casaco Dependorado” e “Imagens de um Dragão”, as imagens não estão limitadas. A concepção clássica da vinheta não existe. O texto vive independente da imagem completando o seu sentido: oferece-­lhe a dimensão desejada, o movimento do próprio sonho. Cada imagem não procura desenrolar uma história, é uma história, um mundo que o sentido poético do texto interliga. Assim temos: Imagem / texto

Dependentes

Vicktor Reportagem, A Entrevista

Independentes

Produto Acabado, A Eternidade, Amanhecer Dourado, Casaco Dependurado, Imagens de uma Galeria de Arte, Viviane, Imagens de um Dragão

Sequenciada

Vicktor Reportagem, A Entrevista, Casaco Dependurado, Imagens de uma Galeria de Arte, Viviane

Não sequenciada

Produto Acabado, A Eternidade, Amanhecer Dourado, Imagens de um Dragão

Imagem

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“Produto Acabado”, 1985 BD, x pag., 21x30 cm Caneta, lápis cor e colagem

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“A Eternidade”, 1985 BD, x pag., 21x30 cm Caneta e colagem

“Vicktor Reportagem”, 1985 BD, 5 pranchas, 21x30 cm cada Caneta e lápis cor

“Amanhecer Dourado”, 1985 BD, x pag., 21x30 cm Caneta, lápis cor, colagem

“A Entrevista”, 1985 BD, 5 pranchas, 21x30 cm cada Lápis cor, caneta, aguarela

“Imagens de um Dragão”, 1986 BD, 6 pranchas, 21x30 cm cada Tinta d’ óleo e colagem


4. AGUARELA Transição para a pintura A fase BD foi precedida por uma fase de aguarelas que, ao redimensionarem a própria BD – esta passa a ser encarada como massa colorida e não como desenho que é colorido;; o desenho inscreve-­se e participa da própria (estrutura da) imagem: rompe-­se com o conceito de vinheta, da imagem interligada, passando cada imagem a ser um ente único, independente em si mesma – encaminham as imagens para a reflexão pictórica, como mostram os desenhos que se debruçam sobre a pintura renascentista. Estes desenhos procuram eliminar todos os elementos supérfluos da imagem, revelando a sua estrutura, a sua organização espacial, como é o caso de “Perspectiva Renascentista I – o triângulo”, baseado na “Santíssima Trindade” de Masaccio. Existe também nestes desenhos o primeiro confronto com a plástica como é o caso de “Nú Deitado” e “Mulher Saindo do Banho” e ainda “Homem de Costas frente a Rectângulo Vermelho”. Como fase transitiva para a “Meta Pintura”, estes desenhos apresentam, por assim dizer, duas fases distintas: a primeira revela a estrutura do desenho, da linha construtiva da imagem, a segunda integra o desenho, a linha, na possibilidade agregadora da imagem. Linha / footage Perspectiva Renascentista I -­ O triângulo, Perspectiva Renascentista II – A porta, O poste, Rosto em Claro / Escuro, Mulher de Costas com uma Cadeira Linha / plástica Homem de Costas Frente a Rectângulo Vermelho, Nú Deitado, Mulher Saíndo do Banho Footage / colagem Elvis Presley, Criação do Universo Plástica / colagem Colgate Bi-­Fluor Plástica / aguarela Construção Metonímica do Interior de uma Sala com Vulto e Footage / óleo sem Telhado, Vulto Vermelho à Janela, O Palhaço, Mulher Olhando o Mar O modelo torna-­se necessário para a consolidação plástica pura e absoluta – a arte é aqui encarada como pura execução, execução esta que acaba por se libertar completamente da forma, do modelo, porque a pintura começa a mover-­se para dentro, para o expressar de uma necessidade interior (que já existia antes) e que é aqui consciencializada (sobretudo a partir de “Mulheres I”). Essa tomada de consciência é sobretudo feita sobre a memória de uma determinada mulher, no qual o que se pretender registar não é a forma da mulher, 13


mas sim o sentimento que se prende à memória dessa mulher. A arte é elemento de expressão de uma determinada vivência, de um passado que deixou de estar presente e que, por isso mesmo, deixou de ter forma. Outro aspecto importantíssimo é o tipo de suporte utilizado. O suporte não é escolhido e selecionado com o fim de registar nele uma determinada mensagem, surge nas mãos do artista por puro acaso – são madeiras partidas e aproveitadas para o acto pictórico, são objectos anti-­clássicos, anti-­convencionais, desprezam as normas de comunicação, do entendimento, porque é do próprio acto pictórico em si do que se trata. Antes de considerar isoladamente e conjuntamente cada um dos trabalhos inseridos nesta primeira série de mulheres, no qual o que se pretende é registar um sentimento – a pintura é o registar de sentimentos, de pingos de alma -­, é necessária a compreensão das aguarelas, porque é aqui que se enunciam os primeiros esboços cromáticos – a forma encarada como massa cromática. Estas aguarelas não surgiram isoladas, co-­existiram com o período experimental da BD, nas quais se salientam “Casaco Dependurado”, “Viviane” e “Imagens de uma Galeria de Arte”. “Viviane” surgiu da aguarela “Construção Metonímica do Interior de uma Sala com Vulto e sem Telhado”. As quatro imagens que se juntam para formar uma única, o domínio espacial da mancha cromática sobre o desenho é a todos os níveis notória. Primeiro surge inserida no próprio desenho da forma – a linha é separadora das várias manchas cromáticas -­, para logo se libertar da linha e da própria forma. Estas aguarelas serviram para o artista se libertar da linha, do limite sobre a forma e explorar o cromatismo e o gestual. “Homem de Costas frente a Rectângulo Vermelho” e “Vulto Vermelho à Janela” são outros exemplos deste novo conceito – a plástica. Plástica essa que atingiria os seus limites na BD em “Imagens de um Dragão”, que consecutivamente aportaria à “Meta Pintura” que constitui a “Série de Mulheres I”. Três trabalhos, por outro lado, são percursores da abordagem artística vindoura: “Mulher Olhando o Mar” e “S/ Título 1 e 2”.

“Perspectiva Renascentista I – O Triângulo”, 21x30 cm, óleo e frotage s/ papel, 1987

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“Vulto Vermelho à Janela”, 1987 21x30 cm, aguarela s/ papel


“Nú Deitado”, 1985 21x30 cm, aguarela s/ papel

“Mulher Saindo do Banho”, 1987 21x30 cm, caneta e aguarela

“Homem de Costas...”, 1987 21x30 cm, aguarela s/ papel

“S/ Título”, 1987 24x36 cm, frotage

“Construção Metonímica...”, 1987 63x51 cm, aguarela s/ papel

“Mulher Olhando o Mar”, 1987 21x30 cm, óleo s/ papel 15


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5. META PINTURA Série de Mulheres I A “Meta Pintura” pressupõe o polo oposto ao desenho: enquanto o desenho aporta o delimitar de uma superfície / forma, a expressão de uma ideia, a pintura como acto em si, deve colorir uma superfície, dar cor ao vazio, encher o vazio de sentimento. A forma encerra em si um determinado conceito de leitura, de significação, é delimitada e limite da superfície, pretende encerra-­la / encerrar-­se numa dimensionalidade concreta. A ausência da forma é a ausência do limite, da dimensionalidade perspectivada. O acto pictórico encerra a perspectiva em si mesmo, fornece leituras e insere dentro de si a superfície / suporte. Deste modo, nesta série de seis quadros / objectos, é necessário considerar a pintura isolada em si mesma num suporte que pretende concorrer em leitura com o próprio acto que sustenta. Para perceber a verdadeira dimensionalidade destes trabalhos é preciso recuar um pouco até “Performance Plástica”, primeiro gesto do artista inserido na Performance. O tema é a plasticidade como acto e acção do sentimento. Não se parte do vazio, o quadro a intervencionar não está em branco, está colorido em tons marinhos, a ondulação calma das ondas. Este princípio será muito importante para os trabalhos que se seguirão, fundamentalmente em dois aspectos: o abandono da classicidade na pintura, o acto pictórico está ligado à consciência da História da Arte, está ligado à consciência e vivência do próprio artista, à experiência dessa vivência e consecutivamente à sua memória. Os quadros partem (tal como em “Performance Plástica”) (ver pag. 41 de “Diário 1987”10, Livro III) de um suporte já intervencionado, quer no caso de possuir uma determinada imagem (origem depois da “Série Mulheres II”, “Morrisey” e “Ama do Homem e do Mundo em Particular”) tal como em “Mulheres I” (1, 2 e 3), ou no caso de o suporte não ser clássico (“Mulheres I – 5”), ou o quadro se apresentar fragmentado (“Mulheres I – 4”). Nesta primeira série de mulheres – originadora da exposição “Cenas e actos do Desespero” -­, aborda-­se já a duplicidade plástica-­conceptual que viria a marcar futuramente toda a sua obra. A plástica é a imagem dominante, o acto de pintar em si mesmo destituído do seu valor representativo ou significante. A “Série Mulheres II” e “Morrisey” são disso testemunhas, o que interessa é o modo como se pinta aquilo que se pinta (“Diário 1987”, Livro III, pags 31, 38-­41, 46-­51). 17


“Mulheres I -­ 5”, 1987 37x128 cm, óleo s/ madeira

“Mulheres I -­ 1”, 1987 70x100 cm, mix s/ madeira

“Mulheres II -­ 1 1987 21x30 cm, aguarela e colagem

“Elvis”, 1986 21x30 cm, colagem 18

“Mulheres II -­ 3 1987 30x21 cm, colagem

“Morrisey”, 1987 70x85 cm, óleo s/ poster


Notas: 1. “José Vieira Collection” é a designação dada pelo artista a toda a sua obra escrita. No presente caso trata-­se do livro 47 dessa colecção. 2. “Algumas Páginas e Considerações sobre Estética” trata-­se de uma sub-­colecção da JV Collection dedicada especificamente à reflexão estética. O presente escrito constitui o seu sétimo livro. 3. “Sonho de uma Obra” é outra sub-­secção da JV Collection: trata exclusivamente dos escritos reflectivos sobre a obra do artista. 4. “Colectividade Absurda” constituiu o primeiro número do fanzine Anarscripta, editado pelo artista em 1984. Neste número, no qual participaram Maria Carreto, Carlos Adaixo e Paula Barreto, Vieira publicou o texto desenhado “A Lambisgóia”, o qual produziu especificamente para esta publicação. 5. “Broa(d)way / Labirinto”, desenho inspirado no álbum “Lamb Lies Down on Broadway” do grupo Genesis. 6. “A Caminho da Broa”, conjunto de textos inspirados no desenho “Broa(d)way”, escritos em 1983. Desaparecido. 7. O fanzine “Anarscripta” teve dois pré-­lançamentos com a publicação de três textos: “A Cadeira e o seu Cãozinho”, ilustrada por “Teatro de um Relógio Colorido” (em

Março 84), “Utopia” ilustrado com a colagem de mesmo nome (Abril 84) e “Jornal-­Eco”, nº zero, que reunia os textos “Manifesto de um escritor Beirão” e “Sopa de Letras”, publicado em Abril e distribuído embrulhado em papel de jornal. O nº 1, “Colectividade Absurda”, surgiria em Junho e em Julho o último número, “Histórias de uma Retrete Bicentina”. De todas as publicações, apenas “Colectividade Absurda” integrou textos de outros autores. 8. “A Entrevista” (JV22), conjunto de 11 textos realizados em 1986. 9. “Performance Plástica” foi realizada em Março de 87 no Centro Cultural da Guarda, integrada num projecto AQUILO -­ Teatro da Guarda. 10. O Diário” é composto por 10 livros, sendo o último de carácter virtual. Os nove primeiros são constituídos por cadernos escritos à mão acompanhados de esboços -­ na generalidade projectos para pinturas.
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Proveniência das imagens Capa – Ilustração original do caderno. Colagem e desenho. Agosto 1990. “Galáxia dos Cristais”, 1980. Caderno de Desenhos nº 1. Colecção particular do artista. “Looking at the Top”, 1980. Caderno de Desenhos nº 1. Colecção particular do artista. “Senhora do Manto Branco”, 1982. Original perdido (fotocópia digitalizada). Caderno de

Desenhos nº 1. Colecção particular do artista. “Olho-­te Daqui”, 1983. Caderno de Desenhos nº 1. Colecção particular do artista. “Clamor à liberdade”, 1984. Caderno de Desenhos nº 3. Colecção particular do artista. “O Sitiado”, 1984. Caderno de Desenhos nº 3. Colecção particular do artista. “Teatro de um Relógio Colorido”, 1984. Desaparecido. Digitalização de fotografia. “Utopia”, 1984. Caderno de Desenhos nº 1. Colecção particular do artista. “Cruzada Belicista”, 1984. Caderno de Desenhos nº 1. Colecção particular do artista. “O Gato e o Rato”, 1984. Caderno de Desenhos nº 1. Colecção particular do artista. “Torre Sangrenta”, 1984. Caderno de Desenhos nº 3. Colecção particular do artista. “A Lambisgoia”, 1984. Caderno de Desenhos nº 1. Colecção particular do artista. “Produto Acabado”, 1985. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “A Eternidade”, 1985. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “Vicktor Reportagem”, 1985. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “Amanhecer Dourado”, 1985. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “A Entrevista”, 1986. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “Imagens de um Dragão”, 1986. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “Perspectiva Renascentista I – O Triângulo”, 1987. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “Vulto Vermelho à Janela”, 1987. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “Nú Deitado”, 1987. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “Mulher Saíndo do Banho”, 1987. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “Homem de Costas frente a Rectangulo Vermelho”, 1987. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “Construção Metonímica de uma Sala com Vulto e sem Telhado”, 1987. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “S/ Título”, 1987. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “Mulher Olhando o Mar”, 1987. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “Mulheres I – 1”, 1987. Colecção do Artista. “Mulheres I – 5”, 1987. Colecção do Artista. “Mulheres II – 1”, 1987. Colecção do Artista. “Mulheres II – 3”, 1987. Colecção do Artista. “Elvis”, 1986. Caderno de Desenhos nº 2. Colecção particular do artista. “Morrisey”, 1987. Colecção do Artistista. 20



JANEIRO 2017


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