Zimbro - Junho de 2016

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Com a ironia das legiões de operários tiritando de frio nas madrugadas geladas, de caminho para as fábricas onde produziam, com as próprias mãos, agasalhos em lã que lhes eram interditos, Ferreira de Castro realça uma dupla vulnerabilidade da espécie humana: às tendências exploradoras dos mais fortes, por um lado, e também a um ambiente natural rigoroso e limitativo. Este impacto humano de uma pressão ambiental (que hoje não passaria indiferente aos ambientalistas) teve o seu paralelo na ocupação privada dos baldios ─ bem retratados no romance como áreas de usufruto comum destinadas a pastagens de Estio ─ e na Lei do Povoamento Florestal de 1938, que intensificou a arborização das encostas a um ritmo feroz, movida pelo autoritarismo insensível do Estado Novo15. A agrestia natural e a paisagem humanizada da Serra da Estrela foram saudadas literariamente por Aquilino, Torga, Oliveira Martins e muitos outros. Mas a Ferreira de Castro, mais do que a efabulação sobre uma Natureza bucólica e pacífica, interessou um “novo realismo” literário, tecendo uma narrativa atenta aos dramas sociais da época16. Aos públicos português e brasileiro e aos das suas vinte e duas traduções (incluindo uma em esperanto)17, A Lã e a Neve mostra uma outra natureza, uma outra terra ─ menos cantada, mais austera, pouco capaz de despertar o fascínio humano. Não o cenário de um sonho, de prosperidade e saúde, mas palco de extremos ─ trabalho, fadiga, sacrifício ─, elemento incontornável a agravar o desencanto do quotidiano. Ainda assim, nada que não encontre cura ou apaziguamento na velha filosofia de esperança com que Ferreira de Castro encheu a voz de muitas personagens e deu corpo à sua obra. [Texto lido no Encontro-tertúlia sobre o romance A Lã e a Neve, no Ecomuseu do Zêzere, Belmonte, a 18 de Outubro de 2014] 15A Lei do Povoamento florestal de 1938 submetia os baldios à arborização maciça das zonas serranas, essen-

cialmente com espécies resinosas, como o pinheiro-bravo, para a indústria de celulose. Entre 1936 e 1942, o arranque de árvores e os incêndios criminosos tiveram um enorme incremento (Torres, E. e Marinho, Luís. 2001d. O Século do Povo Português, Vol. IV, Alfragide, Ed. Ediclube). 16A que também Aquilino Ribeiro fora sensível, ao dedicar às movimentações camponesas da “questão dos baldios” o romance Quando os Lobos Uivam (1942). 17Entre 1936 e 1973, segundo levantamento de Bernard Emery (“Ferreira de Castro, Além-fronteiras”, in Vária Escrita n.º 3, 1996, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, p.44).


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