Lado B

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A vida vista às vezes com ironia, às vezes com sarcasmo, mas sempre com muito bom-humor e sentimento, nas crônicas do jornalista Rodrigo Ziviani.


Sobre o autor Rodrigo Ziviani é de Ribeirão Preto e começou a carreira de jornalista ainda na Faculdade de Direito, escrevendo notícias e crônicas para “O Jornal de Batatais”. Depois, formou-se em Comunicação e logo começou a colaborar com outros meios, como “O Comércio da Franca” e sites de expressão, como “Observatório da Imprensa”. É repórter e apresentador de TV, mas nunca deixou de lado a escrita, sua grande paixão. Mantém o “Blog do Zivi” (http://rodrigozivi2.blogspot.com.br) desde 2009, onde publica crônicas sobre arte e comportamento, sempre com uma visão diferente, geralmente avessa ao senso comum.


Prefácio “Lado B” foi o melhor título que encontrei para ilustrar este meu primeiro ebook, com algumas de minhas crônicas favoritas. Porque é assim que me considero, especialmente como jornalista: um profissional que gosta de virar o disco, ouvir e ver o que há por trás do óbvio e do senso comum. Nunca me contentei com as aparências, com o fácil, com a primeira digestão. Minha natureza, como escritor e analista do mundo, é de ir além, cavar mais fundo, analisar tudo sob outras perspectivas e detectar o que pode estar escondido sob os lençóis que todos aceitam como padrão. Questionar. Este sempre foi meu verbo favorito. Conjugo sempre que posso, fazendo uma relação com a minha vida, com a minha visão de mundo, com as minhas experiências e com as histórias de quem conheço e que sempre me fascinam. Como todo jornalista, sou fascinado pelo ser humano. Desvendá-lo, às vezes, me provoca tristeza. Porém, na hora de escrever, por mais sarcástico que eu possa parecer, não perco o bom humor. Que pode ser negro, aviso. Mas, no decorrer da leitura, espero deixar sempre um sorriso, nem que seja no canto da boca, de quem se aventurar pelas minhas palavras. É tudo de alma e coração. Elas podem ser fúteis também. Mas não se engane. É só pra deixar tudo mais leve. Como é maravilhoso poder escrever. Que este seja o primeiro de uma coleção de livros de minha autoria. Boa viagem!


Pós-graduado em Madonna

Origem da ilustração: fulaninha-entretenimentos.blogspot.com

Sou fascinado por Madonna desde que comecei a deslizar os olhos pelas primeiras linhas escritas sobre a cantora no começo dos anos 80. Minha admiração por ela transcende a música, os clipes, os filmes, os shows e os livros. Madonna é uma espécie de mãe ideológica para mim. Sua obra e atitude


são uma aula sobre arte, sexualidade, religião, estilo, comportamento e, sobretudo, autenticidade. Madonna, aos 52 anos e mais atual que as imitadoras com a metade da idade dela, não é uma artista para ser simplesmente tocada no rádio e reverenciada pelas constantes reinvenções. Por tudo o que significa (se você não sabe, sugiro um google rápido), Madonna já inspirou cursos em quatro universidades dos Estados Unidos e em outras tantas pela Europa. Merece ser estudada. Foi o que fiz, a partir de 1984, e levei a efeito agora, no fim do meu curso de pósgraduação em Linguagens Midiáticas, pelo Centro Universitário Barão de Mauá. Realizei um sonho em frente à banca de mestres, doutores e curiosos: explicar Madonna para quem ainda a subestima. Meu trabalho tem como foco a mais recente turnê, “Sticky and Sweet”, que varreu o planeta em 2008 e 2009, tornando-se a mais lucrativa já feita por uma artista feminina. Fui testemunha ocular do espetáculo, apresentado a um Morumbi lotado e estupefato. Tive o privilégio de conferir de perto a extravagância de Madonna, que completou a transição, ensaiada em turnês anteriores, entre o videoclipe e os shows. Madonna conseguiu transformar a performance ao vivo em um videoclipe gigantesco, sem intervalos entre as músicas, com efeitos especiais impressionantes e presença de palco inigualável. Pagou um preço por isso. Para conseguir se comunicar com o público jovem, cria da internet, ficou relativamente dependente da tecnologia, talvez a grande responsável por tornar um show de Madonna algo tão grandioso. Além, claro, da própria artista, sempre no comando, nunca submissa, nem mesmo às luzes e telões. Durante a apresentação do meu trabalho (que, curiosamente, sucedeu um a respeito de como Lady Gaga "inovou" nos videoclipes), pude constatar, novamente, o quanto Madonna e tudo o que a cerca desperta interesse. Os olhos vidrados da pequena plateia me encheram de alegria e realização, especialmente os de minha mãe, Maria Célia, que disputa com Madonna o papel mais influente na minha existência. O que mamãe apontou um dia como “apenas uma fase” acabou tomando a forma de uma monografia aplaudida e que deve seguir para mestrado. A performance de "Like a Prayer", que fiz questão de exibir num telão, foi a cereja no bolo apaixonado que ofereci aos presentes. Hoje, de certa forma, posso dizer que sou pós-graduado em Madonna. Com nota máxima. Um título que me deixa orgulhoso e grato. Obrigado a todos que participaram do processo e aos que me assistiram e perceberam que Madonna, embora muito divertida, também é coisa séria. Valeu, rainha do pop. Sem você, o mundo teria sido - e ainda seria - um bolo fofo e sem graça. E não haveria Gaga e similares para distrair os menos exigentes.


Que raiva do Michael Jackson!

Origem da ilustração: Recados Fotografias de michael Jackson: recado.info

Eu sou um dos milhares de órfãos deixados por Michael Jackson, na ocasião de sua morte, em 2009. É dele a culpa pelo meu primeiro mico. O primeiro mico a gente nunca esquece. Tentei imitar Michael Jackson na escola, no começo dos anos 80. Na hora do recreio, lá estava eu, ensaiando um “moonwalk” desastroso, ao som de “Beat It”, minha música favorita. Que raiva do Michael Jackson! Com seus vinte e poucos anos, Michael conseguiu se tornar um ícone incontestável. A carreira meteórica ao lado dos irmãos, que formavam o divertido “Jackson Five”, serviu de trampolim para “Thriller”, seu segundo disco solo, o mais vendido de todos os tempos. Até hoje. O clipe da faixa-título, com aquela trupe mágica de mortos-vivos, é considerado por especialistas o mais importante e revolucionário da História. Que raiva do Michael Jackson! A vida pessoal e as bizarrices que a cercavam logo se tornaram uma estratégia


óbvia de autopromoção. Ninguém pode afirmar com certeza se Michael dormia em uma bolha livre de germes. Se fez todas aquelas plásticas para se parecer cada vez mais com seu ídolo, Diana Ross, o que ele, de qualquer forma, conseguiu. Se abusou sexualmente de garotos e calou a boca dos pais com acordos milionários. Se seus filhos biológicos, com os rostos sempre cobertos com máscaras, toalhas ou véus, foram resultado de inseminação artificial. Se o clareamento da pele, até ficar translúcida, foi mesmo por causa do vitiligo, ou se ele queria trocar de cor, porque podia tudo. E se começou a abusar de analgésicos desde que teve o couro cabeludo queimado durante a gravação de um comercial. As dúvidas turbinaram a fama. Que turbinou as vendas. Que turbinaram os boatos. Até que tudo saiu definitivamente do controle. Nada disso abalou o status de Rei do Pop. Bastou que fizesse uma ou duas coisas geniais para que o mundo o desculpasse por qualquer coisa. Que raiva do Michael Jackson! Em meados da década de 90, Michael Jackson já agonizava. Física e artisticamente. A venda dos discos despencava na mesma proporção em que seu corpo definhava. O responsável por elevar a música negra ao primeiro nível do pop nas décadas de 70 e 80 se transformou em uma figura medonha e patética. Ao invés de admiração, despertava pena. Na medida em que sucumbia às próprias esquisitices, Michael Jackson percebia o inevitável: era incapaz de angariar novos fãs. Passou a ser um artista datado, restrito a um público fiel, imenso, porém limitado. O até então imbatível “showman” se transformou em algo que nunca, em seus piores pesadelos, conseguira imaginar: um cantor mercadologicamente inviável. Ainda assim, permaneceu com uma base impressionante de seguidores, capaz de fazê-lo acreditar que continuava poderoso. Que raiva do Michael Jackson! O menino de infância roubada, que veio a se tornar o maior astro de todos os tempos, não perdeu só o nariz, mutilado em incontáveis cirurgias. Perdeu a mão para os negócios e se afundou em dívidas incalculáveis. Perdeu o tino, a força. Mas se recusou, até o último suspiro, a largar o cetro, a sair do trono, a deixar que alguém ousasse questionar sua genialidade, embora encoberta por tantos escândalos. Afinal, era um artista completo, com carisma inabalável. Cantava bem, dançava com maestria, compunha, se envolvia na produção dos shows e vídeos. A milhas de distância das figurinhas pré-fabricadas que banalizam a música popular norte-americana. Prova de que Michael ainda não tinha perdido a majestade é que a turnê de 50 shows pela Inglaterra em 2010 estava com todos os ingressos vendidos. Que raiva do Michael Jackson! Lá de cima, em algum lugar, o Rei do Pop deve estar rindo de tudo. Enquanto coloca o papo em dia com Elvis, John Lennon, Janis Joplin, Jimmy Hendrix e Bob Marley, Michael se gaba de ter tido o fim mais espetacular da história da música. Comoção digna de um rei que, apesar de todos os deslizes, conserva intacta a relevância artística. Morrer assim, de surpresa, foi a última cartada, ainda que não planejada, de um homem que pode ser acusado de qualquer besteira, menos de ter tido uma trajetória medíocre.


O trono do pop está vazio. E o mundo inteiro sentiu. A “Michaelmania” voltou. Como na época em que eu dançava “Beat It” na escola. Que raiva do Michael Jackson!


De saco cheio

Origem da ilustração: opapainoel.com.br

Natal já deu no saco. E não é o do Papai Noel. A data me lembra três coisas: shopping lotado, pirralhos gritando em lojas de brinquedos e a parentada reunida em torno do rango, fingindo que se atura, em nome da tradição. Papai Noel não está em questão. O mais eficiente golpe publicitário da História não passa pela minha chaminé desde que me dei conta do engodo. O Natal é das massas. É nos shoppings, antes templos da elite, que o povo comemora. Graças ao Papai Noel dos brasileiros, Lula. Com mais dinheiro no bolso, os pobres comem Big Mac, compram de tudo um pouco e vão ao cinema. A maioria com seus trezentos filhos a tira-colo. Sem preconceito, por favor. É fato: shopping é um tiro que saiu pela culatra. Arquitetado como uma réplica da cidade perfeita, virou feira livre e disputa com a praia o título de lugar mais democrático do planeta. De playboy a favelado, de pitboy a emo, de patricinha a faxineira, de héteros a trans, todo mundo ganhou o direito de passear e consumir. É bom, mas é ruim. O ar condicionado mal dá conta. Os banheiros estão sempre sujos. Estacionamento lotado. Fila até pra olhar vitrine. Barulheira na hora do filme. Tudo isso piora na época do Natal. Papai Noel, mais fake do que nunca, aproveita e se multiplica como mágica. Porteiros, zeladores, seguranças e aposentados aproveitam para fazer um bico. Ajeitam a barba de algodão, ensaiam o sorriso e ganham uns trocados para tirar aquelas fotos constrangedoras com a pivetada, mais interessada no último modelo de celular do que no trenó com o saco de presentes. O lado mais pernicioso do Natal, contudo, está em casa. A data vende a ilusão de que felicidade é necessariamente se cercar das pessoas que a biologia nos impõe como família. É uma equação absoluta: Jesus + presentes + um monte de criança chata + panetone + peru + o porre dos parentes + cartão de crédito estourado = missão cumprida. Eis o meu problema com o Natal. Não cola. É tão fake quanto a barba do porteiro que se traveste na frente da loja. Não tenho de cumprir missão alguma. Minhas equações são relativas. Nenhuma delas inclui um senhor da melhor


idade com excesso de peso e que voa em um trenó puxado por renas pra lá de suspeitas. Não acho que Deus aprove Jesus como coadjuvante na campanha de marketing do bom velhinho. Além disso, venho de uma família que é o retrato de muitas: gente distante que simplesmente não se importa. E que, de repente, no dia 25 de dezembro, dá o ar da graça por telefone, ou por um cartão mal rabiscado, ou então resolve aparecer para filar a boia. Na boa? Exceto minha mãe, minha irmã, meu pincher, o morzão da minha vida e alguns pouquíssimos amigos, não faço questão de mais ninguém para dividir a uvapassa. O Natal mais feliz de que tenho lembrança foi no melhor estilo "Esqueceram de Mim", mas sem os assaltantes que atormentam o garoto Culkin. Passei com meu cachorro, deitado no sofá, vendo filme de terror e devorando um pote de sorvete com nozes. Sem obrigação social. Só eu e meus prazeres. E uma sensação de paz incrível. Que pude dividir, sem as cortinas da hipocrisia, com os meus queridos, assim que pisaram em casa. Este, sim, o verdadeiro sentido de um Natal sufocado pelo american way of life e pelo conservadorismo. E só pra sacanear com o Papai Noel, já encomendei a ele meu presente: o DVD de "Natal Negro", slash movie de 2006 que mostra Santa Claus como um assassino serial em busca de uma família pra chamar de sua. A ironia é mesmo a minha melhor amiga. Vou passar a ceia com ela. Merry Christmas, everyone!


Bebê a bordo

Origem da ilustração: danilodsgn.blogspot.com

Outro dia, em frente à televisão, me deixei levar pelo enredo bobinho de um filme que mostrava uma mulher linda, loira, bem-sucedida no trabalho e em boa parte da vida pessoal. De repente, ficou desesperada para ter um filho. No final, pulava sobre a cama, com as mãos na barriga, rindo de orelha a orelha, após receber a confirmação da gravidez. Fui dormir com uma interrogação: ser mãe é mesmo padecer no paraíso? O cinema e a TV sempre foram armas estratégicas em mãos conservadoras. “A escolha de Sofia”, que rendeu o primeiro de muitos Oscars a Meryl Streep em meados da década de 80, traz o clássico dilema: entre os filhos, qual escolher no caso de uma tragédia? “Bebê a Bordo”, novela de 1989, escrita por Carlos Lombardi, brincava com uma trama policial e o clichê de que todo recém-nascido é uma gracinha, com o poder de unir casais em crise. É como se houvesse um consenso de que não há nada que um “gugu-dadá” não resolva. De lá pra cá, pouca coisa mudou. O cinema, com raras exceções (como as obras densas de Sam Mendes, pai de “Beleza Amaericana”, de 1995, e “Foi apenas um sonho”, de 2008) continua perpetuando a mesma espécie de produção, com casais e bebês como retrato fiel e irretocável da felicidade. As novelas, idem. O reflexo está na vida real. “Quero ter pelo menos um filho, porque não quero morrer sozinha”. Assim definiu seu anseio pela maternidade uma colega de trabalho. Muito querida, por sinal. Mas ingênua. Filho, algum dia, foi sinônimo de companheirismo até a morte? Sejamos realistas. A maioria, se não morre antes, põe os pais no asilo. Uma cena tão comum e difícil de digerir quanto a de mães que abandonam seus bebês em caixas de papelão ou latões de lixo.


No meu trabalho, quase todo mundo já tem filhos no currículo. Um rapaz de 24 anos, de uma empresa concorrente, já se casou e tem dois rebentos. O último acabou de nascer. Os dois por acidente. O casamento, claro, foi meio forçado. Aquela velha história... Mesmo Michael Jackson, talvez o ser mais assexuado que o planeta já viu, tratou de garantir seus descendentes, sabe-se lá como. E para meu espanto, um amigo gay me revelou que, lá pelos seus 40 anos, vai querer um filho. De novo, sabe-se lá como. “Quero me sentir mais responsável por alguém e menos sozinho”, justificou, juntando-se ao coro universal. Sugestão, então: adote. Minha única esperança era a protagonista da extinta série de TV “Sex And The City”, Carrie Bradshaw, interpretada pela charmosa Sarah Jassica Parker. Durante seis temporadas, Carrie, uma jornalista solteira e quase sempre bem resolvida, questionava os desígnios da maternidade e o casamento socialmente imposto. Para ela, gravidez e marido seriam os maiores inimigos da mulher moderna, que pode gastar muito melhor o dinheiro suado almoçando fora com as amigas e em sapatos da moda, sem culpa. Doce ilusão. A série acabou. Na vida real, Parker é mãe de dois. Com isso, perdi não só a esperança, mas também a referência. Não há para onde correr. Estou cercado de bebês banguelas e pais pretensamente satisfeitos. Seria eu o único da espécie que não acha graça na idéia? Isso faz de mim alguém ruim? Não quero mais gente no mundo. Não quero ter que levar criança em posto de saúde, escola, shopping, loja de brinquedos, cinema e lanchonete. Não quero aturar birra em local público. Não quero exibir filho em festa da empresa como troféu. Não quero decidir se o quarto do neném vai ser amarelo, azul ou rosa. Não quero perder minhas noites de sono nem minhas viagens. Não quero conversar com ninguém sobre camisinha, drogas e rock´n roll. Quero um sofá sem manchas de chocolate. Quero sexo só por prazer. Ouvir a música que eu gosto e ver filme até de madrugada. Quero arrumar as malas e pegar um ônibus amanhã, sem dar satisfação ou me sentir culpado. Quero chegar em casa depois do trabalho e ter silêncio pra jantar e assistir ao jornal. Quero minhas coisas no lugar, minhas paredes sem rabiscos e meus amigos pra uma cerveja, de vez em quando, sem ter hora pra chegar. Quero namorar pra sempre, sem casar. Quero envelhecer feliz, com todos os meus queridos e até seus filhos ao meu lado, mas sem a preocupação de que, um dia, coloquei alguém pra respirar sem questionar ou mesmo me responsabilizar totalmente pela sua caminhada. Quero outras responsabilidades. Quero cuidar melhor da minha vida, amar com mais maturidade, respeitar os animais, reciclar o lixo, gerar menos poluição. Quero o bem de todas as crianças, não se engane. A maioria delas nem sabe que só estão aqui para aplacar os temores de seus pais egoístas. Acho até que daria um bom pai. Mas não sou como minha mãe, que sempre coloca um sorriso no rosto ao dizer que teria mais filhos se pudesse. Não nasci pra isso. E estou em paz com essa constatação.


Se um dia acabar num asilo, talvez seja o único a me gabar de que entrei ali por livre e espontânea vontade. Jamais colocado por um filho em quem depositei falsas e inocentes expectativas. Até lá, tenho tempo. Pra mudar de idéia, inclusive. Para isso, porém, vou precisar de um filme ou uma novela que me dê uma razão melhor que a perpetuação da espécie ou o fim ilusório da solidão. Aí, quem sabe, serei capaz de responder com mais propriedade aquela pergunta que todos os pais se fazem, sem coragem de verbalizar: Filhos... melhor não tê-los?


Diário de um bêbado

Origem da ilustração: colunabar.blogspot.com

Poucas coisas na vida são mais desagradáveis do que gente bêbada. Já tive meus momentos de Heleninha Roitman, mas nunca me abstive do senso crítico. Sei que, quando bebo, fico insuportável. Insuportavelmente alegre, insuportavelmente divertido e insuportavelmente inconveniente. Um porre, literalmente.

Festa open bar é armadilha. Em uma delas, há pouco tempo, me dirigi ao bar com a desculpa clássica: precisava de umas biritinhas para me soltar. Depois de uns quatro copos de Fanta com vodca, lá estava eu, dançando como um descontrolado, até mesmo quando a pilha de todo mundo estava acabando. Era um desses momentos insuportavelmente alegres. O sorriso se recusava a deixar meus lábios, e as pernas não me obedeciam mais. Era tão bom e, ao mesmo tempo, tão irritante. Porque gente bêbada é um saco. Sempre com aquela felicidade embriagada estampada na cara e aquele estado de euforia que somente o álcool, munido de todo o seu poder entorpecente, é capaz de proporcionar. Para os sãos ao redor, nada pior do que um bêbado alienado e contente pulando por perto. Chega a dar nos nervos. Sim, eu estava dando nos nervos naquela festa, rindo de tudo, me acabando de dançar uma música eletrônica meio sem alma, semi-inconsciente, graças à Fanta com vodca. Esta não foi, contudo, a pior bebedeira da minha vida. Até hoje, me lembro de


ter tomado apenas uns cinco mega-porres. O primeiro, quando meu organismo conheceu, enfim, os devastadores efeitos do álcool, foi o mais traumático. Precisei ser carregado de um bar, onde, inclusive, já tinha quebrado uns dois ou três copos por acidente. Sem falar nos impropérios que eu tinha dito para uma moça que eu mal conhecia. Parei com essa história quando percebi que ajoelhar de frente a um vaso sanitário para expelira bile é, talvez, o fundo do poço para um ser humano que se pretende decente. Felizmente, já conehço meu limite. Sei quando estou passando da medida, e aí eu paro. É o suficiente para evitar um coma alcoólico ou uma jorrada de vômito na roupa de alguém, embora seja quase impossível evitar alguns micos de praxe. O importante é que nunca mais enfiei a cara na privada depois da balada. Ainda me dou o direito de ficar “alegre” de vez em quando, mas é só. Porque, quando bebo, continuo sendo insuportavelmente chato, feliz, divertido. A diferença, agora, é que aprendi a ficar a vários passos da degradação e do ridículo.

Devo tudo isso ao espelho. Minha imagem pós-porre era sinônimo de culpa e vergonha. Culpa por ter me maltratado tanto a troco de nada; vergonha por ter sido o palhaço mais exuberante do circo da vida, onde os aplausos são substituídos pela chacota dos sóbrios. E olha que eu nem gosto tanto assim de bebida, o que me deixava absolutamente sem justificativa.

O álcool sempre funcionou como um desinibidor necessário para me livrar da serenidade que me persegue no dia-a-dia.Por sorte, ou quem sabe até por causa dessa seriedade da qual por vezes quero fugir, aprendi a deixar o álcool entrar na minha corrente sanguínea, assim como permito que um visitante adentre à minha casa. Ao visitante, assim como ao álcool, é preciso mostrar a porta na hora certa.

Hoje, são vários os colegas que me lembra daqueles porres do passado, assumindo a função do espelho que me incomodava anos atrás. Preciso agradecer a eles pelo alerta constante de como um bêbado pode ser triste. No Carnaval, por exemplo, tropeço em vários. O bafo de pinga, cerveja ou sei lá o quê, a voz molenga, o raciocínio lento, as risadas involuntárias, típicas de uma felicidade trágica, que só poderia ter surgido no fundo de um copo (ou de vários) estão lá, na cara daqueles palhaços que tomaram meu lugar no circo. Meu deu uma certa satisfação egoísta constatar que passei de protagonista dos porres a coadjuvante. É muito melhor. Continuo rindo, insuportavelmente feliz, e dançando, insuportavelmente descontraído, depois de umas quatro


doses. Porém, no dia seguinte, consigo me lembrar bem de quem realmente deu vexame. Posso até ficar meio tonto, mas aprendi a manter a classe. Mesmo que isso não me torne menos chato quando me rendo aos encantos de um Hi-Fi. Afinal, com ou sem classe, bêbado é sempre um porre.


Deus no happy hour

Origem da ilustração: phoris.blogspot.com

Às vésperas de mais um aniversário, tive um sonho curioso. Lá estou eu em um barzinho chique-decadente, saboreando um Cosmopolitan, num daqueles momentos de solidão necessária, beirando a autossuficiência. Adele, tímida e poderosa, canta “Set fire to the rain” em um palco escuro, para poucos privilegiados. De repente, Deus senta-se ao meu lado e puxa papo. Quer saber mais da minha vida. Eis a nossa conversa. Deus – Oi, Rodrigo. Tenho te observado lá de cima e dado boas risadas. Como você está? Rodrigo – Oi! Você por aqui, assim? Que surpresa! Eu estou bem. Estou às vésperas de outro aniversário, você deve saber. Deus – Claro. Quantos anos mesmo? Rodrigo – 15, aloka! Humm, 35, mas com carinha de menino, graças a você. Deus – Verdade. O tempo tem sido generoso, não é mesmo? E sua família? Rodrigo – Olha, posso te contar sobre minha mãe e minha irmã, que são a minha verdadeira família. Estão ótimas, saudáveis, uns amores. Temos uma ligação muito forte e gostosa. Amor genuíno. Quanto aos outros, me desculpe, mas não me importo muito. Espero que estejam bem.


Deus – Imagina, não precisa se desculpar. Família é algo complicado mesmo, porém uma excelente escola. O que acha que aprendeu? Rodrigo – Aprendi a ser forte, mesmo sozinho. A não culpar meus pais pelos meus erros e minhas fraquezas. A perdoar quem não sabe amar. A desejar o bem, mesmo a quem não me fez nenhum. E a não me sentir culpado por não querer conviver com pessoas que nunca tiveram nada a me acrescentar, sejam parentes ou não. No fim das contas, aprendi muito sobre o poder da escolha. Eu escolhi ser bom e a fazer o melhor que eu puder. Deus – Ótimo. Quem te influencia em suas escolhas? Rodrigo - Minha mãe, porque me ensina muito sobre amor ao próximo, sejam quais forem as circunstâncias. E a Madonna. Não a Nossa Senhora. A cantora mesmo. Deus – Sua mãe é mesmo especial. Vocês têm uma conexão divina. Fiquei curioso com a Madonna. Rodrigo – Pois é, todo mundo fica. Parece bobagem, mas não é. Quando passei por alguns dos meus testes mais dolorosos, a Madonna, mesmo de longe, foi uma tábua de salvação. Acho que não preciso explicar muito, você a conhece bem, tudo o que ela fez, faz e significa. Foi com ela que aprendi a me aceitar como sou, a ter orgulho de mim mesmo, a fazer meu melhor e a encontrar você, meu grande amigo, dentro de mim. A Madonna me faz bem por ser um exemplo de força e determinação. Deus – Sem falar nas músicas da Madonna. Eu gosto daquela safada. “Like a Prayer” é minha favorita. Rodrigo – A minha é “You´ll See”. Deus – Eu sei. Essa é legal também. Bom, e a vida aqui na Terra? O que tem achado das tentações? Rodrigo – Eu não me lembro muito bem do que conversamos antes de eu descer, mas devo ter te implorado para vir por causa de sexo e sorvete. Deus – É verdade. Como tem aproveitado? Rodrigo – Com moderação. Sorvete eu sempre tenho em casa. Já o sexo, prefiro com amor, o que é muito difícil de encontrar, né? Sexo é uma coisa de louco. Sem bom senso e equilíbrio, podemos desviar do caminho. Aliás, aqui são muitas as distrações, não? É esse o nosso teste, certo? Deus – Certo. A existência carnal é o melhor dos testes, porque desafia a força do espírito e do caráter. É assim que você se conhece. Todo mundo pensa que é fácil antes de nascer. Eu sei o quanto é difícil manter o equilíbrio para vocês. Rodrigo – Pois é. Eu estou me saindo bem? Deus – Claro que está! E mesmo quando erra, te vejo com muito carinho. Ninguém nasce tirando dez em todas as matérias. Você tem estudado e melhorado suas notas dia-a-dia. Rodrigo – Obrigado. Eu me esforço. Faz bem para a minha autoestima. Deus – Autoestima é tudo! E vejo que tem se exercitado.


Rodrigo – De duas a três vezes por semana. Minha saúde está ótima. Estou bonitão, não estou? E a miopia eu disfarço com lentes de contato, até poder operar. Tô bem, tô bem. Deus – Vixi. Rodrigo – Rsrs. Deus - O que te incomoda, além da miopia? Rodrigo – Acho que as pessoas, de forma geral. Sou míope, mas vejo tudo com clareza. Conviver é uma arte. Este planeta é estranho, cheio de contradições. Fico muito triste quando vejo alguém maltratando um animal. Deus – Zivi, posso te chamar assim? Rodrigo – Pode, que legal! Deus – Então, Zivi. A Terra é um planeta de evolução intermediária. Você veio para cá, porque ainda vibra nessa freqüência, em alguns aspectos. Em outros, está mais evoluído. Aqui, há extremos de prazer e dor, bondade e maldade. Há coisas que você só pode ter neste lugar. Lições que precisa aprender. Conversamos sobre isso, lembra? Rodrigo – Lembro, vagamente. Estamos mesmo numa montanha-russa. Acho que vou sair vivo dela. Só gostaria de viver num mundo menos hipócrita, egoísta, falso, cruel, de tantas aparências. E não é irônico eu trabalhar em televisão? Deus – Esse outro mundo existe, e você vai conhecer. Cada coisa a seu tempo. Sobre a TV, você está se saindo bem, não se preocupe. A vaidade não é um de seus pecados. Rodrigo – Ah, que bom. Eu sei qual é o meu maior pecado: luxúria. Deus – Relaxa, tá tudo bem. Além da luxúria, achou amor? Rodrigo – Ah, sim! Nossa, que dádiva. Dá trabalho, mas vale muito a pena. Deus – Fico feliz. O amor de verdade transforma a gente. Você é, sem dúvida, uma pessoa melhor. Me conta: o que acha que aprendeu de mais importante nesse último ano? Rodrigo – Olha, aprendi a reconhecer meus erros e a não ter medo de melhorar a mim mesmo. Aprendi a amar melhor e a não me considerar o centro do universo. Continuo individualista, admito. Egoísta, nunca. Também aprendi a ter mais paciência. Paciência não é uma virtude muito comum aos geminianos. Deus – Nossa, isso é verdade. Reconheço e te aplaudo por isso. Rodrigo – Não é? Hoje mesmo fui cortar o cabelo, e o barbeiro, conhecido de infância, colocou o DVD da Paula Fernandes como som ambiente. Minha primeira vontade foi me jogar pela janela, mas respirei fundo e até elogiei a moça. Voz bonita a dela. Deus – Muito bem! A Paulinha é gente boa. Rodrigo – Aff, me poupe.


Deus – Ok, o que você vai se dar de aniversário? Rodrigo – Este ano, estou dando cara nova ao meu ap. Amo a minha casa. Ela mostra um pouco do que eu sou. Deus – Ela mostra muito! Tenho acompanhado. Sua casa está bem aconchegante e muito agradável. Bonito daquele sofá, viu? E o que quer ganhar de mim? Rodrigo – Sei que é clichê dizer isso, mas a vida, apesar dos perrengues, já é um presente e tanto. Apenas continue me proporcionando situações para que eu tenha mais sabedoria. Sinto que já aprendi muito, mas que a estrada ainda é longa. Peço saúde a todos que amo. E que eu possa ser forte nos momentos difíceis para seguir em frente. Deus – Seu desejo é uma ordem. Sua estrada será aquilo que você quiser que seja. Vai colher o que plantar. Eu estarei sempre com você. A gente se ajuda. Rodrigo – Claro, meu amigo. Sei disso. Sempre soube. Deus - Vai ter festa? Rodrigo - Não. Comemoro com paz e sossego. Deus – Sem dúvida, um ótimo jeito de celebrar. Vou nessa, Zivi. Vá devagar com esse Cosmopolitan, hein! Álcool demais estraga a máquina! Rodrigo – Eu sei, nem gosto muito. Quero imitar a Carrie de “Sex and the City”. É a bebida preferida dela. Deus – Vira homem e pede uma breja! Rodrigo – Rsrs. Bebe uma comigo? Deus – Não, muito trabalho a fazer. Que encontro agradável! Rodrigo – Nossa, demais. Também gostei muito. Deus – Fique com Deus. Ou melhor, comigo! Rodrigo – Rsrs. Já estou. Me dá um abraço aqui. Deus – Opa! Rodrigo – Obrigado por tudo. Deus – Feliz aniversário! Adele continuou cantando, até a última gota do meu copo. Acordei meio bêbado, sorrindo e com uma certeza reforçada: tenho um amigo de verdade. Presente imbatível esse.


Eu odeio “Avatar”

Origem da ilustração: entretenimento.r7.com

Eu odeio “Avatar”. Sabe aquele ódio? Não vi e não gostei. Pelo trailer, que me foi empurrado retina abaixo, e pela sucessão de teasers em revistas, jornais e até no lanche que eu costumava saborear, grito: a empreitada megalomaníaca de James Cameron é simplesmente intragável! Cameron não era de todo ruim. Na verdade, era ótimo quando não se levava tão a sério. Sou fã de “O Exterminador do Futuro”, “Aliens”, “O Segredo do Abismo” e “True Lies”, todos sob sua batuta. Foi em “Titanic” que ele desandou. Mais de três horas de um filme insuportável, com Celine Dion ao fundo. Na minha sessão, rezei para o Leonardo DiCaprio afundar logo e me deixar voar para a lanchonete ao lado. Não vou correr o risco de novo. Não com “Avatar”. Eu quis ver, admito. Logo no começo, quando supus que a superexposição seria algo volátil. Não foi. A produção, que custou inaceitáveis 500 milhões de dólares, chegou a dois bilhões em bilheteria e ocupa fácil ao lugar mais alto do pódio entre as mais rentáveis. Para Cameron e sua turma, basta. O que sei de “Avatar” é pelo incessante boca a boca. Uns adoraram. Outros odiaram. A maioria comprou ingresso com dias de antecedência. A sala 3D foi a mais disputada. Gente que não ia ao cinema desde “...E o Vento Levou” agarrou a pipoca e viu “Avatar”. Por essas e outras, sério candidato a filme mais pentelho da história. O lançamento do DVD foi igualmente execrável. Cameron, mais um gênio da publicidade que propriamente um bom cineasta, começou o barulho


prometendo uma edição especial com cenas de sexo entre os habitantes de Pandora. O diretor foi mais longe e deu a entender que a tribo teria relações sexuais através das caudas. Declarações que fizeram triplicar meu ódio por “Avatar”. Assim como aconteceu com “Titanic”, que abocanhou onze inexplicáveis estatuetas do Oscar, “Avatar” teve destaque na cerimônia de premiação. Cameron é o único modernoso bem quisto pelos senhores tacanhas da Academia. Não é para menos. Seus filmes, embora disfarçados de ousadia – meramente tecnológica – são odes ao conservadorismo típico dos americanos. Em “Aliens”, o bem, representado pelos humanos, vence o mal com cara de alienígena. Na epopéia do transatlântico, DiCaprio e Kate Winslet personificam a detestável fantasia do amor ingênuo e eterno, à prova até da morte, que leva tantos casais ao erro do casamento inquestionável. Em “Avatar”, novamente, aventura e romance se misturam, sem espaço para abstrações. É aquilo ali. Em 3D. Lindo de morrer. Irritante de matar. Não acrescenta nada, exceto, claro, pelos milhões de dólares na conta dos produtores. Graças a nós, platéias prémoldadas, predispostas somente aos enlatados e duramente avessas aos tão necessários pontos de interrogação. Então, pergunto: por que ver “Avatar”? Por que pegar uma fila quilométrica, procurar lugar em uma sala lotada, cheia de pipoca no chão? Por que agüentar conversinha paralela, colocar um par de óculos ridículo e fingir deslumbramento? Por que concordar que “Avatar” é obrigatório? Só porque o cara resolveu torrar meio milhão em um monte de gente azul e paisagens coloridas? Todas as minhas perguntas produzem eco naquilo que James Cameron costuma buscar realização: cifras. Neste caso, não exatamente impressionantes. O DVD de “Titanic” pode ser comprado por R$ 9,90 na maioria das locadoras. Com o tempo, o maior filme da história se tornou o que eu sempre achei: barato e insuportável. No fim das contas, todo mundo percebeu o óbvio: “Titanic” é um porre. Uma farsa que se revelou aos poucos, muito bem escondida pelos truques do marketing. “Avatar” é reprise. Tô azul de raiva. Decido não participar do mico. Esse eu deixo o James Cameron pagar sozinho.


Só queremos ser aceitos

Origem da ilustração: kelisoares.blogspot.com

Me add? O ponto de interrogação mais clichê da internet - e que eu dispenso norteia "A rede social", de David Fincher. Vi, gostei e recomendo. O filme, que a princípio parece ser sobre a batalha judicial acerca da criação do Facebook, não é entretenimento apenas para espectadores com noção básica sobre as redes sociais. É também um libelo atual e realista sobre a incessante e paranoica busca por aceitação. Marck Zuckerberg, o pai do Facebook, deve a essa busca os 25 bilhões de dólares que acumulou até agora. A rejeição pela paquera da faculdade, o que aos olhos de muitos é algo bobo e corriqueiro, foi o trampolim para a fortuna. Frustrado por não ser correspondido, Zuckerberg inventou a ferramenta que hoje conecta meio bilhão de pessoas. E que, assim como ele, só querem ser aceitas. O filme de Fincher mostra que o mérito de Zuckerberg, eleito como a personalidade do ano pela revista Time, não é exatamente o Facebook, tão ou mais tolo que Orkut e similares. O mais jovem bilionário do mundo é notável por transformar um limão azedo (o amor de mão única) em uma limonada saborosa. O nerd ignorado pela namorada foi, então, aceito pelo mundo. Ao menos financeiramente, saiu no lucro. "A rede social" brinca de maneira inteligente e menos óbvia com outras camadas do senso comum. O Facebook é a tal da casa de ferreiro com espeto


de pau. Como pode algo tão popular e rentável ter saído da cabeça de alguém tão tímido, quase antissocial? Zuckerberg é, sem dúvidas, empreendedor. Mas sua invenção é, antes de tudo, a antítese de um caráter reservado, muito mais afeito ao amor pleno que aos bilhões conquistados graças à eterna procura por algo que nos preencha. E que certamente não é o dinheiro. Os bilionários, enfim, são felizes? Em "A rede social", a julgar especialmente pela última cena, é fácil concluir que nem sempre. O filme, se tomado como metáfora, é um retrato indigesto de cada um de nós. O sucesso do Facebook está diretamente linkado à insegurança que nos guia rumo a uma necessidade vazia de popularidade e aceitação para aplacar a rejeição daqueles que um dia desejamos ter ao nosso lado. "O maior preço que se pode pagar por alguma coisa é ter de pedi-la", escreveu Marcel Achard. Há algo de errado e contraditório, portanto, em pedir para ser aceito, seja na vida real, seja na fantasia delirante dos sites de relacionamento. Zuckerberg, que acaba se revelando muito mais interessante do que a ferramenta que criou, deu uma bengala virtual de presente a um mundo emocionalmente manco que também pretende se divertir e se comunicar. O que a gente realmente quer é amor de verdade. Daqueles à moda antiga, têteà-tête, difícil de achar. Enquanto isso, me add?


Me apaixonei

Origem da ilustração: paixaoeamor.com

Noite de sexta. Aconteceu no aniversário de uma amiga. Até ali, eu tinha um relacionamento sólido, de muitos anos. Não vou negar, no entanto, que já olhava mais para os lados. Por vezes, quis pular do aquário, só para ver o que acontecia no oceano ao redor que por tanto tempo ignorei. Contudo, nunca traí. Sou honesto e careta demais para isso. Levei uma garrafa do meu vinho predileto para a festa. Entre um gole e outro, abracei os amigos, joguei papo fora e me recusei a dançar. A banda era ruim. E o DJ, com seu arsenal eletrônico, fuçou encostado até as três e meia da madrugada. Tive tempo suficiente para olhar em volta e perceber os olhares. Os de uma pessoa em especial: jovem, inexperiente, também comprometida. Trocamos algumas palavras, mas nada explícito. Tudo ficava no ar. Decido não tomar iniciativa. Prefiro assim. Até que, na hora de ir embora, me pediu carona. Nenhuma surpresa. Pelo caminho, um tímido jogo de sedução. Frases de efeito, piadinhas charmosas e aquele frio na barriga típico do primeiro encontro. Na despedida, ainda dentro do carro, apenas um toque carinhoso na nuca e a promessa de contato depois da óbvia troca de números de telefone. Tomei o rumo de casa com taquicardia, mas não sem antes mandar a mensagem: “Desculpe a timidez”. Na manhã seguinte, recebi a primeira de muitas ligações. As conversas seguiam num ritmo maravilhosamente lento, romântico, com as intenções


subentendidas. O clima nebuloso e inocente me inebriava e afligia. O que eu faria com meu relacionamento de tantos anos, um amor construído tijolo a tijolo, cimentado com a dádiva da cumplicidade? Eu, enfim, começava a dar os primeiros pulos do aquário m direção a um oceano de incertezas. Trocamos e-mails. Marcamos de nos encontrar para conversar sobre a profissão e frivolidades. No meu apartamento, onde vivia sozinho, por opção.Não sabia o que o destino me reservava. Mas tinha certeza do que queria. A garrafa de vinho, separada especialmente para a ocasião, cumpriu sua função gole a gole. Nos sentamos no tapete da sala, nos aproximamos e, de repente, recebi o primeiro beijo. Tão quente, tão bom e tão estranho. Todas as minhas referências amorosas, que se resumiam a uma pessoa, começavam a se diluir no fundo dos nossos copos. Naquela noite, não passamos da intimidade labial e das carícias. Precisava puxar o freio de mão, em nome da minha sanidade. Assim que criei que coragem, mas chorando muito, pedi um tempo ao até então amor da minha vida. Não escondi nada. As lágrimas só secaram quando fui dormir. Detalhe: não preguei o olho. Dali em diante, eu e meu “novo amor” nos víamos pelos menos duas vezes por semana. Descobri alguém com maturidade e com muito em comum comigo, apesar da pouca idade. Os beijos tinham um gosto de novidade que, por conveniência, desdenhei por tempo demais. O sexo demorou para rolar, como nos tempos dos meus pais. A expectativa só fez aumentar a sensação de que aquilo era bom demais para ser verdade. De fato, era. Na contramão dos acontecimentos e do que eu sentia, meu “novo amor” me desferiu um golpe prematuro. Diferente de mim, não agüentou lidar com a pressão de ter de terminar um relacionamento para engatar outro, fresco e desejado, como manda o manual dos bons modos. Se eu, vez por outra, ainda puxava o freio de mão, talvez já prevendo que meu coração pudesse rolar desfiladeiro abaixo, meu “novo amor” não só puxou – com força - , como resolveu descer do carro. Todo o carinho, todas as promessas de sentimento sincero e a delícia de uma nova experiência deram lugar, então, a um enorme e pesado ponto de interrogação. As doces frases pelo celular, antes três ou quatro por dia, foram reduzidas a uma ou nenhuma. As ligações, tão esperadas no começo da manhã e no fim da tarde, pararam. Percebi que havia me metido na sinuosa e peculiar teia da paixão, sempre intensa, curta e dolorosa. A ilusão de que o sumiço podia ser apenas um mal entendido me permitia insistir. Minhas mensagens, tão indagativas quanto preocupadas, eram quase sempre ignoradas. Foi assim que me dei conta: a paz de espírito que conquistei a duras penas por tanto tempo acabara de se transformar no inferno do interesse não correspondido. Até que numa noite de domingo o celular toca. Meu coração dispara. Queria, enfim, me ver. Mas na hora marcada, lá estava eu, sozinho. Uma outra ligação


veio, desta vez com um pedido de desculpas. Não haveria mais encontro. A raiva, diretamente proporcional ao meu desejo de ter ao menos mais um beijo que transportasse ao começo de tudo, me fez dizer que não agüentava mais. A última mensagem que recebi me arrancou o choro com brutalidade: “Sinto muito fazer você passar por essa situação. Mas isso não é para mim”. Um nocaute. Vitória da covardia. Não chegamos a um mês. Foi o suficiente para me tirar o sono, três quilos, a noção de bom senso, um pouco da dignidade e até de minha tão inabalável autoestima. Até no trabalho, minha tábua de concentração e recompensa, fiquei avoado e sem estímulo. Estava entorpecido pela recordação dessa paixonite boba que me fez tão bem e tão mal. Lá no fundo, esperava por aquela mensagem, aquela ligação, aquela declaração de amor no melhor estilo Hollywood, que só os amantes novatos e desesperados são capazes de fazer. Por fim, estava fora do aquário, solitário, nadando em um oceano que não imaginava ser tão frio e perturbador. Seria o meu fardo por ter infligido dor e decepção a alguém que me amou incondicionalmente, a quem paguei impondo distância? Pode ser. Voltar para o aquário, contudo, estava fora de questão. Seria de uma canalhice e embaraçoso comodismo. Preferi nadar um pouco mais, ainda que sem rumo. Mais festas de aniversário virão. E com elas, quem sabe, um outro peixe que possa me olhar nos olhos com ternura, me amar sem medo por mais de três semanas e me mostrar que, apesar de dura, a vida pode ser boa novamente.


E pensar que...

Origem da ilustração: katieparavidatoda.blogspot.com

E pensar que um dia acreditei que você fosse o amor da minha vida, que nosso encontro não foi por acaso. Quem nunca foi ingênuo? E pensar que talvez eu não fosse sua alma gêmea, e sim sua alma complementar, com quem poderia aprender e melhorar no exercício da tolerância e do respeito às diferenças. Eu consegui. Sempre disposto. E você? E pensar que as nossas diferenças nem são tão gritantes assim, comparadas às nossas afinidades, à nossa química, coisa difícil de achar por aí. E pensar que todo mundo achava a gente um casal lindo. Eu também. E pensar que apostava na idéia de você me aceitar e me amar pelo que sou, pelo potencial que tínhamos de relevar o que era ruim, priorizar o que era bom, tudo em nome do amor, sempre mais forte. E pensar que, depois de tantas idas e vindas, ainda não conseguimos ficar sem falar um com o outro. Saudade? E pensar que, por mais que desejemos a serenidade de uma amizade civilizada, seremos obrigados a lidar com o fato de que, bem lá no fundo, nunca vamos conseguir nos olhar como simples amigos. E pensar que sermos tão diferentes e nos gostarmos tanto me fascinava, me deixava cada vez mais interessado em te compreender, me colocar no seu lugar, rever posições, voltar atrás, se fosse preciso. Orgulho? Com você, jamais.


E pensar que quando a sexta-feira vem chegando, já começo a sentir aquele frio na barriga, aquele vazio que só o tempo tem o poder de aplacar. Cadê os nossos filmes, o cachorro-quente, a cerveja de que você tanto gosta, a minha Coca-Cola, a nossa cumplicidade? E pensar que, provavelmente, nunca mais a gente viva com outra pessoa o que a gente teve. E que teremos de conviver com essa constatação tatuada em nossos corações. E pensar que não posso mais te receber com queijo, vinho, cheirinho de sabonete e um largo sorriso no rosto no final de mais um dia. E pensar que agora os dias são comuns, robóticos, sem graça, porque antes a gente tinha um ao outro toda noite. Pode me ouvir aí de longe? E pensar que a nossa viagem, apenas nós dois, não aconteceu. E pensar que você queria ter tudo junto, eu não, e mesmo assim poderíamos ter tudo. E pensar que quando toca a nossa música no rádio, não tenho mais a quem abraçar e agradecer, apenas recordar. E pensar que, depois desse tempo, meu coração ainda bate tão forte a cada lembrança. E pensar que a gente brigou por tanta coisa insignificante perto do que sentimos. E pensar que talvez nunca encontremos um substituto para esse amor. E pensar que você nem chegou a ver os novos travesseiros, o sabonete chique, os outros livros que comprei. E pensar que aquela caixa de jogos não inspira mais diversão. Com quem vou partilhar as vitórias, as derrotas, as risadas e os apelidos carinhosos? E pensar que só você acha graça da minha imitação do Michael Jackson. E pensar que eu pensei ser pra sempre. Sabia que, apesar de tudo, às vezes, ainda penso? E pensar que, pra onde eu olho, vejo tudo meio cinza e melancólico, porque meu mundo era tão mais colorido com você nele. E pensar que, embora eu esteja me curando da distância, o que sinto não se esvai. E pensar que colocamos o presente que a vida nos deu na prateleira dos anos, que vão passar, com novas coisas a nos dizer. Estamos preparados?


E pensar que o "sempre nosso" ainda me enche de esperanรงa.



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