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Uma série de aconteciment s improváveis que me levaram de volta a casa
Pode-se imaginar a minha surpresa quando me deparei no hemisfério sul, a cerca de 14 270 quilómetros de casa. Para ser mais específica, estava na Indonésia, o arquipélago mais populoso do mundo, a maior comunidade islâmica do globo e talvez aquele sítio que menos esperava visitar na minha vidinha de açoriana
Tudo isto começou quase acidentalmente. Inscrevi-me nas Olimpíadas da Geografia porque é um hábito meu inscrever-me em todas as Olimpíadas que se apresentam, e era “só um teste de escolha múltipla”. Algumas semanas mais tarde, deparo-me com um formulário do Google com cerca de 40 questões de dar um nó na cabeça
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Exigia muito da cultura geral, de matéria da disciplina de Geografia com que eu nunca tinha contactado, e de conjeturas com base em informação limitada, para além de uma quantia exorbitante de neurónios. Serei honesta: pela questão número 30, comecei a fazer aquilo um pouco à sorte, porque estava exausta e com certeza, pensava, não passaria daquele teste.

As classificações mais tarde mostraram que esta tinha sido a melhor prova dos Açores, e, portanto, eu tinha-me qualificado para a 1 ª eliminatória da fase nacional das Olimpíadas da Geografia, a realizar no final de maio de 2023, na Universidade do Minho.
Impedi-me a mim própria de reconhecer o tamanho desta minha conquista. Apenas quando entrei nas salas do Instituto de Ciências Sociais, no polo de Guimarães da UM, e vi todas aquelas caras sérias, num grupo composto por estudantes mais velhos e professores continentais vestidos a rigor, é que, por assim dizer, me caiu o peso do mundo às costas Pensei, claro, “Se passar à próxima sdfghjhgfd
eliminatória é um milagre”
Enverguei a minha melhor cara de intelectual inexpressiva e mais uma vez sentei-me em frente a um computador onde se exibia um formulário Desta vez, eram só 30 questões e, entretanto, nos meses que tinham passado, já ganhara muita mais bagagem de conhecimento geográfico nas aulas, para além de alguns tipos de gráfico que estive a desenhar no voo para o Porto. Passei por aquelas questões com a determinação de um Aquiles, cada clique em “Próxima página” era como um tiro de pistola; eu era o cowboy que mandava no faroeste, mais! eu era um CEO a arrombar com as empresas concorrentes e o meu monopólio estava no horizonte!
Pensei em tudo o que me poderia encher de algum tipo de confiança, nem que fosse através de alguma fantasia, e terminei o teste em meia hora, ainda com mais de metade da prova por decorrer. Em vez de clicar em “anterior” para rever as minhas respostas com calma, cliquei em “Submeter” O meu futuro estava selado pela força de um tremelique de dedo e saí da sala de exame de peito aberto, como se tivesse ido tudo de acordo com o plano.
Durante o tempo em que esperei pelos restantes concorrentes acabarem a prova, contei toda esta saga psicológica ao professor que me acompanhou, o professor João
Santos, o meu geógrafo da guarda durante todo este processo. Se tudo tinha sido, logo desde a primeira fase, uma partida do destino, que me tentava fazer subir as expectativas, não estava a funcionar
Pensei em tudo o que me poderia encher de algum tipo de confiança, nem que fosse através de alguma fantasia, e terminei o teste em meia hora, ainda com mais de metade da prova por decorrer. Em vez de clicar em “anterior” para rever as minhas respostas com calma, cliquei em “Submeter”. O meu futuro estava selado pela força de um tremelique de dedo e saí da sala de exame de peito aberto, como se tivesse ido tudo de acordo com o plano.
Durante o tempo em que esperei pelos restantes concorrentes acabarem a prova, contei toda esta saga psicológica ao professor que me acompanhou, o professor João Santos, o meu geógrafo da guarda durante todo este processo. Se tudo tinha sido, logo desde a primeira fase, uma partida do destino, que me tentava fazer subir as expectativas, não estava a funcionar.
Escola
Os resultados tinham sido tão bons que não tinham passado apenas 5, como estava escrito no regulamento, mas sim 8 participantes. Passei. Passei em 7.º lugar - desempatei com o 8.º porque fui mais rápida
O professor João Santos deverá lembrar-se que eu, num momento baixo, não estava nada entusiasmada para continuar. Ora, devo apelar à empatia do leitor, e à sua imaginação, para que comece por entender o meu estado psicológico de sofrimento.
Uma vez mais, teria de fazer frente a uma prova assustadora, com fome e sono - verdade seja dita, as mais desafiadoras limitações fisiológicas do adolescente contemporâneo - e, novamente, convencidíssima que o máximo que conseguiria conquistar seria o desapontamento Uma vez mais o fiz, e saí daquela sala de testes, depois de bem mais de uma hora, com algum alívio e o sentimento de missão cumprida, porque mesmo sob pressão, os resultados refletem o que sei fazer.
Entrámos pela última vez numa das salas do Instituto. Anunciariam os resultados do último para o primeiro lugar, de entre os 8 qualificados à segunda fase. Chamaram um, e outro e mais outro nome, mas não o meu. Mais outro nome, e outro, mas nenhuma Ana nem nenhuma Beatriz Eu e dois colegas foram chamados para a frente da sala: estava no pódio. “Bem, devo ter ficado no 3.º lugar!”.
Chamaram o 3.º lugar: João Santana, de Olhão, no Algarve
Ganhei 1 º lugar Açores, Terceira, no primeiro lugar Praia da Vitória, Vitorino a caminho das Olimpíadas Internacionais da Geografia. Dizer que foi uma surpresa seria minimizar a reação do professor João, e a minha também. O 2.º lugar, Konstantin Esik, a quem mais tarde chamaria Kostya, disse que tinha a impressão de que eu ia ganhar, e eu igualmente dele.
Passou-se maio, e começámos junho, e ir à fase Internacional, na Indonésia, mostrou-se uma empresa improvável. Não parecia haver maneira de cobrir os custos A escola não o podia fazer e a maior parte dos patrocínios tinham sido esgotados na viagem a Guimarães, para além de que era totalmente impossível para a minha família Se não tivesse sido a indignação da professora Rosa Pinto, presidente do Conselho Executivo da escola, ao ouvir que eu não conseguiria representar Portugal, que a fez ligar diretamente a um órgão do Governo Regional dos Açores, talvez esta história acabasse por aqui. A certa altura, a professora ligou-me e confirmou que havia viagem, havia dinheiro, portanto havia Açores na Indonésia, Terceira em Java. É claro que os meus agradecimentos se dirigem à professora Rosa, permanente guardiã dos méritos da Vitorino Nemésio, e também ao senhor professor António Bulcão, que efetivou o patrocínio da minha participação nas Olimpíadas Internacionais
Passaportes, vacinas, autorizações, notários, videoconferências, roamings internacionais, roupas modestas, algodões, expectativas; assim se passaram os dias até 6 de agosto, quando parti de madrugada para Lisboa e me reuni com a equipa portuguesa nas Olimpíadas Internacionais da Geografia que, ao entrar num voo de 6 horas e meia rumo ao Dubai, automaticamente se tornou na Team Portugal da IGeo 2023. João Santana, novamente em ação, Konstantin Esik, vindo direitinho de Torres Vedras com um brilhante passaporte russo, professora Margarida Marques, alfacinha, sempre, e eu, de bandeira azul e branca na mão.
O que nos poderia parar? 14 horas e 30 de avião e mais 3 de autocarro, sem dúvida. Apesar de tudo, chegamos a Jacarta, metrópole vibrante e escaldante do hemisfério sul, na província com o mesmo nome, relativamente pouco distante do litoral da ilha de Java.
Pelas autoestradas afastámo-nos do mar em direção à província de Java Ocidental, Jawa Barat, casa de 50 milhões de pessoas, e acabámos a nossa longa viagem na via principal da cidade de Bandung, rua Braga (sim, Braga). Pusemo-nos logo à conversa com as outras equipas. A Arménia, que tinha tido meses sem fim de preparação, o Canadá, que não fugiu à expectativa e era simpaticíssima, China-Macau, que nos mostraram a arquitetura portuguesa da sua cidade, Indonésia, que partilharam a felicidade de serem anfitriões de todo o mundo, Hungria, onde descobri mais um russo depois de lhe dizer que partilhava o nome com uma personagem da obra de Dostoievski, e a quem ensinámos, para horror deles, a cantar o “Ó malhão, malhão”, Tunísia, que logo reconheceu o azulejo azul no nosso uniforme de equipa, Estados Unidos da América, em que um dos team leaders era casado com uma lisboeta, e, claro, Brasil, que tentaram, sem sucesso, imitar o nosso sotaque europeu.

ESCOLA
Não nos podemos esquecer da Tailândia, que chegou de fato, mas logo se mostrou tão simpática, e Suíça, onde estava escondido um brasileiro e entre os quais adotámos um falante de alemão que ouviu com paciência a “história do frango” (que, infelizmente, não posso partilhar aqui) Tive a atenção de dizer sempre que sou dos Açores, e não só de Portugal, e para muitas equipas, que vinham sobretudo das capitais, foi uma surpresa. E a bandeira azul e branca nunca me abandonou

Há um sentimento de orgulho muito específico com que se fica quando se entra nestes espaços internacionais. Numa conversa, procuramos normalmente o que temos de diferentes dos demais, porque é isso que temos a acrescentar à discussão. Portanto, o tema de conversa que nos representa tende a ser o conjunto das coisas que nos são mais mundanas e desinteressantes quando em casa. Neste tipo de espaços pacíficos internacionais, a diferença é mais fator de união do que exclusão; por alguma razão não passámos muito tempo com os franceses, ainda menos com os ingleses, nem com os holandeses, belgas ou polacos.
Aproximava-se a hora dos testes, a derradeira prova da Geografia Primeiro, um teste escrito; fácil, certo? Faço muitos destes na escola. Errado. Totalmente errado. Durante três horas, o meu raciocínio irrompeu pelas folhas adiante, que nunca pareciam acabar. Em segundo lugar, o teste de trabalho de campo, que ocupou um dia inteiro. Foram-nos tirados os telemóveis e não podíamos falar com a nossa equipa nem com os nossos colegas. Enquanto muitos dos outros participantes pareciam estar a enfrentar esta experiência curiosa, o medo, com hesitação, eu vinha de uma prova nacional violenta, mesmo que menos completa ou menos exigentes que outras provas nacionais Se sabia, escrevia com confiança; se não sabia, fazia como um bom geógrafo e inventava (deduzia, quero eu dizer). Foram nestas longas e cansativas horas que pude ter orgulho e sentir, nos interstícios da escrutinação, a calma que me andava a fugir desde que começara esta viagem com aquele icónico google forms Isto porque o stresse é língua franca, e eu já me dava neste assunto. Escrevi, escrevi, escrevi, não tive medo de escrever. Em terceiro e último lugar, o teste multimédia, em que o Forms foi substituído pelo Power Point (podemos ir longe, mas nunca mais longe que uma gigante multinacional) que passou como um sopro de vento: foi agradável, foi rápido acima de tudo. Não obstante toda as atividades que nos prepararam e a inquietação para saber os resultados, também os últimos dias da IGeo passaram como uma brisa, e, sem nos apercebermos bem de como, estávamos sentados na cerimónia de encerramento. Chamaram nomes, e chamaram nomes, e, desta vez, não chamaram o nosso Rimo-nos na plateia, como bons portugueses, que já esperávamos todo este desfecho. Como bons portugueses, gritamos pelos nossos amigos que subiam ao palco com medalhas de bronze, prata e ouro Ficámos histéricos quando anunciaram que a vencedora era uma nossa parceira da Team Thailand, e ainda mais quando a equipa com a melhor pontuação total era a da Roménia, aquela do rapaz que perguntara se teria direito a pausas para fumar durante o trabalho de campo
Voltámos a Portugal de mãos vazias e coração cheio. Nunca a derrota tinha sido tão fácil.
Recentemente, tive a honra de apresentar o meu testemunho da IGeo no Encontro Nacional de Professores de Geografia, e logo no início do meu discurso sublinhei que tinha, efetivamente, ficado em 1.º lugar a nível nacional “Porque o mais habitual é pensarmos que dos Açores não sai nada de bom” e fui interrompida por aplausos, não por ser eu a dizê-lo, mas por todos os insulares presentes já o terem sentido, por saberem que é verdade e quererem assinalar uma denúncia honesta. Muitos dos continentais que eu conheço parecem ter gosto em dizer que não é verdade, que os açorianos, na realidade, não são diminuídos em Portugal continental. Contudo, nenhuma destas pessoas já foi uma pequena criança caída de paraquedas no Porto, nem a única representação dos Açores numa competição nacional, nem um trabalhador ou estudante deslocado em Lisboa.
Oh, que claro é agora! Relembro toda a convulsão de emoções que me assoberbou durante as Olimpíadas Nacionais, relembro-as como medo de mim mesma, e só nestes momentos sobe à tona a sua origem Medo de mim mesma, açoriana acima de tudo. Medo da soma das minhas fraquezas e das assunções dos demais Medo de ser tida como alienígena Em vez disso, recupero as lembranças das conversas ao jantar em Bandung, quando o mundo me rodeava e se sentava em volta da mesma mesa que eu Grata por ser diferente Grata por ter o que dar Grata por ser algo, livre e novo.
Estou de volta. Por fim, falta-me expressar o mais curioso: foi necessário ir ao outro lado do mundo para poder amar o sítio de onde vim. Afinal, a saudade é o sentimento português porque só longe de casa conhecemos o seu aconchego, e só sem os Açores percebo que não faço sentido sem eles.