Verbo 2021 - Fronteira Sul

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O ACONCHEGO SULISTA O SUL É AFRO

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POVOS ORIGINÁRIOS DO SUL: UMA HISTÓRIA INVISIBILIZADA

ENTOADAS À LA SUL

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FESTAS TIPO EXPORTAÇÃO

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OS GOSTOS DO SUL BRASIL É O PAÍS DO FUTEBOL, MAS NO SUL HÁ OUTRO ESPORTE NO COMANDO

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MAIS GÂNGSTER E HOOLIGAN: O NOVO NAZISMO

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IMAGINÁRIO X REAL: UM ESTADO ENTRE CONFLITOS E INVENÇÕES O QUE VOCÊ PENSA DA REGIÃO SUL?

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O QUE REPRESENTA MAIS O SUL DO QUE CHURRASCO E CHIMARRÃO?

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OS INTERNACIONAIS

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AMOR SEM FRONTEIRAS A ARTE SULISTA O MEU BRASIL É O MESMO QUE O TEU?

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Produto Experimental da disciplina de

Laboratório em Jornalismo Impresso

II, produzido por acadêmicos do 6°

período de Jornalismo do Centro

Universitário FAG, sob orientação da

professora Julliane Brita.

Assis Gurgacz

REITOR

PRÓ-REITORA ADMINISTRATIVA

Jaqueline Gurgacz Ferreira

Aline Gurgacz Ferreira Meneghel

EXPEDIENTE

Afonso Cavalheiro Neto

COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO

Ralph Willians de Camargo

PRÓ-REITORA DE ENSINO, PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

Julliane Brita

PRÓ-REITOR ACADÊMICO

PROJETO GRÁFICO E COLAGENS

PROFESSORA ORIENTADORA

MTB 9755/PR

Jeferson Richetti

Silva, Graziele Santos, Julia

Cappeletto, Maria Luiza De

Marco, Matheus Kafka, Milena

Rolim, Noah Deolindo, Patrícia

Cabral, Richard Guilherme,

Thamilyn Vitória, Thiago

Magalhães, Yasmin Ayres.

No ano em que o curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG completa 20 anos, os acadêmicos do sexto período se propõem a entender a constituição identitária do Sul do País para, de forma ainda mais ousada, tentar alterar o papel dos vencedores e tomar para si mesmos a maior força de todas: a de contar a própria história.

Encontramos coisas das quais não nos orgulhamos - separativismo, neonazismo, racismo -, mas também aspectos que nos fazem compreender para transformar: resistência, arte, solidariedade. A reinvenção do humano, dito por Darcy Ribeiro nosso desafio frente às misturas e violências todas das quais fomos feitos, só pode começar por essa compreensão. É nossa luta por ser um povo de fato, na dura busca de seu destino. E só é possível reinventar depois de compreender o que inventaram de nós.

“Sem Tekoá não há Tekó”, dizem os guaranis, nosso povo mãe. Sem terra, não há cultura. Em busca da identidade que construíram de nós, saímos para investigar o porquê de a menor região brasileira em extensão territorial ser da forma que é. Quem é o sul do Brasil?

A Revista Verbo 2021 parte desta pergunta e, mais ainda, da provocação que ela evoca. Ao nos depararmos com este questionamento, veio à tona o enigma da identidade. Quem somos nós? Quando este “nós” se amplia, olhamos para o primeiro ponto de identificação do grupo, o lugar. O que isso diz sobre nós? Nós, aqui do sul desta imensa porção territorial que ocupa grande parte do continente americano, quem somos?

Quem vence conta a história. Esta é uma lição que a própria História nos ensinou. Primeiro, eles foram chamados de descobridores; depois, de colonizadores. Por muito tempo, apenas eles se denominaram nas narrativas que nos formaram. Mas quem somos quando nós contamos essa história?

CARTA AO LEITOR

JULLIANE BRITA

ELES NÃO VÃO MAIS CONTAR NOSSA HISTÓRIA

SEJA BEM-VINDO À

Verbo Fronteira Sul.

Adiel Soares, Daniela Cássia

ACADÊMICOS

Pavan, Ellen Ehlke Picussa,

Emilly Lazarotto, Gabriel

Felipe, Gabriela Donato da

Crédito das imagens

no QR Code.

Gráfica Escala

IMPRESSÃO

TIRAGEM 500


Região Sul, um lugar que divide opiniões. De grandes belezas, frio, mistérios, culturas diferentes. Quando seus olhos se fecham, que imagem da região você constrói em sua mente? A resposta para esse questionamento será importante daqui para frente. Claro que o território é rico em diversos aspectos, mas, para muita gente, essa região também é marcada pelo preconceito e por um afastamento de outras regiões do país. Cada vez mais o "meme" do sulista nazista cresce e, até mesmo, se fortalece.

Entre os vários estereótipos existentes, os negativos estão se destacando ADIEL SOARES

Um episódio de racismo filmado em um jogo de futebol no ano de 2014. O jogo era Grêmio X Santos.

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Entre muitos casos, irei te lembrar de alguns que ajudaram a reforçar essa imagem. Lembra a torcedora do Grêmio que xingou o jogador Aranha? Patrícia Moreira, a torcedora que chamou o goleiro Mário Lúcio Duarte Costa, mais conhecido pelo apelido Aranha, de macaco. No mesmo ano, Patrícia foi julgada e, assim como Eder Braga, Fernando Ascal e Rodrigo Rychter, outros três torcedores com a mesma pena, teve que se apresentar à 2ª Delegacia de Pronto Atendimento de Porto Alegre uma hora antes de cada jogo oficial do Grêmio. Isso ocorreu por, pelo menos, 10 meses. “Aquela palavra macaco não foi racismo de minha parte, foi no calor do jogo, o Grêmio estava perdendo”, disse Moreira, em um dos depoimentos na época do caso. Em novembro de 2014, a casa de Patricia foi incendiada. O autor, um homem que já havia sido condenado por porte de arma e tráfico de drogas, foi condenado em 2015 a cumprir 2 anos de regime semiaberto. Com certeza, você já ouviu falar do movimento “O Sul é o meu país”. Um fato curioso é que muitos nazis-

Uma imagem repleta de pessoas brancas e parecidas que querem o melhor para sua região.

tas se refugiaram na região Sul. E aquela história sobre Hitler ter fugido para a Argentina? Bom, ele não deve ter ido para lá, mas que outras pessoas de poder em seu governo foram é verdade. Inclusive também estiveram no sul do Brasil.

EM BUSCA DE UMA EUROPA BRASILEIRA Antes de começar a surgir essa identidade do sulista, devem ser levados em conta alguns fatores. Durante os mais diversos processos de imigração da região Sul do Brasil, os europeus eram mais que bem-vindos. Nos anos de 1850 até a abolição da escravatura, em 1888, começou a ser desenvolvido a “política de branqueamento”. Leandro Crestani, doutor em História Contemporânea, conta que em meados de 1850, a cada dez pessoas que viviam no Brasil, sete eram negras e três eram brancas. “Com medo de o Brasil se tornar uma nova África, começou-se a pensar a promoção da vinda do imigrante europeu, ou seja, italiano, polonês, ucraniano, entre outros que compõem essas características étnicas”. Mas o que a região Sul tinha de tão especial para se tornar um novo lar europeu? Um dos motivos foi a condição climática. Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina possuem um clima semelhante aos das regiões de onde eles vinham. Sim, a imigração para a região Sul do Brasil surge através da perspectiva de branqueamento da nação. Esse fato já justificaria muita coisa, afinal, desde os primórdios, o branco era exaltado e o negro rebaixado, escravizado… Aqui, com incentivo do próprio governo brasileiro, os imigrantes começaram a “clarear” a região Sul.

Como isso aconteceu? “Em 1850, foi criada a lei de terras no Brasil, que colocou toda uma perspectiva de como vai ocorrer a comercialização das terras e como esses indivíduos da Europa vão receber o incentivo para vir ao país”, comenta Crestani. Pode-se dizer que, nesse momento, a região Sul começou a criar certa rivalidade com as demais regiões. “Aqui começou a surgir um ‘protótipo’ do europeu, em que essa pessoa não enxerga sua identidade como algo semelhante a dos demais brasileiros. Um dos motivos dessas disputas, dessas características de movimentos, como ‘O Sul é o meu país’ e o ‘Sul que sustenta toda uma nação’, se dá através de uma origem histórica que começou nessa política do branqueamento”, finaliza Crestani.

EUROPEUS BRASILEIROS Talvez você já tenha visto alguém que se denomina alemão, italiano, polonês, entre outras nacionalidades, simplesmente pelo fato de ter descendência desses países. Sim, existem muitos “brasileiros europeus”. Alguns são jovens e foram criados em um ambiente que mantém viva a cultura dos antepassados. O eurocentrismo, uma visão de mundo segundo a qual tudo que se relaciona à Europa é o ideal, é uma realidade no Sul do Brasil. Terra de gente que possui outra etnia sem nem mesmo ter pisado em seu país de “origem”. 5


Essa vontade de se tornar alguém melhor que os demais, de se tornar protagonista da sua história, é uma reprodução do que acontece nos contos do pioneirismo. Em trechos retirados do projeto História Em Prosa, com o professor Doutor Eduardo Bao, transmitido na página do Museu Histórico Willy Barth, no Facebook, é possível entender muita coisa (inclusive, fica a recomendação).

UM DOS ESTEREÓTIPOS MAIS FAMOSOS DO SUL

Alguma vez você já se pegou no pensamento dizendo “hm, essa pessoa é de tal bairro, ela é de tal forma”. Provavelmente, em algum momento, isso deve ter acontecido. Todos estamos sujeitos a reproduzir estereótipos e, quanto menos se discute e se pesquisa, mais fortes eles se tornam.

Rio Grande do Sul, como não se destacar tendo um dos estereótipos mais famosos do Brasil. Afinal, todo gaucho é gay?

O pioneirismo tornou o processo de colonização mais positivo e, junto a isso, de suprimir partes importantes da história. Seguindo esse pensamento, a colonização modernizou em vez de dizimar povos.

Por isso é importante entender essa maquiagem sócio-histórica. Pesquisar sobre o pioneirismo, sobre a Guerra dos Farrapos e outros movimentos que, apesar de serem representados de forma heroica, possuem um contexto muito cruel. Já ouviu sobre os Lanceiros Negros? Esse e outros pontos também marcaram a história do desenvolvimento das regiões sulistas. Querer apagar a importância do negro e do indígena é querer ir contra o próprio país. Ir contra o Brasil, seu brasileiro.

A intenção foi bem-sucedida. Logo o Sul começou a embranquecer. Esta foi a primeira região criada com ocupações minifundiárias, que possibilitaram um desenvolvimento diferente das demais regiões.

Vale destacar que já existiam outros movimentos que se denominavam como superiores. Um deles era liderado por um homem que usava bigode e que gritava muito. Ele já foi citado anteriormente.

Quando se fala em pioneirismo, muita coisa é deixada de lado. “Falar de colonização no sentido mais cru desse processo não é uma coisa muito agradável. Então vamos mudar esse termo. Vamos criar um eufemismo. Vamos falar de pioneirismo”, diz Bao.

Nesse sentido, Bão levanta bons questionamentos: “Por que os negros alforriados não foram aceitos como pequenos fazendeiros no Sul do Brasil? Trazer os imigrantes não era apenas para ocupar as terras, mas para branquear a população. Se esses negros tivessem sido inseridos no Sul do Brasil e recebido todos os benefícios que os brancos tiveram, não teríamos um Sul do Brasil negro e desenvolvido?”, pondera.

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A LÓGICA IMAGINÁRIA E O APAGÃO DA HISTÓRIA

Bom, se é ou não, não importa, mas é curioso saber como esse fato surgiu. Apesar de muitos gaúchos não gostarem e de se sentirem profundamente ofendidos com a denominação generalizada, quem deu início a esse apelido foram eles mesmos. Essa história surgiu e começou a se propagar quando os filhos dos ricos foram mandados para estudar em cidades na Europa, mais precisamente em Coimbra, Portugal, e Paris, França. De lá, eles trouxeram alguns costumes e um deles foi a forma de se alimentar. Eles começaram a comer usando garfo, faca e guardanapos. “Quer coisa mais boiola do que comer com guardanapo?”, disse, ironicamente, o jornalista Eduardo Bueno em seu vídeo As Origens Do Gaúcho, Eduardo Bueno. Junto com esse comportamento e os guardanapos de renda, eles também começaram a utilizar vestes um pouco extravagantes, opostas às usuais bombachas, botinas e outras roupas “raiz” do gaúcho convencional. Foi aí que os gaúchos acharam difícil demais aceitar sem dizer nada. Bah, agora que a própria piada se tornou algo maior, ela é mal vista.


MEU OO MEU BRASIL BRASIL É ÉOO MESMO MESMO QUEOO QUE TEU? TEU? PATRÍCIA CABRAL

CRÔNICA

Quando ouvimos ou falamos que o Brasil é gigante, ele é mesmo, e sem referências diretas e literais apenas à área geográfica, aos climas ou biomas existentes do Oiapoque ao Chuí. Somos vários Brasis num só, em muitos aspectos.

O Brasil dos que lutam por justiça e também dos que tentam impedir, de todas as formas, que ela impere.

Para começar, somos um dos poucos no mundo com tantos fusos horários.

Somos o Brasil dos plurais, o Brasil da diversidade, mas somos também o Brasil que ofende, humilha, exclui e machuca quem ama da forma que quer e quem ele quer.

De diversas fronteiras terrestres? A gente entende: temos muitas, ficamos atrás apenas da Rússia e da China. Dez países são nossos vizinhos diretos. Esses e muitos outros fatores, incluindo locais e os regionais, contribuem para afirmar, em voz alta, que somos/temos muitos Brasis em um só. Alguns linguistas, por exemplo, subdividem o país em duas falas: a do Norte e a do Sul; outros preferem separar em Litoral/Sertão. Os geógrafos dividiram as regiões em cinco: Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Há pouco mais de 25 anos, o antropólogo Darcy Ribeiro estabeleceu, em uma obra chamada “O Povo Brasileiro”, que temos 5 “Brasis” diferentes: O Brasil sertanejo - O Brasil crioulo, O Brasil caboclo, O Brasil caipira e o Brasil sulino.Mas a variedade do nosso povo ultrapassa a formação étnica. Existem vários brasileiros de Brasis diferentes no nosso Brasil. Somos o Brasil dos plurais. Somos o Brasil da contradição. O Brasil das crenças que endeusam objetos, seres mitológicos, e também o Brasil cristão, espírita e até o Brasil dos ateus.

Tem aqui o Brasil multiracial, o que confronta o racismo, e aquele que discursa ódio e violência.

Dentro do Brasil de luxo, da vida boa, da ostentação, existe o Brasil da miséria, da fome e da vida sub-humana. O país de gênios, pensadores e grandes filósofos tem também o analfabeto. O Brasil das universidades é também o Brasil sem estrutura educacional desde o ensino infantil . O Brasil dos campeões mundiais no esporte não é o mesmo onde vive o menino que precisa ignorar o talento para ajudar a família. O Brasil de grandes prédios, condomínios e mansões é diferente do Brasil da favela, do barraco, dos sem-teto. O Brasil do egoísmo, da dor, da violência, da ofensa. O Brasil de quem luta, defende, ajuda, colabora, defende, se doa. Apesar de todos os “Brasis” existentes, desejados, indesejados e imagináveis, temos uma só nacionalidade. Somos brasileiros e precisamos diariamente de força e dedicação de todos para sermos um só povo que, mesmo com tantos costumes, tantos valores e inúmeras paixões diferentes, tenhamos a sensatez e o bom senso baseados no respeito pelas diferenças, compartilhando diariamente empatia e compaixão. Somos um povo-nação sofredor, injustiçado, lutador, mas municiado de fé e carregado de esperança, e, se assim você for, tem lugar pra todo mundo: para o meu e para o seu Brasil. O Brasil não é de um só, e é injusto que ele seja apenas de um povo só. 7


Essas imagens foram criadas a partir de respostas obtidas em uma pesquisa feita com um grupo de pessoas, elas ao serem questionadas sobre o tema “representações culturais” acabam criando várias imagens na cabeça, desde símbolos sólidos até imagens abstratas que estão mais na imaginação ou experiências individuais de cada indivíduo.

LA AS DE VIO "AS MÚSIC AS E E AS DANÇ IS ADICIONA FESTAS TR S HERDADA ANTES DOS IMIGR ". E U R OP E U S

"AS NOSSAS BELEZAS NATURAIS, O QUE NOSSO SOTA DOS DIFERENTE OUTROS, AS ESTAS MÚSICAS E F IS, AS TRADICIONA IAS NOSSAS GÍR DO E A ALEGRIA I". POVO DAQU

O que representa um grupo de pessoas culturalmente e qual motivo para essas representações serem tão aprofundadas ao ponto de serem tão fortes? Elas quebram as barreiras e acabam sendo apresentadas para outras regiões, mostrando a sua força e tradição, levando consigo um pouco da experiência cultural da região? Mas quais os seus motivos para esses símbolos serem tão emblemáticos?

"O SOTAQUE CARACTERÍSTICO, O CLIMA MAIS FRIO E GRAMADO".

Mauro Lúcio Leitão e Marco Pólo Viana, no artigo “As Representações Culturais sobre o planeta Marte”, definem representação cultural como “o conjunto de significados elaborados pelo homem para compreender sua realidade”. Sendo assim, as representações culturais são as formas de conhecimento desenvolvidas pelos seres humanos, para que seja possível encarar o mundo ao seu redor.

Dois elementos muito fortes da cultura sulista que escondem o amor à terra e as belezas naturais da região YASMIN AYRES

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De acordo com o ensaio “Cultura, identidade e trabalho: inter-relações de conceitos”, de Laura Netto e Flávio Ramas, a cultura não é um somente um produto da vivência dos seres humanos. Ela é um processo dessa produção e do sistema conceitual (que é o que permite a compreensão da realidade). Aspectos importantes levantados sobre a conceituação da cultura neste ensaio são o fato de que o homem é um ser de transformação, não de adaptação, e que os fatores culturais são considerados produtos de contextos sociais e históricos. Para falar de cultura, então, é necessário buscar os contextos sociais e históricos daquele lugar, pois esses fatores tiveram alta influência no que resultou a cultura atual conhecida do lugar. Levando isso em consideração, são nítidos dois elementos culturais que acabam destacando-se na região sul do Brasil, o churrasco e a erva-mate (que dá origem ao chimarrão quando é adicionada água quente e ao tereré quando adicionada água fria). Mas, o motivo que faz ambos os elementos serem acentuados tanto dentro da região sul como pelos outros estados brasileiros, é o fato de que na história essas tradições foram carregadas e exportadas para outros estados, através do cultivo da erva-mate e ao cozimento da carne como forma de armazenamento para as longas viagens que eram feitas. O churrasco teve sua origem nos povos guaranis, na região dos mapuches, do Rio Grande do Sul. Com a vinda de jesuítas para a região, na tentativa de catequizá-los, eles passaram a observar os hábitos desses povos e viram que eles assavam as carnes. No Rio Grande do Sul, já existia um princípio de criação de gado e de

"COSTUMES TRAZIDOS DA EUROPA".

muito tropeirismo, além da leva de gado para outras regiões do Brasil, principalmente São Paulo. “Passaram a observar que assando as carnes nessas viagens de tropeiros, facilitava muito a vida dos tropeiros, porque matava um boi e durava praticamente até o final da viagem. Assava a carne, fazia lá uma farofa, e com o passar dos anos foi se fortalecendo, principalmente no Rio Grande do Sul”, diz o jornalista investigativo Estefano Anzoategui. A ampliação da colonização fez com que essa cultura do churrasco fosse expandida para outras regiões do Brasil, por causa da subida dos gaúchos para Santa Catarina, depois para o Paraná e para outras regiões. Já a cultura do mate é um pouco mais extensa e complexa. Isso porque a erva-mate é de uma árvore nativa do estado do Paraná. Os indígenas tinham o hábito de fazer um escaldo com essa erva. “Essa erva foi descoberta pelos colonizadores e perceberam que o chá dela era muito mais agradável, principalmente para os ingleses, por causa suavidade. Fazia-se um chá inicialmente, aí começaram a fazer a extração”, comenta o jornalista. Anzoategui conta que a região oeste, de Guarapuava até Guaíra e Foz do Iguaçu, subindo até Porto Rico, era uma grande floresta de árvores de erva-mate. Em decorrência disso, foi construída uma linha férrea, que existe até hoje na região, apesar de atualmente estar abandonada. Essa linha ligava Porto Mendes a Guaíra, para levar toda a produção até o Rio Paraná, de onde

"O FRIO NO INVERNO E UM BOM VINHO".

"AS PESSOAS, LOCAIS COMO CATARATAS DO IGUAÇU E LITORAL DE SANTA CATARINA, CLUBES DE FUTEBOL QUE SÃO RELATIVAMENTE FORTES E CONSEGUEM FAZER FRENTE AOS DO CHAMADO 'EIXO RIO-SP', O VALOR ÀS TRADIÇÕES, O PINHÃO, O 'MAS AQUI TÁ MAIS FRIO' E MUITAS OUTRAS COISAS. O SUL É LEGAL, O PROBLEMA É UMA MINORIA BARULHENTA FAZENDO PARECER QUE TODOS OS OUTROS SULISTAS SÃO RUINS IGUAL..."

seguia pelo Rio da Prata até Buenos Aires, de onde era exportada principalmente para a Inglaterra. Ao falar de erva-mate, é fácil lembrar de uma de suas principais bebidas, o chimarrão, e essa bebida é associada como sendo parte da cultura principalmente do Rio Grande do Sul. Porém, essa erva é natural do Paraná e foi levada para o último estado da região sul. Agora surge o questionamento: “Se a erva-mate era natural do estado do Paraná, por quais motivos o chimarrão acabou tornando-se um dos símbolos do Rio Grande do Sul e da cultura sulista?”. Um dos motivos é porque o núcleo populacional do Paraná era muito pequeno na época, enquanto o Rio Grande do Sul já era uma grande província. “Quando os gaúchos subiram, eles trouxeram os hábitos para os novos migrantes… Já expandiu chegando até o litoral do Paraná e o litoral de Santa Catarina, mas encontrou uma barreira em São Paulo, porque SP já era uma terra de cafezais”, conta Anzoategui. 9


O QUE ESTARIA ALÉM DESSES DOIS SÍMBOLOS? A dúvida que resta para essa reportagem é: quais representações culturais estão além dos dois símbolos falados no texto acima? Ocorre certa confusão ao abordarmos a cultura dos estados da região sul, as representações culturais desses lugares também estão incluídos, isso porque os estados do Paraná e de Santa Catarina não conseguem ter uma cultura tão definida, principalmente quando comparada com o Rio Grande do Sul. O fato de os símbolos serem tão ligados ao Rio Grande do Sul se dá por conta de Paraná e Santa Catarina não contarem com uma concentração populacional relevante inicialmente. O aumento ocorreu quando os migrantes que estavam no Rio Grande do Sul começaram a subir. Paraná e Santa Catarina, que até então tinham sua população restrita a Curitiba, Paranaguá e Florianópolis, passaram então a se formar. “A identidade do povo do sul ainda está em gestação, isso é uma coisa que ainda vai demorar 200, 300 anos para se solidificar e ter uma cara própria”, completa Anzoategui. Além dos dois símbolos representantes da região sul, a terra de três estados é repleta de belezas e encantos, com paisagens naturais de tirar o fôlego. Desde as Matas de Araucárias até as famosas Cataratas do Iguaçu, ou aquelas cachoeiras que brilham com o sol, conhecidas por reunirem as pessoas nos finais de semana, especialmente antes da pandemia de covid-19. Paisagens essas que muitas vezes acabam passando batido, fazendo com que nem os próprios moradores dos estados sabiam da existência, Ernesto Fagundes, membro do grupo de música gaúcha “Os Fagundes”, conta que recentemente gravou um clipe em uma cachoeira perto da cidade de Taquara, no Rio Grande do Sul, e disse que ainda 10

não conhecia aquele lugar, mesmo viajando muito. “É uma campanha que tenho feito muito no Rio Grande do Sul, de a gente conhecer mais o nosso estado”, afirma. “Agora a pandemia mostrou que o gaúcho também precisa conhecer mais o Rio Grande do Sul, precisa conhecer mais a sua história”, diz Fagundes. Segundo o escritor brasileiro Milton Hatoum: “a vida começa verdadeiramente com a memória”. É possível delimitar uma linha a partir do momento que você nasce: você já é inserido em uma cultura, em que as tradições são passadas como um chimarrão, de geração para geração, de mão em mão. É por causa da memória viva dessas pessoas que a cultura é passada, pois a tradição é a cultura que emerge do povo. O sentimento principal de amor à terra é representado muito nas músicas cantadas. “É o canto gauchesco e brasileiro, desta terra que amei desde guri, é uma referência do amor às nossas origens, da onde a gente vem. O respeito da onde a gente vem. De amor à terra e ao mesmo tempo orgulho de ser gaúcho, mas com orgulho de ser brasileiro”, reforça Fagundes. “E realmente churrasco e chimarrão são símbolos, mas a gente tem coisas muito mais representativas e a até a gente precisa aprender mais sobre isso”, finaliza.


BRASIL É O PAÍS DO FUTEBOL, BRASIL MAS NO SUL HÁHÁ OUTRO OUTRO ESPORTE ESPORTE NO COMANDO

Espetáculo não é nos gramados, mas em ginásios com a bola pesada GABRIEL FELIPE

Muitos se perguntam quando o Brasil vai ser hexa, mas, no futsal, já superamos esse número: somos heptacampeões. São dois títulos pela Fifusa, primeira a comandar a modalidade, e mais cinco após a gerência da Fifa (Federação Internacional de Futebol), a partir de 1989. Conhecido também como futebol de salão, o futsal é mais idolatrado na região sul do que outros esportes famosos, como o próprio futebol.

DONOS DONOSDO DOESPORTE ESPORTE O sul é lembrado pelo tradicional chimarrão com pipoca, mas nem sempre é pelo esporte. Mal sabem que a mistura é consumida até em ginásios. Enquanto torcedores seguram cuia e bacia, jogadores erguem troféus. No Brasil, há duas competições nacionais: a Taça Brasil de Futsal, com 48 edições, desde 1968, e a Liga Nacional de Futsal (LNF), com 25 edições, desde 1996. A LNF é considerada a mais importante competição das Américas e uma das mais disputadas do mundo.

No Paraná, há 13 equipes de destaque na Série Ouro de Futsal. O Pato Futsal, equipe da cidade de Pato Branco, conquistou duas vezes a Liga e uma vez a Taça Brasil. O time do sudoeste ainda disputa o principal campeonato de futsal do Brasil, a Série Ouro do Paranaense, ao lado de Foz do Iguaçu, Umuarama, Cascavel, Marechal, Campo Mourão, Dois Vizinhos, Palmas, São José dos Pinhais, Ampere, São Lucas, Toledo e Marreco. Foz, Cascavel, Campo Mourão, Marreco e Umuarama também disputam a Liga Nacional.

Registro oficial do título de 2008, no Rio de Janeiro, ginásio Maracanãzinho. (Foto: Fifa)

Com 13 times de alta competitividade no campeonato ainda sobra tempo para fazer um churrasco? Claro, esses são de comemoração. Já o líder do ranking em número de conquistas, o Rio Grande do Sul, tem três times na LNF. Carlos Barbosa é recordista em número de títulos da Liga, atualmente com cinco taças. Assoeva e Atlântico são os outros representantes gaúchos. Em Santa Catarina, o principal clube é o Jaraguá, com quatro títulos da Liga. O Joinville foi campeão nacional uma vez. Em 2021, Blumenau e Joaçaba também representam o estado na LNF. E aí, ainda acha que o sul não é terra do esporte? Ou apenas não é tão reconhecida nacionalmente, pois o esporte não tem grande cobertura da mídia que a grande massa acompanha? 11


O ranking da Liga Nacional de Futsal Sul já foi 16 vezes campeão da maior competição de futsal do Brasil RIO GRANDE DO SUL

PARANÁ

SANTA CATARINA

MINAS GERAIS

SÃO PAULO

RIO DE JANEIRO

CASCAVEL CASCAVELFUTSAL FUTSAL O Cascavel Futsal, equipe que leva o nome da cidade do interior do Paraná, tem grande história no esporte. O time foi fundado em janeiro de 1991, porém, só iniciou as atividades em 1996, quando disputou a Chave Prata do Campeonato Paranaense, onde permaneceu até 1998. Sagrado campeão, conquistou acesso para a Série Ouro, elite do futsal paranaense. Naquele momento, a disputa pelo título estava polarizada entre Foz do Iguaçu e São Miguel do Iguaçu, que dominaram a competição por oito anos. Somente em 2003 a hegemonia quebrada. Foi quando o Cascavel Futsal disputou pela primeira vez a final do campeonato

no clássico da soja com o Toledo. O ano marcou o primeiro título estadual do tricolor cascavelense. Desde então, a Serpente, como é conhecido o time, vem sendo um dos grandes nomes do esporte, com mais cinco títulos, em 2004, 2005, 2011, 2012, 2020 e 2021, tornando-se heptacampeã estadual e a maior vencedora da competição. Com esse histórico, o Ginásio da Neva, casa do time, é palco de espetáculos com bola pesada. Ambiente com capacidade para 1.500 torcedores que ocupam cada milímetro com gritos e vibrações que impulsionam os atletas em quadra.

(Imagem Assessoria Cascavel Futsal) Dizem que faltou no cartaz a frase: “Procura-se rival no estado”.

“O Cascavel Futsal faz parte da vida da gente, sentimos como se fosse ‘alguém da família’. E como alguém da família, a gente sofre por ele, a gente briga por ele, a gente sorri por ele. E pela nossa família, a gente tenta apoiar, motivar, incentivar, abraçar nas horas ruins”, diz Luciana Silveira, líder da torcida organizada Serpente Tricolor Oeste.

SEM APITO DE AVISO NUNCA DESAPRENDE No início de 2020, um vírus que causou perdas no mundo todo tinha chegado ao Brasil. Com isso, em março, medidas de combate a ele foram estabelecidas. Uma delas, o afastamento social, levou à paralisação dos jogos e de quaisquer atividades que dependessem de mais de uma pessoa para serem realizadas. A equipe do Cascavel Futsal ficou 160 dias sem disputar uma partida oficial. O último jogo foi contra o Palmas, em 16 de março, com vitória da Serpente por 5 a 1. Por conta da pandemia, o sistema de disputa do estadual foi alterado e o jogo acabou cancelado.

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A paralisação do esporte não afetou somente os jogadores e funcionários do clube, mas todas as profissões que dependiam do espetáculo. “Quando estourou a pandemia no Brasil, tiramos o programa do ar, porque as competições que acompanhávamos foram interrompidas. Competições de futsal, como Campeonato Paranaense e Liga Nacional, que sempre rendem conteúdos, nem começaram. A equipe esportiva foi para o jornalismo e o programa ficou fora do ar por três meses”, relatou Luciano Neves, produtor do programa Tarobá Esporte, da afiliada do Paraná da rede Band TV.

Outros membros do clube tiveram que modificar suas funções. A torcida organizada, que estava sempre nos jogos, agora permanecia distante, apenas modificando a forma de apoiar e torcer.

Este é um exemplo de atividade que depende do espor, mas que precisou apenas de uma adaptação para seguir em frente. Para alguns, não houve essa oportunidade. Lembre-se: para muitos são apenas adultos correndo atrás de uma bola; para outros é a vida que transcende a quadra.

A Serpente só voltou à quadra em 26 de agosto de 2020, contra o Chopinzinho, pelo Campeonato Paranaense. Apesar de ser tão popular, o futsal ainda é um esporte abaixo do padrão futebol, que gera milhões. Com patrocinadores locais, pode haver rescisões a qualquer momento, o que aconteceu ainda mais na pandemia. Para compensar a perda de receita, a LNF, em parceria a uma TV, fundou o Amigos da LNF, uma plataforma de pay per view para os fãs que assinassem pudessem assistir a todos os jogos da liga ao vivo, e apoiassem de modo solidário e financeiro às equipes.

É COMO ANDAR PARALISADO DE BIKE Apesar de todo o tempo longe dos ginásios, os adultos que corriam atrás de uma bola permaneceram em treinamento, com atividades em casa sob supervisão online dos preparadores físicos, e reuniões com o clube. Os atletas receberam equipamentos para manter parte do treinamento físico em locais improvisados e distintos. Uns corriam na sala de estar entre móveis, mulher e filhos. Os que moram em apartamentos utilizavam a escadaria. Você que mora em apartamento, o que diria se encontrasse um homem subindo e descendo repetidamente os lances de escada todo trajado com uniforme de time?

“Durante a pandemia, nos coube apoiar ‘distantes’, quando possível e se estivesse por transmissão (TV ou rádio). É difícil ficar longe de quem a gente gosta. Esperamos em primeiro lugar, que as medidas de prevenção à saúde pública sejam levadas a sério e que os títulos venham. Estamos saudosos de alegrias”, conta Luciana.

A torcida voltou a frequentar as quadras em 18 de setembro de 2021, 551 dias após a paralisação, em um jogo entre Pato e Palmas, em Pato Branco, no Ginásio Dolivar Lavarda, palco de grandes confrontos do Campeonato Paranaense e da Liga Nacional. No oeste paranaense, sorrisos voltaram a aparecer atrás das máscaras no dia 24 de setembro. O palco foi o Ginásio da Neva, onde a equipe do Dois Vizinhos foi batida por 2 a 1.

Apesar da liberação dos jogos e público, ainda era necessário manter as medidas de segurança sanitária, fato este que gerou bastante trabalho e gastos para acompanhar o time do coração. Os torcedores devem obedecer às condições previstas na portaria do ginásio: entram imunizados com esquema vacinal completo (com duas doses ou dose única) da vacina contra Covid-19 ou pessoas que apresentem laudo de exame RT-PCR ou antígeno realizado em até 72 horas antes da partida com resultado negativo, não reagente ou não detectado. O uso de máscaras é obrigatório durante todo o período de realização do evento. Os torcedores também deverão respeitar as marcações na arquibancada e cumprir distanciamento físico de 1,5 m. O futsal pode não estar na grande mídia com frequência, o Sul pode não ser visto como sinônimo de lugar forte nos esportes, mas aqui há inclusão, tradição e, acima de tudo, apoio. Diferente dos grandes clubes patrocinados por marcas bilionárias, o futsal se mantém pelo apoio dos empreendedores locais, daqueles que realmente amam o esporte. Isso faz com que os jogadores daqui não se sintam em segundo plano, que tenham atenção e apoio, diferente de alguns lugares. Bem-vindo ao Sul do país, bem-vindo ao mais alto nível do futsal.

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Conheça a história de alguns pratos típicos da região GRAZIELE SANTOS

A REGIÃO SUL VISTA PELA GASTRONOMIA

4 1. Churrasco/ Espeto Corrido

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O Brasil é um país que possui uma diversidade muito grande, principalmente quando destacamos a culinária. A gastronomia do nosso país é muito abrangente, pois estamos falando de um país grande e completamente cheio de diferenças, e os pratos típicos mudam de região para região. Cada prato conta com um tempero especial, os vegetais típicos da região, as carnes preferidas, e é esse aspecto que forma várias culinárias regionais. Falar sobre cultura a partir da comida, portanto, oferece uma perspectiva muito rica. s pessoas se alimentam daquilo que a cultura daquele determinado lugar estabeleceu. É a partir dessa visão que vamos observar a cultura da região Sul.

QUE “LÍNGUA” A CULINÁRIA BRASILEIRA FALA? É em História da Alimentação no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, tida até hoje como a obra mais significativa, o estudo mais completo no que diz respeito às origens e às particularidades de nossa culinária, que se lê que: 14

“a alimentação como característica do grupo humano, [é] muito mais valiosa […] que a linguagem”.

O churrasco é oriundo do pampa, região da América do Sul que abrange o Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina. Os primeiros churrascos surgiram através dos índios, que habitavam a costa das três Américas. Eles assavam a carne em uma fogueira sobre as pedras, com a ajuda de uma grelha de madeira verde, ao ar livre. Mas foi na região do pampa que o churrasco se intensificou em sua origem. No século 17, essa região era conhecida, pois havia transporte de gado.Os tropeiros e seus peões usufruíram do gado como prato principal de suas refeições, eles reproduziram o mesmo hábito dos índios de colocar mantas de carne sob o arreamento, no lombo do cavalo, enquanto cavalgavam. Quando chegavam ao ponto de parada, a carne já estava devidamente salgada através do suor do animal, então estava no ponto de ir ao fogo. No Rio Grande do Sul até hoje o churrasco está presente na cultura, mas não somente lá. O espeto corrido se espalhou por todos os estados, pelo país e também pelo mundo, hoje existem churrascarias brasileiras fazendo sucesso no exterior, como nos Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia, Austrália, Itália, Suíça, Inglaterra, Macau, Singapura e Tailândia. É a cultura brasileira se disseminando pelo mundo.


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2. Xis Gaúcho O xis é parecido com um hambúrguer, mas diferente pelo seu tamanho, recheio, e pelo sabor incomparável, além de ser chamado por diversos nomes como, X-Tchê, e X-Gaúcho. Ele é o legítimo sanduíche do rio-grandense, e não faz sucesso apenas no Rio Grande do Sul, mas em toda a região Sul. Sua composição é um pão prensado na chapa com diversos recheios, como picanha assada, carne desfiada e hambúrguer, e outros ingredientes que complementam o sabor como, presunto, mussarela, tomate, alface, bacon, milho, entre outros. 3. Pinhão O pinhão é uma semente da árvore da araucária (árvore típica da região Sul), se forma dentro de uma pinha, que, quando vai amadurecendo, vai se abrindo até liberar o pinhão. O pinhão cozido geralmente é consumido no inverno, nas festas juninas, e a sua colheita é realizada entre maio e julho. Além de saborear o pinhão naturalmente, ele também pode ser acrescentado em receitas como risoto, carnes, farofas, massas, sopas, doces, e muitas outras combinações que dá para fazer com este fruto saboroso.

5. Polenta A polenta se originou na região da Itália, onde era feita com cereais, como farinha de trigo e aveia. Quando o milho foi introduzido na Europa, a polenta passou a ser feita com a farinha que era extraída do milho. No Brasil, sua origem vem do século 19, quando os imigrantes italianos chegaram ao Brasil. Aqui no Brasil este prato ganhou um sabor diferente, pois na sua preparação pode-se adicionar caldo de peixe, frutos do mar, queijo, mandioca, e outros ingredientes de preferência. A polenta é uma receita bastante popular na região Sul. Em Monte Belo do Sul, na Serra Gaúcha, acontece o Polentaço, um evento que comemora a gastronomia trazida pelos colonizadores italianos, durante a festa é preparado mais de 800 quilos de polenta. 6. Barreado

4. Sagu de Vinho

O barreado é um prato típico do estado do Paraná, mas ficou muito conhecido em todos os estados. Originou-se no século 18, e foi trazido pelos portugueses, a partir de um ritual açoriano de 300 anos. Barreado é sinônimo de fartura, festa e alegria. O nome vem de barrear a panela com farinha de mandioca, para impedir que o vapor escape e o cozido seque.

Sagu é uma sobremesa tradicional da Serra Gaúcha, e seu principal ingrediente é o vinho tinto. O prato é composto por bolinhas de fécula de mandioca cozidas. Pode ser temperado com vinho tinto, leite ou sucos de diferentes sabores. Depois de cozidas, as bolinhas ficam macias e transparentes, é uma sobremesa apreciada muito nas festas junina e julina.

Este prato é preparado com vários tipos de carne bovina, carnes magras, como patinho, maminha e paleta. Durante o seu cozimento podem ser adicionados diversos temperos, como pimenta, louro, cebola, alho, e também toucinho de porco. Por fim, são misturados todos esses ingredientes com farinha de mandioca e servidos com banana fatiada e arroz.

7. Cuca

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De origem alemã, a cuca chegou ao Brasil através dos imigrantes, e hoje está presente entre as iguarias mais preferidas da região sul. Na Alemanha, ela é chamada de Streuselkuchen, que significa “bolo de flocos”. Sua composição é uma massa coberta por uma farofa crocante, à base de manteiga, ovos, açúcar e farinha, existem diversos composições diferentes, com variedades de farinhas, além de opções doce ou salgada, e inúmeros recheios como uva, banana, chocolate, coco, goiabada, queijo, nata e na opção salgada, pode ser acrescentado linguiça no recheio. Em Blumenau, é realizado o Blumenkuchen, Festival de blumenauense de cucas, em parceria com o Sindicato das Indústrias de Panificação, Confeitaria e Produtos Alimentícios de Blumenau e Região (Sindipan). Este festival tem o objetivo de divulgar a qualidade e a diversidade de cucas produzidas pelas confeitarias, padarias e panificadoras da cidade de Blumenau. 8. Cueca Virada Receita típica da região sul, a cueca virada foi trazida pelos imigrantes italianos no final do século 19. Na Itália, é chamada de grustoli, mas no Brasil também é conhecida como cavaquinho, orelha de gato, coscorão ou ceroula virada. A massa é feita com farinha de trigo e ovos, cortada em tirinhas e frita. Depois de fritas, as cuecas viradas são polvilhadas com açúcar. 15


Bem-vindo ao Sul do Brasil, o lugar perfeito para que você se divirta como se não estivesse aqui NOAH DEOLINDO

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São apenas três estados, mas com uma quantidade considerável de festas típicas, especialmente recheadas de comida, bebida e tradição (dita europeia, em grande maioria). Para conhecê-las é necessário que se faça uma vasta pesquisa e, se possível, várias viagens. Isso seria incrível, mas, enquanto essa viagem não sai, a Verbo leva você a passear por algumas festividades que te farão viajar (não dissemos para onde). A origem das festas é creditada na maioria das vezes aos colonizadores espanhóis, alemães, italianos, poloneses, ucranianos e portugueses que se instalaram nestas terras, ainda que outras pessoas aqui já estivessem. As tradições cultuadas até hoje demonstram que, se os povos originários tinham motivos para festejar, eles acabaram perdidos em algum lugar do tempo.


RIO GRANDEDO DOSUL SUL RIO GRANDE Natal de Luz (Porto Alegre): Cidade iluminada e espetáculos diversos fazem parte do evento. Entre as apresentações mais disputadas estão o Nativitaten, espetáculo com cantores líricos e fogos de artifício, e A Fantástica Fábrica de Natal, encenação sobre a história do menino que sonha conhecer a fábrica de brinquedos do Papai Noel, além de Natalis, que celebra o nascimento de Cristo por meio de sons, luzes, águas dançantes e fogos de artifício. Todos são exibidos várias vezes durante a temporada. Festa da Uva (Caxias do Sul): Durante 15 dias, entre fevereiro e março, a cidade se transforma. A metrópole adere a sua metade colonial e provinciana para homenagear suas raízes. A síntese da festa é o corso, com a encenação de 2 mil atores sobre a vitória do homem e da mulher sobre o meio ambiente, tudo regado a vinho, suco de uva e quitutes italianos. Festa do chimarrão (Venâncio Aires): A Festa Nacional do Chimarrão, chamada de Fenachim, destaca a cultura da erva-mate e o hábito gaúcho do chimarrão. É realizada no mês de maio, de dois em dois anos. Festa do chucrute (Estrela): Mais de 420 dançarinos dos três aos 80 anos de idade, comida e música alemã, decoração rica em detalhes e significados e todos com trajes folclóricos tornam o ambiente um retrato alemão. As apresentações das 12 categorias de dançarinos são a alma da festa.

PARANÁ PARANÁ Festa Nossa Senhora do Rocio (Paranaguá): O Dia de Nossa Senhora do Rocio é celebrado em honra à padroeira do Paraná, em 15 de novembro, e suas festividades ocorrem em Paranaguá (litoral do Paraná). O evento vai de 6 a 15 de novembro. Atualmente a festa é composta por duas partes: a religiosa, com novenas, procissão e missa campal; e a popular, com eventos gastronômicos, show artístico e pirotécnico e feiras de artesanato. Carnaval (Curitiba): O carnaval é um evento realizado em todo o Brasil, e, no Paraná, mais precisamente em Curitiba, capital, não é diferente. Conta com diversas opções para os foliões, desde o desfile das escolas de samba até a Zombie Walk, ou marcha de zumbis, que se tornou sinônimo do Carnaval curitibano. Festival da Primavera (Curitiba): também chamada de Haru Matsuri, é uma herança dos colonizadores japoneses para celebrar a chegada da primavera. Festa do Trabalhador (Cascavel): É realizada no Seminário Arquidiocesano São José, entre os dias 30 de abril e 1º de maio. A primeira edição da festa é de 1966, mas desde 1995 o costelão de chão, prático típico da cidade, é feito da mesma forma: são cerca de 800 peças de costela bovina preparadas no estilo fogo de chão, além de 20 toneladas de outros tipos de assados. O evento recebe mais de 25 mil pessoas a cada edição.

As tradições cultuadas até hoje demonstram que, se os povos originários tinham motivos para festejar, eles acabaram perdidos em algum lugar do tempo.

SANTA CATARINA CATARINA SANTA Festa Pomerana (Pomerode): Tem gastronomia, chope, músicas típicas e brincadeiras germânicas em uma das cidades mais alemãs do Brasil. Sommerfest (Blumenau): Versão de verão da Oktoberfest, a Sommerfest traz para o primeiro mês do ano um pouco da tradicional festa de outubro. Chope, gastronomia, música e muita diversão. Oktoberfest (Blumenau): A tradição desse festival veio com os imigrantes alemães, que já promoviam festas típicas há muitos anos nos Clubes de Caça e Tiro. Muita música, comida, cerveja e danças típicas transformaram a Oktoberfest numa das maiores festas populares do Brasil. Marejada (Itajaí): O evento reúne apresentações que remetem ao mar. A influência marítima interfere na culinária, exposições e apresentações que podem ser presenciadas durante a festa, realizada desde 1987. E aí, gostou dessa viagem? Agora já dá para programar suas férias. É importante salientar que, embora essas festividades tenham vindo de outros lugares do mundo, ainda assim, as deixamos com as nossas características, nosso formato e as transformamos em nossas festas. O que comemoramos, na maioria das vezes, está longe da raiz do problema, mas não custa nada segurar o chope com uma mão enquanto a outra vai na consciência. 17


Sem Tekoá não há Tekó. Em fortes termos guaranis - uma das maiores populações indígenas em presença territorial no continente sul-americano -, a frase traduz um pensamento coletivo dos povos, "sem terra não há cultura". E, vivendo nas condições atuais, principalmente nas regiões fora da Amazônia Legal, como no Sul do Brasil, ter um território adequado e demarcado para se viver tem sido uma batalha constante, culminando na compressão da cultura.

Sem Tekoá não há Tekó = "sem terra não há cultura" A luta diária na vida desses povos está ligada diretamente ao não reconhecimento de sua própria existência por parte da população branca. Desde pequenas, as crianças aprendem nos livros de história que os indígenas foram catequizados, escravizados, dominados e expulsos das próprias terras e, ainda, precisaram aceitar uma nova cultura, considerada "superior" e "racional". Nenhuma parte desses livros mostra como os povos foram afetados por toda a colonização e o que isso tudo causou a longo prazo.

Um relato sobre um trem, que sem terra, sem perspectiva e sem ser percebido, passeou pelo tempo JULIA CAPPELETTO 18

De acordo com o professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e indigenista Paulo Porto, a questão da invisibilidade dos povos indígenas é muito comum no Sul do país. "É como se só existissem indígenas no Norte, no Brasil profundo, como as pessoas falam, lá na Bacia Amazônica. Inclusive, isso é reforçado pelos livros didáticos, pelo senso comum. Quando a gente fala em indígenas, as pessoas pensam em alguém com arco e flecha, com penas na cabeça, vivendo da caça e da pesca e, isso não acontece no Sul, até porque é uma colonização


mais antiga e você tem um contato mais largo". Um dos fatores para que essa visão seja propagada são os dados disponíveis no site Povos Indígenas no Brasil, que apontam que 98,25% das terras indígenas estão dispostas na Amazônia Legal. Para o indígena do povo Kaingang Ivan Bribis Rodrigues, essa cultura estereotipada pelos não indígenas já não é mais uma realidade desde o período da colonização, e não é vivida nem mesmo pela nova geração dentro das aldeias. "A colonização trouxe junto consigo a religião não índia e, com isso, obrigou os índios a aderirem a uma cultura nova. Nesse processo, houve indícios de sobrevivência do culto aos deuses pagãos. Aqui no Sul, principalmente os Guarani, faziam esses rituais escondidos. E hoje vemos um grande avanço do evangelismo, mas sempre tentamos, de alguma forma, manter a nossa cultura e passar isso pra frente". Ivan também é formado em direito e militante da causa dos jovens indígenas. Ele conta que, em 2006, os povos realizaram uma revitalização, procurando reviver mais plenamente a conexão com os costumes e culturas ancestrais. “Não foi um resgate, porque aquilo já estava dentro de nós. A gente começou a buscar os anciões na comunidade para conseguir avançar nessa procura pelas nossas raízes. Foi muito importante para nós, povos indígenas, passar por essa revitalização". Esse processo também foi impulsionado pela invisibilidade social da própria cultura. "A gente acaba tendo essa invisibilidade, porque a população, que aprende sobre a nossa colonização bem antiga, acredita que nós não temos mais cultura e, consequentemente, não existimos mais. Mas, ser índio ou não ser, não significa o que você veste ou que deus você cultua, e sim o que está dentro de você. É você se declarar 'sou indígena, amo minha cultura e com isso vou lutar pelos meus direitos e deveres'. É você ser", conta Ivan.

Para o representante da Organização indígena do sul do Brasil (Arpinsul Indígenas) Yago Queiroz, a população sulista, assim como o resto do país, sabe que os povos indígenas fazem parte da sociedade, mas ignoram a presença deles nesse espaço. "Essa invisibilidade está mais para uma objetificação, pois na grande maioria das vezes sabem que estamos ali, mas fingem não nos ver. Justamente por toda essa questão da colonização, da política atual e da falta de conhecimento". No senso comum social, os indígenas fazem parte de um patrimônio cultural, como um quadro ou artesanato raro. Vistos, em grande parte do tempo, como objeto de estudo, e não os atores dessas pesquisas. Em relação à prática da cultura tradicional desses povos, outro fator que impediria essa vivência, como a caça ou a produção para subsistência na região Sul, segundo Paulo Porto, é o fato de que eles estão distribuídos em pequenas áreas indígenas. "Eles são confinados em áreas muito reduzidas, impossibilitando essa prática mais tradicional, que em boa parte dos povos nem existe mais. Para se ter uma ideia, quando se fala em terras indígenas, aqui no Paraná as pessoas falam de uma forma muito equivocada, até criminosa, de que se essas terras

forem demarcadas vai comprometer a agricultura e o agronegócio. Bom, hoje no Paraná, todas as terras demarcadas, sem exceção, chegam a 0,6% do território. Isso abrangendo as 25 aldeias reconhecidas pela FUNAI. Mas, se todas as áreas que os indígenas sonham em demarcar fossem reconhecidas, chegaríamos a 0,8, 0,9% do território paranaense".

"TERRA À VISTA!" O Brasil é composto por 851.196.500 hectares. Um grande território, considerado o quinto maior país do mundo, disposto em 26 estados, além do Distrito Federal. Apesar disso, alimenta uma das disputas territoriais mais antigas já vistas no planeta: a demarcação de terras indígenas. Desde os tempos da colonização, territórios amplamente explorados e cultivados por esses povos já não são mais deles. Conforme o site Povos Indígenas no Brasil, ao todo, espalhadas pelo país, existem 725 terras indígenas, que ocupam 117.377.553 hectares. Isso representa apenas 13,8% de todo o território brasileiro. "Nós não podemos falar desses povos sem discutir a luta pela terra, tanto que os principais ataques a eles hoje estão relacionados à questão territorial", afirma Paulo Porto.

"Ser índio ou não ser, não significa o que você veste ou que deus você cultua, e sim o que está dentro de você" Ivan Bribis Rodrigues, indígena do povo Kaingang

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Além disso, o chão para se viver também é de extrema importância quando se fala nos problemas de drogadição e alcoolismo dentro das aldeias. Segundo o professor, não fornecer as condições básicas para que se criem perspectivas acaba interrompendo a produção de um panorama futuro, a visão de um horizonte. Mas, para a Secretaria de Saúde do Indígena (SESAI), ambas as questões não têm relação com a demarcação de terras. "É como se nós estudássemos a rotina das famílias de Berlim na Segunda Guerra Mundial sem levar em consideração os bombardeios Aliados durante todo o dia. É claro que a rotina dessas famílias é alterada pelos bombardeios. Mas, na questão indígena, a gente discute sem entender, dando invisibilidade à questão territorial, que passa pelo debate da narrativa, construída ainda pelos pioneiros, de que 'tem muita terra para pouco índio'".

A MORTE COMO FUGA DA INVISIBILIDADE A expressão popularizada pela sociedade de que "de tanto afirmarem ser, se tornaram aquilo" nunca foi tão verdadeira dentro das aldeias indígenas. No Sul do país, essas comunidades têm enfrentado ondas de suicídio, principalmente entre os jovens. De tanto não serem vistos, resolveram não existir. "Nos últimos 50 dias, nós já perdemos de seis a sete jovens, na faixa de 13 a 17 anos, só aqui no Oeste do Paraná. Proporcionalmente, o suicídio entre os povos indígenas é infinitamente maior que o no resto da população brasileira. Por que isso acontece? Tem a ver com a invisibilidade, porque isso chega até eles em forma de preconceito e violência", conta o indigenista. De acordo com o Ministério da Saúde, a média nacional de suicídios é de 5,7 mortes para 100 mil habitantes, mas entre os povos indígenas o número é três vezes maior, subindo para 15,2 óbitos a cada 100 mil. Apesar dos índices preocupantes, Paulo Porto acredita na vitória dos 20

povos indígenas contra o invisível. Mesmo que essas culturas encontrem o grande "sarampi" novamente - expressão usada na época da colonização pelos Guarani, que significa esparramo -, elas permanecerão vivas. "Quando comecei a trabalhar com a causa indígena, em 1990, eu pensava que a luta pela preservação dessa cultura era como se nós estivéssemos num trem em alta velocidade, sem freio e que alguma hora bateria num pilar. O meu trabalho na época era para que, quando tivesse

essa batida, morresse menos gente. Hoje eu entendo que na verdade não tem pilar nenhum, que esse trem vai seguir, sacolejando. Tem gente que vai cair, se machucar, vai levantar e se ajeitar na poltrona. A bagagem vai cair na cabeça de alguém. Mas, ainda assim, a viagem segue. Mesmo que seja de outra maneira, essas culturas se manterão", reflete o indigenista.


OPINIÃO

Longe de ser homogênea, a arte deve ser um campo democrático MATHEUS CAMILO

Não há um grande movimento que se denomina como “Arte Sulista” fora a localização geográfica, mas isso não impede os artistas de criarem algo diverso, com as vagas abertas para quem quiser desbravar o novo e provocar a audiência sem medo de fugir do tema, pois ele ainda é uma tela em branco, disposta a ser usada da maneira que o artista bem entender. Um exemplo disso foi a exposição de arte “Individuais”, realizada entre os dias 8 e 30 de julho de 2021 no MAC (Museu de Arte de Cascavel). Quatro artistas com estilos únicos apresentaram obras em contraponto, mostrando o universo singular de cada um. O grupo é formado pelo artista plástico Antônio Júnior, o fotógrafo Claitom Moraes, a artista plástica Jaquelyne Lima e o fotógrafo Fabbio Novelli. Antonio Junior apresentou gravuras em metal, litografia (desenho sobre pedra polida) e xilografias (desenhos entalhados na madeira). “A série de gravuras faz parte de uma investigação da figura hu-

mana e a memória afetiva, partindo de apropriações de fotografias de arquivos pessoais e familiares, conhecidos e desconhecidos. Absorvo muito tudo o que está à minha volta e são essas experiências que formam o indivíduo/ artista que sou atualmente”. O artista visual experimental Fabbio Novelli usa o corpo humano para ilustrar suas narrativas. “O processo artístico é coletivo, pois não existiria obra sem o outro”. Foram seis anos de produção, que contou com a ajuda de duas curadoras do Coletivo Duas Marias, Malu Rebelato e Nani Nogara. O artista aborda o tema sobre o corpo dentro da religião e da liberdade. No entanto, a exposição não se resume às fotografias, também há esculturas e videoarte, em que o protagonista também é o corpo. “Um corpo que reivindica o direito de ser livre, de estabelecer seu lugar no mundo, que se transforma e se modifica", complementa o artista. Claitom Moraes tira fotos como hobby. O que lhe motiva é mostrar uma arte fotográfica dife-

rente, feita com miniaturas, e ao mesmo tempo divulgar a cidade de Cascavel. “Fiz para ser algo diferente das demais fotos que mostram apenas a nossa bela cidade como fundo”, conta Moraes. O estilo cascavelense é extremamente diversificado. Enquanto um retrata a pureza da amizade da infância, outro explora uma fotografia totalmente provocativa que afronta os valores conservadores, para que por fim justamente um conservador apareça junto a ele na mesma exposição sem causar tumulto, mas sim respeitar a arte e as ideias de cada um, afinal, nada é mais democratico que a arte (ou pelo menos deveria ser). 21


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À luz de noções de cultura e identidade, Paraná se apoia na ideia de diversidade, mas guarda heranças paranistas e alimenta quadro histórico de exclusão de grupos sociais MILENA ROLIM

Sentir-se desconfortável ao utilizar um calçado apertado ou uma roupa cuja numeração não atende às necessidades do corpo, especialmente em função de um padrão social, é uma experiência vivenciada ao menos uma vez na vida por praticamente todas as pessoas. Há também aqueles que já experimentaram uma situação de estranhamento um pouco mais profunda, confusa e exaustiva: a de não se sentir confortável na própria pele. Por trás de ambos os sentimentos estão cláusulas sociais e emocionais que nem sempre são compreendidas e respeitadas, mas que devem ser constantemente questionadas. Afinal, o que elas dizem sobre nós? Certo, a intenção desse texto não é servir como um divã para uma análise psicológica e comportamental, mas achei pertinente provocar uma reflexão inicial que justificasse a discussão de um tema que aguça olhos e ouvidos: a identidade. Se constantemente nos questionamos sobre quem somos e o que nos diferencia em meio a bilhões de outros habitantes que caminham pelo mundo, talvez seja pertinente virarmos as lentes que estão focadas no interior de cada um para que haja luz no exterior.

Falar de cultura é uma tarefa árdua e, na minha opinião, infindável. Quando essa palavra se une com identidade, o peso se torna ainda mais evidente. A literatura nos diz que identidade cultural é um sistema de representação das relações entre indivíduos e grupos, que envolve o compartilhamento de patrimônios comuns como a língua, a religião, as artes, o trabalho, os esportes, as festas, entre outros. É um processo dinâmico, de construção continuada, que se alimenta de várias fontes no tempo e no espaço. Como consequência do processo de globalização, as identidades culturais não apresentam hoje contornos nítidos e estão inseridas numa dinâmica cultural fluida e móvel. Apesar disso, há aspectos estruturais que norteiam a noção de cultura de acordo com o espaço e o tempo em que ela se desenha, e quando aplicamos isso a um estado, por exemplo, os contornos se tornam ainda mais propensos a mudanças. “A identidade cultural é construída a partir das diferenças. É uma construção social. Não sou eu, o prefeito de determinada cidade ou o presidente da república que vamos determinar uma identidade cultural. São as ações dos indivíduos ao longo da história que determinam o que podemos associar a uma identidade cultural”, destaca o historiador Tiago Arcanjo Orben.

Vejamos: o que representa a cultura do Sul do Brasil? As tradições gaúchas das centenas de CTGs espalhados pelo país? As etnias europeias que se instalaram na região? Ou expressões populares com raízes indígenas, lusitanas e afro-brasileiras, que resistem em redutos invisibilizados? Não existe resposta simples para questões de cultura. “Não tem como a gente determinar uma identidade cultural. Nós, enquanto cidadãos, procuramos pensar como as identidades culturais, como os costumes e as práticas são constantes. A identidade busca categorizar algumas coisas para se constituir enquanto representante de um determinado local”, pontua Orben. O tradicionalismo gaúcho, por exemplo, é a cultura tradicional mais cultivada na região – e a expressão do Sul mais reconhecida pelo restante do país, embora nem sempre seja vista como parte da brasilidade. É uma construção recente, do fim dos anos 1940, que não corresponde exatamente à cultura popular e folclórica do homem do campo que ela procura representar. A partir disso, surge a questão central de um questionamento que, apesar de particular, é o ponto de partida para diferentes visões e interpretações acerca do processo da construção da identidade cultural do Paraná. Existe uma cultura tipicamente paranaense? Essa pergunta começou a ser respondida ainda em 1853, posteriormente à emancipação da província do Paraná da Comarca de São Paulo, onde intelectuais, literatos e artistas plásticos desempenharam o papel de “arquitetos” de uma identidade local. 23


O PARANISMO A busca identitária está atrelada a um processo político, que ficou evidente no processo histórico paranaense. Além disso, a definição de identidades parte de questões relacionais, pode-se entender que a afirmação de um sujeito ocorre em oposição a outro. Por isso as disputas de identidades estão envoltas em declarações conflitantes sobre quais têm relevância e quais os direitos e obrigações relativos a elas. No Paraná, tal processo pode ser observado, e continua presente, nas determinações do estado sobre o que é ser paranaense. O jornalista e historiador Alfredo Romário Martins foi um dos principais líderes do Movimento Paranista, que tinha a intenção de construir uma narrativa – mediante escritos históricos e objetos artísticos, produção cultural – de uma identidade do ser paranaense. A busca se deu por uma integração identitária, homogeneizante, que não valorizava as experiências dos mais distintos povos, com costumes e línguas diferenciadas que habitavam o território. Ele queria também mostrar ao Brasil que o progresso existia no Paraná. Apontar que o estado tinha uma história e, principalmente, que possuía identidade. Para isso, foi necessário forjar e até mesmo inventar algumas tradições, tanto por uma historiografia quanto por uma memória coletiva que unisse o “povo paranaense”. Nesse contexto, os intelectuais do Paranismo - que também contava com João Turin, Zaco Paraná e Lange de Morretes, entre outros - fizeram com que o pinheiro e o pinhão virassem símbolos do estado, ao lado da ave gralha-azul. Alfredo, juntamente com intelectuais, literatos e pintores, assumiu ainda a heterogeneidade étnica como característica local. Consolidado em 1889 como estado, o Paraná ainda aprendia a lidar com a chegada dos quase 100 mil imigrantes. Com o paranismo, a identidade cultural se tornou uma colcha de retalhos dos costumes europeus. Afinal, o estado transformava-se, naquele período, em um verdadei24

ro xadrez étnico, com ucranianos, italianos, russos e poloneses. O próprio termo paranista, inclusive, foi utilizado por ser mais amplo que paranaense. Ou seja, não precisava ser nascido no estado para se sentir membro dele. Mas essa aceitação dos imigrantes foi complexa. Os descendentes lusos-brasileiros não aceitavam que alemães, por exemplo, participassem do ramo comercial. O movimento aceitava a presença e a cultura europeia, mas tinha que ser cada um na sua. Exemplo disso é que Luis Fernando Pereira cita em seu livro Paranismo - o Paraná inventado, que os imigrantes deveriam ficar mais presentes em colônias rurais. Dentro do movimento, também havia a publicação da revista Ilustração Paranaense, que procurava mostrar o Paraná em franco progresso econômico.

EXCLUSÃO HISTÓRICA Em sua gênese, o Paranismo foi inovador, seguindo tendências nacionalistas europeias – principalmente o Simbolismo –, apoiado na vanguarda do final do século 19 e início do século 20, porém, gradativamente tornou-se altamente conservador, rejeitando as principais ideias renovadoras que surgiram. No processo de construção de uma identidade paranaense, de busca de identificação com demais pessoas e pertencentes a um grupo, é notória a presença da distinção entre o “nós” e o “outro”, ou seja, ao se reconhecer como um grupo identitário, coeso, reconhece-se também a diferença em relação a outros grupos. É por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. Nesse sentido, afirmar a identidade é uma forma de estabelecer diferença, de separar o “nós” do “outro”, o que gera, muitas vezes, um processo de exclusão, de negação de identidade do “outro". Na escrita da história do Paraná e do movimento paranista, são perceptíveis essas diferencia-

ções sociais que se hierarquizam ao negar a existência de grupos sociais distintos no processo histórico, como os indígenas e os afrodescendentes. Na busca por uma identidade paranaense, os intelectuais paranistas se voltavam para diversos ângulos para encontrar referências sociais, geográficas, simbólicas, políticas e culturais que colocassem num ponto comum a população paranaense, e, para propagar esses símbolos e elementos identitários, se utilizavam da história e das artes. Com base nessas ideias que formariam as referências paranistas, foi se construindo um Paraná moderno, branco e masculino, pois se ocultava a existência de mulheres, imigrantes, indígenas e da população negra, invisibilizando esses grupos na história e na arte paranaenses. Na verdade, toda a discussão sobre a tipologia e identidade brasileiras da virada do século 19 para o 20 envolve uma crença, e uma esperança, na possibilidade da redenção das ‘raças inferiores’ pela civilização, isto é, pelo branqueamento. “Existe uma narrativa mais primitiva de se fazer uma identidade cultural branca. Para a elite, não é conveniente construir uma identidade cultural do Paraná através dos indígenas. A gente precisa valorizar esses grupos sociais porque foram eles que constituíram e que constituem nossa identidade cultural. Mas será que é de interesse do Estado construir esse discurso? O que se preza é por uma cultura conveniente, ‘bonita’ e sem conflitos sociais. Por isso que, em termos de oficialidade, nós, teoricamente, temos uma identidade cultural”, considera o historiador. Por consequência, o resultado desse apagamento das identidades indígenas e negras refletem no cenário atual de uma sociedade menos tolerante e plural. “Nesse sentido, talvez até tenha uma intencionalidade de formação de uma identidade, mas uma que não se associe com esses grupos étnicos. É como se o Paraná não quissesse se identificar com os indígenas e negros, mas, sim, com italianos e demais


povos europeus. Ou seja, partimos de uma tentativa de construção de identidade que ignora outras coletividades. E isso é forte especialmente na nossa região", ressalta a antropóloga Jacque Parmigiani. Em termos de políticas de estado, supostamente esquecer esses grupos sociais mostra-se mais conveniente porque se evita conflitos. “Então se a nossa história não tem os grupos indígenas, por exemplo, por que vamos dar atenção a eles? Vamos dar atenção para aqueles que realmente fizeram a história do Paraná. Essa é a lógica dessa construção identitária”, analisa Orben.

“Com base nessas ideias que formariam as referências paranistas, foi se construindo um Paraná moderno, branco e masculino, pois se ocultava a existência de mulheres, imigrantes, indígenas e da população negra, invisibilizando esses grupos na história e na arte paranaenses”.

“É como se o Paraná não quissesse se identificar com os indígenas e negros, mas, sim, com italianos e demais povos europeus”. 25


SOXELFER Apesar disso, é possível concluir que o Paranismo forjou, sim, uma identidade paranaense – provavelmente não a identidade imaginada por seus idealizadores –, e mais que isso, influenciou diretamente na manutenção da configuração geográfica do estado. A busca recorrente de inculcar seus ideais para os paranaenses, com a exploração da simbologia da natureza, foi determinante em tal processo. Se outros aspectos presentes no manifesto e escritos paranistas não se concretizaram, os símbolos se conservaram! As formas paranistas se perenizaram no ideário local. A visualidade incontestavelmente atuou a favor do Paranismo. Atualmente, os símbolos do Paranismo continuam sendo amplamente utilizados em todo o estado, seja em representações oficiais ou representações da cultura local popular, provando que as dimensões estéticas e simbólicas do movimento criaram um terreno comum de identificação, gerando uma espécie de identidade cultural para o estado, que à época de sua emancipação sequer tinha suas fronteiras definidas. São símbolos que buscam a relação com a localidade, com a originalidade da sua população, não cedendo às imposições de estrangeirismos, como preconizavam os paranistas. Todavia, as ideias paranistas, seu discurso, sua história, manifestos e ideais não atingiram integralmente todo o estado. Pelo menos não imediatamente, como buscavam, e nem da forma como intuíam. Mais do que a necessidade de se esculpir um paranaense ideal – o paranista – visando integrar os imigrantes com o objetivo de que todos sentissem-se responsáveis pelo estado em que habitavam levando-o ao desenvolvimento econômico, empenhados com o progresso, o intento de moldar uma identidade paranaense tornou-se um desafio para a jovem intelectualidade paranista.

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REFLEXOS Um intento ousado e desafiador, visto a subjetividade da construção identitária individual e, principalmente, populacional. Diversas são as variáveis envoltas na concepção de uma identidade. Aspectos políticos, culturais e sociais divergentes entre as regiões do estado deviam ser homogeneizados para a criação de uma identidade local. No caso paranaense, com a preocupação de unificar essa população tão diversa, a intelectualidade assumiu um desafio maior que a própria realização. No entanto, atualmente não se pode afirmar que tal intento não tenha sido atingido mesmo que parcialmente, tendo em vista que, ao reconhecer os símbolos do Paranismo como representação do estado, cada paranaense perpetua os ideais do movimento. Por mais que com estética, soluções plásticas e formas de adoção da visualidade do Paranismo distintas do original. Afirmar que o paranaense desenvolveu uma identidade cultural ainda é passível de interpretações. Contudo, uma identidade visual foi claramente construída, pois atualmente, por exemplo, os habitantes do estado relacionam a araucária como símbolo do estado, chamando-o de pinheiro-do-Paraná, mesmo desconhecendo os motivos que levaram à adoção de tal árvore para atribuição deste significado. Além deste símbolo, suas variantes – pinha e pinhão – são também amplamente usados em estabelecimentos comerciais, propagandas públicas, manifestações populares, em um processo de afirmação visual e retroalimentação deste processo, iniciado pelo movimento. Os símbolos paranistas carregam uma história, uma tradição inventada, um passado forjado, a identidade buscada. A partir destas imagens, o estado é reapresentado aos novos habitantes paranaenses, a memória está em permanente construção. Portanto, os ideais paranistas ainda hoje estão sendo reforçados, contudo, com aparência distinta da dos idealizadores.


“A história [do Paraná] está em processo, está sendo pensada. Devemos pensar a identidade CULTURA VIVA

cultural enquanto prática social.

Alguns historiadores, a exemplo de Geraldo Leão Veiga de Camargo, consideram o Paraná um estado desses que não têm um traço notável, nem geograficamente, como a Amazônia, nem pitorescamente, como a Bahia ou o Rio Grande do Sul. Além disso, acreditam que o “ser paranaense” não existe. Orben, por outro lado, vê que a diferença é justamente a diversidade de ocupações que constituem o Paraná. “E eu não vejo problema em não termos uma identidade demarcada como têm os gaúchos, paulistas e cariocas, por exemplo. Na maioria das vezes, a construção de uma identidade cultural muito mais exclui do que inclui. A pergunta que devemos fazer é: será que conseguiríamos uma identidade que incluísse e representasse toda a história e seus grupos?”, questiona Orben.

Ela ainda não está acabada

A cultura tradicional, como é viva, sofre modificações e, inclusive, morre, mas é substituída. “A história [do Paraná] está em processo, está sendo pensada. Devemos ver a identidade cultural enquanto prática social. Ela não está acabada em termos de oficialidade. E ainda temos conflitos sociais associados a isso, a exemplo da exclusão social dos grupos indígenas, a não demarcação de terras e todos os interesses políticos e econômicos envolvidos”, lembra. Além disso, a identidade é fluida, já que alguns elementos são acionados e outros apagados para constituir o que determinado grupo quer naquele momento. Logo, a ideia de identidade tem um uso político e ideológico.

em termos de oficialidade”.

BATENDO A MASSA Uma das razões para a falta de reconhecimento de uma identidade cultural “autônoma” do Paraná, na visão dos pesquisadores, é a proximidade histórica das levas de imigrantes. Nossa formação social é muito recente. Até os anos 1950, por exemplo, ainda havia notícias de pessoas que não falavam português no bairro do Taboão, em Curitiba. Essa dificuldade de amálgama como povo nos atrasa. Temos uma série de etapas a cumprir até termos uma identidade e repensar os currículos dos bancos escolares talvez seja um dos caminhos para facilitar que o conhecimento sobre as verdadeiras origens do Paraná não continuem no esquecimento. Entre invenções e tradições, permito-me comparar a formação cultural do Paraná à preparação de um bolo. O nosso ainda precisa ser assado. Conseguimos ver cada um dos ingredientes, mas ainda estamos batendo a massa. E ainda falta muito para vendermos o bolo como o mais gostoso do Brasil.

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Paulo Torres, jornalista, 56 anos, nasceu em Alegrete, Rio Grande do Sul, mas já passou por várias cidades. Morou um tempo na cidade de Santa Maria, também localizada no Rio Grande do Sul, e depois morou por um ano em Brasília, Distrito Federal. Um caminho até resolver voltar para o Sul, na cidade de Toledo, Paraná. Segundo ele, a cidade foi escolhida por se sentir bem ambientado: ele viu na cidade suas antigas tradições, como a realização da Semana Farroupilha, evento dedicado à cultura gaúcha realizado sempre em setembro. Torres não gostava da economia do Rio Grande Sul, por haver poucas oportunidades de trabalho para ele. Viu em Toledo algo de dinâmico. Era para ficar só dois anos, mas acabou se instalando definitivamente. Um tempo depois de chegar à cidade, Paulo conheceu Eliane, também jornalista, chamada por ele de “Gringa” por conta de sua origem italiana. Os dois construíram uma família, misturando suas culturas.

Mistura de etnias europeias em busca da Nova Europa THAMILYN VITÓRIA 28


Nessa mistura, Paulo, que é descendente de portugueses, começou a se integrar à cultura italiana. Ele, sua esposa e outros amigos de origem alemã e japonesa se reuniram na comunidade do Centro Ìtalo do Brasil para apreciar a cultura da comunidade italiana. Fizeram, então, um esquema de venda de consórcio para arrecadar dinheiro para comprar uma sede para o grupo. Nessa sede eram realizados vários eventos culturais, como dança, coral, aulas de italiano, além do encaminhamento do processo de dupla cidadania. Paulo e Eliane também tinham um programa na Rádio União, de Toledo, chamado Centro Ítalo do Brasil. Uma vez por semana, a programação com pegada mais moderna era voltada à valorização da cultura italiana, com notícias da Itália e músicas italianas. O que fez Paulo ser imerso a essa cultura foi o amor pela sua esposa e também a paixão pela dança, a culinária e a alegria que compartilhava dentro desta comunidade. Antes de se casar, Paulo já havia tido contato com os costumes italianos por conta de sua faculdade em Santa Maria, Rio Grande do Sul, onde dividia um quarto com um amigo da mesma cultura.

EM BUSCA DA NOVA EUROPA Paulo e Eliane são reflexo do movimento que trouxe europeus para terras brasileiras em busca de uma vida melhor. Ao fugir do sofrimento, trouxeram para o Brasil aquilo que os ligava à terra natal. Desde meados do século 19, quando os imigrantes italianos e alemães chegaram ao Brasil, a maior parte desses povos foi para o sul e para o sudeste. O portão mais importante da época era o Porto de Santos. Alguns imigrantes vieram para começar uma nova vida no meio rural, porque já tinham uma experiência camponesa na Europa, principalmente no cultivo da lavoura do café. O, os outros imigrantes foram para cidades grandes

como São Paulo e Rio de Janeiro, especialmente os que não sabiam trabalhar na lavoura, para empregos nas fábricas de tecido e alimentos. Já os imigrantes que vieram para o Sul do Brasil viram semelhanças geográficas entre a Europa e as características climáticas, de solo, a paisagem na-

à escravidão, especialmente porque vieram para substituir a mão de obra dos negros escravizados recém-liberos. Muitos deles escreviam cartas para os familiares e para os governos europeus denunciando a situação, que acabou sendo investigada e minimizada pelo governo Bbasileiro. A possibilidade de crescimento

Em busca de oportunidades no Novo Mundo, os imigrantes europeus do século 20 transformaram o Brasil na Nova Europa. tural, que facilitava o trabalho e a adaptação deles na região. A maioria dos imigrantes que vieram para o Brasil não tinham muito o que perder, pois já estavam em uma situação complicada no continente Europeu, principalmente pelas revoluções liberais entre 1830 e 1848, que afetaram quase o continente europeu inteiro. Mas o principal motivo da imigração foram as guerras de unificação da Itália e da Alemanha. Eles, então, vieram para o Brasil para escapar da fome e da morte. No início, alguns fazendeiros criaram um sistema de parceria para atrair essa mão de obra imigrante para trabalhar nas fazendas de café, onde eles pagavam essa passagem de travessia do Atlântico para os imigrantes, e assim eles ficavam endividados com esses fazendeiros para o resto da vida. Este foi um trabalho análogo

no Brasil, porém, era real, já que o país começava a ser considerado uma nação em crescimento. Alguns imigrantes alemães e italianos conseguiram mudar de vida, acumular capital e fazer com que tenha valido à pena a vinda para o Brasil. Os imigrantes europeus viam o Brasil como a “Nova Europa”, onde começaram a introduzir os seus laços culturais em colônias. A partir da segunda metade do século 20, o sonho da “Nova Europa” começou a surgir em cidades como Blumenau, Marechal Cândido Rondon, Gramado e Canela, Serra Gaúcha. Nos núcleos de colonização italianos, ucranianos, poloneses e alemães relembravam sua terra natal, mantendo as tradições e os costumes que trouxeram do continente europeu, o que acabou fazendo com que se afastassem ainda mais de uma possível identidade brasileira. 29


Há duas coisas que o ser humano nasce sem poder escolher: seu nome e sua nacionalidade. O nome é escolhido por outras pessoas, para que nenhum indivíduo cresça sem ter algo pelo qual ser chamado. O nome é parte da identidade de um ser humano. A nacionalidade compõe essa identidade, e também é algo sem o que não é possível existir. A nacionalidade constitui também a identidade de um povo. Por exemplo, as pessoas nascidas no Brasil formam o povo brasileiro. De acordo com o dicionário Priberam, “povo” é o conjunto de habitantes de uma nação - pessoas que compartilham a mesma nacionalidade. O Brasil é o quinto maior país do mundo. É composto por 26 estados e dividido em cinco regiões: Norte, Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste e Sul, sendo o Sul formado pelos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Essa região apresenta uma característica que a diferencia das demais regiões: há uma grande concentração de pessoas que não se consideram parte da nação brasileira. Esses são “Os Internacionais”. Os Internacionais são pessoas nascidas no sul do Brasil, portanto, brasileiros, que não se identificam como tal. Esses sulistas consideram ter opções de nacionalidade além da brasileira.

Parte da população do Sul do Brasil já não se identifica como brasileira. Movimentos separatistas e apropriação de identidades europeias ganham espaço ELLEN PICUSSA

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“EUROPEUS, MAS NASCIDOS NO BRASIL” Quando a jornalista Jana Teixeira se mudou para Dois Irmãos, no Rio Grande do Sul, não imaginou que a mudança seria mais que apenas de estado. A cidade, que fica a 60 km de Porto Alegre, é conhecida como Vale Germânico e foi colonizada, assim como inúmeras outras cidades da região, por alemães. A cultura alemã é protagonista ali. Mas a questão é mais profunda que isso. Na cidade de 30 mil habitantes, a maior parte da população não se considera brasileira. De acordo com o doutor em história Marcio Both, a construção da identidade de um povo ou grupo social se deve a fatores culturais, étnicos, históricos, sociais, econômicos e conjunturais. Apesar disso, ele explica que as identidades sociais não são estáticas e que os processos de construção identitária são relacionais. “A existência de um ‘eu’ está intimamente interconectada à existência de um ‘outro’, ou de ‘outros’, que se relacionam de diferentes modos com esse ‘eu’”. No município de Dois Irmãos, levando em conta todos esses fatores, a população se identifica com a nacionalidade alemã, mesmo tendo nascido no Brasil. Por lei, é possível deixar de ser brasileiro, basta adquirir outra nacionalidade, Há, porém, duas exceções para esse processo: quando a lei estrangeira reconhece outra nacionalidade (como brasileiros com cidadania alemã ou pessoas, filhas de pais brasileiros, que tenham nascido fora do país) ou quando há a imposição da nacionalidade em outro país como condição de permanência ou de exercício de direitos civis. Nesses casos, os brasileiros podem ter dupla cidadania. Tirando as duas situações, portanto, para não ser considerado brasileiro, é preciso ter outra nacionalidade. Na prática, essa questão legal é deixada de lado. É muito comum encontrar pessoas na Região Sul que se consideram alemãs, italianas, polonesas

etc., simplesmente pelo fato de terem um grau de descendência de alguém dessas nacionalidades ou, ainda, por conta do processo de colonização: como os estados foram colonizados por europeus, essas pessoas acreditam ser parte desse povo colonizador. Foi no ano de 2018 que Jana se mudou para Dois Irmãos. Apesar de conhecer a região anteriormente, devido a passeios em períodos de férias, a adaptação não foi fácil como parecia. Ela saiu de uma cidade com 400 mil habitantes para morar em um município com 35 mil habitantes, onde tudo é muito diferente. “Minha questão de adaptação teve uma questão minha, que foi imaginar que seria lindo e maravilhoso, cheguei aqui e não foi”, relata.

Na região, que tem costumes germânicos, foi difícil para Jana fazer amigos. Ela conta que chegou lá com receios. “Eu estava com medo, em questão de preconceito, por eu ser negra e estar numa região onde o forte são os alemães, e, querendo ou não, tem aquela questão de que o Sul tem um preconceito”, expõe. “Logo que cheguei, uma vizinha me viu na rua e veio me cumprimentar, falando ‘que legal que você está morando aqui. Fiquei muito feliz quando soube, porque você é uma brasileira, como eu. Não é como os alemães’. Eu fiquei meio assim… Brasileira?”. Essa não foi a única ocasião em que Jana foi considerada parte de um povo diferente - o brasileiro. Certa vez, em um almoço com a família de seu marido, Jana ouviu a seguinte frase da tia dele: “Ah, eu não tenho nada contra quem é brasileiro”.

Quando perguntou para sua sogra sobre o assunto, o esclarecimento veio de uma forma um pouco chocante para a jornalista. “Ela disse que tem muitas pessoas que consideram como brasileiro quem é negro, e eu fiquei pensando ‘como assim? Para mim todo mundo que tá aqui é brasileiro, por enquanto não conheci ninguém que nasceu na Alemanha’”.

“ENTRE ORIGENS E HERANÇAS” A Região Sul do Brasil foi povoada por imigrantes europeus, principalmente italianos, poloneses e alemães. Mas, além desses povos, o Sul tem heranças japonesas, ucranianas e, é claro, de seus povos originários: os indígenas. Esses povos influenciaram no sotaque, na arquitetura e até mesmo na culinária, e esses fatores são levados muito a sério mesmo hoje, centenas de anos após a colonização.

“As pessoas percebem logo no teu sotaque e já falam ‘você não é daqui’”. 31


No estado de Santa Catarina, alguns municípios possuem uma lei que obriga a construção de casas em estilo europeu (enxaimel). Há até uma cidade onde a população, formada por imigrantes e descendentes austríacos, preserva a linguagem, os costumes, festas e comidas típicas do país de origem. Esse apego aos costumes dos colonizadores é muito comum na região sul. No Rio Grande do Sul, Jana vive rodeada por costumes dos colonizadores alemães. “Todo mundo é alemão pelo sobrenome, e eles são muito tradicionalistas e têm muito orgulho das tradições deles. Do chimarrão, do sotaque, do churrasco, e tentam manter bastante as tradições”. Mas, para além da valorização dos próprios costumes, há a ideia de que todos os valorizam da mesma forma. “Uma coisa que eu acho curiosa é que tem muitas pessoas que acham que as coisas que acontecem aqui no Rio Grande do Sul acontecem em outros estados. Tem gente que acha que o dia 20 de setembro [Dia do Gaúcho] é comemorado até no Paraná”, conta Jana.

O professor Marcio Both explica. “Quando falamos de nossas heranças alemãs e italianas, o que é muito comum em algumas regiões aqui do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, devemos ter em conta que a Alemanha e a Itália só passaram a existir como nações unificadas a partir da década de 1880 e que parte significativa dos imigrantes alemães e italianos que aportaram em terras brasileiras no século 19 identificavam-se mais com as suas regiões de origem do que como alemães ou italianos propriamente ditos”. O historiador pontua que a discussão é complexa. “Neste mesmo sentido, também devemos ter em mente que as identidades alemãs e italianas constituídas nas regiões de colonização são hifenizadas, isto é, aqui no Brasil lidamos com teuto-brasileiros e ítalo-brasileiros, não com alemães e italianos propriamente ditos. Outro fator importante desse processo é que estas identidades hifenizadas foram resultado de longos processos históricos de construção e que carregam dentro de si muito conflito, muitas conquistas, mas também muitas decepções e problemas”, destaca.

Certa vez, em uma conversa com uma amiga, tive o seguinte diálogo:

- Minha avó é “alemoa*” clássica. Ela fala “pon”, “benina”, “tuto pom?”... - Que legal, então ela nasceu na Alemanha? - Não, ela é “alemoa” nascida no Brasil. - Não seria brasileira então? - Não, nossa família é de alemães. A família dela tinha um ancestral muito distante que era alemão. *Forma popular para “alemã”, ouvida no sul do Brasil

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Celso Deucher, um dos fundadores do movimento.

“EU AMO MEU PAÍS, O SUL” No dia 9 de abril de 1992, na cidade de Laguna, em Santa Catarina, um movimento surgia. Na terra natal de Anita Garibaldi, a Heroína de Dois Mundos, nasceu um movimento com um objetivo bastante específico: separar os estados do Sul do restante do Brasil. O Sul É O Meu País começava sua trajetória. Um dos fundadores, Celso Deucher, conta que o movimento foi pensado levando em conta questões que, de acordo com os fundadores, o Brasil não consegue resolver com o Sul, estando entre elas os aspectos político, econômico, tributário, cultural e social. “Essas questões nos motivaram a ponto de nos levar, então, a criar uma instituição legalmente constituída para defender a proposta de que o Sul seja ouvido sobre as possibilidades pacíficas e democráticas de constituir um país independente”, explica. O Sul É O Meu País é considerado, por suas características, um movimento separatista, ou seja, um movimento formado por um grupo de pessoas que buscam a independência, a separação, do Estado ao qual pertencem. Para Celso, não é bem assim. “[O Sul É O Meu País] não é um movimento separatista de fato: ele luta pelo direito de as pessoas se expressarem pelo coletivo humano. Por quê? Porque o cidadão comum já tem esse direito de pensar, de se expressar e de se organizar com quem pensa igual a ele para divulgar sua ideia. Mas tem no papel, porque na prática isso não existe”.


“O papel do movimento é lutar para que o Sul seja ouvido” A advogada Joselice Bautitz define o movimento como inconstitucional. “A nossa Carta Magna, promulgada no ano de 1988, determinou, já no Art. 1º do referido diploma legal, que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Ou seja, como os estados do Sul pertencem à República, esta dissolução afronta, já num primeiro momento, o Art. 1º que instituiu a nossa federação”. Celso justifica que o movimento baseia suas ações no princípio da autodeterminação dos povos. Este princípio dá aos povos o direito de autogoverno e de decidirem sua situação política, e aos Estados o direito de defender sua existência e condição independente. Apesar disso, a autodeterminação dos povos possui caráter democrático, e só pode ser reivindicada caso haja concordância entre o grupo, a qual pode ser confirmada com um plebiscito. O Movimento O Sul É O Meu País realizou dois plebiscitos informais sem validade legal - em 2016 e 2017. De acordo com o site do movimento, o primeiro PLEBISUL contou com a participação de 616.917 pessoas. Em 2017, foram 364.256 participantes. Entre as pessoas que participaram destas votações, o Movimento obteve 96% de aprovação.

À época da última votação, a expectativa era de, ao menos, 1 milhão de votos. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a região sul possui 21.781.949 cidadãos aptos a votar. Ou seja, 1 milhão de votantes esperados no PLEBISUL de 2017 representaria cerca de 4,6% da população votante do sul. O número de participantes que de fato participaram do PLEBISUL representa aproximadamente 1,7% dessa população. Celso Deucher relata que, hoje, o maior número de apoiadores do Movimento está em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, mas que no Paraná há cerca de 140 municípios onde o Movimento tem representação. Ao todo, ele aponta 960 municípios onde O Sul É O Meu País é representado, havendo cerca de 40 mil pessoas em sua estrutura organizativa e, segundo ele, mais de 25 milhões de apoiadores. O Movimento defende o parlamentarismo como forma de governo, com um rodízio entre os três estados. Além disso, a moeda vigente seria o Pila, homenageando figuras históricas em suas cédulas, como Guairacá, Bento Gonçalves e Anita Garibaldi. Nos documentos oficiais do movimento, consta que o nome do país, caso ocorra a separação, será União Sul-Brasileira. A capital desse

país? Lages, em Santa Catarina. O co-fundador do movimento revela que, nos próximos cinco anos, seu planejamento estratégico inclui uma discussão dentro dos parlamentos, além da realização de um Plebiscito consultivo realizado sob a auditoria de organizações internacionais. “Queremos provar legalmente que temos esta vontade de nos tornarmos um país independente. Além disso, planejamos chegar a 100% dos municípios Sulistas. Estamos em cerca de 960 dos mais de 1100 municípios do Sul”. Para ele, o que diferencia a população sulista da brasileira é a questão de ser um povo que, “desde 1500, caminha sozinho neste território”. “Fomos perseguidos ao longo dos séculos e em muitos momentos inclusive fomos à guerra para defender o que pensamos”. Ele cita a história para ilustrar seu argumento: a República Del Guayrá, Os Sete Povos das Missões, a República Rio Grandense, a República Catarinense, a Revolução Federalista, a República de Lorena e a Guerra do Contestado. “Tais eventos nos legaram uma personalidade própria que resultou na criação da Nação Sulista em nossa consciência e no nosso coração. Não somos brasileiros, somos Sul-Brasileiros. Não temos nada contra os demais brasileiros, mas 33


queremos ter nosso próprio país, pois é um direito que temos como coletividade de poder construir nosso futuro de acordo com aquilo em que acreditamos e no que queremos”, declara. Nos 29 anos defendendo esse movimento, Celso já levou 49 processos, em sua maioria tendo como verdugo o Estado Brasileiro. “Ganhei todos com base na liberdade que tenho para pensar e expressar o que penso. O mais engraçado disto é que cerca de 20 processos vieram de setores da esquerda e da direita brasileira que defendem o estado máximo e que o estado brasileiro teria o direito de repreender aqueles que ousam pensar livremente. Com tantos inimigos nestes dois espectros ideológicos, penso que estou no caminho certo e tenho cada dia mais força para lutar pelo que acredito”. A advogada Joselice fundamenta: “Não há nenhum impedimento legal para que o movimento possa ser defendido. Entretanto, ficará somente na esfera hipotética, porque é um movimento que hoje não tem respaldo legal. A legislação não ampara e, portanto, enxerga de forma ilegal, pois o movimento afronta a nossa Lei Constitucional Maior, não existindo possibilidade, a não ser através da edição de uma nova Constituição”. Para Celso, os próximos passos do Movimento envolvem os âmbitos culturais, políticos, econômicos, entre outros. “Temos um planejamento que nos permite pensar e agir para influenciar estas áreas no sentido de trabalharmos todos juntos para a realização do nosso maior sonho, um Plebiscito Vinculativo, cujo resultado pode nos levar à independência, ou não. Afinal, este é o papel do Movimento, lutar para que nosso povo seja ouvido de forma pacífica e democrática”, finaliza.

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“UM OLHAR DIFERENTE DO SUL” Não é incomum ver piadas do restante do Brasil para com os sulistas, alegando que estes se sentem superiores, ou parte da população europeia. Os argumentos são comuns: não há motivos para os sulistas se sentirem um povo à parte do brasileiro, pois, assim como todas as outras regiões do país, o Sul é resultado de um grande processo de miscigenação dos povos, não se diferenciando, dessa forma, do restante do Brasil. Diversos sites também zombam do fato de haver sulistas que se identificam como alemães ou italianos, pois “se fossem para lá, os europeus iriam considerá-los tão mestiços quanto os nordestinos”.

O Portal Geledés traz, em um texto a respeito do culturalismo racista, a seguinte fala: “Nota-se que boa parte da elite sulista deixou-se levar de fato pelo mito da continuidade cultural: sendo descendentes de europeus então pensam que de fato são realmente europeus ou então uma espécie de embaixadores da Europa no Brasil. E como europeus, são portanto superiores ao resto do Brasil, trabalham mais, são mais organizados, mais empreendedores, mais cultos. Em particular, talvez a parte do ‘mais cultos’ seja a maior ilusão de todas. Na verdade, a ignorância sobre a grande cultura que há no resto do país oblitera intelectualmente essa elite que se vê maior do que realmente é”. O Sul do Brasil ainda tem um longo caminho pela frente, cujos desafios iniciam na compreensão de que seus habitantes são, de fato, brasileiros. Até lá, Os Internacionais seguem seu caminho se sentindo grandes estrelas no tapete vermelho cultural.


Vozes buscam maneiras de serem ouvidas; a arte é uma delas MARIA LUIZA DE MARCO

A voz se transforma em tinta e belas paisagens. É através delas que a mensagem é transmitida. Isaac Souza de Jesus é artista e trabalha com o graffiti como ferramenta de transformação social. A arte está em sua vida há muito tempo. Ainda na época de escola, se aprofundava em seus desenhos, porém, foi em 2012 que começou os trabalhos com o graffiti, e em 2014 se tornou um microempreendedor. Só que, antes disso, ele é um homem negro que vive no sul do Brasil, o lugar em que há predominância de brancos e pessoas alegadamente descendentes de povos europeus. Lugar em que o preconceito, mais especificamente o racismo, é muito mais latente. Mesmo assim, Isaac conta que, quando chegou ao Paraná, não sentia tanto a desigualdade. “É bem sutil mesmo, é uma coisa que precisa de um aprofundamento na identidade do indivíduo para que ele sinta essa dificuldade". Natural de São Bernardo do Campo, São Paulo, o artista mora em Toledo, interior do Paraná, há mais de 20 anos. Veio com a família, muito humilde, e acabava confundindo a necessidade de trabalhar desde

cedo para conquistar o necessário com as dificuldades de ser um afrodescendente em terras sulistas. “Aqui na região sul a questão dos privilégios é mais gritante porque basta ter um olhar um pouco mais atento nas escalas de poder e nas esferas das classes mais altas para você ver que há um branqueamento e que há uma relação direta [do sucesso] à cor da pele, às comunidades mais eugênicas, do que as comunidades mestiças, afrodescendentes ou os povos originários, em que não tem isso”. Isaac reflete sobre as condições sociais que se impõem na região em que vive. Para ele, esse é um debate que a sociedade vai ter que encarar nos próximos anos porque pessoas iguais a ele, que não tinham voz, estão assumindo o protagonismo. “Na região sul, a gente vai ter um fronte muito legal, mas de muito trabalho pela frente. Vejo isso como uma oportunidade de construir uma sociedade melhor, mas acredito que a gente vá enfrentar inúmeros problemas, uma vez que quem detém esses privilégios não percebe que os tem e coloca sempre a questão da meritocracia como base disso”. É preciso lutar para que indivíduos que não fazem parte desse grupo consigam lugares de destaque pelo talento e por vontade. Essa é a luta de Isaac. 35


CULTURA NA ARTE A maneira que Isaac encontrou para se mostrar e aplicar seus anseios sociais foi a arte. A partir do momento que sentiu a participação e o interesse do público, seus objetivos começaram a voar. “Eu me articulei junto com minha esposa para montar um projeto chamado Acordar. Esse projeto ganhou novos horizontes, novas fronteiras e saiu de Toledo”.

O projeto consistia em lutar por igualdade e equidade social através da arte, desmistificar o graffiti na região, além de fortalecer a cultura afro. “Também me organizei enquanto empresa, para tirar recursos para fazer esse projeto, tendo em vista as experiências positivas que tivemos em um período como voluntários através das escolas, creches, CMEIS, debates, palestras, algumas participações acadêmicas”. Houve grande procura, por isso a ampliação de horizontes. “Quando você se abre e deixa que a vida te leve, portas vão abrindo para um objetivo”. O trabalho foi se expandindo pelo Paraná e até fora dele, alcançando um alto número de jovens. Com a Itaipu Binacional, o projeto passou a se chamar Linha Ecológica. São oficinas, minicursos, ora pela Secretaria de Assistência Social dos municípios, ora pela Secretaria de Meio Ambiente, de Educação, ou de Cultura; são políticas interligadas que pautam diretamente essa construção e esse compartilhar de conhecimentos. “Isso possibilita que a gente transite em inúmeras cidades e de formas a dialogar com vários públicos pela arte, e trouxe a gente para trabalhar com pelo menos 26 mil jovens, diretamente atingidos pela arte do graffiti”.

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HISTÓRIA QUE SE REPETE Mesmo tendo acesso ao sistema público, Isaac conta que ele e seus primos sempre tiveram que fazer escolhas, e não eram escolhas simples como qual roupa iriam vestir, era entre estudo e trabalho. “Nós desde pequenos tivemos que escolher entre estudar e trabalhar ou ainda ter algumas coisas que, para outras pessoas, são muito simples: ‘vou estudar, não vou trabalhar por enquanto’, ou comer, por exemplo, ter uma mistura em casa ou ir em algum lugar, então a gente optava por trabalhar, eu queria ter um dinheiro final de semana, coisa que era muito difícil, e tô falando de pouco dinheiro, dinheiro para comer um lanche ou uma coca por exemplo”, conta o artista. As escolhas continuaram no decorrer da vida, o que muda são as opções, que estão fora do controle do cidadão estrangeiro à região. “Você vai partir para trabalhar e a chance de você ganhar bem menos que outros artistas que estão mais ou menos no seu mesmo nível técnico, na mesma escala de trabalho, é bem grande”, diz Isaac. É um fator que independe de sua experiência ou estudo. Depois de muita luta e esforço, há quem alcance os mesmos direitos, é quando a igualdade vira conquista.

A-COR-DAR A arte como transformação social, para Isaac, deve ser empregada desde a infância, para que se construa indivíduos capazes de enxergar e absorver essa luta, minimizando o preconceito e a desigualdade. A pedagoga Patrícia Muniz faz parte do Grupo Afrovida, o Centro de Referência em Estudos da Cultura Afrobrasileira de Cascavel, e concorda que o jeito de mudar o pensamento retrógrado da região é na educação. “Ao meu ver, só a educação tem poder de melhorar a situação e o entendimento de que não necessitamos de aceitação, precisamos de respeito e oportunidade”. A região sul vive de privilégios, ou seja, cresce quem pode. Porém, é válido lembrar que outras culturas também se fazem presentes, o afro está presente, a arte está presente e todas as formas de se pronunciar. Patrícia reforça a necessidade de um pensamento coletivo: “É preciso entender que existimos, estamos em diferentes espaços e isso deve ser respeitado”.

“Desejo socializar a arte de uma forma mais abrangente, que chegue a mais pessoas, não apenas a arte do graffiti, mas a arte como um protagonismo dos indivíduos desses territórios periféricos. Entendo isso hoje por participar diretamente do graffiti”.

PROJETO ACORDAR, POR ISAAC SOUZA DE JESUS A arte do graffiti apresentou-me à vida. Como liberdade de expressão possibilitou livrar-me do que me aprisionava. Se mostrou como força motriz para acreditar que um outro mundo é possível! Dessa forma, surgiu o projeto graffiti para a-cor-dar: dar cor às expressões da vida. a-cor-dar, significa dar cor, colorir. Concomitantemente, significa acordar para a realidade: às expressões da “questão social” que se revelam sobre as condições de vida da população brasileira no tocante: trabalho, saúde, educação, moradia, alimentação, dentre outras; mas também se coloca como resistência e luta por igualdade e equidade social. Mediante ações, além do caráter social, assumi a postura de desmistificar a relação entre pichação e graffiti, mas também, como arte urbana, as relações entre capital e interior, urbano e rural, favela e asfalto, sendo uma expressão cultural de quem está no território e nele vivencia sua história, sua cultura e suas transformações. Por isso, o percurso do meu trabalho objetiva ampliar as possibilidades de expressão, sobretudo de cidadãos silenciados. 37


De acordo com o artigo 20 da Lei 7.716, é crime fabricar, comercializar e distribuir símbolos para divulgação do nazismo. Mesmo assim, é possível encontrar no Brasil adeptos dos ideais do Nazismo 76 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. O Núcleo Investigativo da CNN mostra que, nos últimos 11 anos, foram registradas 30 ocorrências policiais envolvendo apologia ao nazismo, nos estados de Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Santa Catarina. Entre essas ocorrências, mais de 30% dos casos foram no estado do Paraná. Segundo a SaferNet Brasil, organização não governamental que mapeia denúncias anônimas de

As características dos grupos neonazistas no sul do Brasil DANIELA PAVAN E GABRIELA DONATO DA SILVA

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crimes e violações contra os Direitos Humanos na internet, somente nos últimos três anos, 2.516 páginas de teor nazista – hospedadas em 666 domínios – foram localizadas no Brasil. No ano passado, o País estava na 9ª posição do ranking mundial, com 764 páginas.

A HISTÓRIA DO NAZISMO Para entender como o neonazismo chegou ao sul do Brasil, precisamos voltar a 1919, ano do fim da Primeira Guerra Mundial. Ao perder a guerra, a Alemanha teve que se redimir com outros países e ainda lidar com a crise que se instaurou no país. Essa crise criou um o ressentimento da população alemã com outras nações e fez com que o nacionalismo extremo ganhasse espaço. Ainda após a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha instaurou uma nova política chamada de República de Weimar. O nazismo nasceu dentro dessa república, junto com outros partidos. Nesse ponto é preciso


explicar que o Nazismo é uma derivação da sigla “Nazi”, que foi usada como abreviação de “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães”, criado por Adolf Hitler. A República de Weimar conseguiu bons resultados para a economia do país entre os anos de 1924 e 1929, principalmente por conta de investimentos estrangeiros, sobretudo vindos dos Estados Unidos. Entretanto, com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929, a economia alemã piorou junto à do país investidor. Esse declínio econômico favoreceu a radicalização das propostas do Nazismo. O idealizador e político que concretizou o Nazismo na Alemanha foi Adolf Hitler. Ele havia participado da Primeira Guerra Mundial como soldado combatente da Tríplice Aliança. Após a guerra, Hitler passou a integrar um grupo de ex-combatentes, de trabalhadores e de membros da classe média alemã que desenvolveu uma ideologia cujo objetivo era resgatar a dignidade política da Alemanha. Antes de 1929, o grupo de Hitler tentou tomar o poder, mas acabou sendo preso e condenado. Durante

o tempo na prisão, Hitler aprimorou seus ideais e os registrou no livro Minha Luta. Por meio do Partido Nazista, Hitler conseguiu eleger representantes dentro da República de Weimar e assim conseguiu cada vez mais chegar perto do poder. Em 1934, o presidente da Alemanha faleceu e Hitler tomou o poder. Assim começa o regime Nazista no país.

CARACTERÍSTICAS DO NAZISMO Uma das características marcantes foi o controle da população por meio da propaganda, com o uso do rádio e do cinema. O antissemitismo, ódio aos judeus, religião à qual Hitler atribuía a culpa por vários problemas que a Alemanha enfrentava, se intensificou no período nazista. Esse fato culminou no Holocausto, com mais de 6 milhões de pessoas mortas em campos de concentração. Esse ódio pelo povo judeu também trouxe à tona a ideia de a raça araiana como superior às demais (pois consideravam a existência do conceito de raças). Essas características levaram a Alemanha à Segunda Guerra Mundial, quando o país invadiu a Polônia, em 1º de setembro de 1939.

NEONAZISMO O neonazismo surgiu logo após a Segunda Guerra Mundial e resgata os elementos do nazismo para promover o ódio contra diferentes grupos sociais. O movimento surgiu na Europa nas alas radicais da direita, formado por antigos adeptos que sobreviveram à derrota do nazismo. Com o tempo, essa ideologia se proliferou em muitos grupos e associações que atuavam clandestinamente, mas também entrou na política profissional, com partidos de neonazistas. Alguns países como Alemanha, Itália, França e Inglaterra enfrentaram um grande crescimento desses grupos, que começaram a se expandir para diferentes partes do mundo. Atualmente, existem movimentos neonazistas em todos os continentes, sendo os Estados Unidos um dos países onde o movimento mais cresceu.

O PERFIL DO NEONAZISTA BRASILEIRO Segundo o mestre e doutorando em história e especialista em Segunda Guerra Mundial e Nazismo, Samuel Schneider, não existe um perfil neonazista único, mas algumas tendências. No Brasil, são poucos os grupos neonazistas e estes se concentram na região sul e no eixo Rio-São Paulo, especialmente pessoas que são descendentes de alemães e italianos. De acordo com o historiador, são geralmente pessoas do sexo masculino, de 20 a 40 anos de idade, que gostam de militarismo e segurança, pois

entre os neonazistas muitos são militares ou ex-militares, policiais, pessoas que trabalham com segurança privada, entre outros. “Possuem uma característica de clandestinidade, mais gângster do que aquele nazismo clássico, eles têm um lado mais hooligan”. "Hooligan" é o termoinglês para "vândalo"; já gângster é o que faz tudo para atingir um objetivo. Os grupos neonazistas no Brasil são fechados, ocasionalmente se encontram ou fazem reuniões, estão presentes na deepweb e atuam mais ou menos como os criminosos, via WhatsApp, laços familiares e laços de vizinhança.

Não é possível saber as estatísticas de algo tão oculto, mas esses grupos se concentram sobretudo na região Sul, devido à colonização germânica no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, com admiradores de Hitler, pessoas com suástica e que falam alemão. Segundo Schneider, ao visitar zonas de colonização alemã no Rio Grande do Sul, é possível ver suásticas e “Fora Israel” pintados em muros, mas eles não possuem poder político e influência social e intelectual consideráveis. Por enquanto. 39


Em todo o Brasil: basta ir até a esquina que nos encontramos com estrangeiros e imigrantes que estão formando uma vida . O Ministério da Justiça estima que, de 2010 a 2019, foram registrados cerca de 1,08 milhão de imigrantes vindos para o Brasil. Muitos dos imigrantes são refugiados, pessoas que fugiram de seus países por terem seus direitos violados, enfrentado lutas e repressões. Em 2020, aproximadamente 28 mil pessoas solicitaram reconhecimento como cidadão refugiado no País.

A iniciativa de uma pessoa pode transformar a vida de diversas comunidades RICHARD GUILHERME

A EMBAIXADA SOLIDÁRIA No Paraná, haitianos e venezuelanos formam a maior parte dos refugiados. Os primeiros começaram a chegar à região em 2010. Em Toledo, oeste do Paraná, uma ONG presta apoio a essas pessoas, a Embaixada Solidária, idealizada e concretizada por Edna Nunes e inúmeros colaboradores voluntários. Edna sempre sonhou em trabalhar com causas solidárias. Viajou para diversos países ajudando pessoas, mas se estabilizou na carreira de jornalista há 20 anos, atualmente trabalhando na Câmara Municipal de Toledo. Há cinco anos, Edna trabalhava em Cascavel, cidade vizinha a Toledo, e, em seu percurso de ônibus até a cidade, conheceu inúmeras haitianas, com quem criou um laço de amizade. Certo dia, Edna foi até a casa de uma delas e se

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deu conta de que ela vivia em uma situação precária. Neste dia, surgiu a ideia de fazer algo ainda maior. Quando se deu conta, já estava ajudando vários imigrantes, junto a colegas que se solidarizaram. O projeto cresceu e se transformou na ONG, que tem como objetivo acolher imigrantes e os auxiliar no dia a dia. O suporte visa a minimizar os problemas de adaptação em um país novo, com ensino de língua portuguesa, encaminhamento para o mercado de trabalho, além de doações e outras ajudas mais específicas, como auxílio à gravidez. Hoje, com cinco anos de Embaixada, entre diversas lutas e vitórias, a ONG é reconhecida na região, tornando-se sinônimo de fazer o bem sem olhar a quem.

TUDO PELO PRÓXIMO

para um melhor atendimento dos necessitados. E para lidar com pessoas que têm culturas, relacionamentos, crenças diferentes é ainda mais complicado. Alguns voluntários falam outras línguas, porém a demanda é grande e não é possível ter uma comunicação eficaz com todos. “Um atendimento que requer tempo, dedicação, paciência e muita comunicação”, relata Edna.

A LUTA PELA VISIBILIDADE A ONG é uma ponte, cada indivíduo que passa por ela chega ao outro lado renovado, tanto os imigrantes quanto os voluntários e parceiros. É uma luta constante para que essa minoria consiga obter seus direitos e aprenda seus deveres.

Desde o começo, foi uma luta para conseguir doações e apoio tanto de órgãos particulares quanto de públicos. A busca para angariar recursos que possibilitem melhor vida a essas pessoas é constante.

Para uma pessoa de realidade totalmente diferente do Brasil, o choque é grande, e muitos não sabem o que fazer. Segundo Edna, um dos maiores problemas é a invisibilidade, pois quando chegam não entendem nossa cultura, nosso idioma e ainda sofrem grande preconceito.

No início, a sede era localizada no Jardim São Francisco, em Toledo, em uma casa com aproximadamente 70 m². Com aumento da demanda, a sede teve de ser transferida para a Vila Industrial de Toledo, onde está até hoje, em uma casa de 150 m².

Para que os imigrantes não percam as esperanças ao tentar uma vida melhor, a Embaixada Solidária oferece diversos projetos que relembram a cultura de seu país natal e formas de conseguir uma renda. A busca é por motivos que os levem a não desistir.

A ONG já atendeu aproximadamente 4 mil estrangeiros desde 2016, e o número só aumenta, com público de Toledo, Cascavel, Medianeira e outras cidades. Entre as 15 etnias que já passaram pela Embaixada, incluindo argentinos, nigerianos e moçambicanos, a maioria é formada por haitianos.

Esse trabalho é feito para que o imigrante saiba que ele não é invasor. ”As culturas são formadas com a participação das pessoas”, relatou Edna, e para um imigrante se sentir em casa ele precisa poder viver sua cultura sem sofrer preconceitos, completa. Entre as atividades, estão projetos com estilistas africanos, comemoração do dia da bandeira do Haiti, eventos típicos senegaleses, promoção de desfiles de moda, festivais de comida típica e até mesmo feira dos penteados. A expressão da religiosidade também é tratada como elemento importante, com a busca por lugares para manterem as práticas de suas doutrinas e crenças .

Do trabalho, Edna fala com propriedade. “Agimos como uma ponte para que eles consigam acessar seus direitos e cumprir seus deveres, fazendo desde a montagem de lares solidários até o auxílio para o mercado de trabalho”. O trabalho não é fácil. Os voluntários precisam dar seu empenho

UM FUTURO QUE ALMEJAM Mesmo com as inúmeras demandas atuais, a ONG ainda tem tempo para pensar no futuro. Um exemplo é a busca pela ampliação do projeto Boneca Sem Boca, uma luta para que as mulheres tenham voz ativa e seus direitos reivindicados. A ONG entrou em contato com a ONU (Organização das Nações Unidas) para que o projeto seja ampliado e tenha seu devido reconhecimento. Além disso, são mantidos projetos como o Permuta de Idiomas, para as pessoas aprenderem novas línguas, pois a comunicação é um fator de extrema importância no processo de imigração. Um salão de cabeleireiro também é um sonho dos envolvidos na ONG. Penteados exuberantes são uma característica da cultura de diversos imigrantes; ao praticá-los, reforçam as próprias identidades e ainda podem conquistar uma maneira de gerar renda para um novo começo.

DOAÇÕES E BENFEITORES Como qualquer ONG, a Embaixada Solidária sobrevive das doações e boas ações de pessoas que compactuam com a causa, sendo com quantias em dinheiro, serviços, itens como vestuário, mobília, entre outros. A renda arrecadada é toda convertida para os imigrantes auxiliados. Fora as doações, existe o Bazar Refúgio, que arrecada dinheiro para a iniciativa. Universidades também ajudam com serviços como consultas jurídicas, saúde, entre outros. Neste momento de pandemia, toda ajuda importa. O isolamento traz diversos problemas para os imigrantes, com perda de trabalho e amigos e familiares que estão doentes em seus países natais. Segundo Edna, o que mais motiva os voluntários da Embaixada Solidária é fazer parte de um recomeço de inúmeras vidas. Para ajudar, basta entrar em contato com a ONG pelas redes sociais. 41


As facetas do tradicionalismo musical do sul do País e as notas musicais como pistas de comportamento EMILLY LAZAROTTO

De geração a geração, a música tem papel fundamental na difusão da cultura em um país. No Sul não é diferente. E, ao falarmos de manter uma tradição, temos que parar e conhecer o contexto de seu nascimento. O sul do país é altamente diversificado, nele encontramos descendentes de diversos povos do mundo e essa miscigenação criou a famosa cultura sulista. Só que antes de sair por aí cantando fundo da grota e dançando as músicas das bandinhas de Santa Catarina, é preciso entender que a música no sul não é apenas aquelas que está sempre na mídia. A música faz manter vivas tradições que muitas vezes não são conhecidas ou até já caíram no esquecimento dos mais velhos. No Paraná, por exemplo, existem diversos grupos tradicionais de folia de reis, congada, fandango, viola caipira, entre outros. 42


só nos costumes e sotaque, mas na forma com que ele interage com o meio em que está inserido”, comenta o professor de história Edson Yokoo.

A MÚSICA COMO EXPRESSÃO DE LUTA A música é uma ferramenta de resistência, e trabalhar mantendo uma tradição viva é a forma que muitos ainda possuem para manter viva essa essência. Esse é o caso da Fundação Mandicuera, que trabalha com a preservação da cultura e da tradição do fandango e do caiçara, uma festa típica dos caboclos e pescadores do litoral do Paraná. As várias danças regionais são denominadas marcas de fandango. “A palavra fandango vem do termo em latim fidicinare. O fandango é uma espécie de baile que guarda particularidades musicais e coreográficas, teria sido uma dança trazida pelos portugueses, que no passado se espalharam pelos recôncavos do litoral brasileiro”. Aorelio Domingues usa da sua força de trabalho para manter acesa a chama do fandango caiçara. Além de músico, ele é pescador e está à frente do Mandicuera, grupo responsável por manter a tradição fandangueira viva. “O fandango é uma válvula de escape para todas as lutas que a gente trava”, conta Domingues. Ao falarmos da comunidade caiçara, voltamos a falar da união de gerações, pois a música faz com que esses universos conversem. Domingues dedica seu tempo também à fabricação de instrumentos do fandango para as crianças da comunidade. Nas manifestações caiçaras, encontramos gerações conversando através da música.

LIGAÇÃO COM A TERRA “A gente vê que principalmente o gaúcho que migra dentro dos estados do país nunca deixa de mostrar aquele estereótipo ‘Eu sou gaúcho’, não

O que hoje chamamos de cultura é muito do resultado das colonizações europeias nos estados do Sul. Yasmin Stella, em O “típico” importado: a memória construída do Rio Grande do Sul, explica a construção: “É inegável que a representatividade europeia é atravessada por inúmeros encontros e desencontros com a ‘cultura brasileira’. Portanto, na 'tradição' passada de geração em geração, com novos significados contextuais, há uma elasticidade que é dotada de originalidade própria. Ou seja, a representação da Europa no Brasil não é igual à Europa no continente europeu. Não há como dizer que é uma cópia autenticada”. E mesmo que essa identidade advinda das culturas ocidentais, o brasileiro fez com que ela se tornasse única. A música é a nossa herança cultural mais dinâmica, desde pequenos ouvimos histórias através dela, e é dela que vêm as músicas atuais. Quando falamos de música sulista, três gêneros são mais latentes, um de cada estado: a música raiz do Paraná, o bandanejo de Santa Catarina e a música tradicionalista do Rio Grande do Sul. Existem ainda tradições que vivem “escondidas”, muitas vezes deixadas de lado. E isso nos leva à grande ironia do sulista, visto que temos por costume valorizar as manifestações como as rodas de chimarrão, os CTGs, as festas das comunidades alemãs e etc.

POR QUE AS TRADIÇÕES MUSICAIS COMO UM TODO NÃO SÃO REPRESENTADAS? Talvez para esse questionamento nunca encontremos uma resposta concreta, mas é fácil perceber que, mesmo mantendo costumes e tradições, muitas vezes não consumimos tudo o que há em um território. Muitos cantores e bandas, por exemplo, nasceram em nossos

estados e ganharam reconhecimento nacional, mas muitas vezes nem sabíamos que eram do sul.

O NATIVISMO CULTURAL Do sentimento de pertencimento, nasce também o sentimento nacionalista do sul. Isso é visto especialmente na música, nas melodias e nas letras que lembram e valorizam a terra. É um combustível para encher corações e cantar o amor às origens. “Eu acho que a gente lida muito com a emoção e eu gosto muito da história da nossa família ter ido pra música, porque eu não pensaria numa vida sem emoção, então é o sentimento que nos abastece”, diz Ernesto Fagundes, músico e membro do grupo Os Fagundes. É nas vozes e sons dOs Fagundes que uma das músicas mais regravadas do sul leva o jeito gauchesco de fazer música a todos os lados. O “Canto alegretense” é uma dessas canções que acabam carregando a fama de música sulista, enquanto outras tantas acabam esquecidas e desconfiguradas de suas origens. A separação entre “canto gauchesco” e “canto brasileiro” na música é uma pista de como as terras do sul se veem com relação ao Brasil.

“Ouve o canto gauchesco e brasileiro Desta terra que eu amei desde guri Flor de tuna, camo tim de mel campeiro Pedra moura das quebradas do Inhanduy" Euclides Fagundes Filho, pai de Ernesto Fagundes.

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