Jornal do Campus - Edição 458 (jun/2016)

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ANO 34 - Nº 458 PRIMEIRA QUINZENA | JUNHO 2016 Produzido por alunos de Jornalismo da ECA-USP

Professores aderem à greve DANIEL TUBONE

Categoria, que não costuma paralisar, se posiciona contra mudanças na carreira docente e pleitea reajuste de 9,28% p. 8 UNIVERSIDADE

CULTURA

ENTREVISTA

ESPORTES

EM PAUTA

CIÊNCIA

Sem criação de novas vagas, mães temem fechamento de creches p. 5 Professora da FFLCH discute o conceito de cultura do estupro p.11

Como o vazamento de áudios prejudica investigações sigilosas p.3

Em unidades ocupadas, alunos organizam atividades p.14 Pró-Reitoria de Graduação congela financiamento de competição p.13 Campus Butantã é recordista em níveis de ozônio em São Paulo p.10


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DIÁLOGOS

PRIMEIRA QUINZENA | JUNHO 2016 JORNAL DO CAMPUS

EDITORIAL

JC e a greve OMBUDSMAN

Jargão não ajuda ninguém LUCIANA COELHO*

ESPAÇO DO LEITOR [Greve] Esta será a quarta greve que vejo e as pautas são sempre abafadas depois que ela termina. Tenho minhas dúvidas se as pautas são de interesse coletivo por todos que aderem as greves e não apenas aos seus grupos gerenciadores.

[A greve] quebra a normalidade, traz o debate político, possibilita os alunos a participarem dos atos e atividades de greve, além de alguma forma pressionar a reitoria.

Mateus Mendonça - Estudante

Marcos V. Petri - Estudante Participe do JC pela #JornaldoCampus, no Instagram, e veja sua foto aqui

ESALQ, PIRACICABA, DE @ROUX_TRAVELER_HELENA

[Representatividade nos cargos políticos] A democracia tem falhas, sendo uma das principais a incapacidade de atingir todos os públicos. Representatividade e diversidade minimizam isso.

Renata Barreto - Estudante

Um homem é capaz de representar mulheres tanto quanto uma mulher é capaz de representar homens, isso depende apenas das ideias que o indivíduo resguarda.

André Ferrari - Estudante

É bem-vinda a ideia de reunir em uma mesma edição várias pautas sobre racismo e discriminação de gênero. Alguns cuidados, porém, evitariam passar ativismo por jornalismo. O ativismo é saudável, mas as páginas de um veículo de informação não são o lugar para exercê-lo. Evitar o jargão é fundamental. Na reportagem sobre machismo nos jogos universitários, a palavra “opressão” – extraída do léxico dos ativistas sem contextualização nem explicação – é usada diversas vezes sem lógica semântica (do que falamos ao dizer “estar preocupado com opressões”? Assédio? Agressão? Humilhação? Não seria melhor usar o termo preciso? A pasteurização de alguns termos tem efeito nocivo para quem deseja chamar a atenção para um problema. Uma pessoa desconectada do tema – e é a atenção delas que precisa ser evocada – tem muito mais clareza do que está sendo descrito se o jargão for evitado. A probabilidade de ela se interessar pelo assunto será maior. Defensores de causas têm o mesmo trabalho na mão contrária: nos EUA, campanhas pró-imigrantes, por exemplo, se esforçam para orientar jornalistas a evitarem o termo “imigrantes ilegais”, também uma pasteurização preguiçosa, já que estes não violaram a lei, e preferirem “imigrantes sem documentos”. Precisão e a clareza são aliadas tanto do bom jornalista quanto daqueles que pretendem educar os demais sobre um tópico. Em tempo: ótima entrevista com o professor Vinícius Romanini, mas faltou cuidado na edição – o “professor Laurindo” (Leal Filho, suponho) é citado sem menção a sobrenome, como se todos os leitores o conhecessem.

*Luciana Coelho, 37, é editora de “Mundo” da Folha de S.Paulo e ex-correspondente nos EUA e na Europa.

FZEA, PIRASSUNUNGA, DE @RODRIGOMONTEIROFOTO

A USP está em greve pelas três categorias, funcionários, alunos e professores, com unidades ocupadas e piquetes nas entradas dos departamentos e nos escaninhos - para prevenir a entrega de trabalhos. Nesse cenário, questiona-se: o Jornal do Campus, que é uma disciplina do curso de Jornalismo, deve continuar? Essa pergunta foi feita em assembleia do departamento de Jornalismo e Editoração e por nós mesmos, os alunos do 5º semestre do Jornalismo responsáveis por produzir o jornal neste semestre. Ela vem carregada de outros questionamentos: o JC não é uma disciplina como consta no Júpiter? Sim. Nós não recebemos nota por ele? Positivo. E todas as disciplinas do departamento não estão paralisadas? De fato, estão. O que faz do JC diferente, por que ele não para também? A resposta que chegamos é que ele não para, porque é um jornal. Parece banal, mas não é. O princípio básico de um veículo jornalístico é informar seu público leitor sobre fatos do seu interesse - os formatos variam e o escopo também (do mais amplo possível, como fazem os grandes jornais, a nichos específicos de temas ou localidades, como os de algumas revistas, sites e pequenos jornais). No nosso caso, o escopo é grande, precisamos dar conta de tudo que se passa na USP, em todos os seus campi, do Butantã a Lorena, do largo São Francisco a São Carlos, da Pinheiros a Piracicaba. Com tal alcance, nossa responsabilidade também é grande. Escrevemos para mais de 100 mil pessoas espalhadas por sete cidades. Pessoas que, esperamos, desejam saber o que se passa no universo uspiano e que contam, atualmente, com um único veículo impresso na Universidade, o JC. Apesar de muitos não saberem quem está por trás desta publicação (os alunos de Jornalismo!), apesar de ele ser “apenas” um jornal laboratório, é inegável que, depois de 33 anos de estrada, o Jornal do Campus é mais que uma disciplina. É um veículo jornalístico e, como tal, possui uma responsabilidade social para com o seu público – este último, bastante heterogêneo, do aluno da Letras ocupada ao funcionário da Poli que continua trabalhando. Por isso, nos propomos a fazer o que sempre tentamos fazer: cobrir os acontecimentos de forma completa, trazendo pontos de vista conflitantes da maneira mais objetiva (objetividade absoluta não existe), humanizada e ética possível. Assim, nos debruçamos sobre a greve para mostrar o posicionamento dos professores (leia nas páginas 8 e 9), trazer a situação das creches na Universidade (na página 5). Mas, ao mesmo tempo, fomos tentar entender por que o campus do Butantã é a área mais afetada pelo gás ozônio na cidade (na página 10) e o que aconteceu com o financiamento para campeonatos esportivos prometidos pela pró-reitoria (páginas 13). Não paramos, porque queremos continuar a informar (e aprender, sempre). Boa leitura.

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JORNAL DO CAMPUS - Nº 458 TIRAGEM: 8 MIL Universidade de São Paulo - Reitor: Marco Antonio Zago. Vice-Reitor: Vahan Agopyan. Escola de Comunicações e Artes - Diretora: Margarida Maria Krohling Kunsch. Vice-Diretor: Eduardo Monteiro. Departamento de Jornalismo e Editoração - Chefe: Dennis de Oliveira. Chefe Suplente: Ciro Marcondes Filho. Responsáveis: Alexandre Barbosa, Luciano Guimarães e Wagner Souza e Silva. Redação - Secretária de Redação: Isabel Seta. Editora de Arte: Jeferson Gonçalves. Editor de Fotografia: Laura Capelhuchnik. Editor Online: Marília Fuller. Entrevista - Editor: Joana Leal. Repórter: Carolina Pulice. Universidade - Editores: Luiza Magalhães, Nairim Bernando e Nyle Ferrari. Repórteres: Breno Leoni Ebeling, Daniel Tubone, Isadora Vitti, Júlio Viana, Marcos Nona, Tiago Aguiar e Vinícius Almeida. Em Pauta - Editora: Júlia Moura. Repórter: Rafael Ihara. Cultura - Editor: Guilherme Caetano. Repórteres: Carolina Monteiro e Giovanna Lukesic. Esporte - Editora: Gabriela Sarmento. Repórteres: Amanda Oliveira e Paula Thiemy. Ciência - Editora: Ana Luisa Moraes. Repórteres: Felipe Marquezini e Sofia Mendes. Crônica - Editora: Isabella Galante. Repórter: Heloísa Iaconis. Diálogos - Editora: Isabella Galante. Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 433, bloco A, sala 19, Cidade Universitária, São Paulo, SP, CEP 05508-900. Telefone: (11) 3091-4211. Fax: (11) 3814-1324. Impressão: Gráfica Atlântica. O Jornal do Campus é produzido pelos alunos do 5° semestre do curso de Jornalismo Noturno, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso II.


EM PAUTA

PRIMEIRA QUINZENA | JUNHO 2016 JORNAL DO CAMPUS

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Vazamento de gravações gera debate jurídico Ministros de Temer caíram com a divulgação de informações sigilosas; conduta é permitida? RAFAEL IHARA

quem pratica ilícitos sem cair na justiça do espetáculo? Um vazamento só é notícia na imprensa quando alguém tem a intenção de fazê-lo, e existe outro sujeito que recebe e divulga o que é vazado (o jornalista). Tão importante quanto saber o conteúdo do material divulgado, é saber como a imprensa conseguiu aquela informação. Essa é a opinião de Floriano Peixoto. Para ele, os interesses da fonte tiram a legitimidade da denúncia, e “quem quer fazer uma denúncia legítima, faz isso às claras, vai à imprensa e dá entrevista”. Velludo Netto disse que o que existe é uma relação de ganha-ganha, porque o jornalista que obtém a informação sigilosa ganha prestígio com a denúncia, e a autoridade que vaza o segredo acaba dando publicidade ao seu trabalho. A presidente afastada Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula tiveram conversas telefônicas gravadas pela Justiça. Esses diálogos foram divulgados pelo próprio juiz responsável pela Lava-Jato. O áudio que mais chamou a atenção entre muitos que vazaram foi o que Dilma dizia que estava enviando a Lula o documento que atestaria que ele era ministro do governo dela. Os que criticam o PT entenderam que o petista deveria usar o papel como um subterfúgio diante da possibilidade da Polícia Federal prendê-lo.

O conteúdo da gravação foi igualmente polêmico à decisão do juiz Sérgio Moro, que conduz as investigações pelo caso, de divulgar, sem nenhuma cerimônia, áudios que envolvem duas pessoas tão importantes que estavam em um momento íntimo, informal. Os dois professores ouvidos pelo JC concordam que a conduta de Moro foi juridicamente insustentável. Velludo Netto alegou que houve invasão da intimidade dos cidadãos en-

volvidos no grampo, e mais: “no caso de Lula e Dilma há ainda outro detalhe: a conversa teria sido captada após a determinação de encerramento da interceptação”. Por isso, e por outros motivos, ele alegou que o episódio marcou “um dia triste para o sistema jurídico nacional”. Já Floriano Peixoto acredita que Moro agiu para evitar um possível retrocesso nas investigações caso Lula conseguisse a nomeação como ministro da Casa Civil.

Queda de ministros de Temer

JEFERSON GONÇALVES

No dia 12 de maio, tomou posse o presidente em exercício Michel Temer. Isso significa que ele está no comando do Poder Executivo brasileiro há aproximadamente um mês. Apesar disso, a quantidade de acontecimentos que atropelaram Temer nessas quatro semanas de governo poderia fazer com que um desavisado acredite que ele é presidente há muitos anos. Foram tomadas e revogadas tantas decisões e trocados tantos ministros que fica difícil para qualquer pessoa memorizar quem são os titulares de cada pasta. Mas os acontecimentos que mais causaram alvoroço nos principais veículos de comunicação foram as quedas dos ministros do Planejamento, Romero Jucá, e da Transparência, Fiscalização e Controle, Fabiano Silveira. O primeiro disse, em gravações realizadas por Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, que precisava estancar a sangria representada pela Lava-Jato; o segundo fez críticas à mesma operação, mesmo ocupando o cargo de principal chefe do Ministério que deve fiscalizar as ações do governo. Esses dois episódios importantes da política brasileira só se desencadearam graças ao vazamento de informações sigilosas, e acabaram levantando discussões sobre a licitude desses atos

e como a imprensa, com as divulgações, influencia nas investigações e julgamentos da justiça. Por ser objeto de uma investigação que tramita em sigilo, o material vazado poderia até mesmo ser invalidado como prova -- o que dificilmente acontecerá nesse caso, dada a gravidade das denúncias. Na opinião de Floriano Peixoto de Azevedo, professor da Faculdade de Direito da USP, o vazamento de provas de investigações é negativo porque pode ser usado para dar sinais ou negociar silêncios. Alamiro Velludo Netto, docente da mesma faculdade, acredita também que essas divulgações induzem a pré-julgamentos ou invasões desnecessárias à privacidade. “Mas o dever de resguardar sigilo de documentos não se dirige ao profissional de imprensa, mas sim aos agentes públicos”, argumenta. A cobertura da grande imprensa amplificou consideravelmente a Operação Lava-Jato. Se por um lado a mídia tem a obrigação de reportar os fatos mais importantes, por outro, a “narrativa jornalística costuma caminhar para uma dimensão romanesca, caricaturando os personagens e perdendo a complexidade do mundo real”, explica Velludo Netto. O professor Floriano Peixoto vai além na discussão sobre a influência da grande imprensa nos processos de investigação, e coloca a discussão: como garantir punição a

Panama Papers

EUA espionam Brasil

Áudios de Lula e Dilma revelados por Moro

Prática foi responsável por quatro escândalos recentes RAFAEL IHARA

As semanas e meses que antecederam o afastamento da presidente Dilma Rousseff reservaram muitas surpresas. A cada nova fase da Operação Lava-Jato, um novo susto que poderia fazer Brasília virar de cabeça para baixo. O mais recente escândalo a tomar conta da capital federal foi o vazamento de gravações feitas por Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro — subsidiária da Petrobras. Afilhado de figuras poderosas do PMDB, como Renan Calheiros, ele acaba de fechar acordo de delação premiada no

âmbito da Lava-Jato, e acabou derrubando o então ministro do Planejamento, Romero Jucá, e o titular do recém criado Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle, Fabiano Silveira. A queda de dois ministros importantes do governo de Michel Temer só foi possível graças à divulgação de gravações feitas por um sujeito interessado em fechar acordo de delação premiada. Apesar da tentativa de se explicarem, ao tentar dar sentido diferente ao que estava claro nos áudios, os dois não conseguiram se sustentar nos cargos. Esse não é o primeiro escândalo causado pelo vazamen-

to de informações sigilosas pela grande imprensa. Em abril, veio à tona o escândalo dos Panama Papers. 370 jornalistas de mais de 70 países se debruçaram sobre 11 milhões de documentos que vazaram do escritório de advocacia panamenho Mossack Fonseca, uma das maiores criadoras de offshore do mundo. Aos poucos, os jornalistas estão divulgando nomes de pessoas públicas que possuíam contas no exterior (como o presidente da Argentina, Mauricio Macri, e o presidente afastado da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha). Ter uma empresa offshore não é ilegal, desde que

ela seja declarada aos órgãos competentes do país de origem. Pouco antes de Dilma deixar a cadeira de presidente da República, ela foi surpreendida pela revelação de gravações que estavam em poder do juiz responsável pela Lava-Jato, Sergio Moro. O vazamento mostrava Dilma e Lula conversando sobre o documento que comprovaria que o ex-presidente estava sendo empossado como ministro da Casa Civil. No novo cargo, Lula passaria a ter foro privilegiado, e as investigações que diziam respeito a ele passariam a ser julgadas não mais por Moro, e sim pelo Supremo Tribunal Federal.

Em junho de 2013, a relação entre o Brasil e os Estados Unidos sofreu um forte abalo: Gleen Greenwald, que atuava como correspondente do The Guardian, revelou, junto a outros jornalistas de publicações prestigiadas mundialmente com The New York Times e The Washington Post espionagens realizadas pela agência de segurança norte-americana, a NSA. Esses vazamentos só foram possíveis porque Edward Snowden, que trabalhava na agência e discordava das ações de espionagem dos Estados, mostrou esses arquivos para importantes jornalistas que vazaram esses dados. DOMÍNIO PÚBLICO

Barack Obama, Fabiano Silveira, Lula, Dilma, Sérgio Machado e Romero Jucá estiveram envolvidos em recentes escândalos causados por vazamentos de informações sigilosas


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UNIVERSIDADE

PRIMEIRA QUINZENA | JUNHO 2016 JORNAL DO CAMPUS

Prova específica da FAU gera discussão Excludente ou necessária? Estudantes e professores se dividem sobre importância do exame

CursinhoLA Como muitos desses elementos não são ensinados no ensino básico regular, a cada ano aumenta-se o mercado de cursinhos pagos que treinam o vestibulando para as provas específicas. Com o objetivo de oferecer um cursinho gratuito para pessoas de baixa renda, em 2011 surgiu o CursinhoLA: um cursinho livre e popular, iniciativa dos alunos da própria FAU. Os estudantes oferecem aulas semanais sobre linguagem arquitetônica para as provas de habilidades específicas, tanto da USP quanto de outras instituições. “O nosso enfoque é democratizar o ingresso à FAU e nosso trabalho é tanto o cursinho em si mas

Inscritos na FAU - Fuvest 2016

Perfil socioeconômico dos candidatos inscritos para a FAU no vestibular da FUVEST de 2016

ARQUIVO/CURSINHOLA

O fim da prova de habilidades específicas para o ingresso em arquitetura e design é uma das bandeiras da greve dos estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, deliberada em assembleia nos dias 17 e 18 de maio. A prova visa analisar o potencial dos candidatos e visualizar a proximidade dos candidatos com a linguagem visual e arquitetônica. Diferentemente de outras provas específicas para carreiras artísticas, como música e artes visuais, a prova da FAU acontece em dois dias depois da fase de conhecimentos gerais do vestibular da Fuvest. A prova é feita por uma comissão de professores da FAU e é dividida em geometria, desenho bidimensional I, II e desenho tridimensional. Os alunos contrários ao exame o criticam por ter um caráter “antidemocrático” e “elitista” já que aborda conteúdos específicos que não são ensinados no Ensino Médio, dificultando o ingresso de alunos que não têm possibilidades financeiras de pagar por um cursinho em linguagens arquitetônicas (LA). “A arquitetura sofre com essa cobrança de técnicas que eles teriam que aprender na faculdade, mas na realidade estão sendo cobrados antes de mesmo de chegar na universidade”, afirma o estudante Felipe Guimarães Lima, calouro de arquitetura. O questionamento sobre a prova de habilidades específicas não acontece apenas entre os estudantes. O professor Renato Cymbalista, do departamento de História da Arquitetura, é favorável ao fim da prova pelo próprio Plano Político Pedagógico da FAU: “Nós formamos um “arquiteto humanista”, que

pode atuar em diversos campos das disciplinas da Arquitetura e do Urbanismo: na crítica, na teoria, na curadoria, no ativismo e também nas políticas públicas”, ele explica. “Com a prova estamos selecionando com base no desenho, mas o profissional que formamos vai muito além disso”. Há também professores que justificam a importância da prova, como o docente Rafael Antônio Cunha Perrone, do departamento de Projeto. Para ele, a realização do exame é essencial para selecionar os candidatos que sejam vocacionados à arquitetura e se interessem pela área visual. “Acho que então os alunos deviam questionar as provas de física e português, por exemplo, que também discriminam, porque um arquiteto não precisa saber tanto dessas coisas quanto uma pessoa que vai entrar em engenharia”, Perrone explica. Para Perrone, um modo de contornar essa desigualdade no ingresso seria o sistema de cotas e a prova específica poderia ser colocada antes do vestibular de conhecimentos gerais da Fuvest.

JEFERSON GONÇALVES

ISADORA VITTI

Nas aulas, os alunos do CursinhoLA compartilham técnicas de desenho e de linguagens artísticas

também a discussão dentro da universidade sobre a prova de habilidades especificas”, explica Níkolas Rodrigues Silva, que está no 5º ano de arquitetura e é um dos monitores do cursinho. As aulas acontecem aos sábados e têm início no segundo semestre de cada ano. Há aulas de tema aberto, em que os monitores e alunos visitam outros lugares, e aulas normais, que têm a primeira parte teórica e depois exercícios práticos. Anualmente, ingressam cerca de 150 alunos. “O primeiro ano foi realmente impactante com relação às pessoas e à forma como as aulas são dadas, não existe relação de poder”, afirma Kaique Xavier da Silva, que entrou esse ano em arquitetura e hoje é um dos monitores. Ele conta que fez 3 anos de CursinhoLA e por isso sabe o quanto a prova específica seleciona as pessoas de modo desigual. “O CursinhoLA fez entrevista com mais de 200 alunos da FAU e só dois não fizeram um cursinho de linguagens arquitetônicas”. Pra quem é a FAU? Além do caráter antidemocrático, os alunos questionam também a forma como essas provas são corrigidas, porque os desenhos podem ser subjetivos e não há um modelo de provas com respostas boas e ruins disponíveis para eles se basearem, como há no site da UNICAMP para a prova específica de arquitetura. “Não sou totalmente a favor do fim da prova de habilidades específicas.

Só acho que a prova deveria ser mais justa e especificar os parâmetros avaliativos”, afirma o estudante Felipe Guimarães Lima. “A gente recebe uma média das 4 provas e não tem nem o direito de saber como fomos em cada uma individualmente”. Para ele o fim das provas de habilidades especificas pode aumentar a cobrança de outras disciplinas, aumentar a nota de corte e acabar dificultando ainda mais o acesso dos alunos de escola pública à universidade pública. Outra questão é que os institutos que têm provas específicas não abrem vagas para o Enem, perpetuando um perfil socioeconômico mais alto entre os estudantes. “A gente tem toda uma discussão de que a FAU não é um lugar pra pessoas que não têm dinheiro”, Níkolas afirma. “Tem problemas para os alunos do design, que têm que imprimir muita coisa e às vezes não têm condições. Já na primeira aula de modelos vivos, temos que comprar muita caneta, nanquim, papel… É difícil”. O professor Cymbalista reitera: ‘Quem são essas pessoas que terão essa formação de elite: que cor elas têm? De que extrato social são? Estudaram em escola pública ou privada? Se não nos fizermos todas essas perguntas, e se não tivermos boas respostas para elas, nós vamos continuar dando ainda mais privilégios para a mesma elite que estamos formando desde a década de 1940 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP”.


UNIVERSIDADE

JORNAL DO CAMPUS PRIMEIRA QUINZENA | JUNHO 2016

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As creches da USP poderão fechar? Falta de novas vagas dificulta a permanência das mães na Universidade e ameaça pesquisas VINÍCIUS ALMEIDA

VINÍCIUS ALMEIDA

“A mensagem que as estudantes estão recebendo hoje é de que mulher com filho não tem direito à estudo.” É essa afirmação que Renata*, estudante de doutorado da Universidade de São Paulo, usa para resumir como se sente frente à situação das creches da USP. O processo seletivo para o ingresso de crianças, que acontece anualmente, não ocorreu até agora. Alunas, funcionárias e docentes mães temem o fechamento das creches, importantes não só para a permanência das uspianas, como também para a produção científica. Pesquisas De acordo com um dossiê publicado este ano pela APEF (Associação de Pais e Funcionários da Creche Central), no período entre 2009 e 2014, foram 30 pesquisas com base na Creche Central e 107 apresentações de trabalho, incluindo congressos, seminários, oficinas, etc. Em Ribeirão Preto, como afirma a estudante de doutorado Renata, “há um grupo de pesquisa cujo laboratório é a creche. São especialistas em infância, então há pediatria, neurociência, pedagogia, enfermagem.” O ingresso nas creches sempre ocorreu através de processo seletivo. As vagas são comumente divididas em 40% para filhos de alunas, 40% para funcionários e 20% para docentes. “Um dos pontos interessantes das creches é a diversidade, há crianças de inúmeras classes sociais, não é excludente”, diz Suzana*, funcionária da Universidade, no campus Butantã, na capital. Porém, o processo para o ingresso em 2015 foi cancelado, e nenhuma criança entrou por meio dele. Só após algumas manifestações por parte de estudantes, funcionárias e docentes que tinham filhos nas creches foi possível que crianças com irmãos já nas creches pudessem entrar. “Uma porcentagem pequena conseguiu. A justificativa foi a falta de dinheiro, que faltavam funcionários, mas eu vi que sobravam”, diz Suzana. Nenhum processo seletivo para este ano foi aberto, e a funcionária afirmou que “os que estão nas creches vão continuar, mas ninguém mais vai entrar. Quando os que estão lá não precisarem mais, os funcionários e professores vão ser remanejados, transferidos para outros locais”. Atualmente, são cinco creches vinculadas à SAS (Superintendência de Assistência Social). Três delas ficam em São Paulo, duas na Cidade Universitária e uma próxima à Faculdade de Saúde Pública. Há também uma em Ribeirão Preto e uma em São Carlos, no interior de São Paulo.

Além disso, há dois centros de educação infantil, dos quais um em Piracicaba e o outro em Bauru, ambos ligados às prefeituras dos campi. No Hospital Universitário havia uma unidade com configuração de creche, que foi fechada no início do ano. Funcionárias A questão que entra em cheque nesse ponto afeta diretamente os trabalhadores das creches, como afirma Laura* funcionária de uma das creches. “A parte mais crítica para nós é quando se pensa na questão da manutenção do emprego, do que você escolheu como profissão, e o que fazer depois, o que foi investido de formação”, diz. “Eu tenho 15 anos aqui, por exemplo. A gente precisa que as pessoas entendam o que é que está sendo fechado. Não são apenas vagas para as crianças. Além disso, nós funcionárias não somos “peões” em um tabuleiro, não está tudo bem se eu sair da creche e for remanejada para a biblioteca.” Já de acordo com Renata, a situação é mais crítica na creche chamada Oeste, que fica na Cidade Universitária. Lá, há capacidade para 105 crianças, mas apenas 55 estão matriculadas. “No momento, são 45 funcionários para 55 crianças. No próximo ano, provavelmente, 15 delas irão sair, sobrando 30. Ou seja, vão ter mais funcionários do que crianças”, conta. Renata diz que existem funcionários que trabalham há anos e que sempre sofrem ameaças de que as creches onde trabalham serão fechadas. Por outro lado, a assessoria de imprensa da reitoria

afirma que não há previsão para o encerramento das escolas, e que o atendimento às crianças já matriculadas continua ocorrendo normalmente. Ela também garante que docentes e funcionários com filhos que não estão matriculados recebem auxílio-creche normalmente. Gastos De acordo com o dossiê elaborado pela aComissão Creches Mobilizadas USP, formada por pais, professores e funcionários das creches, que utilizou o anuário estatístico da USP (20092014) como base, a situação em que as creches se encontram, hoje em dia, trazem prejuízos econômicos à universidade. “Pegamos todos os dados do Portal de Transparência quanto às finanças e encontramos, por exemplo, que uma criança para a Universidade, no auxílio-creche, custa em torno de 7,5 mil, anualmente. Se ela estiver na creche, custa 5 mil. É mais barato deixar a creche funcionando”, diz Renata, uma das autoras do dossiê. “A creche, dentro do orçamento, está ao redor de 1.4%, apenas. Se fechar, não vai poupar nada”, contrariando as justificativas relacionadas à ausência de recursos para os possíveis fechamentos. A assessoria da reitoria afirma que atualmente, cerca de 400 crianças frequentam as creches, o que representa um custo de 28 milhões anuais para a universidade. Já os docentes e funcionários recebendo auxílio-creche somam um custo total de 22 milhões anuais. O grupo autor do dossiê buscou soluções dentro do Con-

selho Universitário: “Tivemos resposta de alguns conselheiros. Falávamos especialmente das pesquisas, levamos artigos de acadêmicos estrangeiros sobre as creches, e isso aos poucos mudou a ideia de algumas pessoas. “A gente queria mostrar para eles do que se tratam as creches. Elas são grandes, têm muito valor”, afirma Suzana. Violência Muitas das alunas que têm filhos nas creches estão na pós-graduação. A estudante de doutorado, Renata, relata que episódios de discriminação têm ocorrido com muitas mães estudantes. “Tem unidades em que as meninas abertamente são orientadas a não ter filho, outras que são isoladas, professores não querem orientá-las”, diz. “Colocam em juízo se a aluna é competente ou não para acompanhar um doutorado ou mestrado. Essa violência é muito clara. Conheço meninas que estão tendo que trancar a faculdade porque não há creches e tem que levar o filho para a USP. Estão tendo que renunciar ao direito de estudo.”

“Nós funcionárias não somos “peões” em um tabuleiro, não está tudo bem se eu sair da creche e for remanejada para a biblioteca”

SAS O Jornal do Campus entrou em contato com Waldyr Jorge, atual superintendente de Assistência Social da USP, para esclarecer alguns dos pontos presentes nos dossiês, como a não abertura de vagas, gastos nas creches e valor no orçamento. Até o fechamento desta edição, não obtivemos respostas. *Nome fictício. Fontes não quiseram ser identificadas por medo de perseguições.


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UNIVERSIDADE

PRIMEIRA QUINZENA | JUNHO 2016 JORNAL DO CAMPUS

Empresas incubadas sofrem menos na crise Enquanto 4000 fábricas fecham, incubadora de empresas tecnológicas permanece estável CIETEC

BRENO LEONI EBELING

Existe dentro do Campus do Ipen (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares), na Cidade Universitária em São Paulo, um centro de empreendedorismo que resiste à onda de fechamentos das empresas pela qual passa o país. A Incubadora de Empresas de Base Tecnológica de São Paulo IPEN - USP, cuja gestão é feita pelo Cietec (Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia), é um local que reúne empreendedores que estão começando a desenvolver negócios inovadores. Para Naira Bonifácio, sócia de uma empresa incubada na área de saúde e formada em Marketing pela EACH, isso é positivo para quem está começando, pois propicia trocas de experiências para que os desafios sejam superados em conjunto. Além disso, de acordo com José Aluízio Guimarães, gestor responsável pelo marketing e comunicação institucional do Cietec, cada vez mais grandes empresas têm vindo à incubadora buscando novos negócios e soluções que os empreendedores desenvolveram. Não são apenas USPianos que integram o espaço de empresários. No entanto, a interação com a USP é muito maior do que com qualquer outra instituição universitária. Existe também uma via de capitalização de fomento pela qual principalmente empresas de base tecnológica possuem sinergia com a Fapesp - que possui algumas linhas de financiamento de pesquisa para pequenas empresas. A Incubadora tem workshops com foco na

Comitiva internacional vinda da China em visita à incubadora de empresas IPEN-USP

“Quem abre um negócio dificilmente pensa que o Brasil corresponde a menos de 2,5% do PIB do mundo” — Oscar Nunes, gestor de Relações Internacionais

preparação e nos resultados para que empresas consigam o apoio da agência de pesquisa. Não só a Fapesp, mas o sistema S, mesmo com cortes de verbas, mantém chamadas para empresários com projetos de inovação. Em pesquisa com os empresários realizada anualmente, os números mostram que o fato de estar dentro da USP também traz um incentivo para que empresas e a Universidade interajam entre sim. Cerca de 40% dos empresários que responderam ao questionário mantem interações com a Escola Politécnica da USP. O Instituto de Física e o de Biologia também possuem altos índices de interação com as empresas. Marcelo Daher está no último ano da Escola Politécnica e é sócio em uma empresa de hardware. Para ele, estudar e trabalhar no mesmo local são aspectos positivos. “Existe um aspecto da Poli de ser um pouco mais ‘mão na mas-

sa’, mas eu acho que dentro do empreendedorismo tem espaço para todos.” Ele pontua que talvez na engenharia tenha um incentivo mais palpável pelo fato de estar mais próxima de um produto, que é algo que pode se querer ter no mercado. De acordo com ele, é muito mais complexo administrar uma empresa do que desenvolver uma solução para o mercado, e é aí que pessoas de outras graduações acabam ganhando mais espaço de atuação. Para Naira, existem muitas coisas que poderiam ser aperfeiçoadas como a interação da equipe de gestores para fazer do lugar um ambiente com mais vida. “O ambiente aqui é muito rico. Tem gente que está há dois anos no caminho, outros quatro, mas tem gente que está começando agora.”, diz. Então propiciar esses encontros e essa troca de informação e mais interação com a USP seria enriquecedor.

Internacionalização e dificuldades O empreendedorismo, apesar dos números positivos, ainda sofre dificuldades no país. Oscar Nunes, gestor de relações internacionais da incubadora, pontua que historicamente o Brasil não é um país aberto para o comércio. De acordo com ele, isso está dentro da cultura do brasileiro, que vai no sentido de olhar muito para o mercado interno. “Quem abre um negócio geralmente pensa que são 200 milhões de consumidores, e dificilmente olha para o dado de que o Brasil corresponde a menos de 2,5% do PIB do mundo”. As dificuldades para a internacionalização são muitas, e diminuir a burocracia do país dificilmente entra na pauta de discussão de políticos. “Recebemos comitivas internacionais que geralmente fecham o negócio aqui mesmo, porque se for por vias normais, a maior parte dos negócios acaba se inviabilizando.”, diz Oscar. A burocracia também pode inibir o espírito empreendedor. É o que pensa a professora da cadeira de biodireito, Janaína Paschoal, ao citar o caso do processo da pílula contra o câncer como exemplo. “Quem olha o caso dele pode pensar: ‘Por que vou me esforçar para criar uma coisa nova?’”, questiona a jurista. Ela concorda que a pílula passe pelo processo de aprovação da Anvisa, mas diz que tem preocupação pelo caso do professor que está sendo perseguido e processado e pelo fato de que tem conhecimento de casos de pacientes terminais que estavam se sentindo melhor com o tratamento.

Cotas universitárias voltam a entrar em pauta JÚLIO VIANA

No último dia 1º, o Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) aprovou em âmbito departamental a destinação de 65% das vagas oferecidas para ingressantes via Sistema de Seleção Unificada (SiSUu). Destas, oito vagas do curso de Jornalismo e duas do de Editoração serão dadas a alunos negros, pardos ou índios. A decisão agora será encaminhada para aprovação da diretoria de graduação da ECA e poderá ser aplicada para os concorrentes a vagas do ano de 2017. A discussão acerca do aumento ou alteração no número de vagas dadas para ingressantes via Sisu, e consequentemente para o número de cotas concedidas, já começou nas unidades

da Universidade. A decisão é, como já foi contado em reportagem dada pelo Jornal do Campus, tomada independentemente por cada unidade da USP e, portanto, cada uma debate a questão de

acordo com seus critérios. A Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz informou que está se reunindo para discutir o assunto até quinta-feira, dia 9 de junho. A ESALQ, no momento, só ofere-

ce 48 vagas para ingressantes via SiSU, sendo todas elas destinadas à ampla concorrência. O SiSU oferece três tipos de cotas: as de Ampla Concorrência (AP) destinadas a todos tipos de alunos, as de alunos Escolas Públicas (EP) e aquelas oferecidas a alunos autodeclarados da raça preta, parda ou indígena (PPI). A USP, até ano passado, não destaca vagas específicas a nenhuma dessas modalidades. Só existe o Inclusp, que dá bônus em notas da Fuvest: 15% de acréscimo será dado a estudantes que fizeram sua formação total em escolas públicas. 12% aos alunos que apenas cursaram o Ensino Médio em instituições do estado ou da prefeitura. Além disso, 5% de aumento é adicionado caso a pessoa se declare pertencente ao grupo PPI (cor ou raça: Preta, Parda ou Indígena).


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Ocupação na faculdade não é a mesma coisa Ex-secundaristas de estaduais ocupadas se desencantam com ocupações da universidade TIAGO AGUIAR

TIAGO AGUIAR

Os estudantes de ensino médio - ou secundaristas - das escolas públicas de São Paulo iniciaram um dos maiores movimentos “autônomos” (horizontais e apartidários) dos últimos anos no Brasil. Ao mesmo tempo, durante esta greve da USP, acontece a maior soma de ocupações estudantis em determinadas faculdades em greve: na Letras, na História e Geografia, na ECA e na Veterinária (até o fechamento desta edição). O que une as duas? Os “secundas da USP” O JC procurou estudantes do 1º ano da USP e que vieram de algumas das escolas mobilizadas. Há no campus todos os tipos: os que ainda são secundaristas e frequentam as ocupações da USP, os que como estudantes da USP foram frequentar sua antiga escola que se mobilizou este ano, os que são e eram praticamente alheios a ambas e os que inicialmente participaram muito e se decepcionaram com ambas. Nem todos quiseram falar. Mas entre todos os entrevistados, há uma unânimidade: não é o mesmo tipo de política. Há também, como ponto comum, uma certa decepção. As críticas mais recorrentes foram sobre a falta de unidade nas próprias faculdades: “Ano passado todos estavam se formando politicamente juntos. Aqui, todo mundo já tem o seu grupo e só vota nas assembleias se for ajudá-lo” é o que conta Julia Kaori, ex-estudante da Etec Parque da Juventude, a única Etec ocupada ainda no ano passado. Julia agora cursa Saúde Pública. Julia também contou que muitos secundaristas que já eram organizados nas ocupações só começaram a serem ouvidos nos coletivos após o que aconteceu no ano passado: “Ninguém ouve de verdade os secundaristas, nem nos movimentos que os apoiam”, afirma. Segundo ela ainda, na USP os “organizados” priorizam os in-

Negra e na universidade Luiza Alves, também ex-aluna da Etec Parque da Juventude e graduanda de Educomunicação, é a primeira universitária da sua família. Durante as ocupações em sua escola ano passado esteve menos envolvida que os amigos porque estava muito preocupada com o vestibular. “Pra mim, pela minha posição enquanto mulher negra, estar na USP já era um ato político”, contou. Mesmo assim visitou ocupações e foi em reuniões do “Comando”, espaço de trocas entre as estaduais ocupadas. Na USP, o movimento que mais se identificou foi o Opá Negra. Suas críticas ao movimento estudantil da USP partiram da experiência da organização da Uspreta, pelo coletivo. Segundo ela: “enquanto o coletivo negro organizou debates sobre cotas raciais e sobre a mulher negra, estudantes “mobilizados” da ocupação da ECA nem prestigiaram o evento que aconteceu ali dentro. Antes já haviam marcado uma assembleia concorrendo com uma atividade nossa. Como eles podem depois revindicar cotas nessa ocupação com tamanha apropriação e silenciamento?” Luiza enxerga as mobilizações de secundaristas como lutas muito menos elitizadas e conclui: “quando tem coisa de gente preta ninguem cola nessa universidade”.

Júlia Kaori vê sectarismo em todos os níveis de organização na USP teresses de partidos e entidades, mas que o mesmo não acontecia com os organizados nas ocupações. E conclui: “Em todas as assembleias que eu fui eu ouvi: a gente tem que fazer como os secundaristas, ocupar tudo, o movimento deles era autônomo, horizontal... Mas acho que essa inspiração não está servindo pra muita coisa.” USP isolada Flávia Lambiasi, estudante de Educomunicação, que participou este ano da ocupação da Etec Professor Basilides de Godoy como ex-aluna e apoiadora, pondera que há diferenças nas circunstâncias entre as duas: “a USP é muito isolada geograficamente, o que dificulta tanto a participação da maioria, quanto o envolvimento da comunidade ao redor”. Mas ao mesmo tempo não poupa críticas: “A unificação da luta da educação pública estadual é tema muito recorren-

te em todas as assembleias que participei das Etecs, mas na USP, há pouco interesse e disposição em fazê-lo. Eu não ouvi nada sobre unificar as pautas com os secundaristas nas assembleias que participei daqui [da ECA]. Cheguei a ouvir, ‘nós temos que nos espelhar sim no secundaristas, mas a nossa mobilização é muito diferente.’” “Entre as universidades estaduais é até maior, mas eu não sinto que exista essa vontade de unificar o movimento pela educação. Aqui a gente coloca os secundaristas um pouco de lado”. E conclui criticando o partidarismo, característico do movimento estudantil da USP, como empecilho para a criação de um movimento semelhante: “nas rodas de apresentação em fóruns dos secundaristas eu só ouvi uma pessoa falando por qual partido ou coletivo militava. Aqui é o contrário. Eu acho que a organização partidária mais atrapalha do que ajuda”. TIAGO AGUIAR

Flavia se identifica mais como apoiadora dos ex-colegas de Etec do que como aluna mobilizada da ECA

“Quando tem coisa de gente preta ninguém cola nessa universidade” — Luiza Alvez, aluna de Educomunicação

Históricos As ocupações nas escolas - inspiradas em movimento análogo no Chile sucederam atos que exigiam a suspensão da reorganização escolar imposta pelo governo estadual no final do ano passado. Este ano novamente, unidades - desta vez quase todas Etecs - de São Paulo foram ocupadas, incluindo a própria Assembleia Legislativa, além de sedes administrativas do Centro Paula Souza. O movimento também já teve influência no Rio de Janeiro, Goiás e, atualmente, é estimado que mais de 200 escolas estejam ocupadas no Mato Grosso, no Ceará e no Rio Grande do Sul. Esse impacto é perceptível também na organização do movimento estudantil universitário. Na USP, não pelas ocupações em si: no campi de São Paulo, ocupações na reitoria são quase regra nas greves estudantis, houve tanto em 2013 e em 2011. São mais pela referência: são muito comuns as alusões aos secundaristas nos fóruns de cursos mobilizados, além da presença deles nas próprias ocupações. Este ano, em parte pelas iniciativas de ocupações nas próprias faculdades, em parte pela dificuldade objetiva de ocupar o novo prédio da reitoria, não há ocupação central, mas sim locais com demandas específicas de cada.


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UNIVERSIDADE

PRIMEIRA QUINZENA | JUNHO 2016 JORNAL DO CAMPUS

Adusp se opõe a alterações de carreira apr

Professores da Universidade aderem à greve e questionam proposta para o regime de trabalh DANIEL TUBONE MARCOS NONA

Os docentes da Universidade encontram-se em greve desde o dia 30 de maio, após discussão realizada na Assembleia geral da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp). O reajuste salarial (de 3% para este ano, incompatível com a inflação de 9,28% registrada entre abril de 2015 e 2016) permanece como um dos principais eixos da greve. Pautas mais específicas da categoria vêm sendo debatidas em reuniões como o debate ocorrido na última sexta-feira (03) no Instituto de Física (IF) e o Primeiro Encontro de Docentes, realizado nesta segunda-feira (06), no Centro de Difusão Internacional. A deliberação de greve ganhou mais força após a ausência do reitor Marco Antonio Zago em duas ocasiões: na reunião entre Fórum das Seis e o Cruesp; e no debate realizado no Instituto de Física. A reitoria afirma que Zago encontra-se em período de férias. A última greve da Associação ocorreu em 2014, quando Unesp, Unicamp e USP paralisaram em reação ao reajuste salarial de 0% oferecido pelo Cruesp (Conselho de reitores das Universidades Estaduais de São Paulo) em reunião com o Fórum das Seis, que congrega as entidades sindicais e estudantis das três universidades. Nos últimos 10 anos, os docentes entraram em greve apenas em 2007 e 2009 – além de 2014 –, enquanto os estudantes paralisaram seis vezes e o Sintusp, quatro. Reinvindicações A assembleia deliberou pela greve declarando ser contra o que é considerado o desmonte da Universidade, que seria promovido através de decisões da atual gestão de Zago. Dentre estas decisões, a assembleia destacou ser contra as mudanças na “carreira docente”, a nova proposta de avaliação docente e institucional, o não reajuste salarial, a não contratação de docentes e técnicos-administrativos no quadro funcional e contra a “destruição do patrimônio da universidade que se expressa nos ataques ao HU, HRAC, creches e Escola de Aplicação, entre outros” Em conversa com o JC, Elisabetta Santoro, 2ª Vice-Presidente da Adusp e docente da Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), explicou a principal pauta defendida pelos professores nas últi-

mas reuniões: as mudanças na “carreira docente” e na avaliação. De acordo com Elisabetta, estas mudanças vêm de antes da gestão de Zago. Ainda como presidente da Comissão de Especial de Regimes de Trabalho (Cert), o atual reitor já apresentava raízes de suas ideias que estão sendo discutidas atualmente. A vice-presidente conta que em 2014, no ínicio da gestão de Zago, foi criado um Grupo de Trabalho - Atividade Docente (GT-AD) formado por 7 pessoas indicadas pelo reitor e que tinha como função propor funções no estatuto do docente. “Em certa altura este grupo divulgou um primeiro relatório, com muitos problemas, mas já apresentava propostas que agora encontramos nestas novas propostas que são apresentadas agora”. Na época, os relatórios do Grupo foram fortemente criticados por muitas congregações de docentes das unidades da USP. Já em 2016, foi realizada a primeira discussão publica sobre o tema em uma com todos os docentes contratados a partir de 2013. Em seguida, o GT-AD publicou o documento com as novas propostas. As principais mudanças seriam a centralização da avaliação docente e institucional – que deveria acontecer a cada 5 anos – por uma nova Comissão Permanente de Avaliação (CPA) formada por nove integrantes indicados pelo reitor; e que os novos docentes contratados deveriam ingressar na faculdade com o Regime de Turno Parcial (RTP) de 12 horas, podendo evoluir para o Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP). Elisabetta diz que a Adusp tem uma série de críticas ás propostas apresentadas pela reitoria. A primeira é em relação a ausência de diagnóstico. “Porque estamos fazendo isso? Isso é algo importante, porque estamos numa universidade, somos pesquisadores, somos pessoas que costumam encontrar soluções a partir de um problema”, explica. “Quando isto foi perguntado a explicação foi de que a USP precisava melhorar sua posição nos rankings internacionais”. A segunda crítica fala sobre a centralização desta avaliação. “São nove pessoas para avaliar 6 mil docentes. A participação do departamento e unidades é nula, todos os integrantes são indicados pelo reitor”, aponta Elisabetta. Além disto, no documento não é declarado de que maneira esta avaliação dos docentes será feita. “Fala-se de avaliação qualitativa, mas não se sabe quais seriam

“Fala-se de avaliação qualitativa, mas não se sabe quais seriam estes critérios, o que pode ser muito grave” — Elisabetta Santoro, vicepresidente da Adusp

estes critérios, o que pode ser muito grave”. A preocupação levantada pela vice-presidente da Adusp vêm de outro ponto presente no documento. Após passar por esta avaliação, os docentes que não atingissem os resultados esperados poderiam sofrer sanções, como a impossibilidade de ocupar cargos administrativos em seus departamentos. “Um exemplo é que se os departamentos não tiverem uma performance considerada adequada poderão ter sua autonomia retirada, o que é um princípio básico da universidade”. Por fim, a crítica as mudanças nos regimes de trabalho vêm desta mesma preocupação com as possíveis sanções realizadas pela CPA. “A gente imagina que uma das punições possíveis seja o rebaixamento do regime de trabalho. Inicialmente RTP E RTC não

eram punições, eram simplesmente outros regimentos de trabalho que serviam para casos específicos”, explica. Outro lado O reitor Marco Antonio Zago convocou todos os docentes a participarem, no dia 06 de junho, da reunião organizada pela representação no Conselho Universitário. As discussões giraram em torno do aprimoramento do regime de trabalho, avaliação e progressão na carreira docente. No dia 7, outra reunião com a mesma finalidade foi realizada no campus de Ribeirão Preto. Zago definiu as novas Normas de Avaliação Docente e Institucional como uma “oportunidade histórica”, e pontuou que estas serão as primeiras mudanças na carreira desde a aprovação do atual estatuto, em 1988. Ele enfatizou que se

2007

ADUSP 2007

SINTUSP 2007

ESTUDANTES

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JORNAL DO CAMPUS PRIMEIRA QUINZENA | JUNHO 2016

resentadas pela reitoria

ho, avaliação e progressão na carreira docente trata apenas de uma proposta inicial, que deve ser aperfeiçoada e amadurecida até a reunião do Conselho Universitário em agosto. A principal justificativa para a reformulação seriam as diversas críticas acumuladas no decorrer dos anos. “Ao longo da minha carreira, tenho ouvido queixas sobre o regime atual. Concordo com muitas delas, e é por isso que estou empenhado nesta modernização”, declara Zago. O reitor elencou as principais críticas ao atual regime: a avaliação docente não é considerada equilibrada; a dedicação ao ensino de graduação não recebe a devida atenção; e o trabalho de extensão, pontuado por Zago como um pilar valioso nas universidades modernas, não se reflete na avaliação. Tanto a avaliação quan-

to a progressão na carreira seriam vistas pela maioria dos docentes como desvinculadas à vida nos departamentos e nas unidades – visão que, de acordo com Zago, deve ser mudada. A proposta conta com cinco princípios fundamentais: integração da avaliação docente em um panorama amplo, que leve em conta as propostas de unidade e do departamento; mudança do conceito de avaliação docente para o de acompanhamento do docente; simplificação da avaliação; descentralização do processo, delegando responsabilidades crescentes aos departamentos e às unidades; e aumento da participação do Conselho Universitário na definição de parâmetros indicadores. De acordo com Zago, o acompanhamento do docente será feito a partir de um pro-

Quais são as propostas da reitoria? Mudança do conceito de avaliação docente

jeto de carreira acordado entre o profissional e seu departamento e unidade, permitindo eixos preferenciais de atuação segundo as qualidades e preferências do docente: pesquisa, ensino de graduação e extensão. “Um único processo deve servir para acompanhar a carreira, garantir estabilidade e assegurar a promoção horizontal”, declarou o reitor. À pedido dos docentes, o período de debates sobre as mudanças na carreira foi estendido até o final de agosto, data de prorrogação da reunião do Conselho Universitário que deve votar a proposta. O vice-reitor Vahan Agopyan demonstrou preocupação com o prazo: “eu quero chamar a atenção para não postergarmos muito. Se não conseguirmos discutir este ano, infelizmente ficará para a próxima gestão”.

Descentralização do processo e maior participação do Conselho Universitário

Reajuste salarial de 3%

Ingresso na universidade em regime RTP com evolução para RDIDP

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O que a Adusp responde

Falta de diagnóstico e ausência de critérios na avaliação

Centralização do processo em comissão com nove integrantes Reajuste mínimo no valor de inflação 9,28%

RTP e RTC tornam-se regimes menos prestigiados DANIEL TUBONE

ADESÃO À GREVE NOS ÚLTIMOS 10 ANOS 2009

2014

2009

2010

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2010

2011

2013

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2014

2016

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CIÊNCIA

PRIMEIRA QUINZENA | JUNHO 2016 JORNAL DO CAMPUS

USP apresenta taxas elevadas de ozônio Relatório aponta que Campus Butantã é recordista em níveis do gás pelo 2º ano consecutivo

A Cidade Universitária foi considerada o lugar mais poluído por ozônio (O3) da região metropolitana de São Paulo em 2015. Isso segundo o relatório anual da qualidade do ar da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), que monitora 21 estações na cidade. Os níveis seguros de O3, 140 microgramas por metro cúbico em oito horas, foram ultrapassados durante 26 dias no ano passado, enquanto o ideal é que esses níveis sejam maiores que o seguro em, no máximo, um dia no ano, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Os números foram menores que os de 2014, quando os níveis seguros do gás foram ultrapassados por 43 dias, mas piores que os de 2013, quando em apenas 13 dias o ozônio foi maior que o recomendado. Formação O ozônio é um poluente secundário, ou seja, não é jogado diretamente na atmosfera. A formação do gás se dá por meio da combinação dos óxidos de nitrogênio (NOx) – emitidos por automóveis e indústrias – com hidrocarbonetos, elementos formados apenas por hidrogênio

ARTE: JEFERSON GONÇALVES

SOFIA MENDES

Esquema da produção de ozônio a partir da combinação de óxidos de nitrogênio e hidrocarbonetos

“Não tem cidade no mundo que possa ter 8 milhões de carros e ter uma qualidade do ar boa” — Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP

e carbono e que podem ser emitidos tanto por veículos quanto pelas plantas. No caso das plantas, o composto lançado na atmosfera chama-se isopreno (C5H8). Segundo Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP, “as emissões [de hidrocarbonetos] das plantas, combinadas com a emissões veiculares na

USP provavelmente são a razão desses valores mais altos de ozônio.” O Campus é uma região arborizada, mas tem ao seu redor grandes e movimentadas avenidas, como a Marginal Pinheiros. Além disso, outras fontes de poluição da região metropolitana de São Paulo chegam à Cidade Universitária pelo vento.

Impactos Em grandes quantidades, o ozônio pode ser bem prejudicial à saúde, em especial para as vias respiratórias. Ele tem a capacidade de irritar e causar o enrijecimento das paredes pulmonares, e, com isso prejudicar a eficiência de combate do órgão a outros poluentes, como os materiais particulados. Por isso, é preciso combater a emissão de seus precursores. Artaxo diz que o primeiro passo é diminuir a frota de veículos da região metropolitana de São Paulo. “Não tem cidade no mundo que possa ter 8 milhões de carros e ter uma qualidade do ar boa”, afirma. Ele propõe o aumento da frota de ônibus e metrô. A implantação de filtros em ônibus municipais também pode diminuir a emissão dos precursores de ozônio. Segundo o professor, “ônibus brasileiros são exportados para o Chile equipados com esses filtros e que tem uma emissão de poluentes de 10 a 100 vezes melhores que os que circulem na cidade da São Paulo”. Por último, o professor defende a volta da inspeção veicular obrigatória, implantada na gestão de Gilberto Kassab (PSD) e suspensa no governo de Fernando Haddad (PT).

A agricultura que cresce do concreto FELIPE MARQUEZINI

“Quem não produz pode estimular [essa produção] consumindo” — Thais Mauad, coordenadora do Grupo de Estudos em Agricultura Urbana

DIVULGAÇÃO DA HORTA DA FMUSP/FACEBOOK

Um novo grupo do Instituto de Estudos Avançados da USP iniciou as atividades no mês de maio: o Grupo de Estudos em Agricultura Urbana, coordenado pela professora e especialista em saúde urbana Thais Mauad, da Faculdade de Medicina (FMUSP). O tema ganhou força nos últimos anos, com a atenção que se tem dado a questões relacionadas ao meio ambiente e também

à saúde – a própria cidade de São Paulo conta há mais de um ano com uma zona rural, a região de Parelheiros, no sul da cidade. Thais conta que começou a se interessar pelo assunto quando passou a participar de uma horta comunitária em seu bairro. A experiência a incentivou a iniciar a horta comunitária da Faculdade de Medicina, que existe até hoje, cuidada por quatro alunos voluntários. Outros projetos do tipo acabaram sendo abandona-

Horta da Faculdade de Medicina da USP, que inspirou os trabalhos do grupo

dos com o tempo. “O cultivo dá trabalho, é necessário ter voluntários para isso”, explica Thais. A Universidade chegou a destinar alguma verba para esses projetos, mas por pouco tempo, até a piora em sua situação financeira. O desenvolvimento desses projetos acabou aproximando pessoas de diferentes áreas – além da medicina, gestão ambiental, geografia, administração pública, entre outras – que começaram a se reunir e pesquisar o assunto. Agora o grupo se tornou oficial, mas seus integrantes já haviam publicado e participado de trabalhos acadêmicos a respeito. Thais, por exemplo, visitou a cidade de Melbourne, que já tem grandes centros de agricultura urbana e educação ambiental; ainda esse ano um professor de lá virá para São Paulo, para completar essa troca de experiências. Em uma cidade como São Paulo, os fatores mais preocupantes com relação ao cultivo urbano são a poluição do ar e do solo. A contaminação do solo é relativamente fácil de ser mapeada, e a Prefeitura possui essa documentação; portanto, seus problemas são mais fáceis de serem evitados. Já a poluição do ar foi tema de pesquisas do grupo: a de origem veicular é a que mais

afeta as hortas da cidade, em especial os vegetais foliares. Felizmente, essa poluição é bastante localizada, e o estudo concluiu que simplesmente plantar longe de grandes vias e criar barreiras verticais (que podem ser árvores ou mesmo muros) já são medidas de proteção eficientes contra esses poluentes. A horta do próprio Instituto de Estudos Avançados foi analisada e considerada limpa. A ausência de agrotóxicos e a utilização de água de reuso tornam esse tipo de agricultura mais sustentável e saudável. No Brasil, as cidades de Belo Horizonte e Curitiba já têm políticas avançadas na área, e no Rio de Janeiro o programa Hortas Cariocas estabeleceu cultivos em diversos locais da cidade, inclusive dezenas de favelas. Em São Paulo, a Prefeitura criou o Programa de Agricultura Urbana e Periurbana (PROAURP), de incentivo a esse tipo de produção e ao seu comércio, que cresce bastante na cidade. “As hortas comunitárias acabam tendo uma importância mais educativa e socioambiental do que para o consumo propriamente dito”, afirma Thais. “Mas quem não produz pode estimular consumindo – se atentando para feiras orgânicas e produtores locais”, finaliza.


ENTREVISTA

PRIMEIRA QUIZENA | JUNHO 2016 JORNAL DO CAMPUS

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Estupro se retroalimenta de ódios e valores Para professora da FFLCH, conceitos minimizam a complexidade da violência contra mulher

Há vinte anos, a professora Ana Lúcia Pastore finalizava o livro “Estupro: crime ou cortesia?”, em parceria com outras duas pesquisadoras, sobre estupro e o crime no âmbito jurídico. Atualmente, Pastore é advogada, professora e chefe do Departamento de Antropologia da USP, e coordenadora do Núcleo de Antropologia do Direito da USP (NADIR). Integra, ainda, o Projeto Interunidades em Violência, Democracia e Direitos do Núcleo de Estudos da Violência da USP e é membro da rede Não Cala. Às vésperas de reeditar seu livro, ela lamenta que poucas conclusões negativas sobre o mesmo tenham mudado. Jornal do Campus — O que é Cultura do Estupro? O que a senhora pensa sobre este conceito? Como antropóloga, vale a pena destacar que o conceito de cultura é superimportante para a área, e é polêmico. A ideia de que hábitos, costumes, e a língua são o que tornam um grupo identificado é o que a gente pode chamar de cultura. Ao longo do século XX veio a ideia de que realmente não existe nada ou praticamente nada de natural, ou que aconteça por puro impulso genético no ser humano. Tudo é construído na vida em sociedade. E, portanto, cultura é o que dá sentido a todo e qualquer ato humano em relação com outros seres humanos. Essa produção de sentidos é múltipla dentro de uma mesma sociedade, dos seus subgrupos. Então, cultura não é um conceito que unifica. Ele até multiplica muitas coisas. Falar em cultura do estupro pode levar ao engano de pensar que existe um conjunto muito fixo de comportamentos, de hábitos, ligados ao estupro. E eu acho que justamente não é bem assim. O que a gente pode afirmar é que, claro, em uma sociedade de tradição patriarcal e machista como a brasileira, existem padrões que de certa forma sustentam qualquer violência de gênero. Mas isso é algo que permeia os vários grupos sociais de maneiras muito peculiares. Então não há uma cultura. Há coisas que perpassam a sociedade e que não tem a ver só com o estupro. É interessante usar o conceito de violência para pensar o estupro. Como uma espécie de circuito que se retroalimenta de ódios, de uma série de valores, que vão desde o machismo até o tema da violência doméstica. Há semelhanças entre os casos de estupro na Índia, no Brasil e em outras partes do mundo? Existe um relatório da Organização Panamericana de Saúde

MARÍLIA FULLER

CAROLINA PULICE

(OPAS) e também da Organização Mundial de Saúde (OMS) chamado Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, publicado em 2002, que fez uma pesquisa comparativa internacional sobre os vários tipos de violência. Este relatório aponta algumas semelhanças entre os casos de estupro do mundo inteiro. A questão de o estupro envolver pessoas conhecidas, do estuprador não ser um monstro, de não ser patológico. Muitas vezes é alguém que circula normalmente nos ambientes de trabalho, de escola. Essas são algumas tendências mundiais. O caso dessa moça do Rio de Janeiro é excepcional. A maioria dos estupros acontece envolvendo só o agressor e a vítima, no ambiente doméstico. Ali parece que havia conhecidos (e isso está dentro de uma tendência que se observa na maior parte dos estupros), mas a maioria dos casos sequer chega à polícia, muito menos à mídia, não vai para as redes sociais. No domingo passado (29), o Fantástico entrevistou a vítima do estupro coletivo, no Rio de Janeiro. Essa exposição é necessária? Até que ponto expor a menina na imprensa é positivo? Não se pode confundir a exposição dos fatos com o uso indevido da imagem dos envolvidos no fato. Uma coisa é você tornar público, sem dar nomes a ninguém. Mas inseri-lo no debate público, e expor a identidade dos envolvidos é totalmente indevido. No caso da vítima, isso a sobrevitimiza, porque ela fica mais fragilizada. E também interfere nas investigações, em todo o processo judicial. O mesmo vale para o suspeito. Há uma tendência de querer punir, até moralmente o suspeito, mas quando ele é ainda suspeito somente. Ou seja, não se tem ainda certeza quem de fato se envolveu, como se envolveu. Eu insisto que, embora alguns coletivos feministas mais radicais digam que é preciso publicizar o nome do agressor, eu acho que não se deve. Até se ter certeza, não se pode fazer isso, porque se você faz alarde que o suspeito é estuprador, isso vai marcá-lo para o resto da vida. Mas se ele for inocente, ele não tira essa marca. Quer dizer, é algo que não pode ser feito em nome dos mesmos direitos humanos que resguardam a vítima. E a universidade tem esse papel, de preservar moralmente os envolvidos, não importa se vítima ou agressor. A USP enfrenta alguma dificuldade ao lidar com este tipo crime e com a segurança em seus campi? Acho que a universidade não está preparada para processar (no

sentido pleno da palavra), para dar conta das questões de gênero. A USP, de fato, está muito aquém de todo o movimento histórico feminista. Praticamente não se discutia violência de gênero entre os componentes da comunidade. E isso começou a vir à tona de uma forma mais incisiva a partir de 2015, com a CPI das Universidades, os casos na medicina e de outras unidades. Uma universidade deste porte teria que ter uma estrutura há muito tempo, atrelado inclusive aos seus serviços de saúde (ao próprio HU, ao Instituto de Psicologia). Deveria ter áreas para dar suporte às vítimas de violência. Isso é uma tradição nos Estados unidos. Que saiu à frente nos anos 1970, visibilizando os estupros que aconteciam e ainda acontecem nos campi. Foi neste contexto que surgiu a questão da segurança nos campi, como torná-los mais seguros, e veio todo um debate de como ao mesmo tempo é possível as pessoas denunciarem sem se expor. Ou seja, isso não é de hoje. A USP está há anos luz de distância.

“Se ela foi violentada sexualmente, não importa se ela é prostituta, professora universitária, ou freira. Ela não quis e foi forçada a fazer algo.” — Ana Lúcia Pastore, professora de Antropologia da FFLCH

Parece que as medidas são sempre informais (como com as criações de páginas de denúncia feitas pelas alunas), e depois a reitoria e as diretorias entram em contato com os casos... Sim, primeiro porque o modelo de sindicância está totalmente errado para apurar este tipo de situação. Aliás, para apurar qualquer situação. Sindicância não funciona da maneira como está prevista, pois ela não fornece ma-

terial suficiente, o tipo de contato adequado para se acompanhar casos de conflito. Pelo fato do estupro ser um crime, a universidade não deve e nem pode apurar o caso sozinha. Isso é responsabilidade do poder público, da polícia e depois do poder judiciário. O que a universidade pode e deve é acionar devidamente o poder público e o sistema de saúde, e deve depois acompanhar internamente a situação da vítima e do suposto agressor, até que ele seja condenado ou absolvido. Há vinte anos, eu fiz uma pesquisa sobre estupro com a professora Sílvia Pimentel, da PUC, e a pesquisadora Valéria Pandjiarjian. O trabalho resultou em um livro no qual abordamos a visão do judiciário sobre o tema. O título foi inspirado no sobrenome Cortês e remete a um advogado que há anos defendeu um homem acusado de estupro. O defensor usava o argumento de que a vítima era uma mulher “de vida fácil, sem nenhuma moral”. Então o que o estuprador fez foi nada menos que uma “cortesia”. E por isso o título é: Estupro, crime ou cortesia? O que nós mais verificamos foi que na maior parte dos casos analisados, as vítimas também foram julgadas moralmente. Quando isto não deveria importar. Se ela foi violentada sexualmente, não importa se ela é prostituta, professora universitária, ou freira. Ela não quis e foi forçada a algo. Essa é a principal conclusão do livro e nós tememos reeditá-lo com o mesmo título. Porque isso deve continuar sendo verdade.


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ESPORTES

PRIMEIRA QUINZENA | JUNHO 2016 JORNAL DO CAMPUS

Rollerski é alternativa para esquiar no Brasil Clínica Ski Cross Country trará discussão sobre modalidade pouco conhecida no país

Esquiar no Brasil pode até parecer uma ideia inusitada em um primeiro momento, já que o país não tem neve. No entanto, os brasileiros que desejam praticar o esporte podem encontrar como alternativa o Rollerski (esqui de rodinha). Com intuito de conhecer um pouco mais sobre essa modalidade, o Programa de Desenvolvimento Humano pelo Esporte (Prodhe) realizará, no dia 13 de junho, a Clínica Ski Cross Country através do Rollerski. A atividade será ministrada pelo atleta olímpico e educador Leandro Ribela e só poderão participar pessoas que já se inscreveram até o dia 06 de junho. Segundo o esportista, o esqui de rodinha surgiu na década de 50, na Europa, como forma de treinamento dos atletas de Ski Cross Country durante o verão. “Aqui no Brasil como nós não temos neve, utilizamos esse equipamento de Rollerski como modalidade”, diz Ribela. Ele também percebe uma adaptação muito rápida das pessoas que praticam com o Rollerski e depois vão praticar Ski Cross Country na neve. Para Marcos Vinícius Moura e Silva, educador do Prodhe, as clínicas organizadas têm como objetivo realizar uma formação pontual, em três horas, para apresentar novas abordagens sobre o esporte. A participação na clínica possibilitará pleitear uma vaga no Curso de Formação

de Treinadores da Confederação Brasileira de Desportos na Neve (CBDN). As aulas ocorrerão das 8 às 11 horas e das 14 às 17 horas no dia 13 de junho. Ribela explica que a clínica terá duas abordagens. Em primeiro lugar, ele apresentará a modalidade, falará como ela é desenvolvida e quais passos são necessários para praticá-la no Brasil. Depois, ele mostrará os valores que são possíveis trabalhar a partir do esporte. Entre eles solidariedade, amizade, igualdade e compreensão. De acordo com o educador Marcos, a prática esportiva vai além do senso comum de que é uma atividade importante para tirar as crianças da rua e de ser benéfica para a saúde. “As pessoas necessitam incorporar o esporte ao longo de sua vida tornando-o um valor, um hábito. É preciso conhecer várias modalidades e também saber onde elas podem ser praticadas. Isso é contrário ao discurso de tirar da rua, porque a rua é um espaço público”, diz o professor do Prodhe. Como a prática de Ski Cross Country através do Rollerski é pouco difundida no país, a Clínica é uma oportunidade para formar pessoas que possam trabalhar com o esporte. Assim, posteriormente, é possível realizar eventos e também criar núcleos de expansão e treinamento dessa modalidade. Apesar da cultura do futebol ser muito forte no país, é importante aumentar

FOTOS: AMANDA OLIVEIRA

AMANDA OLIVEIRA

Nas curvas da Universidade, atletas do projeto Ski na Rua treinam para competições internacionais

“A gente tem a necessidade de capacitar pessoas para trabalhar com a modalidade que cresceu no país. — Leandro Ribela, atleta olímpico e fundador do projeto Ski na Rua

o leque de opções. “Esse é um processo de democratização esportiva”, ressalta Moura.

çam com mais facilidade, uma vez que já praticavam atividades como capoeira e futebol.

Ski na Rua Em 2012, Ribela resolveu explorar melhor o esqui de rodinha no Brasil e criou o projeto Ski na Rua. A proposta tem como objetivo utilizar o espaço da Cidade Universitária para fornecer aulas de Rollerski para crianças e, assim, ajudar em sua formação esportiva. “Uma situação que sempre me incomodou é ver os meninos guardando o carro, ao invés de usufruir dos espaço da mesma forma que as pessoas fazem durante o fim de semana”, afirma o atleta. O projeto começou com quatro crianças e, hoje, já tem 76 participantes. A ONG fica sediada na comunidade São Remo, onde os interessados podem se inscrever. De acordo com Ribela, os alunos têm aulas de inglês e espanhol, que acontecem na ETEC Cepam da USP, além de serem levados, esporadicamente, a passeios culturais como cinema e teatro. “A gente foi buscar outras coisas que ajudem na formação deles como pessoas e não só na parte específica esportiva”, afirma. O atleta Caio Moreira diz que uma das motivações que o incentivaram a participar do Ski na Rua foi a curiosidade, saber como esse esporte poderia ser praticado no asfalto. O projeto também o ajudou na sua formação pessoal ao aprender muitos valores. “Aprendi a me dedicar em treinos que eram mais difíceis. Tive que me superar para terminá-los”, relata Moreira. A parte física é realizada pelas diversas ruas da Cidade Universitária no Butantã. O trajeto é escolhido conforme a prática esportiva adequada para o treino do dia. Assim, os alunos percorrem tanto trechos planos perto da antiga Reitoria como também as desafiantes descidas da rua do Matão perto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Alguns participantes come-

Experiência Durante esses anos, Ribela percebeu que a autoestima das crianças melhorou muito e que os meninos começaram a se sentir parte de uma equipe. Além disso, 12 participantes do projeto já fazem parte de equipes juvenil, júnior e infantil da CBDN. Um dos alunos foi campeão do Campeonato Sul Americano na categoria Sub 14, treinando apenas dois dias na neve com Ski Cross Country, porém dois anos com Rollerski. Segundo o atleta, a CBDN tem incentivado o desenvolvimento do esqui de rodinha no Brasil, pois é mais fácil reproduzir essa modalidade no país. O custo também é menor. O valor de acesso à pista, por exemplo, custa em torno de três a cinco dólares. Entretanto, para o esportista ainda é preciso maiores avanços. Clubes, escolas e assessoria poderiam difundir esse esporte. O acesso aos equipamentos também é restrito, já que são importados. Dessa maneira, um passo importante seria ter lojas que fornecessem esses materiais no país. Competições O Brasil está no terceiro ano consecutivo do Circuito Brasileiro de Rollerski, que é composto de quatro etapas. Neste ano, a primeira fase foi realizada no autódromo de Interlagos e as outras três serão em São Carlos, onde está sendo desenvolvido um núcleo de treinamento para esse esporte. O atleta explica que a Federação Internacional de Ski vê o Ski Cross Country e o Rollerski como uma única modalidade. No ranking mundial do esporte, das cinco provas realizadas, três delas podem ser feitas com esqui de rodinha. Isso permite que pessoas que moram em lugares sem neve, também possam competir, já que viajar para treinar em outros países é muito caro.


ESPORTES

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Com corte, Copa USP tem destino incerto PRG alega falta de prestação de contas da LAAUSP e congela financiamento de campeonato FOTO: PAULA THIEMY

PAULA THIEMY

A Pró-Reitoria de Graduação (PRG) da Universidade de São Paulo congelou o financiamento da Copa USP. Para o campeonato, realizado anualmente pela Liga Atlética Acadêmica da instituição (LAAUSP), seriam destinados cerca de R$ 240 mil, entre gastos com arbitragem, representantes, materiais, premiação e divulgação. A parceria entre as partes também foi suspensa. Na edição 452, o Jornal do Campus noticiou, após conversa com o pró-reitor Antonio Carlos Hernandes, que o BichUSP - competição entre alunos ingressantes -, a Copa dos Campeões - jogos entre os vencedores da Copa USP e do Jogos da Liga do ano anterior - e a Copa USP - campeonato semestral para as atléticas da universidade - teriam os gastos pagos pela PRG. “O financiamento às competições esportivas sempre foi avaliado um a um. Como a prestação de contas do BichUSP ainda não ocorreu em sua plenitude, não se pode falar em financiamento posterior. Qualquer que seja o campeonato, é preciso fechar um projeto para começar outro”, alegou Hernandes. Já Felipe Guimarães Marco, o Guima, atual presidente da LAAUSP, afirma que desde o fim de março o dinheiro da Copa USP foi congelado pela PRG e a justificativa - a mesma dada ao JC - veio apenas há cerca de duas semanas. “Se fosse isso mesmo, não teria sentido ter congelado o financiamento da Copa em meio ao BichUSP, já que este ainda estava acontecendo”, disse. Guima afirma que o pró-reitor deu sua palavra de que financiaria todas as competições esportivas do primeiro semestre, mesmo sem ter qualquer docu-

Na quinta-feira (2), representantes das atléticas se reuniram para discutir a situação do campeonato mento assinado sobre o assunto. Ele também ressaltou que a organização da Copa USP começa cedo e os trâmites financeiros precisam ser feitos, mesmo durante a competição de calouros. Cobranças por relatórios do BichUSP foram feitas no início de março, mas o torneio acabou apenas em abril. A parceria entre as partes foi encerrada, oficialmente, em um e-mail enviado pela LAAUSP ao pró-reitor e representantes das atléticas. Nele, Breno Suleiman, diretor geral de modalidades da entidade, explicita que houve, no início do ano, um acordo para que a PRG fizesse a conferência de todos os 3474 atletas filiados à Liga. Como o prazo estava perto de se esgotar e nenhum dos procurados pôde ajudar, foi feita uma checagem manual e, assim, o aparato tecnológico não faria mais nenhum sentido. “Se na última semana sofremos com a revogação do tão necessário apoio financeiro, agora vemos o apoio institucional ser negligenciado até as últimas consequências.

O Esporte Universitário na USP seguirá os passos da Universidade, tateando por estabilidade. Novos tempos virão, outras oportunidades surgirão. Essa passou”, afirmou Suleiman no e-mail enviado.

“Como a prestação de contas do BichUSP ainda não ocorreu em sua plenitude, não se pode falar em financiamento posterior” — Antonio Carlos Hernandes, pró-reitor de graduação

Impactos No momento, a LAAUSP está com cerca de R$ 80 mil pendentes. Sem o financiamento, as atividades da entidade ficam comprometidas, assim como a própria Copa USP. Outra preocupação é com o futuro da Liga, já que existe a possibilidade das atléticas terem que desembolsar dinheiro para cobrir os gastos, e isso diminuiria a adesão ao grupo nos próximos anos. “Vejo a USP retrocedendo, portanto, o esporte dentro dela também. Apesar de esforços de pessoas maravilhosas que ainda fazem o esporte da USP acontecer”, declarou Guima. Alternativas Em reunião realizada na última quinta-feira (2), membros das atléticas filiadas à LAAUSP discutiram alternativas para contornar a

situação financeira. Inicialmente, as entidades pagarão à Liga eventuais parcelas de inscrições e outras dívidas. Além disso, existe a ideia de realizar festas e corridas de ruas para levantar fundos, assim vender produtos como blusas e camisetas. Na quinta-feira (9), haverá nova reunião para que outras opções sejam discutidas e alguma ação comece, de fato, para evitar que as atividades precisem ser paralisadas. CAEG Após o impasse, quem ficará responsável por lidar diretamente com as questões esportivas dentro da Universidade, no lugar do pró-reitor e da PRG, será a Comissão de Apoio ao Esporte no Ensino de Gradação (CAEG). Criada com “a incumbência de propor programas, disciplinas optativas livres, editais de fomento, realizar ações que tenham o esporte como agente mediador, e colaborar com a Pró-Reitoria de Graduação na definição de políticas para a valorização do ensino”, segundo Portaria publicada em 6 de junho de 2016, a CAEG será presidida pelo vice-diretor da Escola de Educação Física e Esporte, Júlio Cerca Serrão. Entre os membros estão João Francisco Vargas Meirelles e João Pedro Stéphano Martins, ex-presidentes da LAAUSP e da LAURP (Liga das Atléticas da USP de Ribeirão Preto), respectivamente. Questionado sobre a possibilidade do investimento voltar a ser disponibilizado, Hernandes disse que a comissão formada definirá as regras. “Qualquer financiamento agora dependerá do trabalho da CAEG, a quem cabe colaborar com a Pró-Reitoria de Graduação para a inserção do esporte como pilar na formação estudantil”, afirmou.

Equipes do interior deixam a competição Durante o BichUSP, a PRG custeou o transporte das atléticas do interior até São Paulo para que as equipes pudessem participar. A ideia era que o mesmo acontecesse para a Copa USP, mas como a Universidade não mais arcará com os custos de nada relacionado ao torneio semestral, alguns times desistiram da competição. Do Centro Acadêmico Armando de Salles Oliveira, o CAASO, que fica em São Carlos, as equipes de futebol, futsal, handebol, vôlei e tênis de campo masculinos deixaram a Copa USP, além do vôlei feminino e da natação, que não participará

da segunda etapa da competição específica. Renato Capelo, diretor de esportes da atlética, contou que “a decisão foi praticamente automática após o rompimento do acordo de financiamento do nosso transporte por parte da PRG. Desde o início, nossa atlética deixou claro que seria inviável a participação de nossas equipes sem o apoio institucional”. A Escola de Engenharia de Lorena, EEL,não terá mais a equipe de basquete feminino na competição. O principal motivo também é a falta de ajuda com o transporte. Para Ayla Castro, presidente da atlética, o grande impacto será em 2017, já que o time não vivenciará a Copa USP

e as atletas não terão a mesma experiência que as adversárias. Os representantes de Lorena e São Carlos já declararam que suas equipes não pretendem participar do Jogos da Liga, campeonato que acontece durante o segundo semestre. “A saída de equipes no meio do campeonato acarreta em um esvaziamento da fase classificatória, uma vez que confrontos deixarão de acontecer”, disse Vinicius Rolim, diretor geral de esportes da LAAUSP. “Times que tiveram a vitória assegurada por conta da saída das equipes do interior podem ter um cenário mais facilitado em relação a quem tem mais jogos”, completou.

ARQUIVO PESSOAL

PAULA THIEMY

Equipe de handebol masculino do CAASO deixou a Copa USP


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Alunos tornam greve espaço de criação Oficinas, aulas públicas e cine-debates fazem parte do calendário elaborado pelos estudantes

Instalação no departamento da Letras, na FFLCH, mostra linha do tempo de todas as reivindicações e resultados de greves desde 2000 convivem lado a lado, mas nunca encontram tempo para dialogar ou trocar experiências”, opina. Foi assim que Gustavo Drullis, ingressante de 2016 do curso de Jornalismo, tomou conhecimento dos problemas do departamento onde estuda: “Acredito que as pessoas estão debatendo e aprendendo nesse período de greve. Só fiquei sabendo de alguns problemas da USP por causa de atividades de greve, assembleias e discussões com amigos e outras pessoas. Descobri, por exemplo, que no meu próprio departamento, o CJE [Jornalismo e Editoração], há falta de professores”. A contratação de docentes e funcionários é uma demanda de diversos institutos, não só da ECA

– também sofrem com isso a FFLCH e o IME, cujos professores dão aula para outros 8 faculdades da USP, o que sobrecarrega o departamento. De acordo com o Comando de Greve do IME-USP, isso já foi levado para a Reitoria no começo de 2015, e a resposta, dada muito depois, foi apenas a contratação de docentes temporários. Estão sendo debatidos cortes de verbas nos departamentos, cotas, o porquê de entrar em greve, a legalidade disso e a perseguição aos alunos que estão nas ocupações por parte dos professores e da Reitoria – questões que são internas, estruturais e organizacionais da Universidade. Mas as atividades planejadas pelos estudantes também se relacio-

GIOVANNA LUKESIC

Durante períodos de greve são propostas diversas atividades políticas e culturais nos espaços da Universidade. Na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), na Escola de Comunicação e Artes (ECA), no Instituto de Estatística e Matemática (IME), no Insituto de Física (IF), na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) e no Instituto de Biologia (IB) da USP foram pensados calendários semanais de encontros, discussões, exibições de filmes e oficinas dos mais variados temas com o intuito de discutir assuntos que são deixados de lado durante as aulas. “A gente vem de uma série de greves que ficaram bastante esvaziadas por não existir espaço para os estudantes debaterem. Então a gente pensou a ocupação, em primeiro lugar, exatamente para poder ressignificar o espaço da Universidade”, afirma Flávia Toledo, estudante de Letras e integrante do comando de greve. Estão presentes nos calendários de greve oficinas – tanto de habilidades requeridas nos cursos (edição de vídeos, construção em bambu) como extracurriculares, de dança, autoconfiança em público, defesa pessoal e kung fu, por exemplo. Temas como acessibilidade, aquecimento global, a tragédia ambiental que aconteceu em Mariana no final de 2015 e a conjuntura internacional também estão sendo debatidos. Os eventos propostos pelas ocupações estão atraindo as pessoas para o campus nos institutos em que as aulas estão suspensas. Segundo um aluno que não quis se identificar, a greve desse ano está mais forte e mobilizada do que a de 2014, com participação de muitos calouros e veteranos, o que permite uma interação maior entre a comunidade e o espaço. “As atividades são muito importantes porque possibilitam uma real interação entre pessoas que

GIOVANNA LUKESIC

GIOVANNA LUKESIC

“Viver minha primeira greve na USP está sendo muito rico politicamente e está me mostrando diversos problemas na universidades sobre os quais eu ainda não tinha me dado conta”

— Gustavo Drullis, aluno de jornalismo Estudantes comparecem a aula pública com Maurice Politi sobre sua experiência durante ditadura militar

nam com o que está acontecendo no país de modo geral. Após uma menina de 16 anos ter sido estuprada coletivamente no Rio de Janeiro, diversos institutos, desde a FFLCH até a Biologia, promoveram eventos abordando a cultura do estupro e temas correlacionados, como a violência de gênero. Na Letras, houve uma mesa de discussão sobre o assunto em que foram convidadas funcionárias da universidade. Uma delas foi Vilma Maria da Silva, trabalhadora do bandejão da Física e militante do grupo de mulheres Pão e Rosas. “Foi enriquecedor. As mulheres deveriam se juntar mais”, comenta. De acordo com Toledo, que estava na organização do debate, foi possível ir além da questão individual e dar um panorama mais geral do que é a opressão contra a mulher. Ainda na linha de opressões, as ocupações História e Geografia, Letras e ECA estão promovendo atividades com recorte de raça. Outro assunto em voga no Brasil inserido no calendário de greve foi democracia. Vários institutos têm abordado bastante a ditadura de 1964, promovendo cine-debates, mesas de discussão e aulas públicas sobre como era estar na USP nesse período para, assim, tentar traçar um paralelo com a atual conjuntura de repressão. “O momento de greve está contribuindo bastante para que as pessoas adquiram mais conhecimento sobre o momento pelo qual passa a Universidade”, afirma Drullis.


CULTURA

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Momento atual renova temática de peça Apresentação no TUSP sobre greve dos metalúrgicos de 1979 fica em cartaz até começo de julho CAROLINA MONTEIRO

Espetáculo apresentado no Teatro da Universidade de São Paulo (Tusp) pode ajudar nas reflexões sobre o atual momento da instituição. Em cartaz até 3 de julho, o espetáculo “O Pão e a Pedra”, produzido pela Companhia do Latão, conta a história de diferentes personagens durante a greve dos metalúrgicos de 1979 no ABC Paulista. No papel central, a peça apresenta a personagem de uma mulher que se disfarça de homem para melhorar suas possibilidades de trabalho no ambiente fabril. Dirigida por Sérgio de Carvalho, professor no Departamento de Artes Cênicas (CAC) da ECA, o espetáculo discute duas questões que estão em pauta na sociedade atualmente - a reinvindicação de direitos sociais através da greve e a luta das mulheres por igualdade de direitos e reconhecimento de seu trabalho. “Procuramos fazer uma peça que respeitasse a verdade dos acontecimentos históricos de 1979. A única liberdade poética que nos permitimos foi quanto ao grau de participação das mulheres, pois ao contrário do que diz a peça, elas não trabalhavam em linha de montagem ainda numa fábrica como a Volkswagen. Mas essa ‘licença ficcional’, que surgiu como metáfora, au-

menta a atualidade do debate. É uma peça em que a luta de classes se aproxima de outras questões políticas, o feminismo é uma delas”, comenta o professor. A peça combina elementos documentais da greve histórica, que contava com o apoio e reinvindicações de mais de 70 mil trabalhadores no Estádio da Vila Euclides, atualmente estádio do São Bernardo Futebol Clube, em São Bernardo do Campo, com as ideologias diferenciadas de três grupos distintos: os sindicalistas, a Igreja progressista e o movimento estudantil de esquerda. Girando em torno da personagem principal, os grupos desenvolvem suas histórias e mostram seus conflitos a partir da vida e as más condições de seu mercado e ambiente de trabalho. Os personagens são representados por Beatriz Bittencourt, Beto Matos, Érika Rocha, Helena Albergaria, João Filho, Ney Piacentini, Rogério Bandeira, Sol Faganello e Thiago França. A pesquisa realizada para formular o roteiro da peça foi iniciada com dois anos de antecedência, feita por uma equipe de seis pesquisadores, entre eles Julian Boal, filho do dramaturgo, ator, diretor e pedagogo brasileiro Augusto Boal. O ponto de partida da pesquisa foi estruturado a partir das relações contraditórias entre as ideologias dos diferentes grupos

que participaram da greve e da experiência de vida que estavam enfrentando no país. Além disso, a luta dos trabalhadores na ocasião representou um grande papel na democratização do país, no período da ditadura militar. Mas a ideia inicial era montar uma peça sobre a questão atual da religião, vinculada com a política e seu crescimento no Brasil como força econômica e midiática, suas formas de mercantilização. Sérgio conta que foi no decorrer da pesquisa sobre a ideia original que surgiu a ideia de contar a história da greve dos metalúrgicos. “Estudando um pouco a história da religião no país, me deparei com um movimento anterior diferente, quando setores da Igreja Católica lutaram contra a ditadura, defenderam os trabalhadores, especialmente pela atuação dos padres ligados à Teologia da Libertação no início dos anos 70. Acabei lendo textos sobre a proximidade dessa Igreja crítica do capitalismo com o movimento sindical do ABC”, diz. Sérgio de Carvalho também apoia a greve em curso na USP, porque luta contra o chamado “desmonte” da universidade pública. “O que surge agora é uma negação do próprio sentido do projeto de universidade, na medida em que a pauta tecnicista se impõe à força: a máquina de pesquisa e educação deve ser instru-

mentalizada pelo capital porque ele está aí como suposto único real existente, e esse processo de redução da função pública aos interesses dos agentes do mercado agora tem respaldo não apenas estadual mas também no governo federal” comenta, lembrando da declaração do governador Geraldo Alckmin sobre a Fapesp, que criticou as pesquisas de base. A Companhia do Latão, com sede na Vila Madalena, existe desde 1996, com a montagem do espetáculo Ensaio para Danton. É dirigida desde o início por Sérgio de Carvalho, e se constitui comogrupo teatral interessado na reflexão crítica sobre a sociedade atual, que não somente produz peças, mas também atividades pedagógicas, edições e experimentos artísticos.

Teatro da Universidade de São Paulo Rua Maria Antônia, 294 Data: até 3 de julho Horário: Quintas-feiras a sábados, 19h30 | domingos, 18h Preços: inteira: R$ 20 meia-entrada: R$ 10 98 lugares Classificação 18 anos

LENISE PINHEIRO

Atores encenam o espetáculo “O Pão e a Pedra” no Teatro da Universidade de São Paulo, produzido pela Companhia do Latão. Apresentação coincide com greve na USP


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CRÔNICA

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Nós em nós: o estupro nosso de cada dia HELOÍSA IACONIS

A minha garganta tem nós. Escrevo para tentar me salvar da combustão interna: nas entrelinhas deste texto, choro, aperto os dentes, grito, bravejo, insulto a sociedade, chamo o nome de Deus. Meu Deus! Tamanha voz, porém, soa como uma mudez incapaz. Embaraço os dedos no cabelo em um sinal inconformado. Respiro fundo, contraio os olhos, levo um soco – o de hoje! – no âmago do meu sexo. O chuveiro ligado sinaliza, ainda no raiar de mais uma manhã, o segundo banho de água fria. O primeiro, pasme, tomei minutos antes, quando, vestida com uma camisola e debaixo das cobertas, senti-me mais nua do que ao adentrar o box do toalete. Um punhado masculino contra uma menina paira na manchete do dia: 33 homens estupraram uma garota em um morro carioca. Trin-ta-e-três. Separados em conjuntos de 24 horas, eles não cabem em um mês. E nessa rima pífia não cabe a minha revolta. O meu estômago tem nós. Lanço o celular, através do qual li a notícia, na cama. Três dezenas mais três: o primeiro homem me faz erguer as sobrancelhas; o segundo me deixa com o olhar atento; o terceiro empurra o meu abdômen; por conta do quarto, agarro o lençol; o quinto bate a porta, fechando-a; o sexto arrepia os meus braços; o sétimo joga as minhas costas na cabeceira; o oitavo comprime a minha cintura; o nono me dá tremedeira nas mãos; o décimo deposita uma palma na minha coxa; o décimo primeiro, descalço, livra-se da camiseta; o décimo segundo é o motivo dos meus pés gelarem; o décimo terceiro extrai os cobertores que, outrora, eram proteção; o décimo quarto liga uma câmera para registrar tudo; o décimo quinto acha divertido o pânico impresso em meu rosto; o décimo sexto tira o cinto; com o décimo sétimo, engoli a saliva a seco; o décimo oitavo desabotoa a calça, removendo-a; o décimo nono me deita no colchão; o vigésimo cresce em cima de mim; o vigésimo primeiro dispara o meu coração; o vigésimo segundo me manda calar a boca; o vigésimo terceiro me beija; o vigésimo quarto rasga a minha roupa; o vigésimo quinto retira o meu sutiã; para o vigésimo sexto, imploro piedade, em vão; o vigésimo sétimo apalpa os meus seios brutalmente; o vigésimo oitavo não traja mais cueca; o vigésimo nono abaixa a minha calcinha; o trigésimo toca a minha vagina; o trigésimo primeiro contempla, com sadismo, as minhas lágrimas; o trigésimo segundo engatilha o pênis; o trigésimo terceiro me estupra. Ai! O meu útero tem nós. Escorre sangue. Estou toda tingida

de vermelho escarlate. Sangro. Não, não fui eu quem, fisicamente, foi violentada. Ainda não. A cena descrita se passou em minha mente assim que soube do ocorrido com a moça no Rio de Janeiro. Aconteceu com ela. Pulsa em mim, no entanto, doses cavalares de empatia, um dos antídotos que combatem o abominável. Dotada desse sentimento e, por também ser mulher, com o peso do medo, coloco-me no lugar da adolescente de 16 anos. Aconteceu com ela, mas poderia ter sido eu. Isto é: fui eu. Eu sou a outra. No banho, ao tatear o meu corpo, sinto esse casulo me escapar por entre os dedos, mais escorregadio do que o sabonete que o limpa. Existem indivíduos que, amparados no machismo secular, acreditam que a minha casca seja deles. Em um organismo social em que a cultura do estupro encontra morada, materializo o pavor. A minha pele tem nós. Seco o maior órgão que um humano possui, por meio do qual gozo as dores de ser do sexo tratado como alimento do gozo alheio. A toalha amacia um vergão em meu braço direito. Alívio: apenas uma picada de pernilongo. Contudo, ah!, poderia ser a marca de um “não” ignorado por um rapaz, não é? O relógio, agora, resgata-me da suposição que me molesta: o tempo ligeiro enfatiza a minha demora para a aula. Bebo o suco de laranja feito pela minha mãe, no momento em que a mesma dedilhava a cantiga de sempre: “cuidado, filha”. O aviso carrega a ciência inata de quem sabe que a rua guarda perigos, ainda mais para nós, mulheres. Os 33 homens estão nas redondezas: o vizinho do lar ao lado que volta e meia distribui piscadelas; o motorista que buzina para uma presa (somos reduzidas a isso) que caminha na calçada; o transeunte que espalha cantadas; o professor que se delicia com as curvas das alunas; o médico que examina demais, por assim dizer, as suas pacientes; o participante de reality show que se satisfaz com crianças; o primo munido de um arsenal de piadinhas machistas; o político

que almeja dificultar o aborto em caso de estupro; o namorado que pouco se importa com o prazer da companheira; o pai de família que transa com a esposa a força. Quem compartilhou e achou graça no vídeo do estupro, não se engane, também é um deles. Eles são muitos. Nós, entretanto(s), podemos mais. Os meus calcanhares têm nós. Aquiles, homem, não compreenderia. Os meus tendões não exalam fraqueza e, sim, medo. Medo que vira dor, dor que vira raiva: por vezes, vejo-me prostrada de modo impotente em face dos que jorram potência misógina pela próstata. Ergo-me, todavia, e retorno à luta. Vencida a fila, entro no circular. Ponteiros controlados: estou, ufa!, no horário. Durante o curto trajeto até a Cidade Universitária, no ônibus abarrotado, em pé no corredor, penso naqueles que, em seus comentários virtuais, culpabilizam a vítima do estupro coletivo: “ela vestia short ou saia?”, “se ela estivesse na escola, no trabalho, na igreja ou em casa, isso não aconteceria”, “quem mandou sair sozinha à noite”, entre outras crias discursivas do leque da desigualdade de gênero. Vestimentas, horas, locais, bebidas: esses elementos, meu caro, não violentam uma menina. Ponho as minhas sinapses a berrarem: estupradores estupram! E eles, atenção!, são os culpados! Eles e não a mulher! Ao passo que esse eco ressoava por todo o meu eu, notei uma protuberância encostada em mim: respaldado pela lotação do transporte público, um amontoado de músculos se deu o direito de me sarrar. Estanco o nojo e decido descer no próximo ponto. Licença para lá, licença para cá: sem olhar para trás, desembarco antes do que deveria. O percurso alterado, além da repugnância, rendeu-me um atraso. O meu cérebro tem nós. Apesar de ser um ambiente afamado pela produção de conhecimento, a universidade não está imune de agressões várias: os estupros de alunas de Medicina são alguns dos diversos exemplos. Em um desses casos, a mera suspensão de seis meses do criminoso me enche de indignação. Há o estudante que classifica a Politécnica como “faculda-

de de homem”. O graduando de Psicologia que deslegitima a fala da colega, denominando-a de “louca”. O futuro educador físico que não enxerga, com seriedade e respeito, as atletas de sua escola. E o que dizer do garoto que embebeda as jovens nas festas? O orientador que menospreza o artigo da orientanda por ela ser mulher. Não se pode esquecer de quem propaga a questão binária: “a moça ou é bonita ou inteligente”, afirma um integrante da nata acadêmica. A última aula se encerra com o início do anoitecer. Os conteúdos aprendidos amorteceram, temporariamente, os meus tormentos. Deparar-me com o escuro, porém, dá margem para a tensão. Se o homem teme ter o celular roubado, a mulher receia ter o seu ser violado. Cogitei a hipótese de visitar uma amiga de outro instituto: a ideia foi esvaziada quando recordei de que passaria pela Rua do Matão. No almoço, apertei os passos para atravessar a Praça do Relógio, já que avistei um homem vindo em minha rota. Sonhei, ontem, que interrogava as paredes do CRUSP: quantas cenas abusivas elas acumulam na memória? Fui esperar o ônibus do outro lado da rua, desviando, pois, de um grupo masculino que abocanhava o ponto em que costumo pegar a condução. As minhas pernas balançam em sinal de desconforto. O circular chegou e, que sorte!, sentei-me próxima a uma garota: trocamos meios sorrisos que transbordaram desafogos inteiros. A minha alma tem nós. A cada mulher vítima de violência, um pouco menos de sangue é bombeado pelo meu coração: poderia ter sido eu. Isto é: fui eu. Eu sou a outra. Sou a adolescente estuprada por 33 homens, os quais são produtos de uma sociedade que abriga o machismo em suas múltiplas manifestações – do “mulherzinha” como xingamento ao sexo não consensual. Sou a idosa de 80 anos, falecida em São Gonçalo, após estupro em sua casa. Sou a menina abusada no Piauí. Sou as uspianas diminuídas. Empatia. Por favor! 180 discado para denunciar: agressores na cadeia, onde, engraçado, eles se borram frente à possibilidade do estupro. Ao terminar a leitura deste texto, saiba, mais uma vida deve ter sido bolinada em terras canarinhas. Sou ela também. Finalizada a escrita, renasce a força necessária para enterrar a cultura do estupro antes que a maldita me enterre. Cansada estou da relativização de crimes, do silenciamento que me estanca as veias. Pessoa que sou, peço perdão ao poeta pela paráfrase: à parte isso, tenho em mim todas as mulheres do mundo. Por todo o meu eu, transporto nós; em cada nó meu ou seu, há nós, todas nós, mulheres.


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